Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:7720/14.0BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:03/14/2019
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:IRS
MÉTODOS INDICIÁRIOS
Sumário:I - As situações de anulação judicial e parcial do acto tributário somente podem verificar-se em relação a actos tributários que tenham base em correcções técnicas à matéria colectável, pois somente em relação a esta espécie de aperfeiçoamentos da mesma é possível cindir o acto tributário e declarar a anulação parcial do mesmo, que não já em relação a actos tributários assentes na fixação da matéria colectável por métodos indirectos.
II - No caso em análise, o que o Tribunal pôde concluir foi que, por um lado, o cálculo do número de actos médicos omitidos desconsiderou a prática (demonstrada) do sujeito de emitir um recibo por vários actos médicos e que, por outro lado, o valor unitário/recibo, de 102.000$00, era comprovadamente excessivo.
III - Assim, foi considerado que tal erro de quantificação da matéria colectável por métodos indirectos afectou na totalidade a validade da liquidação do imposto apurado com recurso à avaliação indirecta, incluindo a liquidação de juros compensatórios.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

l – RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por F……. contra a liquidação adicional de IRS e juros compensatórios, referente ao ano de 1994, no valor total de 1.304.533$00.

Nas suas alegações, a Recorrente, FAZENDA PÚBLICA, formulou as conclusões seguintes:

«I - O ora Recorrido omitiu, na sua declaração de rendimentos Mod. 3 de IRS referente ao ano de 1994, um conjunto de recibos verdes, referentes a actos médicos por ele praticados;

II - Não carreou ao processo quaisquer documentos de suporte que permitissem à AT liquidar o Imposto em falta mais próximo da realidade, pese embora, em diversas fases (acção inspectiva, direito de audição e Comissão de Revisão) tivesse tido oportunidade para tal;

III - A AT porque está vinculada ao princípio da legalidade, teve de socorrer-se do recurso a métodos indirectos, tendo apurado 110 recibos em falta, os quais originaram a liquidação adicional n.º 532….. no montante de € Esc. 1.304.533, a que corresponde o valor de € 6.506,98;

IV - O ora Recorrido aceita que terá emitido 109 recibos, existindo, apenas, a disparidade de 1 só recibo;

V - O Tribunal "a quo" determinou a anulação parcial da liquidação de IRS em crise, na exacta medida do valor referente ao rendimento apurado por métodos indirectos, ou seja, Esc. 2.193.000;

VI - A liquidação adicional que deu origem ao presente recurso no montante de € 6.506,98 corresponde ao rendimento apurado de Esc. 2.193.000 (€ 10.938,63), se, se mandar anular a predita importância, anula-se a liquidação na sua totalidade;

VII - É o próprio Recorrido que confirma que omitiu 32 recibos, o que nos leva a concluir que, existiu evasão fiscal;

VIII - Concordar com o sentenciado, é o mesmo que compactuar com a predita evasão e, violar o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) exigido a outros sujeitos passivos em situações análogas;

IX - Conclui-se que a liquidação adicional n.º 532….., referente a IRS do ano de 1994 no montante de € 6.506,98, deverá permanecer na ordem jurídica, requerendo-se, desde já, a improcedência dos presentes autos.

X - Caso se entenda o contrário, o que por mera cautela se admite, e visando o presente recurso o princípio da proporcionalidade, quer para a AT, quer para o ora Recorrido, requer-se, desde já, a redução em 50% da importância mandada anular pelo Tribunal "a quo", ou seja, Esc. 1.096.500 (€ 5.469,32), redução esta que anularia parcialmente a liquidação em crise, uma vez que, não implicaria, necessariamente, uma nova liquidação, fazendo-se, desta forma a costumada JUSTIÇA.

Termos em que deve o presente Recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência ser revogada a Sentença ora sindicada.»


