Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:92/22.1BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/02/2022
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores: TAD
SANÇÃO DISCIPLINAR
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO À HONRA
ART. 112.º RLPFP
Sumário:
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

A Federação Portuguesa de Futebol, veio interpor recurso da decisão do Tribunal Arbitral do Desporto, de 11.03.2022, que, por maioria, julgou procedente o recurso apresentado pelo S...SAD, assim tendo anulado a decisão do Conselho de Disciplina da Recorrente, proferida no processo disciplinar n.º 52 - 2020/2021, que correu termos na Secção Profissional daquele órgão, e que lhe havia aplicado uma pena de multa, no valor de €20.400 (vinte mil e quatrocentos euros) ao abrigo do art. 112.º, n.º 1, 3 e 4, do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante RDLPFP).

Nas alegações de recurso que apresentou, culminou com as seguintes conclusões – cfr. fls. 39 e ss., ref. SITAF:

«(…) 1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 16 de Março de 2022, que julgou procedente o recurso apresentado pelo ora Recorrida, que correu termos sob o n.º 38/2021.

2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitral (por maioria) em anular a multa aplicada pelo Conselho de Disciplina no processo disciplinar n.º 52 - 2020/2021, que correu termos na Secção Profissional daquele órgão, por aplicação do artigo 112.º, n.º 1, 3 e 4, do RD da LPFP.

3. Em causa nos presentes autos estão declarações produzidas e divulgadas pela Recorrida no seu sítio da internet oficial, cujo teor consubstancia comportamento desrespeitoso e lesivo da honra e consideração dos elementos das equipas de arbitragem visados, colocando em causa o núcleo essencial da função da arbitragem, materializado na isenção e imparcialidade que a deve caracterizar, afetando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva.

4. Nesse sentido, a Recorrida, na sua newsletter oficial “News B...”, como é publica e notoriamente reconhecida, Edição n.º 507, publicou um texto onde entre outras questões, afirmava o seguinte: “foi-nos sonegada uma grande penalidade evidente», «[a equipa] foi, novamente, prejudicada pela equipa de arbitragem» ou «torna-se óbvio que a verdade desportiva não tem sido defendida».

5. Entendeu o Tribunal a quo que as expressões utilizadas pela Recorrida não são disciplinarmente relevantes, porquanto:

(i) A integralidade do teor do texto onde se encontra inserida a referida expressão não tem relevância disciplinar;

(ii) Verifica-se a existência de factos que suportam a crítica;

(iii) A expressão está sustentada e “sufragada em opiniões de especialistas similares à vertida no escrito em análise”;

(iv) A expressão sustentada tem “um significado que não implica necessariamente uma ação dolosa”.

(v) O comunicador e jornalista P...também utilizou a mesma expressão num contexto análogo de crítica a uma decisão de equipa de arbitragem no decurso de um jogo de futebol profissional, em programa televisivo com relevo no panorama do futebol português.

6. O Acórdão recorrido padece de graves erros na aplicação do Direito e na valoração da matéria de facto considerada provada e não provada, com os quais a Recorrente não se pode conformar.

7. As declarações sub judice tiveram repercussão na comunicação social, designadamente em duas (de três) publicações desportivas nacionais, devendo considerar-se provado o seguinte facto: “As declarações em causa tenham tiveram ampla repercussão nos órgãos de comunicação social”, ou caso se entenda que tal repercussão não se considera “ampla”, o que se apenas por cautela de patrocínio se concebe, deve considerar-se provado o seguinte facto: “As declarações em causa tenham tiveram repercussão nos órgãos de comunicação social”.

8. Por tudo o que se expõe nas presentes alegações, deve ainda considerar-se provado o seguinte facto “A arguida agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento, por ser desrespeitoso, lesava a honra e consideração dos elementos das equipas de arbitragem visados, afetando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva em que se encontra envolvida, facto que, consubstanciando comportamento previsto e punível pelo ordenamento jusdisciplinar desportivo, não se absteve, porém, a arguida de o concretizar”.

9. Ora, desde logo, cabe chamar à colação que o bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto.

10. A afirmação de que a responsabilidade disciplinar é independente e autónoma da responsabilidade penal está, desde logo, presente na Lei e nos Regulamentos Federativos.

11. Assim, quando analisado o artigo 112.º do RD da LPFP é possível vislumbrar, em abstrato, indícios do ilícito penal correspondente à injúria ou difamação.

12. Por outro lado, não se pode olvidar que a Recorrida tem deveres concretos que tem de respeitar e que resultam de normas que não pode ignorar.

