Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:627/11.5BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:10/22/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIRO
CPCV
POSSE
MERA DETENÇÃO
Sumário:
I. Os embargos de terceiro supõem a qualidade de terceiro do embargante e que a penhora em relação à qual se reage ofenda a sua posse ou qualquer outro direito incompatível com a sua realização ou o seu âmbito.

II. É possuidor quem exerce ou quem tem a possibilidade de exercer poderes de facto sobre uma coisa (corpus), com intenção de ser proprietário (animus dominii), possuidor (animus possidendi) ou de ter a coisa para si (animus sibi habendi).

III. A celebração de contrato-promessa de compra e venda, ainda que acompanhada de traditio, não comporta, per se, a aquisição da posse.

IV. É fundamental, para que se possa falar em posse e não em mera detenção, que o promitente comprador aja como se fosse titular do direito real correspondente ao domínio de facto consubstanciado no corpus.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

B....., Lda. (doravante Recorrente ou Embargante) veio apresentar recurso da sentença proferida a 07.07.2014, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, na qual foram julgados improcedentes os embargos de terceiro por si deduzidos no âmbito do processo de execução fiscal (PEF) n.º ..... e apensos, instaurados no Serviço de Finanças (SF) de Sintra 2, contra J......

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“1- As instâncias recorridas fizeram uma errada qualificação da prova pelo que devem dar-se como provados, além dos factos dados como provados pelas instâncias recorridas, todos os restantes factos mencionados em VI a) a l)

2- Ainda que se não dê como provados os factos enunciados em VI a) a l) deve, face aos factos dados como provados pelas instâncias recorridas, revogar-se a sentença recorrida e substituir-se por outra que reconhece que a posse da embargante é juridicamente válida e eficaz e preenche os pressupostos dos art°s 1251.º e segts do C.C..

3- Que sendo a posse da embargante válida e eficaz, prevalece sobre a penhora efetuada pela AT e assiste-lhe quer o direito de retenção quer a ser paga preferencialmente. (Art°s 755° n° 1 f) e 442° do C.C.)

4- Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto no art° 1251° e segts do C.C., devendo ser substituída por outra que reconheça conto válida e eficaz a posse dos imóveis que a recorrente vem exercendo desde 17/1/2009”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:
a) Há erro no julgamento da matéria de facto?
b) Há erro de julgamento, em virtude de a Recorrente ser titular da posse do imóvel em causa?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A. No Serviço de Finanças de Sintra - 2 corre termos o processo de execução fiscal n.° ..... e apensos, no qual é executado J...... (PEF apenso)

B. Na citada execução fiscal, foi penhorado o terreno para construção sítio na Rua ....., inscrito na matriz predial da freguesia de Sintra (Santa Maria e S. Miguel), sob o artigo ....., e descrito na 2a Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.° ....., com o valor patrimonial de € 128.820,00 com registo da penhora no dia 19.05.2009. (PEF apenso)

C. Consta de fls. 13/15 documento datado de 17.01.2009, intitulado contrato promessa compra e venda” cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, celebrado entre J.....  e C.....  e “B.....  LDA” em que o primeiro promete vender à segunda, para o que aqui releva, o imóvel identificado na al.B) do probatório pelo preço de € 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil euros), com entrega nessa data da quantia de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros), sendo o remanescente entregue no acto da escritura. (Doc. fls. 13/15 dos autos)

D. No convénio a que alude a al.C) do probatório, pode ler-se, designadamente o seguinte:
«Clausula Quarta:
Os lotes de terreno identificados na Cláusula primeira, têm uma edificação a ser construída, que doravante será da responsabilidade dos segundos contraentes, sendo por isso facultada a licença de construção.» (Doc. fls. 13/15 dos autos)

E. A Embargante no ano de 2009 realizou obras no lote de terreno no qual está construído um edifício. (Depoimento da 1ª e 2ª testemunha)

F. As obras consistiram em pinturas, assentamento de azulejo. (Depoimento da 1a e 2a testemunha)”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Dos factos com interesse para a decisão da causa, constantes dos articulados, todos objecto de análise concreta, não se provou o seguinte:

A. A embargante tem utilizado como dona a fracção identificada na al. B) do probatório desde a data de celebração do contrato promessa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto quanto nas alíneas A) a D) resultou do exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das referidas alíneas do probatório, sem prejuízo da sua pontual conjugação com a prova testemunhal que de seguida se analisa, que não serviu para os infirmar.

