Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:154/19.2BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/16/2020
Relator:CRISTINA SANTOS
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA - ILÍCITO DISCIPLINAR DE DIFAMAÇÃO
Sumário:1. O cometimento do tipo de ilícito disciplinar de difamação p. e p. no artº 112º nº 1RDLPFP, tal como o ilícito penal correspondente, consiste no uso de expressões idóneas a ofender a honra e consideração alheias e, do ponto de vista do elemento subjectivo exige que o agente a tenha consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, sempre tendo em linha de conta o meio social e cultural em que os factos se inserem e a “sã opinião da generalidade das pessoas de bem” ou seja, o recurso ao conceito jurídico de “ homem médio” e “bom pai de família”.
2. O tipo de ilícito difamatório exige que as palavras ou expressões usadas não tenham outro sentido que não seja o de ofender; dito de outro modo, que inequívoca e em primeira linha as palavras ou expressões usadas visem gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome do visado.
3. Considerar juridicamente difamatório o comportamento de alguém que imputa a outrem o cometimento de erros de apreciação seja em que domínio de matérias for, no caso dos autos, de erros de arbitragem, equivale a proibir as pessoas de falar, constranger as pessoas no sentido de se guardarem de expressar o seu pensamento e se auto-censurarem, derivas que o edifício jurídico português não permite.
4. O artº 37º nº l da CRP consagra o princípio da liberdade de expressão e informação, determinando que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar e de ser informado, sem impedimentos, nem discriminações".
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:A Federação Portuguesa de Futebol, com os sinais nos autos, ao abrigo do regime do artº 8º nº 1da L74/2013, 06.09 e alterações introduzidas pela Lei 33/2014, 16.06, (LTAD), inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto de 04.NOV.2019, proferido no processo nº 23/2019 em que são parte demandante a sociedade S…… – Futebol SAD e parte demandada a ora Recorrente, dele vem recorrer concluindo como segue