13. A Recorrida tem, designadamente, o dever de “usar de correção, moderação e respeito relativamente a outros promotores de espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes), sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espetáculo desportivo” (artigo 35.º, n.º 1 alínea h) do RD da LPFP); de “zelar por que dirigentes, técnicos, jogadores, pessoal de apoio, ou representantes dos clubes ajam de acordo com os preceitos das alíneas h) e i)” (artigo 35.º, n.º 1 alínea h) do RD da LPFP), e bem assim, o dever de “incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de (…) intolerância nas competições” (RPVLPFP); e de manter comportamento de urbanidade e correção entre si, bem como para com os representantes da Liga Portugal e da FPF, os árbitros e árbitros assistentes.” (artigo 51.º, n.º 1 do RC da LPFP)

14. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir publica e abertamente o que pensam e sentem. Contudo, os mesmos estão adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do RD e RC da LPFP.

15. Quando uma pessoa (singular ou coletiva), qualquer que seja, aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, deontológicas, disciplinares, sancionatórias, etc..

16. Com efeito, para que o Recorrido seja condenado pela prática do ilícito disciplinar previsto no artigo 112.º, n.º 1, 3 e 4, do RD da LPFP é essencial indagar se as declarações respetivas violam, pelo menos, um dos bens jurídicos visados pela norma disciplinar: a honra e bom nome dos visados ou a verdade e a integridade da competição, particularmente evidenciados pela imparcialidade e isenção dos desempenhos dos elementos das equipas de arbitragem.

17. Ao contrário daquilo que parece entender o TAD, não estamos, obviamente, perante a prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspetiva do direito penal.

18. Em suma, o Acórdão recorrido erra também ao analisar a questão sub judice sob a perspetiva do direito penal e não da perspetiva do direito disciplinar, pelo que se impõe que o TCA proceda a uma correta aplicação do direito ao caso.

19. Ademais, a questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto este tipo de casos são cada vez mais frequentes, o que é facto público e notório.

20. A contrário do que entendeu o TAD o conteúdo das declarações produzidas e difundidas pela Recorrida em órgão de comunicação social de sua propriedade, tem relevância disciplinar, porquanto quando a Recorrida afirma que “foi-nos sonegada uma grande penalidade evidente», «[a equipa] foi, novamente, prejudicada pela equipa de arbitragem» ou «torna-se óbvio que a verdade desportiva não tem sido defendida», - sublinhados nossos. está a levantar suspeição sobre a atuação dos referidos elementos de arbitragem, apenas se podendo considerar que tais declarações não configuram uma lesão da honra e reputação das equipas de arbitragem, se se abordar tal questão, como parece fazer o TAD, tendo por referência as normas penais que sancionam condutas típicas dos crimes de injúria ou difamação.

21. Ao referir que existe outros erros e que a verdade desportiva é prejudicada, sem apresentar qualquer prova factual de tais afirmações – principalmente da primeira – as afirmações deixam de se mover dentro dos limites do exercício da liberdade de expressão.

22. E é aí que reside, desde logo, o grande equívoco dos Exmos. Árbitros. Com efeito, a questão deve ser colocada, como acima se referiu, no âmbito da apreciação no campo disciplinar e não no campo do direito penal, autónomo e distinto deste.

23. Não se verifica a existência de base factual que suporta a crítica, apenas pelo facto de determinado “especialista” em arbitragem afirmar que se verificou determinado erro, não bastando tal factualidade para legitimar a crítica ofensiva a determinado agente(s) de arbitragem.

24. A expressão “sonegar” – pelos sinónimos maioritariamente depreciativos que o próprio TAD traz à liça -, e bem assim, no contexto em que foi usada, na perspetiva de um declaratário normal, não pode deixar de ser entendida no sentido de que o árbitro intencional e dolosamente não quis assinalar a grande penalidade, não se contendo no âmbito dos deveres regulamentares que impendem sobre a Recorrida, devendo tais declarações ser entendidas com o sentido de ter existido uma conduta voluntária dos agentes de arbitragem visados em não assinalar a grande penalidade.

25. O facto de o autor das declarações em crise afirmar que não foi sua intenção ofender a honra dos visados não deve ser suficiente, do ponto de vista da razoabilidade e da valoração da prova, para concluir pela irrelevância disciplinar de tais afirmações.

26. Não se verifica qualquer causa de exclusão da culpa e do dever de cumprir com os deveres regulamentarmente previstos e que impendem sobre a Recorrida, o facto de o comunicador e jornalista P...também ter utilizado a mesma expressão num contexto análogo de crítica a uma decisão de equipa de arbitragem no decurso de um jogo de futebol profissional, em programa televisivo com relevo no panorama do futebol português, porquanto: (i) As declarações/afirmações do comentador P...não são objeto dos presentes autos; (ii) O comentador P...não é agente desportivo; (iii) É irrelevante para a sorte dos presentes autos o eventual sancionamento do comentador P...ou da aqui Recorrente pelas declarações que profere; (iv) A factualidade em crise não afasta o poder disciplinar – público - que a ora Recorrente exerce;

27. Conforme já deixámos bem patente na parte inicial deste recurso, o valor protegido pelo ilícito disciplinar em causa, à semelhança do que é previsto nos artigos. 180.º e 181.º, do Código Penal, é o direito “ao bom nome e reputação”, cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa em primeira linha, e ao mesmo tempo, a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.

28. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (artigo 112.º do RD da LPFP) é, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.

29. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva.

30. A Recorrida sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma atuação dos árbitros a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.

31. Com efeito ao contrário do que entendeu o tribunal a quo e como supra se demonstra, as declarações da Recorrida não se limitam a remeter para erros das equipas de arbitragem, referindo e deixando a entender claramente que tais erros são premeditados, conscientes e com o intuito de prejudicar a Recorrida e consequentemente, beneficiar outros competidores;

32. Para além de imputar a tais equipas de arbitragem a prática de atos ilegais, as expressões sub judice encerram em si um juízo de valor sobre os próprios árbitros que, face às exigências e visibilidade das funções que estes desempenham no jogo, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva.

33. Assim, não podemos deixar de considerar que se é legítimo o direito de crítica da Recorrida à atuação dos árbitros, já a imputação desonrosa não o é, e aquelas expressões usaram esse tipo de imputação sem que se revele a respetiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.

34. Não se nega que expressões como a usada pela Recorrida são corriqueiramente usadas no meio desporto em geral e do futebol em particular.

35. Porém, já não se pode concordar que por serem corriqueiramente usadas não são suscetíveis de afetar a honra e dignidade de quem quer que seja ou de afetar negativamente a competição, ademais quando nos referimos a uma suspeita de falta de isenção por parte de agentes de arbitragem, uma vez que tais afirmações têm intrinsecamente a acusação ou pelo menos a insinuação de que eventuais erros dos árbitros são intencionais. Deste modo, vão muito para além da crítica ao desempenho profissional do agente.

36. O facto de os visados serem figuras públicas, sob maior escrutínio não pode legitimar que tudo se diga, não os destituindo do direito à honra e consideração, sob pena de se negar a proteção da honra das figuras públicas, conforme sufragou já o Tribunal da Relação.

37. Não se tratará nesta sede do legítimo exercício do direito à liberdade de expressão, este deverá ser harmonizado com outro direito fundamental, o direito à honra e bom nome, devendo aquele primeiro direito – liberdade de expressão - conter-se, sempre nos limites de proporcionalidade, necessidade e adequação constitucionalmente impostos – artigo 18.º da CRP - de modo a salvaguardar o núcleo essencial do direito constitucional com que conflitua.

38. O ordenamento disciplinar desportivo – que resulta da expressão da autovinculação regulamentar, por parte dos próprios agentes desportivos, traduzida na adesão a um conjunto de deveres especiais que sobre si impendem e que comportam as necessárias restrições à sua liberdade de expressão em nome e na salvaguarda da ética e valores desportivos, bem como da credibilidade da competição - pelos princípios em que se estriba, ambiciona criar e conservar um espaço comunicacional de respeito nas relações desportivas, mesmo que isso implique, para os agentes desportivos, o dever de suportar constrangimentos à liberdade de expressão que, no campo do direito penal, isto é, enquanto cidadãos, não lhes seriam exigíveis.

39. Todo este entendimento, não é colocado em crise pelo disposto no artigo 10.º da CEDH, havendo que atentar no respetivo n.º 2, sendo que, ali se refere que certas pessoas ou grupos, pela natureza das suas funções e responsabilidades, poderão ver a sua liberdade de expressão limitada.

40. Ademais, não nos podemos olvidar que uma das funções essenciais do desporto é, precisamente, a função de arbitragem, sendo que, todos concordarão que, se não há desporto - e futebol – sem as leis de jogo -, também não haverá sem aquele agente desportivo que tem como função fazer cumprir as mesmas, em suma, não existirá futebol sem o vulgarmente designado “juiz da partida”, permanecendo no âmago dessa função de arbitragem, o valor da imparcialidade, da isenção entre os competidores, valores colocados em crise pelas declarações sub judice.

41. O futebol não está numa redoma de vidro, dentro da qual tudo pode ser dito sem que haja qualquer consequência disciplinar, ao abrigo do famigerado direito à liberdade de expressão, muito menos se pode admitir que o facto de tal linguarejo ser comum torne impunes quem o utilize e que retire relevância disciplinar a tal conduta.

42. É aliás de salientar que as declarações dos agentes desportivos têm grande relevância e podem fomentar fenómenos de intolerância e violência no mundo do desporto em geral e no futebol em particular, sendo um assunto de grande relevância social e de grande importância na consciencialização dos diversos “atores” desportivos, sobre a sua acrescida responsabilidade junto das massas que notoriamente influenciam.

43. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira – limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.

44. A tese sufragada pelo Colégio de Árbitros e pela Recorrida é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em quem pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés – o que é mais preocupante -, criando na comunidade um sentimento de descrédito nas competições e nas autoridades que gerem o futebol português.

45. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 112.º, n.º 1, 3 e 4, ambos do Regulamento Disciplinar da LPFP, e bem assim por errada valoração da matéria de facto dada como provada e por omissão de matéria de facto relevante na factualidade dada como provada. (…)»


O Recorrido contra-alegou, tendo ali concluído como se segue - fls. 108 e ss. do SITAF:
«(…)
1. Não assiste qualquer razão à Recorrente no Recurso por si interposto.
2. Inexistem quaisquer actos descritos nos Autos que permitam a imputação do escrito neles em causa à aqui Recorrente, porquanto tal publicação foi efectuada pelo S......, o qual, no entanto, agiu ao abrigo e dentro das margens do exercício da liberdade de expressão.
3. A Recorrente confunde conceitos jurídicos com vista a legitimar um interesse superior que lhe permita punir a seu bel-prazer.
4. A conduta punitiva da Recorrente corresponde a uma verdadeira censura do pensamento.
5. A Recorrente pretende criar um estado de polícia, em que controla tudo e todos e apenas se admitem opiniões concordantes, nomeadamente, sobre as suas próprias condutas.
6. Conforme se demonstrou em sede de Alegações, estão preenchidos todos os pressupostos do exercício da liberdade de expressão, a qual exclui a tipicidade do ilícito disciplinar.
7. Os órgãos da Recorrente não são imunes ao erro sendo legítimo aos agentes desportivos opinar sobre esses erros, criticando-os e evidenciando-os para que não se repitam, ao invés de os branquear e ocultar atrás de sanções disciplinares.
8. O Tribunal Arbitral do Desporto e os Tribunais Administrativos são competentes para sindicar o conteúdo das Decisões do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, entendendo-se que posição diversa seria, conforme é intento da Recorrente, criar um espaço de insindicabilidade das ditas Decisões, permitindo à Recorrente proferir Decisões não sujeitas a Recurso e crivo de Tribunais Superiores, em suma, decidiria como quer e quando quer.
9. Não assiste, pois, qualquer razão ao Recurso interposto pela Recorrente (…)».

Neste Tribunal Central Administrativo Sul, o DMMP não emitiu pronúncia.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.


I. 1. Questões a apreciar e decidir

Tendo presentes as alegações de recurso apresentadas e as respetivas conclusões, as questões que importa decidir no âmbito do presente recurso, são as seguintes:

i) do erro de julgamento de facto em que incorreu a decisão recorrida – cfr. conclusões nº 7 e 8;

ii) do erro de julgamento de direito em que incorreu a sentença recorrida ao ter anulado a decisão do CJ da Recorrente que havia aplicado ao Recorrido uma pena de multa, no valor de €20 400 (vinte mil e quatrocentos euros), ao abrigo do art. 112.º, n.º 1, 3 e 4, do RDLPFP, por ter ultrapassado os limites que comportam a sua intervenção enquanto tribunal arbitral, nesta matéria - cfr. conclusão n.º 43 - e, bem assim, por errada subsunção dos factos provados ao direito aplicável – cfr. conclusões constantes, designadamente, dos respetivos n.º s 3, 20, 22, 27 a 29, 33, 34, 37, 38, 41 a 42 e 44.

II. Fundamentação

II.1. De facto

A matéria de facto constante do acórdão recorrido é aqui transcrita ipsis verbis:
«(…)
1. A arguida, S...... – Futebol, SAD, proferiu declarações na sua newsletter oficial “News B...”, como é publica e notoriamente reconhecida, Edição n.º 507, reproduzidas no dia 22 de fevereiro de 2021, na sequência dos jogos oficialmente identificados sob o n.º 11904 e sob o n.º 12003, respetivamente disputados entre a M...– Futebol SAD e a S...SAD, no dia 14 de fevereiro de 2021, no Estádio Comendador Joaquim de Almeida Freitas, a contar para a 19.º Jornada da Liga NOS, e entre a S... SAD e a S...SAD, no dia 21 de fevereiro de 2021, no Estádio de São Luís, a contar para a 20.º Jornada da Liga NOS.

2. A equipa de arbitragem do jogo entre a M...– Futebol SAD e a S...SAD, disputado no dia 14 de fevereiro de 2021, no Estádio Comendador Joaquim de Almeida Freitas, a contar para a 19.º Jornada da Liga NOS era composta pelos seguintes elementos: M...(Árbitro); T… (Assistente 1); N… (Assistente 2); C… (4.º Árbitro); F…o (VAR) e R… (AVAR).

3. A equipa de arbitragem do jogo entre a S... SAD e a S...SAD, disputado no dia 21 de fevereiro de 2021, no Estádio de São Luís, a contar para a 20.º Jornada da Liga NOS era composta pelos seguintes elementos: H…l (Árbitro); B… (Assistente 1); R…. (Assistente 2);J …. (4.º Árbitro); V… (VAR) e P… (AVAR).

