Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:78/20.0BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:11/12/2020
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Sumário:i) A competência do tribunal afere-se pela forma como o autor configura a acção, sendo esta definida pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes.
ii) O TAD é materialmente competente para conhecer do pedido de impugnação da Deliberação da Direção da Liga de 5 de maio de 2020 (incluindo a Deliberação de 25 de Maio de 2020 que a confirmou) pela qual se determinou a “suspensão definitiva” da LigaPro na época desportiva de 2019-2020 e a estabilização da tabela classificativa.
iii) O âmbito subjetivo de aplicação do artigo 204.º da CRP abrange todos os tribunais, independentemente da sua categoria na organização judiciária e ainda que a sua existência seja meramente facultativa (art.º 209.º da CRP).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

O Clube Desportivo F..., Futebol SAD apresentou recurso do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto de 4.08.2020 que, no âmbito do processo arbitral n.º 23/2020, em que é demandada a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e contra-interessados o C... SAD, o S... - Algarve Futebol, SAD e C... - Futebol Sduq, Lda., se declarou “incompetente para dirimir o presente litígio, por a matéria em causa no mesmo extravasar a competência material específica do TAD fixada no n.º 2 do artigo 1.º da Lei do TAD, assim absolvendo a Demandada da instância”.

O Clube Desportivo F..., Futebol SAD, terminou a sua alegação de recurso com as seguintes conclusões:

“(texto integral no origina; imagem)”



“(texto integral no origina; imagem)”


“(texto integral no original; imagem)”

A Recorrida, Liga Portuguesa de Futebol Profissional, contra-alegou pugnando pela manutenção do decido.

O C... SAD contra-alegou pugnando, também, pela manutenção do decidido.

O S..., Futebol SAD contra-alegou pugnando, de igual modo, pela manutenção do decidido.

O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste TCAS não se pronunciou.




I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas conclusões de recurso, traduzem-se em apreciar:

- Se o acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia, constituindo uma decisão-surpresa.

- Se o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento de direito ao ter concluído pela incompetência material do TAD para dirimir o litígio (julgando assim prejudicado o conhecimento das excepções invocadas e o mérito da causa).




II. Fundamentação

II.1. De facto

O TAD deu como assentes, ainda que não de forma autonomizada, as seguintes incidências processuais e factos assentes relevantes para a decisão proferida (por nós numerados):

1. A Demandante propôs a presente acção em 04.06.2020.

2. A Demandada foi citada no dia 05.06.2020 para contestar.

3. Em 12.06.2020, a Demandante requereu a ampliação da instância e do pedido à deliberação da Assembleia Geral da Liga de 8 de Junho de 2020.

4. Em 17.06.2020, a Demandada Liga Portuguesa de Futebol Profissional apresentou tempestivamente a sua contestação. Nesta, deduziu:

a) Excepção dilatória de inimpugnabilidade;

b) Excepção dilatória de intempestividade;

5. Em 18.06.2020, os contra-interessados foram citados para se pronunciar.

6. Em 24.06.2020, o contra-interessado C... – Futebol, SAD apresentou tempestivamente a sua pronúncia, tendo remetido a sua posição para o que se encontra alegado no processo n.º 22/2020, mais requerendo a apensação dos autos ao referido processo.

7. Em 29.06.2020, a Demandante deduziu tempestivamente réplica, nos termos da qual pugnou pela improcedência das excepções invocadas pela Demandada.

8. Também em 29.06.2020 o contra-interessado C..., SAD apresentou tempestivamente a sua pronúncia. Nesta, pugnou pela improcedência, de mérito, da acção movida pela Demandante.

9. No mesmo dia, em 29.06.2020, o contra-interessado C... – Futebol SDUQ, Lda. apresentou tempestivamente a sua pronúncia, pugnando pela procedência parcial da acção e consequente anulação / revogação da deliberação de despromoção do C... e do C... ao Campeonato de Portugal.

10. Ainda em 29.06.2020, o contra-interessado S... Futebol SAD apresentou tempestivamente a sua pronúncia. Nesta, deduziu:

a) Excepção dilatória de inimpugnabilidade do acto;

b) Excepção dilatória de inadmissibilidade e intempestividade do recurso para o TAD;

c) Excepção dilatória de falta de legitimidade e interesse em agir;

Mais pugnou a Demandada pela improcedência, de mérito, da acção movida pela Demandante.

11. Em 30.06.2020, o contra-interessado C... – Futebol SDUQ, Lda. veio informar os autos de que não se opunha à pretensão de apensação dos autos peticionada pelo C... – Futebol, SAD.

12. No mesmo dia, em 30.06.2020, a Demandante veio expressamente opor-se à pretensão de apensação dos autos peticionada pelo C... – Futebol, SAD.

13. Em 06.07.2020, a Demandante veio responder às excepções deduzidas pelos contrainteressados C..., SAD e S... Futebol SAD, pugnando pela improcedência das mesmas.

14. Em 16.07.2020, veio a Demandada informar os autos que “dando cumprimento ao estatuído regulamentarmente, a Liga irá promover, no dia 9 de Agosto de 2020, o sorteio das competições, I Liga, II Liga e Taça da Liga (…) que fixará as datas, horas e locais de realização de cada um dos jogos que as compõem.”