A prova testemunhal relevou para a prova dos factos levados às alíneas E) a F) por força dos depoimentos prestados pelas testemunhas F.....  e A....., o primeiro porque trabalhou na obra em questão ao serviço da “U.....  Lda” e a segundo por ser funcionária da Embargante.

O facto dado como não provado resultou, em primeiro lugar, da ausência de prova documental a seu respeito.

Em segundo lugar, e complementarmente, o depoimento das testemunhas inquiridas não logrou em momento algum convencer o tribunal de terem efectivo conhecimento da utilização como dona pela embargante da fracção identificada”.

II.D. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Considera a Recorrente que o Tribunal recorrido errou o seu julgamento de facto. Assim, em seu entender, da prova testemunhal produzida, resultaram provados os seguintes factos:
a) Que a obra foi terminada através de recurso à mão de obra da empresa de construções civis - U.....  Lda;
b) Que essa solução teve a ver com a forma encontrada para a embargante recuperar créditos que detinha perante a empresa U.....  Lda, cuja atividade era e é a construção civil;
c) Que a finalização da moradia adquirida pela embargante, em fase de construção nos lotes em causa, foi supervisionada pelo funcionário da empresa U.....  Lda., Sr. Eng.° Civil F....., que passou a ser o técnico responsável da obra;
d) Que todos os materiais aplicados na obra após 17.01.2009 foram fornecidos pela embargante;
e) Que esse fornecimento era efetuado após solicitação da empresa de construção U.....  Lda. e à medida das necessidades da obra;
f) Que após 17.01.2009 foi a embargante quem forneceu todos os materiais necessários à obra, sendo que adquiria a terceiros e mandava entregar na obra todos os materiais que a própria não podia fornecer, por não fazerem parte do seu próprio comércio de pedra mármore e granito;
g) Que desde 17.01.2009 é a embargante quem detém a posse da moradia instalada nos lotes de terrenos;
h) Fazendo da mesma utilização desde que o estado das obras o permitiu. Nomeadamente,
i) Ali tem instalado no R/Ch Cave o seu arquivo;
j) Ali se deslocando, com alguma frequência, funcionários da embargante para levarem e irem buscar documentos;
k) Que desde que ficou habitável a moradia passou a ser utilizada no 1.º andar pela sócia gerente da embargante e sua família;
l) Que à moradia não foi atribuída licença de utilização por falta de requisitos legais, sendo essa a razão de não ter sido efetuada, até agora, a respetiva escritura.

Vejamos.

Atento o disposto no art.º 640.º do CPC ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão[1].

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­‑se-lhe os ónus já mencionados[2].

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que a Recorrente não cumpre os ónus a seu cargo, nem mesmo no corpo das alegações, referindo apenas que da prova testemunhal produzida resultam provados os factos elencados supra, não indicando que depoimentos de que testemunhas foram relevantes para cada um dos factos elencados nem, consequentemente, as passagens da gravação dos depoimentos prestados consideradas relevantes.

Como tal, cumpre rejeitar o recurso nesta parte.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento, uma vez que, em seu entender, da prova produzida (independentemente da decisão proferida a propósito da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto), resultou demonstrada a sua posse, prevalecendo sobre a penhora efetuada pela administração tributária (AT).

Vejamos.

Nos termos do art.º 237.º do CPPT:

“1 - Quando o arresto, a penhora ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro”.

O incidente de embargos de terceiro tem, pois, ínsita uma função preventiva ou repressiva (dependendo se a diligência ordenada já foi ou não realizada), visando acautelar direitos de terceiros e tutelar os seus interesses em situações em que tais direitos sejam ameaçados, na sequência de penhora ou apreensão[3].

Os embargos de terceiro supõem a qualidade de terceiro do embargante e que a penhora em relação à qual se reage ofenda a sua posse ou qualquer outro direito incompatível com a sua realização ou o seu âmbito.

O CPPT não nos faculta qualquer a noção de terceiro, para efeitos de embargos, pelo que é de recorrer ao disposto no n.º 1 do art.º 351.º do CPC/1961, aplicável in casu, nos termos do qual:

“Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

Assim, de uma leitura conjunta do art.º 237.º, n.º 1, do CPPT, com o mencionado art.º 351.º, n.º 1, do CPC/1961, resulta que, no âmbito da execução fiscal, será terceiro, para efeitos de embargos de terceiros, quem não tenha a posição de parte no processo de execução fiscal, o que se afere, designadamente, quer porque a execução não foi, ab initio, contra ele instaurada, quer porque a própria diligência de ofensa da posse ou direito não é contra si dirigida. Ou seja, está aqui subjacente um conceito material de terceiro, porquanto este não será o destinatário dos efeitos jurídicos nem da diligência nem da execução.