4. As declarações são as que se seguem:
«Oportunidades perdidas”
É urgente serem conhecidas as comunicações e imagens mostradas nos jogos em que defrontámos M… e F…. Se o VAR veio para melhorar o futebol, então que se demonstre que tal acontece, começando pela transparência. Mais uma vez, foi-nos sonegada uma grande penalidade evidente, desta feita num lance faltoso sobre R…. A ser convertida, ter-nos-íamos adiantado no marcador e a história do jogo seria diferente. A equipa fez mais do que suficiente para vencer em Faro. Esteve organizada, foi pressionante e dispôs de oportunidades de golo em quantidade e qualidade que justificariam o triunfo. E foi, novamente, prejudicada pela equipa de arbitragem. Tudo isto contribuiu para a ansiedade e intranquilidade crescentes no seio da equipa, derivadas não só da classificação atual, mas também do desenrolar do jogo, em que ao desalento por não conseguir transformar em golos as boas ocasiões criadas, acresceu a frustração por se sentir prejudicada por sucessivos erros de arbitragem. O lance de falta evidente sobre R... na área do Farense foi precedido por diversas situações de golo iminentes aos 19, 25 e 27 minutos, só para referir as mais evidentes. E a toada do jogo manteve-se, com desperdício de oportunidades claras aos 38 e 45 minutos da primeira parte. No segundo tempo, P... chutou ao poste e outras jogadas houve que, com um pouco mais de clarividência e pontaria, poderiam ter resultado em golo. A falta de eficácia tem sido prejudicial à nossa equipa ao longo da época, tornando-se mais evidente nas últimas partidas, em que se notou, apesar dos resultados aquém do desejado, um incremento qualitativo a nível exibicional, o que não surpreende visto que se regressou a uma situação de normalidade após os muitos casos de Covid detetados no plantel.
Independentemente da avaliação que se possa fazer ao percurso da nossa equipa, não se compreende a sucessão de lances suscetíveis de marcação de grande penalidade a nosso favor decididos erradamente pelas equipas de arbitragem. Muito menos num tempo em que se dispõe de uma ferramenta, o vídeoárbitro, concebida como propósito da defesa da verdade desportiva. Infelizmente, do que nos tem sido dado a observar, torna-se óbvio que a verdade desportiva não tem sido defendida».

5. Estas declarações tiveram repercussão nos órgãos de comunicação social.

6. A arguida agiu de forma livre, consciente e voluntária.

7. A arguida tem antecedentes disciplinares.

8. No meio de comunicação referido no facto provado n.º 1, a Demandante formulou comentários críticos acerca das prestações da equipa da Demandante, isto é, visando diretamente a própria equipa.

9. O ex-árbitro internacional D…, a respeito de um lance ocorrido no jogo M… SAD vs. B... SAD, em que o jogador R…(M… SAD) acerta com o braço esquerdo no rosto do jogador V… (B... SAD) que poderia dar
lugar à marcação de grande penalidade a favor da Demandante, referiu que se tratava de “penalti claro e óbvio que justificava a intervenção do VAR”.

10. O ex-árbitro Duarte Gomes, a respeito de outo lance ocorrido no jogo M... SAD vs. B... SAD, em que F… (M... SAD) toca em Julian Weigl (B... SAD) na área de grande penalidade da M... SAD, que poderia dar lugar à marcação de grande penalidade a favor da Demandante, referiu que a decisão do árbitro [que assinalou grande penalidade] foi “aceitável”, mas “inaceitável foi depois a decisão do VAR” [que revogou a grande penalidade] e que “o amarelo por simulação foi má decisão.

11. Os ex-árbitros J…, J…, F…, J… M… a consideraram, nos jornais “Record” e “O Jogo”, ter sido cometido erro pela equipa de arbitragem e pelo VAR ao não ter sido assinalada a grande penalidade referida na alínea d) sobre J….

12. Os ex-árbitros J…. e J…. consideraram, nos jornais “Record” e “O Jogo”, ter sido cometido erro na decisão do árbitro e na intervenção do VAR por considerarem ter existido motivo para marcação de grande penalidade referida na alínea e) sobre J….

13. Os ex-árbitros D…. e J…. opinaram respetivamente, nos jornais “A Bola” e “Record” que no jogo a que versam as declarações dos autos ficou por assinalar uma grande penalidade a favor da Demandante ao minuto 36.

14. A Demandada utilizou, no canal televisivo por si explorado, o verbo “sonegar”, através de um dos seus apresentadores em comentário a um juízo arbitral, por ocasião da não validação de um golo em jogo da seleção principal.

15. O Presidente do Conselho de Arbitragem da Demandada afirmou, em 21/12/2020, em declarações ao jornal “Público”, que “neste momento é muito difícil colocar em prática as comunicações em tempo real”, que “no futuro esta é a forma de dar maior
transparência e credibilidade ao VAR”, que “precisamos de tempo, treino e aprendizagem.” No início, colocámos uns clips nos media para os adeptos perceberem que não havia ali quaisquer segredos, para as pessoas perceberem como trabalhámos com o VAR”, que haverá “muito trabalho para fazer nesta área”, que a divulgação das comunicações em tempo real levaria as pessoas a criticar “a forma como o árbitro e o VAR falaram e não a decisão” em si, que “no futuro podemos fazer mais do que agora”,
e que “a nossa opinião, neste momento, é que precisamos de muitas horas de treino antes de podermos dar este passo.”