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O recorrido, F………, apresentou as suas contra alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1) A Recorrente aceita como acertada (e sem submissão a Recurso) toda a matéria de facto dada como provada na sentença lavrada pelo Tribunal "a quo" sob as letras A) até V) - de fls. 3/23, à 13/23.
2) O Impugnante conseguiu provar que no ano de 1994, no desenvolvimento da sua atividade profissional de médico, cobrava o valor de 450$00 por cada "K'', em relação às cirurgias que lhe fossem pagas pela Companhia de Seguros I……., bem como que o valor de 102.000$00 por cirurgia se afigurava muito elevado (a média dominante era de 7.500$00 e de 15.000$00, sendo o valor de 35.000$00 uma exceção) e ainda que, cada recibo por si emitido a favor da Companhia de Seguros I…… continha a quitação da prestação de mais do que um serviço médico.
3) Perante a prova produzida por parte do Impugnante e dos documentos do processado, o Tribunal "a quo", considerou que este alcançou cumprir a prova do excesso ("...o excesso que competia ao IMPUGNANTE provar..." - fls. 21/23), pois a conduta da Administração Fiscal é "grave" (fls. 21/23 do sentenciado), nomeadamente por ter desconsiderado que o Impugnante emitia um único recibo referente a vários actos médicos, do que decorre que o cálculo apurado sofra de erro e por conseguinte a fixação da matéria coletável em ilegal e EXORBITANTE excesso de quantificação.
4) A prova da exorbitância da quantificação feita por Impugnante releva direta e consequentemente para a fixação presuntiva do montante do rendimento sujeito a imposto, é que atenta a natureza das normas em causa (art. 38º n.º 5 do CIRS; art. 52º do CIRC e art. 90º da LGT, como se refere a fls. 20/23 do sentenciado), quanto à incidência objetiva do imposto, verifica-se uma proibição constitucional de presunções legais absolutas de rendimentos, derivadas dos princípios da capacidade contributiva (art. 73º da LGT), e da igualdade quanto à tributação dos rendimentos reais, tudo em respeito pelo Estado de Direito Democrático.
5) A capacidade contributiva do sujeito passivo sempre tem que funcionar como um limite da tributação, podendo "in casu" (devendo) a A. Fiscal ter que apreciar aquilo que foi este exato sujeito passivo, em termos de resultados fiscais, em cédula de IRS, nos exercícios mais próximos. Missão que apesar de fundamental e obrigatória foi omitida.
6) A Administração Fiscal no âmbito do procedimento de revisão da matéria colectável (art. 91° da LGT) reconheceu "que o método utilizado pela inspecção pode não ter sido o mais concreto" (conforme facto provado sob a alínea M), a fls. 10/ 23 da sentença).
7) Em desrespeito pelo princípio do inquisitório - e por conexão da verdade material - que se justifica ainda pela obrigação de prossecução do interesse público imposta à atividade da administração tributária (art. 266° n.º 1 da CRP e 55º da LGT), a Administração Fiscal omitiu diligências que lhe era possível levar a cabo, o que se apresenta de per si como um vício capaz e suficiente de anular o acto de liquidação, além de que errou exageradamente na quantificação mu1tiplicadora.
8) O Recorrido nunca admitiu que emitiu 109 recibos na sua totalidade no exercício "sub Júdice”: pois além dos 67 emitidos admite a omissão de 12. O que a AF também aceita.
9) Do processado, alcança-se que qualquer alusão - por uma única vez no ano de 1999 - a 97 recibos emitidos, foi mero e momentâneo erro de escrita, pois o seu número, nomeadamente aceite pelos agentes da A.F. é de 67.
10) É inverdade sem suporte factual e processual em que se estribe o redigido pela Recorrente no n.º 8 das suas Alegações, pois o Recorrido nunca omitiu a emissão de 134 recibos (dobro dos 67 emitidos).
11) É igualmente inverdade que o Recorrido afirme (ou confirme) que omitiu 34 recibos, nem os autos tal comportam como factualidade provada.
III. Do Pedido:
Doutamente se requer a improcedência do Recurso apresentado pela R.F.P., visando a manutenção da Justiça já alcançada pelo sentenciado no Tribunal "a quo", em torno do "thema decidendum", decisão esta que se deve manter "in tottum".»

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O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

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Colhidos os vistos do actual colectivo, vem o processo submetido à conferência para decisão.



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II – FUNDAMENTAÇÃO

1- De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

«A) No ano de 1994, o IMPUGNANTE, F……., no Hospital C…, em Lisboa, apenas assistiu sinistrados a cargo da Companhia de Seguros I….. - cf. Doc. 4 junto pelo Impugnante - declaração do Conselho de Administração do Hospital C…, a fls. 22

B) No ano de 1994, o IMPUGNANTE prestou cuidados médicos a título gratuito, a E…….., no Hospital Inglês. - cf. Doc. 5 junto pelo Impugnante - declaração manuscrita da própria, a fls. 23

C) Em 1994, o valor dos actos médicos era aferido em função da Tabela de K.- depoimento da testemunha, F…….

