Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1106/10.3BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/04/2021
Relator:RICARDO FERREIRA LEITE
Descritores:FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS - DOENÇAS PROFISSIONAIS
ART. 56.º, N.º 1 E 2 DO DL 503/99
APLICAÇÃO DA LEI NOVA NO TEMPO
Sumário:
I. O nº 1 artigo 56º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, determina que tal diploma se aplica às doenças profissionais cujo diagnóstico final se faça após a respetiva data de entrada em vigor (1.5.2000) e o nº 2 que as respetivas disposições se mantêm em vigor em relação às pensões extraordinárias de aposentação ou reforma, bem como às pensões de invalidez atribuídas ou referentes a factos ocorridos antes da respetiva entrada em vigor.
II. Presumindo-se que o legislador soube exprimir-se lógica e adequadamente, teremos de concluir que, ao referir-se, no nº2 do artigo 56º, a “factos ocorridos” e não a “diagnóstico definitivo”, pretendeu distinguir as condicionantes/vicissitudes factuais subjacentes do diagnóstico propriamente dito.
III. Sempre que uma doença profissional tenha eclodido e/ou sido diagnosticada, antes da entrada em vigor do DL nº503/99, deverá aplicado ao caso o Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo – Sul:

I. Relatório
CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES (CGA), Recorrente/Ré, melhor identificada nos autos, em que é Autor/Recorrido J....., também ele melhor identificado nos autos, interpôs recurso da decisão do TAC de Lisboa, datada de 21 de Setembro de 2018, que acordou em “indeferir a reclamação para a conferência, julgar a presente acção procedente e, em consequência:

a) Anular o despacho, de 5.4.2010, da Direcção da CGA, com delegação de poderes, que fixou a título de reparação total da doença profissional sofrida pelo A., o capital de remição de €6 992,90.

b) E condenar a CGA a reconhecer a incapacidade do A. e a proceder à fixação da correspondente pensão de invalidez.”

A Recorrente formulou as seguintes conclusões:

“1ª Nos termos dos artigos 56º e 58º, o Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, aplica-se às doenças cujo diagnóstico final se faça após a data da entrada em vigor, ou seja, 1 de Maio de 2000.
2ª É certo que o nº 2 do artigo 56º determina que as disposições do Estatuto da Aposentação se continuam a aplicar às pensões extraordinárias de aposentação ou reforma, bem como às pensões de invalidez atribuídas ou referentes a factos ocorridos antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro. Porém, a expressão “factos ocorridos” no que se refere às doenças profissionais, não se refere, como parece ter entendido o tribunal a quo, à data em que aquela foi ou teria sido contraída, mas à data em que foi diagnosticada como tal.
3ª No presente caso, de acordo com as informações expressamente prestadas pela Repartição de Reserva, Reforma e Disponibilidade do Exército (ofício de 14 de Abril de 2008) o diagnóstico definitivo apenas foi feito JHI/HMP em sessão de 2 de Novembro de 2004 e homologado em 25 de Fevereiro de 2005.
4ª Assim, é manifesto que ao presente caso é aplicável o regime previsto no Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro e não, como decidiu o tribunal a quo, as regras contidas no Estatuto da Aposentação.”

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O Recorrido, por sua vez, não apresentou contra-alegações.

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O M.P. não emitiu parecer.