15. No dia 18 de Março de 2020, foi publicado o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, por intermédio do qual foi declarado o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública.

16. O estado de emergência viria a ser prorrogado, num primeiro momento, até ao dia 17 de Abril de 2020, por intermédio do Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de Abril, e, posteriormente, até ao dia 2 de Maio, por intermédio do Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17 de Abril.

17. Subsequentemente, no dia 20 de Março de 2020, foi publicado o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março, tendente à execução da declaração de estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 Março (cfr. artigo 1.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março).

18. No dia 30 de Abril de 2020, foram publicadas as seguintes Resoluções do Conselho de Ministros, com particular relevância para o caso dos presentes autos:

a) Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de Abril, nos termos da qual se declarou, na sequência da situação epidemiológica da COVID-19, a situação de calamidade em todo o território nacional até às 23:59 h do dia 17 de Maio de 2020.

b) Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril, nos termos da qual foi aprovada uma “estratégia gradual de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID -19”. No que ao desporto concerne, o anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril, prevê o seguinte:

“4/05 — Prática de desportos individuais ao ar livre 30-31/05 — Futebol: Competições oficiais da 1.ª Liga de futebol e Taça de Portugal”

19. No dia 5 de Maio de 2020, cinco dias após a publicação da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril, a Direção da Liga Portugal deliberou, “nos termos da alínea a), do n.º 2, do artigo 48.º dos Estatutos da Liga Portugal, executar a decisão do Governo, determinando a suspensão definitiva da LigaPro na época desportiva 2019 20, com a consequente estabilização da sua classificação final por referência à classificação que se verificava na data de 12 de março de 2020”.

20. Para o efeito, a Direção da Liga Portugal considerou, nomeadamente, o seguinte:

a) «No dia 30 de abril, o Conselho de Ministros aprovou a resolução n.º 33-C/2020, que estabeleceu uma estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia de COVID-19, nos termos da qual se permitiu a retoma das «Competições oficiais da 1.ª Liga de futebol e Taça de Portugal», a partir do dia 30 de maio (…);

b) Estando a Liga Portugal, por via daquela decisão do Governo e sob pena de cometer ilícitos penais, mormente o crime de desobediência, impedida de retomar a II Liga, encontra-se constrangida a decidir sobre a suspensão decidida ao abrigo do n.º 2, do artigo 4.º do Regulamento das Competições organizadas pela Liga Portugal, acima citada…»

21. Posteriormente, foi publicada a 17 de Maio de 2020 a Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2020, de 17 de Maio, ao abrigo da qual foi declarada a situação de calamidade em todo o território nacional até às 23:59 h do dia 31 de maio de 2020, sem prejuízo de prorrogação ou modificação na medida em que a evolução da situação epidemiológica o justificar.

22. No dia 29 de Maio de 2020 foi publicada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 40-A/2020, de 29 de Maio, sendo a actividade física e desportiva objecto de regulação por intermédio das normas ínsitas no artigo 19.º, que ora se transcreve, pela sua relevância:

“1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, apenas pode ser realizada a prática de atividade física e desportiva em contexto não competitivo de modalidades desportivas individuais, conforme definidas no Despacho n.º 1710/2014, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 4 de fevereiro, ou de modalidades coletivas por atletas federados, desde que no cumprimento das orientações definidas pela DGS.

2 - As competições de modalidades desportivas individuais e sem contacto físico, bem como a 1.ª Liga de Futebol Profissional, apenas podem ser realizadas ao ar livre, sem público, e desde que respeitem as orientações especificamente definidas pela DGS.

3 - A prática de atividade física e desportiva ao ar livre ou em ginásios e academias apenas pode ser realizada desde que sejam respeitadas as orientações definidas pela DGS.

4 - As instalações desportivas em funcionamento para efeitos dos números anteriores regemse pelo disposto no artigo 7.º, com as necessárias adaptações.”

23. No dia 8 de Junho de 2020, a Assembleia Geral Extraordinária da Liga ratificou a deliberação da Direção da Liga, datada de 5 de Maio de 2020, ao abrigo da qual se determinou a “suspensão definitiva da LigaPro na época desportiva 2019 20, com a consequente estabilização da sua classificação final por referência à classificação que se verificava na data de 12 de março de 2020”.



II.2. De direito

Começa a Recorrente por suscitar a nulidade do acórdão recorrido por ter conhecido da questão da (in)competência do TAD, sem que antes a mesma tivesse sido debatida.

Porém, compulsados os autos, verifica-se que na contestação da Recorrida foi alegado que “se, como sustenta a demandante, as resoluções do Conselho de Ministros que declararam a situação de calamidade pública e lhe determinam os seus efeitos, estão feridas de alguma ilegalidade, a sua invocação apenas poderá ser feita junto dos tribunais administrativos e pelos meios processuais próprios dessa jurisdição, e não no quadro da presente arbitragem necessária”. Ou seja, ainda que não se tenha escrito expressamente que se estava a suscitar a excepção de incompetência em razão da matéria, da leitura do articulado isso resulta claramente, afirmando-se, sem margem para dúvidas, que a questão decidenda apenas poderia ser conhecida pelos tribunais estaduais – pela jurisdição administrativa, mais concretamente pelo STA - e não pelo tribunal arbitral.