1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitrai constituído junto do Tribunal Arbitrai do Desporto, notificado em 4 de novembro de 2019, que julgou procedente o recurso apresentado pela ora Recorrida, que correu termos sob o nº 23/2019.
2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitral (por maioria) em anular a multa aplicada pelo Conselho de Disciplina no processo disciplinar nº … - 2018/2019, que correu termos naquele órgão, por aplicação do artigo 112º, nº 1, 3 e 4 do RD da LPFP.
3. O Acórdão recorrido padece de graves erros na aplicação do Direito, com os quais a Recorrente não se pode conformar.
4. O Colégio Arbitral entendeu, em suma, que a Recorrida não podia ser punida porquanto as expressões em causa, consideradas ilícitas pelo Conselho de Disciplina, foram proferidas ao abrigo do direito à liberdade de expressão.
5. Sucede que, a interpretação literal das declarações bem como o contexto em que as mesmas foram proferidas não deixam margem para dúvidas de que foram ultrapassados os limites da liberdade de expressão.
6. O valor protegido pelas normas disciplinares pelas quais a Recorrida foi condenada pelo CD, à semelhança do que é previsto nos artigos. 180º e 181º, do Código Penal, é o direito "ao bom nome e reputação", cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa ao mesmo tempo - e primordialmente - a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.
7. Este é o primeiro erro em que cai o Colégio de Árbitros: o conflito de interesses não é, em bom rigor, entre a liberdade de expressão e o direito ao bom nome dos visados, mas sim entre a liberdade de expressão e a proteção das competições desportivas, da ética e do respeito entre agentes desportivos.
8. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (112º do RD da LPFP), são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem. 
9. Em concreto, a norma em causa visa prevenir e sancionar a prática de condutas desrespeitosas entre agentes desportivos e para com os órgãos da LPFP e da FPF.
10. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva.
11. No enquadramento regulamentar dado pelo artigo em apreço, reprova-se e sanciona-se especialmente quaisquer atos verbais, gestuais ou escritos que, assumindo natureza desrespeitadora, difamatória, injuriosa ou grosseira, ofendam o direito à honra, ao bom nome e reputação de outros órgãos e agentes desportivos.
12. O juízo de valor desonroso ou ofensivo da honra é um raciocínio, uma valoração cuja revelação atinge a honra da pessoa objeto do juízo, sendo certo que tal juízo não é ofensivo quando resulta do exercício da liberdade de expressão.
13. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir pública e abertamente o que pensam e sentem, estando, porém, adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do Regulamento Disciplinar da LPFP.
14. Não nos podemos olvidar que uma das funções essenciais do desporto é, precisamente, a função de arbitragem. Todos concordarão que, se não há desporto - e futebol - sem as leis de jogo -, também não haverá sem aquele agente desportivo que tem como função as fazer cumprir. E, permanece no âmago dessa função de arbitragem, o valor da imparcialidade, da isenção entre os competidores, aqueles que disputam o jogo.
15. A newsletter sub judice não se limita a propalar críticas objetivas à atuação dos elementos das equipas de arbitragem e Var's, antes incute a ideia de que estes atuaram ao arrepio de critérios de objetividade e isenção, imbuídos da intenção de favorecimento de interesses que não os de um funcionamento imparcial, lançando sobre os mesmos a suspeição de que estariam a proteger (beneficiando) a F….. - Futebol, SAD.
16. Com efeito, lançar suspeitas de que a atuação dos agentes de arbitragem não é pautada ao abrigo dos valores da imparcialidade e da isenção, não podem deixar de ser atentatórias da honra e bom nome dos árbitros visados, consubstanciando um comportamento que não pode ser tolerado e que não está justificado pelo exercício lícito da sua liberdade de expressão.
17. Parece-nos ser muito claro que, através da divulgação das expressões sub judice, a Recorrida pretendeu, de forma expressa, lançar suspeitas quanto à atuação dos agentes de arbitragem, caracterizando tal atuação como violadora das suas competências, dos deveres funcionais a que se encontram adstritos, lançando ainda suspeitas de as suas atuações terem a intenção de favorecer de determinados interesses que não os da verdade desportiva.
18. Ora, fazer uma imputação de tal calibre é atingir o núcleo essencial da função da arbitragem, pois os árbitros devem ser, por definição, isentos e imparciais, pelo que pôr em causa tais atribuições é sem dúvida lesar os bens jurídicos que a norma em causa protege.
19. A Recorrida sabia ser o conteúdo das suas declarações adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos agentes de arbitragem, colocando assim intencionalmente em causa o bom nome e reputação dos mesmos.
20. Além disso, tais afirmações são potencialmente gravosas para o interesse público e privado da preservação das competições profissionais de futebol.
21. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 112º do Regulamento Disciplinar da LPFP.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis,
Deverá o Tribunal Central Administrativo Sul dar provimento ao recurso e revogar o Acórdão Arbitral proferido, com as devidas consequências legais

º
A sociedade S…… – Futebol SAD, ora Recorrida, contra-alegou concluindo como segue:

1. Não assiste qualquer razão à Recorrente no Recurso por si interposto.
2. A Recorrida agiu ao abrigo e dentro das margens do exercício da liberdade de expressão.
3. A Recorrente confunde conceitos jurídicos com vista a legitimar um interesse superior que lhe permita punir a seu bel prazer
4. A conduta punitiva da Recorrente corresponde a uma verdadeira censura do pensamento.
5. Foi a imprensa quem primeiro chamou à colação os factos em causa nos Autos, sendo legítimo à Recorrida que sobre eles tenha uma opinião e, bem assim, que a exprima. 
6. A Recorrente pretende criar um estado de polícia, em que controla tudo e todos e apenas se admitem opiniões concordantes, nomeadamente, sobre as suas próprias condutas.
7. Os Árbitros e a própria Recorrente não são imunes ao erro (e a Decisão proferida pelo Conselho de
8. Disciplina é exemplo bastante disse), sendo legítimo aos agentes desportivos opinar sobre esses erros, criticando-os e evidenciando-os para que não se repitam.
9. A Recorrente não deu cumprimento aos ónus que impendem sobre o Recorrente que impugne a matéria de facto, designadamente, a indicar:
a. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”
10. O Tribunal Arbitral do Desporto e os Tribunais Administrativos são competentes para sindicar o conteúdo das Decisões do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, entendendo-se que posição diversa seria, conforme é intento da Recorrente, criar um espaço de insindicabilidade das ditas Decisões, permitindo à Recorrente proferir Decisões não sujeitas a Recurso e crivo de Tribunais Superiores, em suma, decidiria como quer e quando quer.
11. Não assiste qualquer razão ao Recurso interposto pela Recorrente
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o Recurso interposto pela Recorrente ser considerado improcedente e consequentemente mantida a Decisão Recorrida.