D) Em 1994, o valor unitário do índice K, utilizado para fixação de honorários de cirurgias a pagar pela Companhia de Seguros I….. ao IMPUGNANTE, era de 450$00. - cf Doc. 11 junto pelo Impugnante - da Companhia de Seguros I….., a fls. 29

E) Em 1994, as intervenções que o IMPUGNANTE fazia eram de poucos K. - depoimento da testemunha, F……

F) Em 1994, 102.000$00 por uma cirurgia, era um valor acima da média. – depoimento da testemunha, F…….

G) Em 1994, o IMPUGNANTE emitiu, além do mais, os seguintes recibos em que é cliente a Companhia de Seguros I…..:

- n.º ABZ 031…. , de 13 de Julho de 1994, no valor de 15.000$00, referente à prestação de cuidados médicos aos sinistrados "”J…….” e “V……", ambos em 31 de Maio de 1994, e pelo valor de 7.500$00 cada um;

- no valor de 65.000$00, referente à prestação de cuidados médicos aos sinistrados "J…….", no valor de 35.000$00", “J…..", no valor de 15.000$00, “M……", no valor de 7.500$00, e “V…..", pelo valor de 7.500$00, entre 18 de Maio e 23 de Junho de 1994;

- no valor de 67.500$00, referente à prestação de cuidados médicos aos sinistrados “A……", no valor de 22.500$00" , “P……", no valor de 27.500$00, “C…..", no valor de 10.000$00, e “C……", pelo valor de 7.500$00, entre 26 de Abril e 16 de Agosto de 1994;

- no valor de 22.500$00, referente à prestação de cuidados médicos aos sinistrados “C……", no valor de 7.500$00" e “S………", no valor de 15.000$00, entre 23 e 25 de Agosto de 1994. - cf Doc. 6, 7. 8 e 9 junto pelo Impugnante - recibos verdes e respectivo descritivo elaborado pela Companhia de Seguros I….., de fls. 23 a 27

H) Em 15 de Março de 1999, o IMPUGNANTE foi ouvido pelos SERVIÇOS DE INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA da DIRECÇÃO DISTRITAL DE FINANÇAS DE LISBOA, tendo declarado que:

“1 - Efectua operações nas clínicas ou hospitais em que os doentes em que os doentes preferem, com ajudantes/colaboradores variáveis, emitindo os recibos no momento do pagamento dos honorários ou logo após o pagamento dos mesmos. Em casos pontuais em que não dispõe da caderneta de recibos no momento, emite sempre o recibo que entrega posteriormente ou envia pelo correio. De qualquer forma o recibo é sempre emitido.

2 - No ano de 1994, que se recorde, efectuou operações no B…. Hospital e eventualmente no Hospital da C….". - cf Termo de Declarações, a fls. 75

I) Em 18 de Junho de 1999, os SERVIÇOS DE INSPECÇÃO TRIBUTARIA DA DIRECÇÃO GERAL DOS IMPOSTOS, elaboraram o Relatório de Inspecção Tributária, referente à inspecção realizada ao IRS de 1994 do IMPUGNANTE, de cujo teor se extrai:

“Texto integral com imagem”

“Texto integral com imagem”

“Texto integral com imagem”





J) Em 18 de Junho de 1999, os SERVIÇOS DE INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA DA DIRECÇÃO GERAL DOS IMPOSTOS, corrigiram o IRS de 1994, do IMPUGNANTE, “pela aplicação de métodos indirectos, no montante de 2.193.000.00" que teve “como base a não emissão de recibos relativos a alguns serviços prestados pelo sujeito passivo", apurando os seguintes valores:




K) Em 18 de Outubro de 1999, o IMPUGNANTE solicitou ao Director da 1ª DIRECÇÃO DE FINANÇAS DE LISBOA, a revisão do valor que lhe foi fixado, a título de rendimentos líquidos, referentes a IRS de 1994, mediante entrega de requerimento de cujo teor se extrai:




L) Em 8 de Novembro de 1999, realizou-se a reunião de peritos a que se refere o artigo 91º da Lei Geral Tributária, para apreciar o pedido de revisão apresentado pelo IMPUGNANTE, descrito na alínea anterior, não tendo os mesmos chegado a acordo. - cf. Acta n.º 144…., referente ao Procedimento de Revisão n.º 683…., a fls. 48 e 49