Ora, certo é que a ora Recorrente deduziu tempestivamente réplica nos autos, tendo, assim, tido a oportunidade adjectiva para discutir a matéria de excepção suscitada. Não há, portanto, qualquer decisão-surpresa, nem excesso de pronúncia.

Donde, contendo-se a decisão recorrida dentro dos parâmetros que foram dados ao litígio, decidindo questão que havia sido previamente suscitada, não há, assim, excesso de pronúncia.

Improcede, portanto, o recurso nesta parte.

É tempo de entrar na questão essencial do recurso.

No presente recurso, a título principal, está em causa saber se o TAD é ou não competente para conhecer do peticionado pela ora Recorrente, pedido esse que foi o seguinte: “ser a presente ação ser julgada integralmente procedente e, em consequência, ser declarada nula ou anulável a Deliberação da Direção da Liga de 5 de maio de 2020 (incluindo a Deliberação de 25 de maio de 2020 que a confirmou) pela qual se determinou a “suspensão definitiva” da LigaPro na época desportiva de 2019-2020 e a estabilização da tabela classificativa, assim como, em consequência, devem ser declarados nulos ou anuláveis todos os atos consequentes acima identificados.”

O TAD, para concluir pela sua incompetência material, exarou, ao que aqui releva o seguinte discurso fundamentador:

“(…)

O que a Demandante visa com uma potencial declaração de nulidade ou anulação das deliberações da Liga é, portanto, a declaração da improdutividade de efeitos jurídicos ab initio dessas deliberações (cfr. n.º 1 do artigo 162.º do CPA7) ou a anulação por invalidade, com destruição com efeitos retroactivos (ex tunc), à data da respectiva entrada em vigor, dos efeitos produzidos e com o condão de determinar a reconstituição da situação actual hipotética, isto é, a situação que existiria caso não tivessem sido produzidas as referidas deliberações da Demandada (cfr. n.º 1 do artigo 173.º do CPTA).

A ligação entre as deliberações da Demandada e as Resoluções do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril e n.º 40-A/2020, de 29 de Maio não escapou à Demandante, tanto que na providência cautelar que propõe, pede que este Tribunal «afaste» a norma proibitiva do n.º 2 do artigo 19.º da RCM 40-A/2020, dado que “enquanto subsistir a norma do n.º 2 do art. 19.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 40-A/2020, de 29 de maio (“RCM 40/2020”), a LigaPro não pode reiniciar-se e a entidade organizadora não pode reatar a competição”, motivo pelo qual a Demandante necessita[va] de um “juízo de inconstitucionalidade sobre a norma da RCM que motivou a “suspensão definitiva” da Liga Pro e que, presentemente impossibilita a sua retoma imediata”.

(…)

Aqui chegados, importa atentar em dois pontos distintos:

a) A imputação de alegados vícios às deliberações como refracções de alegados vícios de diplomas governamentais;

b) As potenciais consequências do provimento dado aos pedidos formulados pela Demandante.

a) A imputação de alegados vícios às deliberações como refracções de alegados vícios de diplomas governamentais;

Vários vícios imputados pela Demandante são, expressa ou implicitamente, voltados para a Resolução do Conselho de Ministros n.º 40-A/2020, de 29 de maio, precisamente a resolução que “prorroga a declaração da situação de calamidade, no âmbito da pandemia da doença COVID-19” (…)

Afigura-se a este Tribunal evidente que as normas cuja constitucionalidade expressa ou implicitamente a Demandante questiona na sua peça, além de revestirem a forma de regulamentos governamentais imputados ao Conselho de Ministros – o que sempre implicaria, para ajuizar da sua validade, a competência exclusiva do Supremo Tribunal de Administrativo, nos termos do disposto no artigo 24.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redação conferida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro – são normas cuja matéria regulada é invariavelmente “matéria de saúde pública” e não “matéria desportiva”.

Dito de outro modo, se é clara a repercussão desportiva das proibições e restrições resultantes da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril, da Resolução do Conselho de Ministros n.º 40-A/2020, de 29 de maio e da demais «Legislação Covid», a verdade é que isso mesmo pode ser dito a respeito de praticamente qualquer actividade económica. Basta ver a lista extensíssima de estabelecimentos encerrados, constantes do Anexo I (desconsiderando agora o Anexo II), a que se referem o artigo 7.º, a alínea a) do n.º 2 do artigo 12.º e a alínea a) do n.º 1 do artigo 32.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março (…)

Apreciar a constitucionalidade ou legalidade das disposições constantes dos vários Decretos ou Resoluções de Conselhos de Ministros aprovadas pelo Governo a respeito de medidas de saúde pública implicaria extravasar claramente a competência material específica deste Tribunal, não apenas em excesso do que é previsto no n.º 2 do artigo 1.º da Lei do TAD mas, também, colocando problemas diversos a respeito da legitimidade de um Tribunal, como o TAD, adoptar decisões que pressupõem juízos de constitucionalidade ou legalidade de diplomas governamentais que extravasam (em muito) a mera matéria desportiva.

