Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:210/15.6BELSB
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:02/02/2017
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
REVELIA
Sumário:I - Cabe ao Ministério Público, segundo jurisprudência uniformizada, o ónus da prova dos factos‐fundamento do conceito jurídico indeterminado “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa”;

II - Cabe ao Ministério Público o ónus da alegação dos factos negatórios dos fatores de integração real ou de ligação efetiva à portugalidade; isto é, à nação portuguesa como uma comunidade histórico-cultural com vocação ou aspiração a uma comunidade política, caracterizável espiritual e culturalmente, onde avultam a história comum, atitudes e estilos de vida, maneiras de estar, ideia de futuro;

III – Pelo que, se o M.P. não alegar factos suficientes, a ação improcederá, ainda que o demandado não conteste (cfr. artigo 567º/1 do Código de Processo Civil: revelia; confissão de todos os factos alegados pelo M.P.) ou não impugne factos pessoais ou de que deva ter conhecimento (cfr. artigo 574º do Código de Processo Civil; admissão por acordo de factos não impugnados pelo contestante).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa processo especial de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa contra

LAURINDA ……………………………….

Por sentença de 17-11-2016, o referido tribunal absolveu a ré do pedido.

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Inconformado com tal decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1) No regime da nossa lei, a aquisição da nacional idade portuguesa pode ter lugar desde que o estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português declare, na constância do matrimónio que pretende adquirir esta nacionalidade (artigo 3° nº 1 da Lei da Nacionalidade nº 37/81 de 3/10, na redação da Lei nº 2/06 de 17/04).

2) O preceito em questão tem que ser conjugado com as restantes normas do citado diploma legal, nomeadamente com o disposto no artigo 9°, pois "pode adquirir" não é equivalente a "adquire".

3) A "ligação efetiva à comunidade nacional" é verificada através de algumas circunstâncias objetivas que revelam um sentimento de pertença a essa comunidade, entre outras, da Língua portuguesa falada em família ou entre amigos, das relações de amizade e profissionais com portugueses, do domicílio, dos hábitos sociais, das apetências culturais, da inserção económica, ou interesse pela história ou pela realidade presente do País.

4) A nacionalidade portuguesa só deve ser concedida a quem tenha um sentimento de unidade com a comunidade nacional, em termos da comunhão da mesma consciência, impondo a lei uma ligação efetiva, já existente a esta comunidade, o que no caso concreto não se verifica, porquanto a Requerida nasceu e vive em Angola, tudo num quadro que aponta, impõe-se afirmá-lo, para uma identificação com a realidade angolana e não com a portuguesa.

5) O pedido de aquisição de nacionalidade portuguesa formulado pela Requerida, assenta essencialmente no seu casamento com um cidadão nacional.

6) Não resultaram provados factos de existência de elos persistentes que possam corporizar um sentimento de pertença à comunidade nacional, de modo a poder afirmar-se que a Requerida é já psicológica e sociologicamente portuguesa.

7) Com efeito, ao contrário do entendido na decisão recorrida, é nosso entendimento que os factos dados como provados na sentença, não evidenciam a existência de laços que corporizam um sentimento de pertença à comunidade nacional, pelo contrário evidenciam a inexistência da sua ligação efetiva à comunidade portuguesa.

8) A vivência comum entre cônjuges de diferentes nacionalidades pode implicar uma recíproca interiorização e influência das respetivas culturas, valores e referências.

9) A intensidade e sentido em que essa influência se concretiza carece de alegação factual e suporte probatório.

10) Na verdade, quem requeira a aquisição de nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a ex essência de ligação efetiva à comunidade nacional, nos termos do preceituado no artigo 57º nº l do DL nº 237-A/2006 de 14 de dezembro.

11) A douta sentença fez uma incorreta interpretação do disposto nos artigos 9º alínea a) da Lei nº 37/81, na redação introduzida pela Lei nº 2/2006 de 17 de abril, e 56° nº 2 alínea a), do DL nº 237-A/2006 de 14 de dezembro.

12) Deverá ser revogada e substituída por outra em que se declare a procedência da presente ação.

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Não houve contra-alegação (tal como não houve contestação).

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.

As questões a resolver neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

1) A Requerida nasceu em 20 de maio de 1976, em Luanda (cfr. fls. 6).

2) Contraiu casamento em 13.01.06, em Luanda, com o cidadão português Carlos ………….., nascido em 1941, em Luanda (cfr. fls. 7 e 23).