M) Na reunião identificada na alínea anterior, o Perito da Fazenda Pública, emitiu laudo, do qual se extrai o seguinte:

“Na reunião havida o perito do sujeito passivo não ofereceu novos dados, admitindo a não emissão de 8 das 12 intervenções de que não há documentação, e o valor de 50.000 em cada sem qualquer critério ou base de sustentação, o que elevaria para 400.000 o acréscimo ao rendimento líquido fixado. Tendo em conta que o método utilizado pela inspecção pode não ter sido o mais concreto foi-lhe feita a proposta que fossem consideradas como omitidas o valor de 10 intervenções ao valor médio de 80.000, atendendo ao ano (1994), proposta esta que não foi aceite por parte do perito.

Face ao que ficou dito e à falta de elementos fornecidos pelo contribuinte e à sua aceitação de que houve falta de emissão de recibos, primeiro no valor de 250.000,00 depois de 400.000,00, sou de parecer que deverá ser mantido o rendimento líquido fixado em 7.100.565,00". - cf. Laudo do Perito da Fazenda Pública, referente ao Procedimento de Revisão n.º …./99, a fls. 50 e 51

N) Na reunião a identificada na alínea I) supra, o Perito do Sujeito Passivo, emitiu laudo, no qual conclui pedindo que a final deve “fixar-se o rendimento líquido com um acréscimo de 400.000,00 e não no valor de 2.193.000,00 antes fixado". - cf. Laudo do Perito do Sujeito Passivo, referente ao Procedimento de Revisão n.º …./99, a fls. 52 e 53

O) Em 30 de Novembro de 1999, foi proferida decisão no Processo de Revisão n.º …/99, requerido pelo IMPUGNANTE, de cujo teor se extrai o seguinte:
















P) Em 14 de Dezembro de 1999, a DIRECÇÃO GERAL DOS IMPOSTOS corrigiu o IRS do IMPUGNANTE, referente a 1994, tendo apurado o valor de € 6.506,98 (1.304.533$00), a pagar até 2 de Fevereiro de 2000. - cf Doc. 1 junto pelo Impugnante - Liquidação n.º 532….., a fls. 16

Q) Em 19 de Janeiro de 2000, o IMPUGNANTE apresentou no 7° Bairro Fiscal de Lisboa, um pedido de emissão de certidão com informações referentes à fixação de juros compensatórios, a favor do Estado no valor de 509.684$00. - cf Doc. 2 junto pelo Impugnante - requerimento de fls. 17 e verso

R) Em 31 de Janeiro de 2002, o IMPUGNANTE liquidou na totalidade o plano de pagamento em prestações, referente ao 1RS de 1994. - cf ofício n.º 0009…, de 11 de Março de 2008, do Serviço de Finanças de Lisboa 07 e impressão de “Consulta de Documentos de Pagamento, de fls. 138 a 141

S) Na sequência do pagamento do descrito na alínea anterior, foi apurada a quantia de 508,46 €, referente a juros compensatórios a restituir. - cf ofício n.º 0009…, de 11 de Março de 2008, do Serviço de Finanças de Lisboa 07 e impressão de “Consulta de Documentos de Pagamento', de fls. 138 a 141

T) Em 1994, o valor dos actos médicos era aferido em função da Tabela de K. - depoimento da testemunha, F…….

U) Em 1994, as intervenções que o IMPUGNANTE fazia eram de poucos K. - depoimento da testemunha, F........

V) Em 1994, 102.000$00 por uma cirurgia, era um valor acima da média. - depoimento da testemunha, F........


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FACTOS NÃO PROVADOS

Não foram alegados quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados.


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MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


A convicção do Tribunal quanto aos factos considerados provados resultou do exame dos documentos, não impugnados, das informações oficiais constantes dos autos, designadamente do PAT apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e do depoimento da testemunha.

A testemunha, Dr. F........, médico e amigo de longa data do IMPUGNANTE, prestou um depoimento convincente e revelou enorme preocupação de rigor nos factos relatados, ressalvando sempre a sua razão de ciência quanto ao facto relatado. Contudo, relativamente aos factos que relevam para os presentes actos, apenas pode emitir suposições e convicções, não podendo assegurar que tal correspondesse à prática efectiva, por a mesma não ser do seu conhecimento, desde logo por ter deixado de colaborar com o Hospital da C…. e com o B…. Hospital muito antes de 1994.