(…)

Basta pensar que – muito embora não seja esse o caso deste colégio arbitral – os colégios arbitrais do TAD, dos quais dois terços da composição é nomeada pelas partes, compreendem árbitros que, muito embora detenham outras formações especializadas, não têm formação jurídica específica. O exemplo, que não traz qualquer desprimor para não juristas, pretende apenas ilustrar um caso hipotético em que um não jurista, indicado por uma das partes, faria juízos de constitucionalidade sobre normas regulamentares governamentais produzidas pelo Conselho de Ministros em Estado de Calamidade. E note-se, a maiore ad minus, que estamos perante casos em que a competência em razão da hierarquia determina que nem os tribunais de administrativos de 1.ª ou 2.ª instância são legalmente habilitados a proferir tais juízos processos em matéria administrativa relativos a ações ou omissões do Conselho de Ministros, dado que os mesmos competem exclusivamente à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo nos termos do disposto no artigo 24.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

A aceitação de competência por este Tribunal neste âmbito, face ao já exposto, implicaria uma leitura extremamente ampla no n.º 2 do artigo 1.º da Lei do TAD o que, face à dimensão excepcional das competências materiais deste Tribunal, traduziria igualmente uma aplicação analógica de norma de competência jurisdicional, aplicação essa vedada pelo artigo 11.º do Código Civil.

Muito embora a estrita ligação entre as Resoluções do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril e n.º 40-A/2020, de 29 de maio e as deliberações da Demandada ora impugnadas, poderia ainda subsistir a questão acerca de estas segundas serem ou não estrita «execução» das primeiras, isto é, se à Demandada cabia alternativas a respeito de determinar o encerramento da LigaPro face às normas proibitivas constantes das Resoluções do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril e n.º 40-A/2020, de 29 de maio. A Demandada sustenta que não havia alternativa – muito por força da impossibilidade de uma suspensão que se arrastaria, ao jeito de um non liquet – ao passo que a Demandante sustenta que havia.

A questão é impertinente em matéria de apuramento de competência deste Tribunal para dirimir o litígio vertente. Não se cura, sequer, agora de saber se uma possível decisão de provimento deste Tribunal poderia interferir em juízos avaliatórios e reserva de administração de órgãos administrativos (Governo) ou de pessoas colectivas privadas com poderes públicos (Liga). O que interessa saber é se uma qualquer decisão deste Tribunal, de provimento ou não provimento, a respeito do pedido da Demandante, poderia resultar em extravasar a competência material específica prevista no n.º 2 do artigo 1.º da Lei do TAD, precisamente “administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto”. E não se vê como tal não pudesse suceder.

(…)

No caso de sucesso no pedido de declaração de improdutividade de efeitos jurídicos ab initio das deliberações impugnadas, a consequência lógica seria a de que a LigaPro poderia ter continuado à data da produção da deliberação impugnada, de 5 de Maio. Ou seja, este Tribunal estaria a proferir uma decisão face à qual das duas uma: ou, por um lado, simplesmente abstraía da existência e vigência jurídicas das Resoluções do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril e n.º 40-A/2020, de 29 de maio ou, por outro, expressa ou implicitamente «afastava» ou «desaplicava» aquelas, algo que implicaria necessariamente um juízo de inconstitucionalidade para o qual não é especificamente competente – dado tratar-se de matéria de «saúde pública» com repercussões várias –, nos termos referidos acima.

Em alternativa, no caso de sucesso no pedido de anulação por invalidade, com destruição com efeitos retroactivos (ex tunc), à data da respectiva entrada em vigor, dos efeitos produzidos pelas deliberações impugnadas, este Tribunal destruiria, com efeitos ex tunc, os efeitos jurídicos produzidos pelas deliberações impugnadas, deste a data da sua prática. Ora, face ao disposto no n.º 1 do artigo 173.º do CPTA, tal implicaria determinar a reconstituição da situação actual hipotética, isto é, a situação que existiria caso não tivessem sido produzidas as referidas deliberações da Demandada, à data. Novamente, estar-se-ia a proferir uma decisão que redundaria nas mesmas duas opções: ou, por um lado, simplesmente o Tribunal abstraía da existência e vigência jurídicas das Resoluções do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril e n.º 40-A/2020, de 29 de maio ou, por outro, expressa ou implicitamente «afastava» ou «desaplicava» aquelas, algo que implicaria necessariamente um juízo de inconstitucionalidade para o qual não é especificamente competente – dado tratar-se de matéria de «saúde pública» com repercussões várias –, nos termos referidos acima.

Em qualquer dos casos, dada a retroação de efeitos inerente àqueles potenciais juízos, este Tribunal estaria a extravasar claramente a sua competência material específica fixada e delimitada pelo n.º 2 do artigo 1.º da Lei do TAD e a interferir em matéria de saúde pública (embora com refracções desportivas, entre tantas outras), assim interpretando, apreciando ou desaplicando diplomas governamentais que manifestamente não “relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto”.

(…).”