16. O Presidente do Conselho de Arbitragem da Demandada afirmou, nessa mesma data, que “as pessoas que estão no VAR sofrem pressão para tomar a decisão certa. Há situações de interpretação, o que para uns é claro em termos de erro, para outra pessoa não é. O stress e a pressão são os principais problemas que levam a decisões erradas no VAR. Temos que treinar muitas horas e educar a implementação do VAR. Não temos de mudar muito as leis do jogo. Algumas ligeiras mudanças”.

I) OS FACTOS NÃO PROVADOS
a) Que as declarações em causa tenham tido ampla repercussão nos órgãos de comunicação social (relevo nosso).
b) Que a Demandante soubesse que o seu comportamento, por ser desrespeitoso, lesava a honra e consideração dos elementos das equipas de arbitragem visados, afetando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva em que se encontra ordenamento jusdisciplinar desportivo, não se absteve, porém, a arguida de o concretizar.

J) MOTIVAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO
Prova dos factos:
A convicção deste coletivo arbitral no que tange aos factos considerados provados advém da prova documental e testemunhal trazida pelas partes, sujeita à livre apreciação e análise crítica da mesma.
Os factos considerados não provados sustentam-se no mesmo acervo probatório, salientando-se que se entende que as declarações vertidas tiveram repercussão, mas dada a limitada prova instruída pela Demandada consideramos excessivo que se apode o dito impacto de amplo: a aludida newsletter foi publicada no sítio da Demandada, foi replicada em dois afamados órgãos de comunicação social. O segundo facto retirado da lista de factos provados decorre do que em seguida se expõe. (…)»

II.2. De direito

i) Do erro de julgamento de facto em que incorreu a decisão recorrida – cfr. conclusões nº 7 e 8.

Insurge-se a Recorrente quanto ao julgamento da matéria de facto levado a cabo pelo tribunal a quo (TAD) relativamente aos factos não provados que a seguir se transcrevem:

«(…)

a) Que as declarações em causa tenham tido ampla repercussão nos órgãos de comunicação social;

b) Que a Demandante soubesse que o seu comportamento, por ser desrespeitoso, lesava a honra e consideração dos elementos das equipas de arbitragem visados, afetando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva em que se encontra envolvida, facto que, consubstanciando comportamento previsto e punível pelo ordenamento jusdisciplinar desportivo, não se absteve, porém, a arguida de o concretizar.»

Quanto ao primeiro destes factos, alega o Recorrente que « (…) entende o Tribunal a quo “que se entende que as declarações vertidas tiveram repercussão, mas dada a limitada prova instruída pela Demandada consideramos excessivo que se apode o dito impacto de amplo: a aludida newsletter foi publicada no sítio da Demandada, foi replicada em dois afamados órgãos de comunicação social.”

(…) Ora, tal afirmação, parece desde logo contraditória, na medida em que, o Colégio Arbitral formado no presente processo, conhecerá, naturalmente, os meios de comunicação de imprensa escrita nacional especializada, no que ao desporto diz respeito.

Com efeito, é público e notório que existem três publicações desportivas em Portugal, A Bola, Record e O Jogo. Ora, os dois primeiros são as duas publicações desportivas com maior tiragem e implantação online, sendo que o diário O Jogo, é um diário desportivo, cuja existência remonta à década de 90 – ao contrário dos dois primeiros que são bastante mais antigos.

Em suma, diremos que, A Bola e o Record correspondem às publicações desportivas mais “afamadas” – utilizando a terminologia do Tribunal Arbitral – no que ao desporto diz respeito e como o próprio TAD afirmou, as declarações em crise tiveram repercussão nas referidas publicações.

Ora, tal facto que o Colégio Arbitral entendeu considerar não provado, corresponde ao ponto 5 dos factos dados como provados pelo Conselho de Disciplina da Recorrente no acórdão que o Tribunal a quo decidiu revogar. Analisando a motivação da fundamentação de facto relativa à referida factualidade, constante no Acórdão do Conselho de Disciplina da Recorrente, afirma-se que a mesma resulta “dos documentos de fls 5 a 16 (sapo notícias on-line)”.

Ora, cremos que, ainda que as declarações tivessem tido repercussão “apenas” nas duas maiores publicações desportivas nacionais – num total de três – tal seria suficiente para se considerar que tais publicações tiveram ampla repercussão nos órgãos de comunicação social. Contudo, uma análise dos documentos constantes a fls. 5 a 16 do processo disciplinar, permite concluir que tal repercussão não se limitou às referidas duas publicações.