Contudo, prestou informações baseadas no seu conhecimento anterior e na sua prática pessoal (da altura em que colaborava com estes hospitais) e quanto a alguns procedimentos habituais da prática clínica.

Foi esclarecedor quanto às práticas seguidas pela Companhia de Seguros I…., de nunca efectuar qualquer pagamento sem recibo, e do B….. Hospital, de manter registos de todos os actos cirúrgicos (referindo a existência de fichas de internamente e de fichas de saída).»



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2 - De Direito

Como é sabido, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam do conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Vejamos, então, tendo presente que o objecto da presente impugnação judicial é a liquidação adicional de IRS, respeitante ao ano fiscal de 1994, emitida com o nº 532….., no valor de 1.304.533$00 (€ 6.506,98), dos quais 509.684$00 respeitam a juros compensatórios.

Como resulta da análise dos elementos juntos aos autos e assumidos no probatório, tal liquidação adicional incorpora uma correcção efectuada em 1999, com recurso a métodos indirectos, no montante de 2.193.000$00, correcção esta que teve por base “a não emissão de recibos relativos a alguns serviços prestados pelo sujeito passivo”.

No caso - não sofre dúvidas - estava em causa apreciar da legalidade do referido montante corrigido com recurso à avaliação indirecta e que acresceu aos rendimentos oportunamente declarados pelo sujeito passivo/Impugnante, ora Recorrido.

Ora, como bem se percebe da leitura da sentença, aquele valor de 2.193.000$00 foi considerado ilegalmente corrigido e, consequentemente, foi determinada a sua anulação. Nestes termos, foi julgada procedente a impugnação judicial deduzida e, consequentemente, foi parcialmente anulado o acto tributário impugnado, “na exacta medida do valor referente ao rendimento apurado por métodos indirectos, ou seja, 2.193.000$00”.

Feitos estes esclarecimentos iniciais, foquemos a nossa atenção nas primeiras três conclusões da alegação de recurso, nas quais a Recorrente justifica o recurso a métodos indirectos.

Ora, quanto ao aí referido, nenhuma reapreciação da sentença se impõe a este Tribunal, uma vez que, como é patente, também a sentença considerou que, no caso, a AT estava legitimada a recorrer a métodos indirectos (ou indiciários, na expressão usada à data dos factos).

Com efeito, lê-se na sentença, a propósito da “legalidade do recurso a métodos indirectos”, que “No caso dos autos, não é controvertida a omissão da emissão de recibos, e consequentemente, a subtracção da declaração de rendimentos (a qual é inclusive aceite pelo sujeito passivo, na reunião da Comissão de Revisão, cf. alíneas J) e K) supra). Porém, não existem quaisquer elementos objectivos que permitam quantificar directamente o valor dos rendimentos omitidos. Ou seja, o valor correspondente às 12 intervenções médicas que não foram objecto de emissão de recibo.

E tal impossibilidade legitima o recurso à aplicação de métodos indirectos.

Improcede pois, o primeiro vício invocado pelo sujeito passivo”.

Significa isto, portanto, que, acompanhando a posição da FP, também o Tribunal a quo considerou estarem verificados os pressupostos para o recurso à avaliação indirecta, pressupostos estes que, de acordo com a Mma. Juíza a quo, foram devidamente demonstrados pela AT.

Trata-se, pois, como é óbvio, de uma apreciação que não está já aqui em discussão, pois que, sendo favorável à Recorrente, não foi posta em causa pelo Recorrido.

Avançando, agora, para as conclusões IV e VII, importa dizer o seguinte.

Contrariamente ao que alega a Recorrente, nunca, ao longo da petição inicial, o Recorrido aceitou ter emitido 109 recibos no ano de 1994, nem tão-pouco confirmou que omitiu 32 recibos. Na verdade, o que o Impugnante reiteradamente afirmou foi que a omissão de recibos não excedia o número de 12 – neste sentido, lê-se na p.i, além do mais, que “…o perito do reclamante, tal como já havia efectuado o impugnante no direito de audição, admitiu a existência de algumas omissões de recibos – até ao número de 12 – não aceitando contudo, as que foram presumidas” e, mais adiante, lê-se também que “… não foram passados somente 12 (doze) recibos por outras tantas intervenções…”.