Do que vimos de transcrever, em síntese, o TAD assenta a sua decisão no raciocínio segundo o qual as Resoluções do Conselho de Ministros em causa tratam de matéria de saúde pública, que o respectivo normativo era imperativo, que as inconstitucionalidades imputadas às mesmas Resoluções não podem ser conhecidas pelo TAD, sendo que seria ao STA que competiria conhecer da impugnação daqueles actos regulamentares ou dos actos administrativos aí concretizados, e que um eventual provimento do pedido teria repercussões inadmissíveis.

Por seu lado a Recorrente entende que:

E, pode adiantar-se, assiste-lhe razão.

Não se questiona que cessada a vigência do estado de emergência, o Governo declarou a situação de calamidade, conforme Resoluções do Conselho de Ministros n.°s 33-A/2020, de 30 de Abril, 38/2020, de 17 de Maio, 40-A/2020, de 29 de Maio e 43-B/2020, de 12 de Junho. E, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 51 -A/2020, de 26 de Junho, o Governo: (i) declarou a situação de calamidade em algumas freguesias de alguns concelhos da Área Metropolitana de Lisboa; (ii) declarou a situação de contingência na Área Metropolitana de Lisboa, com excepção dos municípios e freguesias abrangidos pela declaração de situação de calamidade; (iii) declarou a situação de alerta em todo o território nacional continental, com excepção da Área Metropolitana de Lisboa.



É também incontroverso que, conforme resulta da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de Abril, no período que para os autos releva, se mantiveram obrigatoriamente encerradas instalações e estabelecimentos para actividades desportivas, salvo às destinadas à actividade dos praticantes desportivos profissionais e de alto rendimento, em contexto de treino. Posteriormente, tal obrigatoriedade de encerramento foi mantida, salvo no que se refere às destinadas à actividade dos praticantes desportivos profissionais, de alto rendimento ou que integrem selecções nacionais, em contexto de treino (conforme Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2020, de 17 de Maio). 

Em execução da estratégia gradual de levantamento das medidas de confinamento, por períodos de 15 dias, no que ao Futebol respeita, o Governo autorizou que, a partir do final do mês de Maio, fossem retomadas as Competições Oficiais da 1.ª Liga de Futebol (Liga NOS) e da Taça de Portugal (cfr. Anexo a que se refere o artigo 1.° da Resolução do Conselho de Ministros n.° 33-C/2020, de 30 de Abril).

De igual modo, o artigo 19.º, n.º 2, da Resolução do Conselho de Ministros n.º 40-A/2020, de 29 de Maio, e o artigo 19.º, n.º 2, da Resolução do Conselho de Ministros n.º 43-B/2020, de 12 de Junho, mantinham a permissão restrita à 1.ª Liga de Futebol Profissional. Não, portanto, à LigaPro.

Assim, das identificadas Resoluções do Conselho de Ministros n.°s 33-A/2020 e 33-C/2020, ambas de 30 de Abril, resulta ter ficado impossibilitada a retoma da Competição Oficial da 2.ª Liga (LigaPro).

Mas a questão decidenda não se esgota aí.

Na verdade, como alegado pela Recorrente, no requerimento inicial de arbitragem aquela delimitou com clareza o âmbito da acção arbitral, como se extrai dos artigos l.º e 5.º de tal requerimento, circunscrevendo-se aí a vertente impugnatória desta acção a um conjunto de actos praticados pela Direção da Liga e respeitantes à época desportiva 2019-2020 da LigaPro. No centro de tais actos encontra-se a Deliberação da Direção da Liga de 5 de Maio de 2020, pela qual se determinou a suspensão definitiva da LigaPro na época desportiva 2019-2020 e a estabilização da sua classificação final por referência à classificação que se verificava em tal competição a 12 de Março de 2020. Associada a esta deliberação, a Demandante e ora Recorrente conformou ainda o âmbito da sua impugnação pela identificação de um conjunto de actos desta consequentes, igualmente praticados pela Direção da Liga, por decorrência lógica do acto primário e central da presente lide.

De igual modo, quanto aos fundamentos do seu pedido, a ora Recorrente invocou um conjunto extenso de vícios que imputa aos actos impugnados. No artigo 30.º do requerimento inicial de arbitragem, consta o elenco sumário de tais vícios e que vão desde o erro nos pressupostos de facto e de direito da deliberação impugnada à falta de habilitação legal por violação do Regulamento das Competições, incluindo, ainda, a violação de um conjunto de princípios fundamentais, gerais ou específicos do Direito do Desporto, a que a Liga se acha vinculada enquanto entidade competente para organizar e gerir uma competição desportiva.

Refira-se, ainda, que a ora Recorrente, por requerimento subsequente, requereu a ampliação da instância e do pedido, estendendo o âmbito da impugnação a uma Deliberação da Assembleia Geral extraordinária da Liga de 8 de Junho de 2020, esta adoptada já no decurso da instância arbitral e pela qual se procedeu à ratificação das deliberações impugnadas, designadamente a Deliberação de 5 de Maio de 2020.

Como afirmado pela Recorrente, no recurso interposto: “[e]stá assim em causa neste litígio arbitral, como se vê pela delimitação apresentada pela Demandante, uma decisão da Direção da Liga que versa sobre uma competição desportiva, e vários atos consequentes, relativamente aos quais a Demandante considera enfermam de um conjunto de vícios que conduzem à sua nulidade ou anulabilidade.