3) Com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa, nos termos do artigo 3º da Lei nº 37/81, de 3 de outubro, com base no referido casamento, a Requerida prestou, em 18.02.2014, declarações para aquisição da nacionalidade portuguesa, tendo afirmado possuir ligação efetiva à comunidade portuguesa (cfr. fls. 3).

4) Esta declaração foi recebida pela Conservatória dos Registos Centrais, tendo-se observado facto impeditivo da sua pretensão, razão pela qual o registo em questão não foi lavrado.

5) A Requerida reside em Luanda (cfr. fls. 4).

6) A Requerida e o marido são pais de Cláudio ……………… e de Laura ………………, nascidos em Luanda, respetivamente em 2001 e em 2003, ambos de nacionalidade portuguesa (cfr. fls. 25 e 27).

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Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação das questões que constituem o objeto deste recurso.

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II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há, pois, condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional) e da efetividade do seu sistema jurídico (1), ter presentes, “inter alia”, os seguintes princípios jurídicos fundamentais: (i) juridicidade e legalidade administrativas, ao serviço do bem comum; (ii) igualdade de tratamento material e axiológico de todas as pessoas humanas; (iii) certeza e segurança jurídicas; e (iv) tutela jurisdicional efetiva e não meramente formal.

Em consequência, este tribunal utiliza um método jurídico adequado à garantia efetiva, previsível e transparente dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, através de um processo decisório teleologicamente orientado apenas (i) à concretização dos valores da Constituição e (ii) ao controlo racional de coerência dos nexos da sistematicidade jurídica que precedam a resolução do caso.

Ora, o presente recurso de apelação demanda que conheçamos do seguinte:

A factualidade provada adquirida nos autos demonstra ou não demonstra que a Ré não tem uma ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa?

Vejamos.

a)

A resposta a esta questão, que é de qualificação pelo julgador dos factos provados (matéria de direito), exige no momento atual que precisemos previamente o seguinte:

- O entendimento plasmado nos Acs. de UJ do STA nº 3/2016 e nº 4/2016 é aqui por nós pressuposto; refere-se à “espinha dorsal de todo o processo civil” (ANTUNES VARELA, Manual…, 2ª ed., pág. 448, nota 1), que é o ónus da prova, ou seja, à conclusão que o juiz deve retirar, a final, se não ficarem provados os factos relevantes suficientes (artigos 342º ss do Código Civil) ou, durante a instrução, se tiver dúvidas quanto à demonstração de certo facto relevante (artigo 414º do Código de Processo Civil).

Não se refere às situações processuais reguladas nos artigos 566º ss e 574º do Código de Processo Civil, designadamente no nº 1 do artigo 567º e nos nº 2 e 3 do artigo 574º:

- Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar -se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram -se confessados os factos articulados pelo autor.

- Consideram -se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.

- Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.

Como se sabe, a distribuição do ónus da prova é um instituto de direito material regulado nos artigos 342º ss do Código Civil atual, que pode ser definido como a regra de julgamento segundo a qual, num contexto processual hibrido de dispositivo e inquisitório, como o nosso, onde sobressaem os artigos 411º e 413º do Código de Processo Civil (princípios do inquisitório e da aquisição processual), a parte que invoque a seu favor uma situação jurídica tem contra si o risco de não serem adquiridos no processo todos os factos positivos ou negativos que, segundo a lei material, sejam idóneos a fazer nascer a situação jurídica favorável invocada; é uma regra que, devido à sua origem histórica e à sua ligação ao ónus de alegação, se projeta durante a instrução nos termos previstos no artigo 414º do Código de Processo Civil – cfr.: A. ANSELMO DE CASTRO, DPCD, III, págs. 345-365; ANTUNES VARELA, Manual…, 2ª ed., págs. 447-456; F. FERREIRA DE ALMEIDA, DPC, II, 2015, págs. 230 ss, maxime pág. 233; REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa…, 3ª ed., págs. 590 ss).

Citando o Consº FERREIRA DE ALMEIDA, na ob. cit., págs. 231 e 233:

“(…). Deste modo, o princípio a observar, em caso de dúvida, quer sobre a realidade de um facto, quer sobre a repartição do ónus da prova (…), é o de que a mesma se resolve contra a parte a quem o facto aproveita (…). Daí que ter o ónus da prova redunde, afinal, na conveniência de assumir a iniciativa probatória (…)”; “A essência da postulação legal das normas de distribuição do ónus da prova não reside propriamente na distribuição do encargo da prova pelos sujeitos processuais (…). O que tais regras, no fundo, visam é determinar o sentido em que o tribunal deve decidir (e contra quem deve decidir) quando o resultado probatório não é alcançado, isto é, quando aquele que invoca o direito não faz prova dos factos constitutivos do direito alegado (…) ou aquele contra quem a invocação (do direito) é feita não consegue provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado (…). Daí que se fale, a este propósito, da instituição de uma regra de julgamento ou regra de decisão ou de um ónus da prova objetivo ou material”.