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Substituídos os vistos legais pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, vem para decisão e conferência.

*
Pelo Tribunal Arbitral foi julgada provada a seguinte factualidade:

A. No dia 14 de Janeiro de 2019, foi publicado um texto no jornal electrónico "News B……" (Edição nº 22), com o seguinte teor:
"Por uma Liga com verdade desportiva
O balanço da lª volta da Liga 2018/19 fica marcado por um conjunto de erros de arbitragem de uma dimensão que há muitos anos não se via.
Muitos deles inexplicáveis e incompreensíveis.
O que habitualmente se verifica é que, entre eventuais benefícios e perdas, acaba por haver um equilíbrio no final das contas, entre equipas que lutam pelos mesmos objetivos.
Na atual temporada isso não acontece.
Pelo contrário: desta vez existe um clube que tem beneficiado sistematicamente de erros a seu favor.
Situação reconhecida pela esmagadora maioria dos analistas e que coloca em causa a verdade desportiva desta competição.
Outra evidência é que, no confronto direto entre os principais candidatos ao título, não se tem afirmado a superioridade de quem surge destacado na liderança.
Bem pelo contrário.
Trata-se, pois, de uma liderança muito alicerçada em erros sucessivos em momentos decisivos de jogos, a que não será alheio todo o clima de pressão, ameaças e coação dirigidos a diferentes agentes desportivos.
Neste quadro, mais se torna urgente que, de forma transparente, se faça um balanço e se tornem públicos os 9 erros que recentemente foram assumidos.
Ao nível do VAR, assistiram-se inclusive às mais incríveis decisões, onde mesmo com a ajuda de diversos ângulos e imagens, houve quem não visse o que toda a gente viu.
Esperamos que, na segunda volta, esta dualidade de critérios e proteção absurda a um clube termine para que todos estejam em igualdade de circunstâncias e assim, com verdade desportiva, possam lutar pelos seus objetivos.
O S…… também assume os seus erros quando eles existem.
E não nos custa reconhecer o mérito dos adversários.
Demonstrámos isso mesmo já esta época, nos jogos que não conseguimos vencer.
PS:
O B…… voltou a vencer a Taça da Liga de Futsal, derrotando o Sp. B……, na final, por 3-0.
A equipa de J…… repete o título conquistado na época passada e confirma assim o excelente momento que atravessa e que atinge expressão máxima nas 16 vitórias conseguidas em 16 jornadas da Liga Sport Z……".
B. O jornal electrónico "News B……" é uma publicação (uma "Newsletter") disponibilizada gratuitamente através do site oficial da Demandante / S…… e visa, essencialmente, informar os seus adeptos.
C. O texto intitulado "Por uma Liga com verdade desportiva" foi publicado nesse jornal electrónico, após diversas notícias e comentários desportivos que aludiam a possíveis erros de arbitragem e denunciavam casos concretos de intimidação sobre agentes desportivos, em particular árbitros.