Neste conspecto, haverá que ser aditada à factualidade dada como provada, o seguinte facto:

As declarações em causa tenham tiveram ampla repercussão nos órgãos de comunicação social”.» (sublinhados nossos).

Porém, sem razão. Vejamos porquê.

Desde logo, porque não é correto dizer-se que o tribunal a quo, “revogou”, nas palavras do Recorrente, o facto n.º 5 constante da decisão impugnada, pois que consta da decisão sobre a matéria de facto aqui recorrida, precisamente como facto n.º 5, o seguinte: «5.Estas declarações tiveram repercussão nos órgãos de comunicação social», por referência às declarações que estão na base da presente ação e recurso, para depois ter feito então constar o seguinte facto como não provado «a) Que as declarações em causa tenham tido ampla repercussão nos órgãos de comunicação social (relevo nosso)», aduzindo, para tal, a seguinte justificação/motivação: «Os factos considerados não provados sustentam-se no mesmo acervo probatório, salientando-se que se entende que as declarações vertidas tiveram repercussão, mas dada a limitada prova instruída pela Demandada consideramos excessivo que se apode o dito impacto de amplo: a aludida newsletter foi publicada no sítio da Demandada, foi replicada em dois afamados órgãos de comunicação social.»

Ora, entende este tribunal de recurso que o assim decidido é para manter, pois que o adjetivo “ampla” que foi retirado do facto n.º 5 considerado como provado na decisão impugnada e motivou a decisão da matéria de facto não provada, não só comporta em si um juízo de valor sobre a referida repercussão, motivo pelo qual, e desde logo, deveria sempre ser arredado da matéria de facto, e sim relegado para a sede dos juízos próprio da decisão que recairá sobre a mesma, mas também porque os argumentos alinhados pela Recorrente não comprometam o assim decidido, ao remeter a impugnação em causa para um número absoluto de jornais desportivos nacionais – 2, em 3, dos mais relevantes – dado que a eliminada “ampla” repercussão das declarações sub judice não encontra suficiente respaldo nesse número, pois que importaria ainda indagar sobre a repercussão que tais notícias. Duas notícias em dois dos três jornais desportivos nacionais não impõe a verificação de uma “ampla” repercussão, sendo que desta discordância melhor se evidencia a natureza conclusiva e não factual da questão aqui suscitada.

Relativamente ao segundo facto não provado, a saber «b) A arguida agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento, por ser desrespeitoso, lesava a honra e consideração dos elementos das equipas de arbitragem visados, afetando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva em que se encontra envolvida, facto que, consubstanciando comportamento previsto e punível pelo ordenamento jusdisciplinar desportivo, não se absteve, porém, a arguida de o concretizar».

Alegando a Recorrente que este «deve também ser considerada provada, por tudo quanto infra se expõe, acompanhando-se a motivação da matéria de facto relativa a esta factualidade e constante no Acórdão do Conselho de Disciplina da Recorrente quando se afirma que “Decorre da admissão das regras de experiência comum que a SAD Arguida, ao permitir a sobredita publicação não podia ignorar que a sua conduta ofendia o bom nome e reputação profissionais dos visados bem assim a credibilidade da própria competição, (sublinhados nossos), mas aqui também sem razão.

Dizer que decorre das regras de experiência comum que a Recorrente, «ao permitir a sobredita publicação não podia ignorar que a sua conduta ofendia o bom nome e reputação profissionais dos visados bem assim a credibilidade da própria competição», não é um facto, mas sim a decisão que cumpre proferir nos autos.

Dito isto, imperioso se torna julgar improcedentes os erros de julgamento imputados à decisão recorrida.

ii.1) Do erro de julgamento de direito em que incorreu a sentença recorrida ao ter anulado a decisão do CJ da Recorrente que aplicou ao Recorrido uma pena de multa no valor de €20 400 (vinte mil e quatrocentos euros), ao abrigo do art. 112.º, n.º 1, 3 e 4, do RDLPFP, por ter ultrapassado os limites que comportam a sua intervenção enquanto tribunal arbitral, nesta matéria - cfr. conclusão n.º 43.

Alega o Recorrente que «43. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira – limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.», aduzindo para tal e em síntese, que por «(…) Acórdão do TCA Sul, de 01.06.2017, proferido em sede de recurso de uma decisão proferida por este Tribunal Arbitral do Desporto, refere expressamente que "(...) a medida concreta da pena aplicada pela Administração apenas é contenciosamente sindicável quanto a aspectos vinculados e em casos de erro grosseiro ou manifesto, incluindo por desrespeito dos princípios gerais reguladores da actividade administrativa, encontrando-se o fundamento teorético-político deste controle jurisdicional atenuado, sobre o mérito da decisão administrativa, no princípio da separação de poderes (...). Não existindo tal violação da lei, o TAD não podia entrar em matéria reservada à Administração, julgando da conveniência ou oportunidade da sua decisão.»