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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência para julgamento.
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II. Delimitação do objeto do recurso (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA)
A questão objeto do presente recurso prende-se unicamente com saber se o acórdão em crise incorreu em erro de julgamento e se, nos termos dos artigos 56º e 58º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, o mesmo se aplica apenas às doenças cujo diagnóstico final se faça após a data da entrada em vigor.
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III. Factos (dados como provados na sentença recorrida):
1. Em 16.5.1966 J....., ora A., foi incorporado no serviço militar obrigatório e cumpriu uma comissão de serviço na ex-Província Ultramarina da Guiné, entre 2.11.1967 a 2.4.1970, integrado na CCs/BCaç 1932, com a especialidade de sapador (por acordo);
2. Em 9.3.1990 e 2.11.2004, uma Junta Militar do Hospital Regional Militar julgou o A. incapaz para todo o serviço, com 20% de incapacidade, por doença psiquiátrica (por acordo);
3. Pelo Parecer nº 113/91, de 9.7., a Comissão Permanente para Informações e Pareceres da Direcção dos Serviços de Saúde considerou que a doença do ora A. “(...) deve ser considerada como adquirida em serviço e por motivo do seu desempenho” (por acordo);
4. Em 1.5.1993, o parecer que antecede foi homologado pelo Chefe da Repartição de Justiça e Disciplina, no uso de subdelegação de competências (por acordo);
5. Em 27.7.2009, o Centro Nacional de Protecção Contra os Riscos Profissionais certificou tratar-se de doença profissional do A. (por acordo e teor do doc. 2 junto à p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
6. Em 9.2.2010, a Junta Médica da CGA, aqui Entidade demandada, confirmou a doença profissional diagnosticada, considerando que das lesões apresentadas resultou para o A. uma incapacidade permanente parcial de 20%, de acordo com o artigo 78º alínea c), da T.N.I (por acordo e idem);
7. Por despacho de 5.4.2010, da Direcção da CGA, com delegação de poderes, foi fixado a título de reparação total da doença profissional sofrida pelo A., o capital de remição de €6 992,90, nos termos da alínea a) do nº 4 do Decreto-Lei nº 503/99 e do artigo 38º do Decreto-Lei nº 248/99, de 2 de junho (por acordo e doc. 1 junto à p.i., ibidem);
8. Por ofício de 5.4.2010 foi o A. notificado do despacho que antecede e do cálculo do capital de remição (por acordo e idem).
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IV. Direito
Conforme se adiantou acima, a questão suscitada no presente recurso prende-se unicamente com saber se o acórdão em crise incorreu em erro de julgamento e se, nos termos dos artigos 56º e 58º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de novembro, o mesmo se aplica apenas às doenças cujo diagnóstico final se faça após a data da entrada em vigor.
A Recorrente discorda do acórdão proferido pelo tribunal a quo, o qual, na sequência de reclamação para a conferência, anulou o despacho, de 5.4.2010, da Direção da CGA, com delegação de poderes, que fixou a título de reparação total da doença profissional sofrida pelo A., o capital de remição de €6.992,90 e a condenou a incapacidade do Recorrido e a proceder à fixação da correspondente pensão de invalidez.
Vejamos, pois.
O Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de novembro, veio estabelecer o regime jurídico de acidentes em serviço e das doenças profissionais ocorridos ao serviço da Administração Pública, resultando do seu preâmbulo que visou proceder à uniformização do regime jurídico previsto para função pública com o geral, constante da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, acolhendo na generalidade os princípios consagrados nesta Lei geral e operando, no anterior regime da Função Pública, uma panóplia de modificações.
O respetivo artigo 56º, com a epígrafe “Regime transitório” determina que tal diploma se aplica às doenças profissionais cujo diagnóstico final se faça após a respetiva data de entrada em vigor (1.5.2000) (alínea a) do nº 1 e artigo 58º) e que “[a]s disposições do estatuto da aposentação revogadas ou alteradas mantêm-se em vigor em relação às pensões extraordinárias de aposentação ou reforma, bem como às pensões de invalidez atribuídas ou referentes a factos ocorridos antes da entrada e, vigor do presente diploma” (nº 2).
No caso vertente discute-se se a entidade competente para caracterizar a doença de que padece o Autor bem como para fixar o respetivo grau de desvalorização será, não a Recorrente CGA, mas o Centro Nacional de Proteção contra os Riscos Profissionais, porquanto o diagnóstico definitivo de que a doença de que padece o Autor é uma doença profissional, de acordo com as informações prestadas pela Repartição de Reserva, Reforma e Disponibilidade – através do ofício de 14 de Abril de 2008 -foi feito JHI/HMP em sessão de 2 de Novembro de 2004 e homologado em 25 de Fevereiro de 2005.
Conforme resulta da matéria factual acima elencada, o Recorrido, militar incorporado no SMO em 1966, cumpriu uma comissão de serviço, de 2.11.1967 a 2.4.1970, na Guiné, ex-Província Ultramarina, tendo desenvolvido uma doença do foro psiquiátrico pela qual as Juntas Militares, em 9.3.1990 e 2.11.2004, lhe atribuíram uma desvalorização de 20%.
A CPIP, no Parecer nº 113/91, de 9.7, considerou que a doença de que padece o Recorrido tem nexo de causalidade com o serviço militar, parecer que viria a ser homologado em 1.4.1993, pelo Chefe da Repartição de Justiça e Disciplina.
Em 27.7.2009 o CNPCRP certificou a doença do Recorrido como sendo profissional e em 9.2.2010 a Junta Médica da CGA considerou que das lesões apresentadas resultou uma incapacidade permanente parcial de 20%.
E foi nessa sequência que, por despacho de 5.4.2010, a Direcção da CGA fixou, a título de reparação total da doença profissional sofrida pelo Recorrido o capital de remição de €6 992,90, nos termos da alínea a) do nº 4 do Decreto-Lei nº 503/99 e do artigo 38º do Decreto-Lei nº 248/99, de 2 de Junho.