Aliás, sobre a questão relativa à impugnação daquela última Deliberação já este TCAS teve oportunidade de se pronunciar (providência cautelar requerida pela sociedade desportiva C... – Futebol SDUQ, Lda., sendo requerida a Liga Portuguesa de Futebol Profissional). Na decisão do Presidente deste TCA de 7.07.2020, proc. nº 47/20.0BCLSB, exarou-se o seguinte:

43. A entidade requerida veio também sustentar na sua oposição a inimpugnabilidade da deliberação da Assembleia Extraordinária da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, datada de 8-6-2020, por ser um acto confirmativo de um acto administrativo anterior, qual seja a decisão da Direcção da Liga, datada de 5-5-2020, que agindo por competência própria (máxime o artigo 4º do Regulamento das Competições), determinou a suspensão definitiva da Liga Pro, com a consequente estabilização da classificação final, fixada à data 12-3-2020 – data em que foi estabelecida a suspensão imediata e por tempo indeterminado de todas as competições de futebol –, retirando as consequências regulamentares e previstas no contrato celebrado com a FPF, isto é, a despromoção ao Campeonato Nacional, das sociedades desportivas C... – Futebol, SAD e C... – Futebol SDUQ, Ldª.

44. Afirma ainda que a decisão que afecta os direitos da requerente é tomada pela Direcção da LPFP, em 5 de Maio de 2020, e a deliberação da Assembleia Extraordinária da LPFP, de 8-6-2020, que só foi tomada porque a Direcção da Liga, em deferência a um princípio de cortesia institucional, promoveu a convocação de uma reunião extraordinária daquele órgão estatutário.

Diga-se, desde já, que não assiste razão à entidade requerida.

45. Com efeito, constando dos Estatutos da própria Liga que constitui uma competência exclusiva da Assembleia Geral, não só a aprovação dos Regulamentos Disciplinares e de Arbitragem, bem como dos regulamentos de competições, não parecem existir dúvidas de que é à Assembleia Geral que compete fazer essa aprovação do Regulamento de Competições. E, se é certo que o regulamento não previa uma situação de cancelamento da competição, a revisão do mesmo tinha de ser feita de acordo com as mesmas regras competenciais, ou seja, através de deliberação da Assembleia Geral da Liga (cfr. artigo 37º, alínea f) dos Estatutos da Liga Portuguesa de Futebol Profissional).

46. Ademais, o facto da própria Direcção da LPFP ter incluído no plano de trabalhos da Assembleia Extraordinária do dia 8 de Julho a ratificação dessa decisão de 5 de Maio, é um reconhecimento por parte da própria Direcção da LPFP da sua falta de competência nessa matéria, e não um acto de cortesia, como é alegado pela entidade requerida.

47. Daí que o acto impugnado na presente providência cautelar não seja um acto confirmativo da decisão da Direcção da LPFP, mas outrossim um acto saneador, previsto no artigo 164º, nº 3 do CPA, pelo que não se verifica a excepção dilatória de inimpugnabilidade do ato impugnado invocada pela entidade requerida”.

Mas mais. Na mesma decisão entendeu-se, também, o seguinte, com particular pertinência para estes autos:

64. Vem a requerente alegar no seu requerimento inicial que a Deliberação da Assembleia Extraordinária da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, tomada em 8-8-2020, e no segmento em que ratifica a deliberação da Direcção da Liga de 5 de Maio de 2020, determinando a despromoção ao “Campeonato de Portugal das sociedades desportivas C... – Futebol, SAD e C... – Futebol SDUQ, Ldª”, tomada no exercício de poderes de autoridade pública que lhe foram delegados pela Federação Portuguesa Futebol, por via do nº 2 do artigo 22º da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, e do artigo 27º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, está vinculada aos princípios da legalidade, da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade, da imparcialidade, e da boa-fé.

65. E, isto porque entende, em síntese útil, que a deliberação ora sindicada, apesar de imposta pela excepcional situação que atravessa o nosso País – diga-se o mundo inteiro, decorrente da grave crise de saúde pública provocada pela pandemia de COVID-19 –, e tomada em execução de decisões governamentais (Resoluções do Conselho de Ministros nºs 33-C/2020, 40-A/2020 e 43-A/2020), nos termos das quais apenas se permitiu a retoma das competições oficias da 1ª Liga de Futebol e da Taça da Portugal, não decorre de nenhuma determinação legal, ou seja, do Regulamento da Competições, que imponha como único critério de decisão, o do mérito desportivo, sem que se pondere, numa situação excepcional – como é a presente – a adopção de decisões que não colidam, antes traduzam uma solução proporcional que respeite todos os interesses em presença.

66. Contra este entendimento insurge-se a LPFP, alegando em substância que a decisão tomada pela sua Direcção, em 5-5-2020, e ratificada pela Assembleia Extraordinária de 8-6-2020, é uma decisão que encontra a sua legitimação no estado de necessidade (artigo 3º, nº 2 do CPA) tomada em face da inviabilidade da conclusão da época desportiva 2019/2020 e da constatação da existência de uma lacuna dos regulamentos desportivos aplicáveis que preencheu, por recurso ao instrumento previsto no artigo 12º, nº 2 do Cód. Civil, e ao princípio do mérito desportivo, concluindo no sentido de que a deliberação cuja anulação se peticiona não padece das ilegalidades que lhe são assacadas.