De todo o modo, como se percebe do excerto da sentença que ficou transcrito, também a confessada omissão de emissão de alguns recibos foi devidamente ponderada pela decisão recorrida, o que contribuiu, aliás, para que a Mma. Juíza tivesse concluído estarem verificados os pressupostos para a avaliação indirecta.

Com isto dito, nada mais se nos oferece dizer quanto às duas conclusões que vínhamos analisando.

Avançando.

Sustenta a Recorrente nas conclusões VIII e IX que “Concordar com o sentenciado, é o mesmo que compactuar com a predita evasão e, violar o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) exigido a outros sujeitos passivos em situações análogas”, razão pela qual, nesta perspectiva, “a liquidação adicional n.º 532…., referente a IRS do ano de 1994 no montante de € 6.506,98, deverá permanecer na ordem jurídica”, devendo a impugnação improceder.

Se bem interpretamos as alegações de recurso, afigura-se-nos que este inconformismo da Recorrente assenta, no essencial, no facto de o próprio sujeito passivo ter admitido não ter emitido a totalidade dos recibos correspondentes aos actos médicos praticados, o que, nesta perspectiva, não poderia deixar de levar à conclusão sobre o bem fundado da correcção efectuada pelos serviços inspectivos.

Sucede, porém, que, como a Recorrente não ignora, o que esteve na base da anulação da correcção efectuada no montante de 2.193.000$00, resultante de métodos indirectos, não foi (como já antes se disse) o facto de não estarem reunidos os pressupostos para o recurso à avaliação indirecta; quanto a tais requisitos, repete-se, o TT de Lisboa não teve dúvidas em considerar que os mesmos estavam verificados.

O que esteve na origem na anulação da correcção efectuada foi a constatação, devidamente demonstrada, de que houve um erro, um excesso, na quantificação dos rendimentos corrigidos. Com efeito, lê-se na sentença recorrida o seguinte:

“Como começamos por referir, entendemos que a ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA não optou pelo método correcto.

Desde logo, porque ignorou um facto alegado e comprovado pelo IMPUGNANTE, que deveria ter sido considerado no método utilizado. Como decorre da alínea D) do probatório, em várias situações, o IMPUGNANTE emitia um único recibo referente a vários actos médicos.

Ainda que se admitisse que os doze actos médicos identificados, correspondiam a doze recibos omitidos (por se tratar de pacientes particulares e não associados a uma companhia de seguros ou outra pessoa colectiva), o cálculo descrito no ponto V A - Critérios, do Relatório (cf. alínea 1) supra), ficaria viciado ab initio por partir do pressuposto que um acto médico equivale a um recibo.

E, consequentemente, que o valor médio de cada recibo (que se cifrou em 102.000$00), correspondia ao valor médio de cada acto médico.

E a desconsideração de tal realidade é mais grave, atento o facto de a ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA ter constatado que o IMPUGNANTE tinha como prática a emissão de recibos referentes a vários actos, porquanto a entidade pagadora (o Cliente), não era o beneficiário dos actos médicos, mas uma pessoa colectiva (cf. alínea I) supra - ponto V - A - Critérios).

A desadequação do método, e concomitantemente, o excesso que competia ao IMPUGNANTE provar, resulta evidente da relação entre o rendimento declarado pelo IMPUGNANTE, referente a 67 recibos, e o rendimento apurado, com base na omissão identificada de 12 actos médicos (reitere-se que tal realidade não é necessariamente coincidente com 12 recibos omitidos).

Como resulta da decisão transcrita na alínea O) supra, a final, o IMPUGNANTE havia declarado ter auferido 3.980.585$00, referente aos 67 recibos emitidos (que correspondem a um número de actos médicos não apurado).

E dos 12 actos médicos cuja omissão foi identificada, resultou um acréscimo de 2.193.000$00.

Ou seja, correspondendo os recibos omitidos (admitindo aqui a regra de um acto médico/um recibo) a 18% dos emitidos, a ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA apurou um rendimento de mais de 55% do declarado.

Não ignoramos que as correcções por métodos indirectos, decorrem de omissões e, até, infracções, dos sujeitos passivos, mas tal comportamento, embora censurável, não pode permitir fixar rendimentos que não encontram eco na realidade conhecida.