Ora bem:
O Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, veio estabelecer o regime jurídico de acidentes em serviço e das doenças profissionais ocorridos ao serviço da Administração Pública, resultando do seu preâmbulo que visou proceder à uniformização do regime jurídico previsto para função pública com o geral, constante da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, acolhendo na generalidade os princípios consagrados nesta Lei geral e operando, no anterior regime da Função Pública, uma panóplia de modificações.
O respetivo artigo 56º nº1, determina que tal diploma se aplica às doenças profissionais cujo diagnóstico final se faça após a respetiva data de entrada em vigor (1.5.2000) (alínea a) do nº 1 e artigo 58º) e que “[a]s disposições do estatuto da aposentação revogadas ou alteradas mantêm-se em vigor em relação às pensões extraordinárias de aposentação ou reforma, bem como às pensões de invalidez atribuídas ou referentes a factos ocorridos antes da entrada e, vigor do presente diploma” (nº 2).
No nº 1 enquadram-se as doenças profissionais cujo diagnóstico final se faça após 1.5.2000, data de entrada em vigor do Decreto-Lei nº 503/99, como resulta de forma clara da sua leitura. No entanto, quando, no nº 2, se refere a “factos ocorridos” antes dessa data, ter-se-ão de abranger situações como a do Recorrido, em que o primeiro diagnóstico da doença foi efetuado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 503/99 e coincide com o diagnóstico final ocorrido posteriormente.
Ter-se-á de presumir, na interpretação de determinado preceito, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir-se de modo lógico e em termos adequados [artigo 9º do Código Civil], em moldes de coerência do texto legal com a unidade do sistema jurídico.
A ser aceite a interpretação da Recorrente no sentido de que releva a data do diagnóstico das entidades militares que consideraram a doença do autor como contraída em serviço, o legislador ter-se-ia bastado em repetir no nº2 do referido artigo 56º, o que havia dito na alínea b) do nº1 do mesmo artigo.
Efetivamente, se a alínea b) do nº 1 manda aplicar o novo regime às doenças profissionais com diagnóstico final posterior a 30.04.2000, não teria sentido, no nº2, se mandar aplicar o antigo regime às pensões de invalidez com diagnóstico final anterior a 01.05.2000. Presumindo-se que o legislador soube exprimir-se lógica e adequadamente, teremos de concluir que, ao referir-se, no nº2 do artigo 56º, a “factos ocorridos” e não a “diagnóstico definitivo”, pretendeu distinguir as condicionantes/vicissitudes factuais subjacentes do diagnóstico propriamente dito.
Como tal, sempre que uma doença profissional tenha eclodido e/ou sido diagnosticada, antes da entrada em vigor do DL nº503/99, deverá aplicado ao caso o Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de dezembro.
Ter-se-á pretendido, assim, evitar situações de injustiça relativa, derivadas do arrastamento de processos administrativos por doença, em que o interessado, sem qualquer culpa sua, acabava prejudicado pelo simples facto de o diagnóstico definitivo não ter ocorrido de forma célere.
No mesmo sentido já se pronunciou, designadamente, o STA, por acórdão proferido no processo nº 01738/13, datado de 19-06-2014, e no qual se sumariou o seguinte: “[a] despeito do previsto na alínea do nº 1 do artigo 56º do DL nº 503/99, de 20 de Novembro e de o diagnóstico final se fazer depois da data da entrada em vigor do diploma, sempre que nesse exame se determine, a posteriori, que os factos causalmente relevantes que foram condição da doença profissional ocorreram, todos eles, antes do início da vigência da referida lei nova, a situação é enquadrável na previsão excecional da parte final do nº 2 do mesmo preceito e a pensão relativa à doença profissional deve decidir-se de acordo com as disposições do Estatuto da Aposentação na versão anterior à daquele Decreto-Lei.”
Recentemente, na esteira deste entendimento jurisprudencial, disse o TCA – Norte, por acórdão proferido no processo nº 01245/12.6BEBRG, datado de 16-02-2018, publicado em www.dgsi.pt e onde se sumariou o seguinte:
“1 – Não obstante resultar da matéria de facto assente que, apesar do diagnóstico relativo à sua doença profissional, ser posterior a 1 de maio de 2000, data da entrada em vigor do DL n.º 503/99, de 20 de novembro, a doença que afeta o Autor foi por ele contraída durante a prestação do serviço militar e por motivo do seu desempenho durante o ano de 1971, tendo-se manifestado ao longo do período em que o Autor esteve exposto ao risco - até 9 de janeiro de 1973, tal determinará a aplicação do regime legal anteriormente vigente – Estatuto Aposentação.
2 – Com efeito, tendo a doença do aqui Recorrido surgido em decorrência de episódio ocorrido em 1971, o que veio a determinar uma sucessão de internamentos e intervenções cirúrgicas, tudo antes da entrada em vigor do novo regime do DL nº503/99, dever-lhe-á ser aplicado, ao abrigo do nº2 do artigo 56º deste diploma, o anterior regime estatuído no Estatuto de Aposentação, uma vez que os fatores que provocaram a doença e o período de exposição ao risco ocorreram antes da entrada em vigor do referido Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro”
Face ao exposto, bem andou o tribunal a quo, quando concluiu que ao processo do Recorrido não deveria ter sido aplicado o regime do Decreto-Lei nº 503/99, mas sim as normas do EA, revogadas por este e mantidas apenas nas situações previstas na referida norma transitória (o nº 2 do artigo 56º), sendo a Recorrente CGA a entidade competente para fixar a respetiva pensão de invalidez.
Aqui chegados, pelo exposto, cumpre negar provimento ao recurso interposto e confirmar integralmente o acórdão recorrido.
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Concluindo (sumário elaborado nos termos e para os efeitos previstos no artº 663º, nº 7 do CPC):