Por outro lado, como referido, os embargos de terceiro supõem que a penhora ofenda a sua posse (cfr. art.º 1285.º do Código Civil) ou qualquer outro direito incompatível com a sua realização ou o seu âmbito.

Quanto ao conceito de posse, o mesmo decorre do disposto no art.º 1251.º do Código Civil, consubstanciando-se no exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (e não de um direito pessoal), comportando, num sistema subjetivista como o nosso[4], dois elementos fundamentais:
a) O corpus, o elemento empírico, que consiste na prática de poderes de facto, que se aferirão de acordo com a própria afetação concreta do bem; e
b) O animus, ou seja, a intenção de agir como beneficiário do direito, o elemento psicológico.

Logo, é possuidor quem exerce ou quem tem a possibilidade de exercer poderes de facto sobre uma coisa (corpus), com intenção de ser proprietário (animus dominii), possuidor (animus possidendi) ou de ter a coisa para si (animus sibi habendi)[5].

Caso estejamos perante o exercício de um poder de facto sobre a coisa, mas desprovido do animus nos termos referidos, estaremos perante uma mera detenção.

Como referido no art.º 1253.º do Código Civil:

“São havidos como detentores ou possuidores precários:

a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito”.

Para que o terceiro possa ser reconhecido como possuidor, para efeitos dos embargos de terceiro, deve invocar e provar os elementos constitutivos da sua posse, isto é, corpus e animus, devendo ainda invocar o modo de aquisição dessa mesma posse.

No tocante à determinação de outros direitos incompatíveis com a realização ou o âmbito de penhora ou qualquer ato de apreensão, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[6], tal “… faz-se considerando a função e a finalidade concreta da diligência (…). // Assim, são incompatíveis com a penhora (…) o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, viriam a extinguir-se com a venda executiva (art. 824.º, nº2 CC), bem como, quando a penhora incida sobre um direito, a titularidade deste de que um terceiro se arrogue; mas não o são os direitos reais de gozo que a subsequente venda não extingue, os direitos reais de aquisição e de garantia que, como normalmente acontece, encontrem satisfação no esquema da ação executiva, nem os direitos pessoais de gozo e de aquisição, que são inoponíveis ao exequente ou, no caso especial do arrendamento, perduram para além da venda executiva”.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, não sendo a Recorrente titular de nenhum direito real incompatível com a realização ou o âmbito da penhora, do que se trata é de aferir se a mesma é possuidora do imóvel em causa.

Como resulta da factualidade assente, foi penhorado, a 19.05.2009, no âmbito do PEF n.º ..... e apensos, o terreno mencionado em B. do probatório.

Por outro lado, resulta provado que foi celebrado contrato-promessa de compra e venda desse mesmo terreno, entre o executado e a ora Recorrente, a 17.01.2009, pelo preço de 450.000,00 Eur., referindo-se no mencionado contrato ter sido entregue nessa data a quantia de 25.000,00 Eur. (cfr. facto C.), ficando ainda provado que, em 2009, foram feitas obras no lote em causa (onde está construído um edifício), concretamente pinturas e assentamento de azulejo (cfr. factos E. e F.).

Ora, em regra, a penhora de coisa, que tenha sido objeto de contrato-promessa de compra e venda anterior, não constitui, per se, um ato ofensivo da posse, desde logo porque a celebração de tal contrato não comporta, por si mesma, a aquisição da posse.

Concretizemos.

O contrato-promessa consiste na “… convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato…” (cfr. n.º 1 do art.º 410.º do Código Civil).

Como referido por Antunes Varela[7], “[o] contrato-promessa cria a obrigação de contratar, ou mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido”.

Normalmente o contrato-promessa tem apenas eficácia inter partes, podendo, no entanto, ser dotado de eficácia real, produzindo, nesse caso, efeitos relativamente a terceiros (cfr. art.º 413.º do Código Civil), o que não é o caso dos autos.

Como já referimos, com a celebração de um contrato-promessa não decorre, inexoravelmente, que o promitente comprador seja o possuidor da coisa prometida, mesmo que haja traditio, sendo que, em regra, nestes casos, o promitente comprador é apenas titular de um direito pessoal de gozo.

Efetivamente, como mencionado supra, inerente ao conceito de posse está não só o corpus, mas o animus, ou seja, é fundamental, para que se possa falar em posse e não em mera detenção, que a atuação seja de tal forma que o promitente comprador aja como se fosse titular do direito real correspondente ao domínio de facto consubstanciado no corpus.