Ora, tal pressuposto, assente nos cits. Acs. do STA, quer dizer que este TCA Sul, que anteriormente aplicava entendimento diferente (cfr., entre muitos outros, o Acórdão deste tribunal de 19-05-2016, Processo nº 12987/16), considera hoje o seguinte:

(1º) na ação administrativa negatória especificamente prevista e imposta ao M.P. para defesa da legalidade no artigo 57º/8 do Decreto-Lei nº 237-A/2006 e nos arts. 9.º, alínea a) e 10.º da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, na redação que lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, cabe ao Ministério Público o ónus da prova dos factos-fundamento do conceito jurídico indeterminado “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa”;

(2º) tal ação declarativa não é de simples apreciação negativa (cfr. artigo 10º/2/3 do Código de Processo Civil), não se lhe aplicando o disposto no artigo 343º/1 do Código Civil.

É, pois, o oposto do antes entendido pelo STJ e por este TCA Sul. Entendia-se o seguinte:

“- é sobre o requerente da aquisição de nacionalidade portuguesa por efeito da vontade que recai o ónus de provar a sua ligação efetiva à comunidade nacional;

- a ligação é efetiva quando se mostra com carácter de permanência e produz efeitos, não bastando que o interessado queira ser português e que, para tanto, estabeleça amizades com portugueses, se associe a coletividades portuguesas, entenda língua e cultura portuguesas, pois é preciso, ainda, que comungue da cultura portuguesa como se fosse membro da nação portuguesa, do povo português;

- em caso de dúvida sobre a efetividade da ligação do requerente à comunidade nacional, a questão deve ser resolvida contra ele;

- a demonstração da comunhão na cultura portuguesa deve traduzir-se com referência a fatores de integração fortes, mas não necessariamente cumulativos, como sejam o domicílio, a língua, a família, a cultura, as relações sociais, a atividade socioeconómica e socioprofissional”.

Note-se, porém, que tal ponto controverso pode vir a ser irrelevante, tudo dependendo da dimensão da factualidade provada ou adquirida nos autos. É que, se o autor invocar suficientes factos negativos dos fatores de ligação efetiva e esses factos ficarem provados (seja por confissão decorrente de revelia do réu – cfr. artigo 567º/1 do Código de Processo Civil, seja por acordo decorrente da falta de impugnação de factos pessoais ou que o réu deva conhecer – cfr. artigo 574º/2/3 do Código de Processo Civil, seja por “prova judicial” baseada no senso comum e na normalidade – cfr. artigo do 351º Código Civil), não relevará autonomamente o problema da distribuição do ónus da prova.

b)

Ora, o Tribunal Administrativo de Círculo a quo considerou que não foi adquirida no processo (cfr. os cits. artigos 411º, 413º, 414º e 567º/1 ou 574º/2/3 do Código de Processo Civil) factualidade que permita concluir que a Ré não tem ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa, isto é, à nação portuguesa.

Portanto, assente que está que, aqui, o risco de não serem adquiridos no processo todos os factos positivos ou negativos que, segundo a lei material, são idóneos a fazer nascer a situação jurídica invocada (tal situação só pode ser a “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa”) corre por conta do autor M.P., temos, pois, de analisar se os factos adquiridos no processo são ou não suscetíveis de serem integrados na previsão legal “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa”.

Tal inexistência de ligação efetiva tem, necessariamente, a ver (“a contrario”) com os seguintes fatores de integração ou de ligação à nação e sociedade portuguesas:

- Domicílio habitual do cidadão estrangeiro interessado em ser português,

- Hábitos sociais do cidadão estrangeiro interessado em ser português,

- Comunhão cultural com a sociedade portuguesa por parte do cidadão estrangeiro interessado em ser português

- Integração social do cidadão estrangeiro interessado em ser português e ou (conforme o caso concreto)

- Sentimento de pertença à sociedade portuguesa por parte do cidadão estrangeiro interessado em ser português.