Acresce que a ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA se encontra vinculada ao princípio do inquisitório, nos termos do artigo 58º da LGT, e no caso dos autos, tal como alega o IMPUGNANTE, consideramos que permaneceram por "explorar" diversas diligências probatórias que poderiam ter contribuído para a fixação de valores mais próximos da r:alidade. A título de exemplo, e à semelhança do que acima referimos a respeito do IMPUGNANTE (então para afastar o recurso a métodos indirectos), poderia ter realizado diligências junto dos intervencionados ou junto das unidades de saúde em que este prestava serviços.

De igual modo, poderia ter obtido junto da Ordem dos Médicos a lista de K aplicável a cada acto médico, e bem assim, do valor do K vigente em 1994 (que o Impugnante juntou aos autos, cf. alínea D) supra}, e por confronto com o tipo de actos médicos praticados pelo IMPUGNANTE, desde logo atenta a sua especialidade clínica, procurar obter valores consentâneos com a prática clínica vigente à data”.

Ora, como está bem de ver, o assim decidido não vem posto em causa nas conclusões que estamos a analisar e para obter a pretendida “improcedência dos presentes autos” (leia-se, de impugnação) era necessário que este esteio da sentença tivesse sido (eficazmente) questionado e, como é notório, isso não aconteceu.

Improcedem, pois, estas conclusões.

Centremo-nos, agora, nas conclusões V e VI, nas quais a Recorrente refere que “O Tribunal "a quo" determinou a anulação parcial da liquidação de IRS em crise, na exacta medida do valor referente ao rendimento apurado por métodos indirectos, ou seja, Esc. 2.193.000” e que “A liquidação adicional que deu origem ao presente recurso no montante de € 6.506,98 corresponde ao rendimento apurado de Esc. 2.193.000 (€ 10.938,63), se, se mandar anular a predita importância, anula-se a liquidação na sua totalidade”.

Não obstante a formulação das transcritas conclusões não se afigurar absolutamente clara, parece-nos que a Recorrente se insurge contra a incongruência entre a anulação total da correcção, no montante de 2.193.000$00, e a anulação parcial do acto tributário de liquidação adicional contestado.

Vejamos, então, desde já se adiantando que tal incongruência não se verifica.

Como já antes dissemos, o objecto da impugnação judicial é a liquidação adicional de IRS, respeitante ao ano fiscal de 1994, emitida com o nº 532…., no valor total de 1.304.533$00, a qual resultou de uma correcção efectuada, no ano de 1999, com recurso a métodos indirectos, no montante de 2.193.000$00.

A impugnação judicial – também o dissemos - visou apreciar da legalidade do referido montante corrigido com recurso à avaliação indirecta, o qual acresceu aos rendimentos oportunamente declarados pelo sujeito passivo/Impugnante, ora Recorrido.

Ora, como bem se percebe da leitura da sentença, este valor de 2.193.000$00 foi considerado ilegalmente corrigido e, consequentemente, foi determinada a sua anulação.

Com efeito, considerou a sentença que, no caso, procedia “o vício de errónea quantificação do rendimento tributável, fixado com base em métodos indirectos”, não obstante “o Impugnante reconheça a omissão de recibos e proponha um valor a corrigir, o Tribunal não pode fixar tal valor porquanto tal fixação consubstanciaria uma nova liquidação …” e “não cabe aos tribunais, substituindo-se à Administração, apurar a matéria colectável e proceder à correspondente liquidação”.

Consequentemente, o Tribunal a quo veio a determinar a “anulação parcial da liquidação de IRS, na exacta medida do valor referente ao rendimento apurado por métodos indirectos, ou seja, 2.193.000$00”. Lê-se no dispositivo da sentença recorrida, em conformidade com o que se evidenciou, o seguinte: “Termos em que se decide julgar procedente a presente impugnação judicial, e em consequência anular parcialmente a liquidação nº 532….., referente ao IRS de 1994, eliminando o valor correspondente ao rendimento fixado por métodos indirectos”.

Ora, se bem atentarmos no acto tributário impugnado (cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 16) daí resulta que o rendimento global aí considerado foi de 8.716.565$00 e não de (apenas) 2.193.000$00 (correcção por métodos indirectos), evidenciando-se uma diferença de 6.523.565$00 que se reporta a rendimentos não resultantes da acção inspectiva e do recurso à avaliação indirecta (única correcção apreciada na impugnação judicial).