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 25.06.2015 (Processo: 0765/14):

“Podendo verificar-se inversão do título de posse quando o promitente-comprador que com a tradição da coisa, exerce a posse em nome do promitente-vendedor, passe contra este a exercer a posse em nome próprio, praticando actos possessórios que constituam manifestações do elemento objectivo (corpus) e subjectivo (animus) da posse, o certo é que a inversão do título de posse não decorre da mera tradição do bem, ainda que esta seja uma das condições para que esta possa ter lugar”.

Conclui-se, pois, que a traditio não equivale à posse, podendo, no entanto, haver situações em que, na sequência da celebração de contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, se preencham efetivamente todos os requisitos da posse.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.02.2010 (Processo: 01117/09):

“Por norma, o promitente-comprador, uma vez obtida a traditio do bem, apenas frui um direito de gozo, autorizado pelo promitente-vendedor e mediante tolerância deste, daí resultando que, nessa perspectiva, seja um mero detentor precário (artigo 1253.º do Código Civil), posto que não age com animus possidendi, praticando apenas meros actos materiais dessa posse (corpus).

De facto, como sustentam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. III, 2.ª edição pag. 6 e Antunes Varela, na RLJ, Ano 124, pag. 124:

“O contrato-promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.

São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.

Questão que aquele último autor retoma na RLJ, a fls. 128, nos seguintes termos:
“...
O promitente-comprador investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedido na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, não é possuidor dela, precisamente porque, sabendo ele, como ninguém, que a coisa pertence ainda ao promitente-vendedor e só lhe pertencerá a ele depois de realizado o contrato translativo prometido, não pode agir seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa”.

Significa isto que a posse conferida pela traditio da coisa para o promitente-comprador será, em regra, meramente precária, sem excluir, contudo, que face ao probatório se possa concluir ter actuado de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade e, dessa forma, configurada uma verdadeira situação possessória”.

Assim, há que aferir, casuisticamente, se a atuação evidencia atos próprios de possuidor ou apenas de mero detentor.

A jurisprudência tem considerado, por exemplo, refletir a existência de verdadeira posse, na sequência de celebração de contrato-promessa, o facto de ter sido pago integralmente o preço ou haver comportamentos (a aferir casuisticamente) que refletem que o promitente comprador se comporta como verdadeiro titular do direito de propriedade[8].

Portanto, pode suceder que, na sequência da celebração de contrato-promessa, se verifique a transmissão da posse, desde que estejam reunidos os já mencionados dois elementos deste instituto.

Ora, desde já se refira que, tal como decorre da sentença proferida em 1.ª instância, não se pode concluir, atenta a factualidade assente, que estejamos perante uma situação de aquisição da posse.

Desde logo, ficou apenas provado ter sido declarado que era pago, com a celebração do contrato-promessa, o valor de 25.000,00 Eur., valor esse que representa pouco mais de 5% do preço total. Portanto, não foi pago valor próximo sequer do preço integral.

Por outro lado, veja-se que ficou apenas provado que se acordou no documento mencionado em C. do probatório ficar a edificação construída nos lotes “da responsabilidade” da Recorrente (cfr. facto D.), tendo ainda ficado provada a realização de algumas obras em 2009.

Ora, este quadro não se configura se não como uma situação de atuação da Recorrente por mera tolerância do promitente-vendedor, não refletindo mais do que uma mera detenção de uma parte do objeto do contrato (veja-se que o contrato permite essa utilização pela Recorrente apenas no que toca à edificação e não em relação ao imóvel em causa).

Ou seja, não está minimamente demonstrado o animus possidendi, acrescentando-se ainda que, mesmo o corpus, apenas ficou demonstrado em relação a parte do imóvel, concretamente a edificação ali integrada.

Como tal, ao contrário do que refere a Recorrente, não estamos perante uma situação de posse.

Assim, a mesma carece de razão.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 22 de outubro de 2020


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha

________________________
[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
[2] V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
[3] Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Embargos de Terceiro na Acção Executiva, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 13 e seguintes.
[4] Cfr. Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, policop., Coimbra, pp. 66 e 67.
[5] Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., p. 71.
[6] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol 1.º, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2014, p. 663.
[7] Das obrigações em geral, Vol. I, 9.ª Ed., Almedina, Coimbra, 1996, p. 318.
[8] Cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27.10.2010 (Processo: 0453/10) e os Acórdãos deste TCAS, de 22.10.2015 (Processo: 08884/15) e de 19.05.2016 (Processo: 09492/16).