DO DIREITO


Do segmento fundamentador de direito do acórdão sob recurso cabe destacar os seguintes passos:
“(..) A questão a dilucidar nos presentes autos consiste em saber se o texto publicado pela Demandante S…… no jornal electrónico “News b……” em 14.01.2019 encimado pelo título “Por uma liga com verdade desportiva” se reconduz a uma infracção disciplinar, concretamente p.p. no artº 112º nºs. 1, 3 e 4 do RDLPFP ou se pelo contrário o texto em apreço consusbstancia uma crítica lícita em face do direito à liberdade de expressão reconhecido constitucionalmente. (..)
(..) … o punctum saliens radica em saber se o texto incluso no jornal electrónico da Demandante, acima transcrito, traduz uma crítica à arbitragem do futebol profissional nacional que se inscreve no direito à liberdade de expressão, ou se, ao invés, comporta uma carga ofensiva tal que já não se compadece com aquela liberdade jus-fundamental e deve, por isso, ser considerado como uma infracção disciplinar.
Ante omnia deve ser reconhecido que as afirmações em apreço constituem uma crítica forte à arbitragem, sugerindo a existência de erros grosseiros : donde, por princípio, inaceitáveis. …(..)
(..) Nestes termos entende-se que não foi cometida a infracção disciplinar p.e p. no artº 112º nºs 1, 3 e 4 do RDLPFP, antes estando em causa uma crítica que é recondutível ao exercício legítimo da liberdade de expressão da Demandante, consagra no artº 37º da CRP (..)”.

O segmento decisório é o seguinte:
“(..) Pelo que antecede, concede-se provimento ao recurso interposto pela demandante, revogando-se a decisão recorrida. (..)”
o que significa que a sociedade ora Recorrida S…… – Futebol SAD obteve ganho de causa.


1. tipo de injúrias versus difamação;

O artº 112º do RDLPFP dispõe como segue:

Artigo 112.º
Lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros
1. O clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC.
2. Se dos factos previstos na segunda parte do número anterior resultarem graves perturbações da ordem pública ou se provocarem manifestações de desrespeito pelos órgãos da hierarquia desportiva, seus dirigentes ou outros agentes desportivos, os limites mínimo e máximo das sanções previstas no número anterior são elevados para o dobro.
3. Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo das multas previstas nos números anteriores serão elevados para o dobro.
4. O clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, diretamente ou por interposta pessoa.

*
No tocante ao tipo de ilícito, importa ao caso o nº 1do normativo transcrito, no segmento em que é discriminado o comportamento não querido pela norma, nos seguintes termos:
“O clube que use de … escritos ou … injuriosos, difamatórios ou … grosseiros para com … árbitros, …, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas …”
Do ponto de vista jurídico importa distinguir conceitos, em primeiro lugar o tipo de injúrias do tipo de difamação, socorrendo-nos para o efeito de jurisprudência consolidada na matéria por reporte ao Código Penal
Neste sentido, louvamo-nos no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.09.2019, proferido no rec. nº 1146/16.9PBMTS.P1, no segmento jurídico fundamentador que se transcreve:
“(..)com base no facto n) diz a recorrente que foram preenchidos os tipos legais de difamação e injúria dos arts 180º e 181º do C.P.
Artigo 180º
Difamação
1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2. A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira.
3. Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4. A boa-fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.

A propósito do crime de injúria dispõe o n.º 1 do artigo 181.º, do Cód. Penal «quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com ena de multa até 120 dias».
Em causa está o direito ao bom nome e reputação que consiste, essencialmente, no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem.
Na lição do Prof. Beleza dos Santos, «a honra refere-se ao apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ter um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração, ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos, de o não julgar um valor negativo» (em «Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria», na Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), ano 92.º, pág. 166) – vale por dizer que o bem jurídico honra traduz uma presunção de respeito, por parte dos outros, que decorre da dignidade moral da pessoa, sendo o seu conteúdo preenchido, basicamente, pela pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.
São elementos constitutivos deste tipo legal de crime: Injuriar outrem; Dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração; O dolo, em qualquer das suas formas.
“Injúria é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo, ou vilipêndio contra alguém, dirigida ao próprio visado. O bem jurídico lesado pela injúria é, prevalentemente, a chamada honra subjetiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal.”
“Honra «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à retidão, à lealdade, ao carácter...». Consideração é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros».
Por outras palavras pode dizer-se que a honra é a dignidade subjetiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu. A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objetiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública.”
Como escreve JOSÉ DE FARIA COSTA “...entre nós, BELEZA DOS SANTOS: “a lei não exige, como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efetivo do sentimento da honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se.”