Portanto, lida a sentença, a sua fundamentação e o percurso argumentativo seguido, percebe-se que a Mma. Juíza a quo considerou ilegal a correcção no montante de 2.193.000$00 (a totalidade dos rendimentos corrigidos por métodos indirectos) e, consequentemente, determinou a anulação da liquidação na parte correspondente, mantendo inalterado o acto tributário na medida em que reflecte valores não decorrentes do recurso à avaliação indirecta.

O decidido, face ao que ficou exposto, mostra-se acertado, pois deixa intocados os demais rendimentos considerados, na medida em que excedem os apontados 2.193.000$00.

Nesta linha de raciocínio, improcedem também as conclusões V e VI.

Vejamos, por último, a conclusão X, na qual se lê que “Caso se entenda o contrário, o que por mera cautela se admite, e visando o presente recurso o princípio da proporcionalidade, quer para a AT, quer para o ora Recorrido, requer-se, desde já, a redução em 50% da importância mandada anular pelo Tribunal "a quo", ou seja, Esc. 1.096.500 (€ 5.469,32), redução esta que anularia parcialmente a liquidação em crise, uma vez que, não implicaria, necessariamente, uma nova liquidação, fazendo-se, desta forma a costumada JUSTIÇA”.

Também aqui, salvo o devido respeito, a posição da Recorrente não surge claramente sustentada, embora se perceba que, porventura pelo facto de o sujeito passivo ter admitido algumas omissões de recibos, se adequaria uma decisão salomónica e, como tal, se justificaria “a redução em 50% da importância mandada anular pelo Tribunal "a quo", ou seja, Esc. 1.096.500”, observando-se, assim, “o princípio da proporcionalidade, quer para a AT, quer para o ora Recorrido”.

Também aqui falece a razão da Fazenda Pública.

É que, como é sabido e a jurisprudência reiteradamente tem afirmado, “as situações de anulação judicial e parcial do acto tributário, somente podem verificar-se em relação a actos tributários que tenham base em correcções técnicas à matéria colectável, pois somente em relação a esta espécie de aperfeiçoamentos da mesma é possível cindir o acto tributário e declarar a anulação parcial do mesmo, que não já em relação a actos tributários assentes na fixação da matéria colectável por métodos indirectos. É que no caso do acto tributário se fundamentar na aplicação de métodos indirectos de fixação da matéria colectável o Tribunal, se acaso conclui que a mesma aplicação se encontra indevidamente fundamentada ou padece de qualquer outra ilegalidade, deve anular totalmente o acto tributário em causa, a tal o obrigando, desde logo, o princípio “in dubio contra fiscum” previsto no artº.100, do C.P.P.Tributário. …, não é possível a cisão judicial do acto tributário que assente na fixação da matéria colectável por métodos indirectos, visto que ao Tribunal não compete, em nenhum caso, substituir-se à Administração Tributária no apuramento da matéria colectável e estruturação da sequente liquidação” – cfr., entre muitos outros, o acórdão deste TCA Sul, de 03/07/12, proferido no recurso nº 04397/10.

Ora, no caso em análise, o que o Tribunal pôde concluir, sem que tal tenha sido posto em causa pela Recorrente, é que, por um lado, o cálculo do número de actos médicos omitidos desconsiderou a prática (demonstrada) do sujeito de emitir um recibo por vários actos médicos e que, por outro lado, o valor unitário/recibo, de 102.000$00, era comprovadamente excessivo.

Assim, e bem, foi considerado que tal erro de quantificação da matéria colectável por métodos indirectos afectou na totalidade a validade da liquidação do imposto apurado com recurso à avaliação indirecta, incluindo a liquidação de juros compensatórios, o que aqui se confirma.

Face ao exposto, improcede a última conclusão que por último analisámos.

Improcedendo, assim, todas as conclusões da alegação de recurso, há que negar provimento ao mesmo e, consequentemente, manter a sentença recorrida nos seus exactos termos.


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III- Decisão

Termos em que, acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso jurisdicional.


Sem custas por delas estar isenta a Recorrente (processo instaurado anteriormente a 2004).

Registe e Notifique.

Lisboa, 14/03/19


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Catarina Almeida e Sousa

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(Vital Lopes)

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(Hélia Gameiro)