67. O requisito da aparência de direito é um conceito amplo e alargado, bastando, no que aqui releva, que não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada na acção principal para se considerar preenchido esse requisito.

68. No caso presente, consideramos que se encontra preenchido o “fumus boni iuris”, na medida em que os autos evidenciam, na consideração perfunctória que deles se extrai, que a decisão da Direcção da LPFP, de 5-5-2020, e ratificada em Assembleia Extraordinária de 8-6-2020, não ponderou nem equacionou, em face da situação excepcional que determinou a suspensão definitiva da Liga Pro, com efeitos reportados à sua classificação em 12-3-2020, a adopção de solução ou soluções excepcionais para a época 2019/20, mormente a permanência ou a não descida dos últimos classificados ao Campeonato Nacional, ou outra solução equivalente, susceptível de causar uma menor lesão aos direitos dos clubes visados, tanto mais que ainda se encontravam por disputar dez jornadas, com potenciais 30 pontos em disputa. [sublinhado nosso]

69. A verificação duma situação excepcional, como foi a que ocorreu na presente época de 2019/20, impunha uma especial ponderação de todos os interesses em presença e, consequentemente, também a tomada de decisões excepcionais.

70. Essa especial ponderação era imposta não só pela Constituição (cfr. artigo 266º, nºs 1 e 2), mas também pela legislação infra-constitucional, através da observância dos princípios gerais a que deve obedecer a actividade administrativa e constantes do CPA, em especial os previstos nos artigos 6º (princípio da igualdade), 7º (princípio da proporcionalidade) e 8º (princípios da justiça e da razoabilidade).

71. Diga-se, aliás, que em França idêntica decisão da Liga respectiva foi objecto de impugnação junto do Conseil d’État que, por decisão de 9-6-2020, suspendeu a deliberação da Ligue 1, no segmento em que despromoveu à Ligue 2 os dois últimos classificados, por a mesma “ser idónea a causar um prejuízo grave e imediato aos interesses dos clubes visados” (cfr. doc. nº 3, junto com o requerimento inicial e consulta à página web do Conseil d’Ètat).

Do decidido e que acabamos de transcrever, resulta evidente que o objecto do litigio vai muito para além daquele que foi circunscrito – erradamente – pelo tribunal arbitral. É que em causa não está a impugnação da Resolução do Conselho de Ministros n.º 40-A/2020, de 29 de Maio, que “prorroga a declaração da situação de calamidade, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”.

O pedido e a causa de pedir, tal como foram estruturados e enunciados pela Demandante e ora Recorrente no seu requerimento inicial de arbitragem, centra-se nas ilegalidades das Deliberações da Liga e não nas normas daquela Resolução ou das demais. Sendo que tais deliberações versam inequivocamente sobre uma competição desportiva, determinando a suspensão definitiva da competição e a estabilização, à data, dos resultados desta competição.

De resto, as normas regulamentares invocadas nada dispõem especificamente quanto à época desportiva 2019-2020 da LigaPro. Tais normas, no seu elemento de estatuição, não impuseram a suspensão definitiva da competição, nem a estabilização definitiva da tabela classificativa.

Neste ponto, atente-se que é a própria Recorrida que, nas suas contra-alegações, acaba por dar razão ao Recorrente. Apesar de reiterar que a deliberação da Liga de 5 de Maio se limitou a executar uma decisão do Governo e de afirmar que a sua discricionariedade administrativa se encontrava reduzida a zero, não deixa afinal de alegar que o acto impugnado é um acto de “acertamento (na parte em que elege a classificação ao tempo da suspensão para efeitos de subidas e descidas)”.

Ora, esse juízo de “accertamento”(1) não foi previamente delimitado pelo Governo, nas Resoluções que emitiu, pelo menos em relação a todos os seus aspectos vinculantes, nem obedece a elementos de facto predeterminados normativamente. Essa conformação administrativa que subjaz à intervenção administrativa da Liga que, com efeito, é de natureza “accertativa” – ainda que não estejamos no âmbito dos juízos de “accertamento” técnico ou cientifico, espaço em que esta Doutrina é normalmente convocada - não exclui a possibilidade do subsequente controlo, enquanto actividade de avaliação e de determinação de factos e de resultados através de procedimentos de controlo e de censura em sede de um juízo de legalidade. O “accertamento” operado é inovador na ordem jurídica e sobre isso dúvida não há; não se limita a declarar uma realidade preexistente, antes desenvolve um determinado regime normativo (consequência jurídica) por referência a uma determinada estatuição primária extraída das Resoluções do Conselho de Ministros.