*
A linha essencial da distinção entre a difamação e injúria reside no facto de o ataque ser direto à pessoa do ofendido, sem intermediação, no caso da injúria, ou ser feito de forma enviesada, indireta, através de terceiros, no caso da difamação.
No crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do CP, o bem jurídico protegido com a incriminação é a honra e consideração, tal como acontece no crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º do CP. De um modo geral, os autores distinguem entre uma conceção subjetiva ou interna da honra (o sentimento de estima por si próprio ou, ao menos, de não desestima, o sentimento de dignidade própria, o conceito que cada um faz das suas próprias qualidades morais) e uma conceção objetiva ou externa, traduzida no apreço e respeito ou, pelo menos, na não desconsideração de que somos objeto; a reputação e boa fama, isto é, a consideração que merecemos, graças ao património moral que, com esforço próprio, fomos construindo, impondo-se à consideração dos outros.
Tanto no caso da honra em sentido subjetivo, como objetivo, a lei não protege, de uma banda, os sentimentos exagerados de amor-próprio e da outra, o exclusivo valor que a opinião pública consagra a uma determinada pessoa e que pode não corresponder à sua real valia. Como, por outro lado, tutela a honra mesmo em relação a pessoas que não têm capacidade para sentir a ofensa ou das pessoas que não têm sentido de autoestima e, em sentido inverso, de pessoas que não gozam dos favores da admiração pública.
Assim, Nelson Hungria, Comentário ao Código Penal, Rio de Janeiro, 1956, vol. 6.º, 3.ª ed., págs. 36 e ss.; Beleza dos Santos, Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria, RLJ, ano 92, n.º 3152, págs. 152 e ss.; Alberto Borciani, As ofensas à honra, Coimbra, Arménio Amado Editor, 1950, págs. 13 e ss.; Vincenzo Manzini, Trattato di Diritto Penale, Turim, 4.ª ed., tomo 8.º, págs. 475 e ss..
Numa conceção simultaneamente mais moderna e mais elaborada, não devem prevalecer neste domínio conceções puramente fácticas da honra (sejam elas subjetivas ou objetivas), mas uma conceção predominantemente normativa, temperada por uma conceção fáctica, em que se atenda ao valor da personalidade moral radicado na dignidade inerente a toda a pessoa humana, mas também à reputação de que goza determinada pessoa (cf. Faria e Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, págs. 602 e ss.).

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O elemento subjetivo vem a traduzir-se na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que s expressões utilizadas são idóneas a ofender a honra e consideração alheias e que tal ato é proibido por lei.
Este é o chamado tipo subjetivo do ilícito.
Doutrinária e jurisprudencialmente, defende-se hoje que o elemento subjetivo se basta com o chamado dolo genérico: a simples consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, considerando o meio social e cultural e a «sã opinião da generalidade das pessoas de bem».
Não é necessário que tais expressões atinjam efetivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a suscetibilidade dessas expressões para ofender.
É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano. (..)”
Também no AcRPorto, 11 de Novembro de 2015 de Borges Martins e Ernesto Nascimento:
“A protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões que são proferidas não têm outro sentido que não seja o de ofender, que inequívoca e em primeira linha visam gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome de alguém. (..)”

Feitas as transcrições que importam voltemos ao caso concreto.


2. expressões idóneas a ofender a honra e consideração alheias – erros de apreciação;

Relativamente ao tipo de ilícito disciplinar descrito no artº 112º nº 1 RDLPFP e atendendo a que a base da imputação objectiva é o artigo de um jornal, estamos perante uma imputação materializada de forma indirecta, ou seja, não pessoalmente face aos destinatários do escrito jornalístico em causa - a arbitragem dos jogos de futebol; cabe, pois, saber se a factualidade imputada é susceptível de preencher os elementos constitutivos do tipo disciplinar de difamação p. e p. pelo arº 112º nº 1, 3 e 4 do RDLPFP.