É o que a jurisprudência portuguesa tem entendido desde há décadas, quanto ao lado positivo do agora requisito negativo descrito no artigo 9º/a) da Lei da Nacionalidade (cfr. os Acs. do STJ de 31-10-2006, Processo 06A2924; do STJ de 06-07-2005, Processo 05B2300; do STJ de 15-01-2004, Processo 03B3941; do STJ de 30-04-2003, Processo 03B1191); só que, de acordo com os cits. Acs. nº 3/2016 e nº 4/2016 do STA, interessam hoje os factos-índice de tais fatores de integração ou de ligação (efetiva) num sentido negatório.

Sobre esta análise e qualificação (que é matéria de direito), independentemente da outra questão do chamado ónus da prova, cfr. também:

- Acórdão do TCA Sul de 6-6-2013, Processo 05580/09;

- Acórdão do TCA Sul de 3-5-2012, Processo 0622/10;

- O ponto IV do sumário do Acórdão do TCA Sul de 17-3-2011, Processo 06449/10.

Cumpre ainda, tentando esclarecer o terreno movediço em que nos podemos estar a situar, precisar alguns conceitos jurídico-constitucionais muito pertinentes para o tema em apreço; assim:

(i) como a Lei da Nacionalidade e o Decreto-Lei nº 237-A/2006 se referem à “comunidade nacional portuguesa”, pode-se concluir que tal legislação adota as noções de povo e de nação, para os efeitos em causa na presente ação de oposição (a aquisição da nacionalidade ou da cidadania portuguesa);

(ii) ora, nação é a comunidade histórico-cultural com vocação ou aspiração a comunidade política, caracterizável espiritualmente e culturalmente, onde avultam a história comum, atitudes e estilos de vida, maneiras de estar, ideia de futuro (JORGE MORANDA, Manual…, III, págs. 68 ss; e Curso de D.C., 2, pág. 31-32); não se trata apenas de sociedade civil;

(iii) e povo (conceito jurídico) corresponde aos membros do Estado como sujeito e objetos do poder político (ROUSSEAU); é uma unidade de ordem, uma comunidade, definida através da cidadania, pois está sujeita às leis do Estado e os seus membros estão ligados de modo permanente com o poder político; a “universitas civium”, cuja unidade é a sua matriz fundamental; ou como dizia KELSEN, é a vigência pessoal da ordem jurídica; não se trata da população de um país, pois esta é apenas o conjunto de residentes em certo território, sejam estrangeiros ou cidadãos (vulgo, nacionais);

(iv) um dos grandes princípios do Direito internacional é o da ligação efetiva das pessoas ao Estado de cidadania, sobretudo no sentido de evitar a sua perda;

(v) leis como as L.O. nº 1/2013, nº 8/2015 e nº 9/2015 espelham a delicadeza desta matéria e provam que o legislador se move cautelosamente, com bom senso, sem voluntarismos e com liberdade decisória (dentro do sistema jurídico).

Parece-nos, pois, que tanto o Decreto-Lei nº 237-A/2006, como a Lei da Nacionalidade, não se referem apenas a uma qualquer ligação à sociedade portuguesa, mas sim a uma ligação – efetiva – à atual nação portuguesa e ao atual povo português.

Daqui resulta, por exemplo, que, caso se considerasse que a ordem jurídica portuguesa (Constituição da República Portuguesa, Código Civil, Código de Processo Civil, Lei da Nacionalidade e Decreto-Lei nº 237-A/2006) exige ao cidadão de outro Estado, para este se poder tornar também cidadão português, a alegação dos factos-fundamento da cit. ligação efetiva, este ónus de alegação teria então de conter sempre, no mínimo, o convívio habitual com vários cidadãos portugueses num ambiente social e ou cultural português. Porém, no contexto atual e com base nos cits. Acs. do STA, entende-se que o M.P. tem o ónus de alegar (e o ónus de provar) os factos-fundamento da não ligação efetiva do cidadão estrangeiro à atual nação portuguesa (comunidade histórico-cultural com vocação ou aspiração a comunidade política) e ao atual povo português (“universitas civium”, cuja unidade é a sua matriz fundamental).

c)

E que factos temos no caso presente para demonstrar que tais fatores de integração não existem?

São os escassos factos atrás transcritos.

Resultam dos escassos factos alegados no processo. Processo, aliás, com a revelia do réu (cfr. artigos 566º-568º do Código de Processo Civil; ANTUNES VARELA, Manual…, 2ª ed., págs. 342 ss; Consº F. FERREIRA DE ALMEIDA, DPC, 2015, págs. 120 ss).