Isto posto, é sabido que a competência do tribunal se afere pela forma como o autor configura a acção, sendo esta definida pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes. E em face do que se vem de dizer, a questão decidenda cabe na competência do tribunal arbitral por força da Lei do TAD (Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, alterada pela Lei n.º 33/2014, de 16 de Junho): n.º 2 do artigo l.º que atribui ao TAD a “competência específica para administrar a justiça desportiva relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto»; e o n.° 4 do artigo 4.° da LTAD, que subsume ao âmbito da jurisdição do TAD o conhecimento dos “litígios emergentes dos atos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina.

Por outro lado, não se alcança sustentação para a alegação de que em causa não está uma questão de natureza desportiva, mas sim de saúde pública. A classificação dos clubes e as subidas e descidas de Divisão são, porventura, matéria de saúde pública? Manifestamente não.

As classificações nas competições desportivas e a sua determinação, com a definição das respectivas regras de subida e descida de Divisão são matérias inseridas nos poderes de regulamentação, organização e da prática desportiva e os litígios daí advenientes advêm do ordenamento jurídico desportivo.

Por outro lado, tal como arguido pela Recorrente, o TAD podia – pode - conhecer das questões de constitucionalidade das normas aplicadas pelas deliberações impugnadas ou da interpretação conforme à constituição que delas deve ser feita, tendo presente o regime de fiscalização difusa consagrado no art. 204.° da CRP que comete aos tribunais a obrigação de apreciação da inconstitucionalidade das normas aplicáveis nos feitos submetidos a julgamento (das decisões dos tribunais em matéria de constitucionalidade cabe recurso para o Tribunal Constitucional). E mesmo que não estivessem em causa inconstitucionalidades, para as quais as leis processuais reservam um tratamento específico, por força do referido artigo 204.°, ainda assim o TAD não se poderia eximir a conhecer da questão principal, por força de uma incompetência material para conhecer de questões prejudiciais.

Para além de que, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 797: “a obrigação de não aplicar normas inconstitucionais vale para todos os tribunais, incluindo os tribunais arbitrais”. O âmbito subjetivo de aplicação do artigo 204.º da CRP abrange todos os tribunais, independentemente da sua categoria na organização judiciária e ainda que a sua existência seja meramente facultativa (art.º 209.º da CRP) – neste sentido, entre muitos outros, v. também Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI (Inconstitucionalidade e garantia da Constituição), 3.ª ed., 2008, pp. 224-225 e 244.

Por fim, uma palavra para o argumento invocado – mas que não se pode aceitar – atinente aos resultados que ocorrerão perante um eventual ganho de causa na acção: simplesmente trata-se de matéria que não se integra na discussão do pressuposto processual da competência material do tribunal.

O TAD é assim competente para conhecer do pedido formulado nos autos, pois que estamos perante um litígio no domínio do desporto, para efeitos do disposto do art. 1.º da Lei do TAD.

Pelo que a sentença arbitral tem que ser revogada.

Nesta sequência, vejamos se está este TCA em condições de julgar do mérito da causa. A regra da substituição do tribunal recorrido vem consagrada no art. 665.º, nº 2, do CPC e segundo a qual: “[s]e o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer de certas questões (…) por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, [o TCAS), se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.

Sucede que no presente caso não só não estão conhecidas todas as excepções suscitadas, nem está o processo devidamente instruído em ordem ao conhecimento do mérito. Neste particular importará fixar a factualidade que venha a ser apurada e que ainda está controvertida, designadamente aquela atinente à discussão da alegada violação do direito de audiência prévia.

Pelo que, em suma, não pode este tribunal de recurso conhecer (ainda) em substituição.

Assim, tudo visto, terá que julgar-se procedente o recurso e revogar-se o acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos a fim de ser conhecida a matéria tida por prejudicada e, se a tal nada mais obstar, apreciar do mérito da causa.



III. Conclusões

Sumariando

i) A competência do tribunal afere-se pela forma como o autor configura a acção, sendo esta definida pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes.

ii) O TAD é materialmente competente para conhecer do pedido de impugnação da Deliberação da Direção da Liga de 5 de maio de 2020 (incluindo a Deliberação de 25 de Maio de 2020 que a confirmou) pela qual se determinou a “suspensão definitiva” da LigaPro na época desportiva de 2019-2020 e a estabilização da tabela classificativa.

iii) O âmbito subjetivo de aplicação do artigo 204.º da CRP abrange todos os tribunais, independentemente da sua categoria na organização judiciária e ainda que a sua existência seja meramente facultativa (art.º 209.º da CRP).



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

- Conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão do TAD que declarou a sua incompetência para dirimir o presente litígio, julgando-o materialmente competente;

- Ordenar a baixa dos autos para conhecimento da matéria de excepção cuja apreciação ficou prejudicada e, se a isso nada obstar, após instrução, conhecer do mérito da causa.

Custas neste recurso pela Recorrida e Contra-interessados que contra-alegaram.

Notifique.

Lisboa, 12 de Novembro de 2020



Pedro Marchão Marques


Alda Nunes


Lina Costa


O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento. Pedro Marchão Marques

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(1)Na expressão de MASSIMO GIANNINI, Diritto amministrativo, Vol. II, 3.ª ed., Milão, 1993, p. 482 ss., que identifica os juízos de verificação, os juízos de classificação e de conformidade, sempre tendo como fim a atribuição de um efeito jurídico a uma dada realidade factual.