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O cometimento do tipo de ilícito disciplinar de difamação, tal como o ilícito penal correspondente, consiste no
(i) uso de expressões idóneas a ofender a honra e consideração alheias e,
do ponto de vista do elemento subjectivo exige que
(ii) o agente a tenha consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa,
(iii) sempre tendo em linha de conta o meio social e cultural em que os factos se inserem e a “sã opinião da generalidade das pessoas de bem” ou seja, o recurso ao conceito jurídico de “ homem médio” e “bom pai de família”.
No caso trazido a recurso, a imputação à arbitragem dos jogos de futebol, no contexto do escrito jornalístico levado à alínea A do probatório é materializada pelas seguintes expressões:
1. erros de arbitragem
2. erros a seu favor
3. erros sucessivos
4. 9 erros que recentemente foram assumidos
5. houve quem não visse o que toda a gente viu
6. dualidade de critérios e proteção absurda a um clube
expressões que, na sua concretude significativa, inviabilizam completamente qualquer hipótese de subsunção
normativa na previsão do ilícito disciplinar de difamação nos termos constantes do artº 112º nº 1 RGLFP.

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Como esclarece o Ac. da Relação do Porto acima transcrito, o tipo de ilícito difamatório exige que as palavras ou expressões usadas não tenham outro sentido que não seja o de ofender; dito de outro modo, que inequívoca e em primeira linha as palavras ou expressões usadas visem gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome do visado.
No caso concreto os visados são os árbitros dos jogos de futebol.
Todavia, salvo o devido respeito, em juízo de sensatez e fora de ambientes sociais de fanatismos tribais, quem se sinta difamado por lhe ser imputado um erro de apreciação, claramente desenvolveu no seu pensamento um sentimento exagerado de amor-próprio pela sua pessoa, não protegido pelo Direito.
Mais.
Considerar juridicamente difamatório o comportamento de alguém que imputa a outrem o cometimento de erros de apreciação seja em que domínio de matérias for, no caso dos autos, de erros de arbitragem, equivale a proibir as pessoas de falar, constranger as pessoas no sentido de se guardarem de expressar o seu pensamento e se auto-censurarem.

Naturalmente que o edifício jurídico português não permite tais derivas.

Fazendo nossas, com a devida vénia, as considerações do Tribunal Arbitral,
“(..) O direito à liberdade de expressão, assaz glosado na doutrina [Cfr. entre outros, Jónatas E. M. Machado, Liberdade de Expressão – Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, Coimbra Editora, Coimbra, 2002] traduz uma das mais lídimas declinações do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (previsto no art. 26º, nº 1 da CRP).
Por outro lado, no artigo 37º, nº l da Constituição, foi estipulado que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar e de ser informado, sem impedimentos, nem discriminações".
Por sua vez, o artigo 10º nº 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, tendo como epígrafe "Liberdade de expressão", determina:
"1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.
Acresce, que o direito de liberdade de expressão é inequivocamente considerado um direito fundamental, gozando, por isso, do estatuto jurídico dos direitos, liberdades e garantias, designadamente, no que toca às restrições de que possa ser alvo (cfr. o art. 18º nº 2 da CRP) [Sobre esta matéria vide, por todos, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa – Anotada, Volume 4º Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, pp. 388 a 396 e José Melo Alexandrino, Direitos Fundamentais – Introdução Geral, 2ª Edição, Principia, Cascais, 2011, pp. 127 a 142].
Em síntese, entende-se que a liberdade de expressão tem por objecto "a livre comunicação espiritual aos outros do próprio pensamento", reflectindo uma das mais "profundas exigências da pessoa humana" [Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa – Anotada, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 848]. (..)”.

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Pelo que vem de ser dito improcedem todas as questões trazidas a recurso nos itens 1 a 24 das conclusões, mantendo-se o julgado anulatório proferido pelo Tribunal Arbitral em acórdão de 04.NOV.2019 no tocante à multa aplicada à sociedade ora Recorrida S……. – Futebol SAD pelo Conselho de Disciplina no processo disciplinar nº … - 2018/2019.


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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em,
a. julgar improcedente o recurso interposto pela Federação Portuguesa de Futebol,
b. mantendo-se o julgado anulatório proferido pelo Tribunal Arbitral em acórdão de 04.NOV.2019 no tocante à multa aplicada à sociedade ora Recorrida S…… – Futebol SAD pelo Conselho de Disciplina no processo disciplinar nº … - 2018/2019.

Custas a cargo do Recorrente.
Lisboa, 16.JAN.2020


(Cristina dos Santos) ……………………………………………….

(Sofia David) ….……………………………………………………

(Dora Lucas Neto) ………………………………………………….