Nada mais de factual se adquiriu neste processo, sob a égide dos importantes, mas por vezes esquecidos, artigo 411º (“Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”), artigo 413º (“O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado”) e artigo 567º/1 (“Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar -se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram -se confessados os factos articulados pelo autor”) ou artigo 574º/2/3 (“Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior. Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário”), todos do Código de Processo Civil.

d)

Ora, com estes factos concretos não se pode concluir, juridicamente, que a Ré não tem uma ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa.

Nem é suficiente o facto de a ré ter feito o pedido à nossa A.P. no estrangeiro, onde reside.

Enfim, a interessada é casada com um cidadão português (ainda que não nascido português – “nacionalidade adquirida” – aspeto este talvez ignorado pelo legislador) há mais de 3 anos (cfr artigo 3º/1 da LN); e a cit. factualidade (alegada e) provada ou adquirida no processo (cfr. artigos 411º, 413º, 414º e 567º ou 574º do Código de Processo Civil) não se integra no conceito jurídico indeterminado de “falta de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa” por parte da ré, no âmbito das seguintes disposições legais: artigos 9º/a) e 10º da Lei da Nacionalidade e artigos 14º, 31º ss e 56º ss do Decreto-Lei nº 237-A/2006.

Diferente seria (e muito diferente, dada a verificada revelia; cfr. artigos 566º ss do Código de Processo Civil), para os interesses doutamente prosseguidos pelo M.P., se (i) o M.P. tivesse alegado e se depois (ii) o processo tivesse adquirido factualidade provada (cfr. os cits. artigos 411º, 413º, 414º e 567º/1 ou 574º/2/3 do Código de Processo Civil) como a seguinte (a aferir, natural e normalmente, caso a caso):

-a interessada nunca colaborou com a A.P., nem eventualmente o fará com o tribunal, para efeitos de esta se certificar de alguma ligação dela à nação portuguesa, pois, convidada a juntar elementos de prova de tal ligação, nada disse e nada apresentou,

-a ré nunca veio a Portugal e ou

-a ré sempre viveu e trabalhou fora de Portugal,

-a ré não conhece a História de Portugal e ou

-a ré não convive habitualmente com o dia a dia de Portugal,

-a ré nunca trabalhou em Portugal e ou

-a ré não conhece os hábitos alimentares e culturais dos portugueses,

-a ré não sabe quais são os órgãos de soberania portugueses e os seus titulares e ou

-a ré desconhece onde ficam cidades como Lisboa, Porto, Coimbra ou Braga,

-a ré não tem o hábito de conviver com portugueses fora do seu agregado familiar e ou

-a interessada não conhece o nosso país,

-a interessada não sabe a data do início da república em Portugal e ou (conforme o caso concreto) e ou

-a interessada não sabe a data do início da democracia social em Portugal.

Em síntese: na presente ação administrativa negatória e apesar dos efeitos da revelia do demandado (cfr. artigo 567º/1 do Código de Processo Civil), o autor M.P. não logrou (alegar e) obter factos concretos suficientes para integrar o conceito jurídico indeterminado de “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa”.

Concluímos, pois, assim:

I - Cabe ao Ministério Público, segundo jurisprudência uniformizada, o ónus da prova dos factos‐fundamento do conceito jurídico indeterminado “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa”;

II - Cabe ao Ministério Público o ónus da alegação dos factos negatórios dos fatores de integração real ou de ligação efetiva à portugalidade; isto é, à nação portuguesa como uma comunidade histórico-cultural com vocação ou aspiração a uma comunidade política, caracterizável espiritual e culturalmente, onde avultam a história comum, atitudes e estilos de vida, maneiras de estar, ideia de futuro;

III – Pelo que, se o M.P. não alegar factos suficientes, a ação improcederá, ainda que o demandado não conteste (cfr. artigo 567º/1 do Código de Processo Civil: revelia; confissão de todos os factos alegados pelo M.P.) ou não impugne factos pessoais ou de que deva ter conhecimento (cfr. artigo 574º do Código de Processo Civil; admissão por acordo de factos não impugnados pelo contestante).

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto pelo M.P.

Sem custas.

Lisboa, 2-2-2017


(Paulo H. Pereira Gouveia, relator)

(Nuno Coutinho)

(J. Gomes Correia)



(1) Conjunto organizado e racional de regras e princípios jurídicos, caracterizado pela adequação valorativa e pela unidade interna, cujo núcleo irradiante e atrativo é a Constituição em sentido material.