I. O nº 1 artigo 56º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, determina que tal diploma se aplica às doenças profissionais cujo diagnóstico final se faça após a respetiva data de entrada em vigor (1.5.2000) e o nº 2 que as respetivas disposições se mantêm em vigor em relação às pensões extraordinárias de aposentação ou reforma, bem como às pensões de invalidez atribuídas ou referentes a factos ocorridos antes da respetiva entrada em vigor.
II. Presumindo-se que o legislador soube exprimir-se lógica e adequadamente, teremos de concluir que, ao referir-se, no nº2 do artigo 56º, a “factos ocorridos” e não a “diagnóstico definitivo”, pretendeu distinguir as condicionantes/vicissitudes factuais subjacentes do diagnóstico propriamente dito.
III. Sempre que uma doença profissional tenha eclodido e/ou sido diagnosticada, antes da entrada em vigor do DL nº503/99, deverá aplicado ao caso o Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro.

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V – Decisão:
Assim, face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul, em negar provimento ao recurso interposto e confirmar integralmente o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente – cfr. artº 527. nº 1 e 2 do CPC e artº 189º, nº 2 do CPTA.
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Lisboa, 04 de fevereiro de 2021

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Ricardo Ferreira Leite*

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*O relator consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15.º -A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Ex. Srs. Juízes-Desembargadores, Dr.ª Ana Celeste Carvalho e Dr. Pedro Marchão Marques.