Ora, o tribunal a quo não se pronunciou sobre a conveniência ou oportunidade da decisão do CD da Recorrente, mas sim sobre a legalidade da mesma, face ao disposto, do art. 112.ºdo RDLPFP, ao abrigo do qual a decisão punitiva foi proferida.

Acresce que no caso em apreço, não se alterou a pena disciplinar aplicada, no sentido em que deve ser entendida a jurisprudência invocada pela Recorrente, pois que, não se alterou o montante da pena de multa aplicada ou se substituiu esta por outra pena disciplinar. A decisão do tribunal a quo, aqui recorrida, anulou a decisão impugnada, do CD da Recorrente, por considerar que os pressupostos legais para que a mesma pudesse manter, não se verificavam no caso em apreço.

Ora, sobre esta questão, já se pronunciou, pois, o Supremo Tribunal Administrativo, por aresto da formação do art.150.º, do CPTA, de 09.11.2017, P. 01120/17(1), considerando que sobre esta questão importaria «apurar qual a verdadeira natureza do TAD e se o mesmo pode ser considerado como um verdadeiro Tribunal sujeito às mesmas restrições dos Tribunais judiciais no tocante à sindicância da actividade administrativa, maxime com a relacionada com o poder disciplinar. Deste modo, é importante saber se o TAD pode apreciar a medida concreta da pena em todos os casos e não só nos de erro grosseiro e manifesto e aplicar pena diferente da aplicada pelas autoridades desportivas o que, in casu, significa saber se foi legal a redução da pena de suspensão de 9 para 6 meses operada pelo TAD.», o que foi depois apreciado por aquele Colendo tribunal, em aresto datado de 08.02.2018, no mesmo processo, e que, para maior facilidade de exposição aqui se transcreve na parte que releva no âmbito do presente recurso: «(...)Nem se invoque o art. 61º da LTAD ao prever “Em tudo o que não esteja previsto neste título e não contrarie os princípios desta lei, aplicam-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, as regras previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, nos processos de jurisdição arbitral necessária, e a LAV, nos processos de jurisdição arbitral voluntária” já que o mesmo pressupõe precisamente, em tudo o que não esteja previsto, quando a plena jurisdição de facto e de direito está prevista no referido art. 3º da LTAD. Nem se diga, também, que tal violaria os limites impostos aos tribunais administrativos pelo princípio da separação e interdependência dos poderes (art. 3°, n.° 1 do CPTA), nomeadamente em matéria relacionada com o poder disciplinar, como é o caso. Este art. 3º do CPTA diz respeito aos poderes dos tribunais administrativos e reza: “1 - No respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação.”

Mas, desde logo, o TAD não é um tribunal administrativo, não integrando a jurisdição administrativa, não obstante as regras do CPTA possam ser de aplicação subsidiária.

E o processo disciplinar é de natureza sancionatória sabendo nós que em matéria penal os tribunais penais aplicam uma concreta pena e dessa forma têm jurisdição plena no caso.

Não se vê porque o legislador não tenha podido e querido dar ao TAD especificidades relativamente às tradicionais competências dos tribunais administrativos não obstante as normas do CPTA sejam de aplicação subsidiária, no que seja compatível.

Pelo que, não existe qualquer absurdo em que o TAD beneficie de um regime, em sede de sindicância da actividade administrativa que, em sede de recurso da sua decisão, não é tido como o tradicionalmente conferido aos tribunais administrativos, limitados na sua acção pela chamada “reserva do poder administrativo”(…)».

Para assim concluir, sumariando, que «II - Resulta da Lei do TAD, Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro na redacção dada pela Lei n.º 33/2014 de 16 de Junho, (e nomeadamente do seu art. 3º e 4º nº3) que este é um verdadeiro tribunal, mas com algumas especificidades relativamente aos tribunais administrativos entre as quais está a possibilidade de reexame das decisões em sede de matéria de facto e de direito das decisões dos Conselhos de Disciplina.»

Aderindo inteiramente à doutrina que dimana do aresto supra citado e transcrito, improcede o primeiro erro de julgamento imputado à decisão recorrida.

Avancemos.

ii.2) Do erro de julgamento em que incorreu a sentença recorrida ao ter anulado a decisão do CJ da Recorrente que aplicou ao Recorrido uma pena de multa no valor de €20 400 (vinte mil e quatrocentos euros), ao abrigo do art. 112.º, n.º 1, 3 e 4, do RDLPFP, por errada subsunção dos factos provados ao direito aplicável – cfr. conclusões constantes, designadamente, dos respetivos n.º s 3, 20, 22, 27 a 29, 33, 34, 37, 38, 41 a 42 e 44.

Atentemos, pois, no discurso fundamentador da decisão recorrida:

«(…) Parece-nos razoável afiançar que a discordância com determinada(s) decisão(ões) de uma equipa de arbitragem, maxime quando essa discordância colhe opinião idêntica de algum especialista na matéria, possa levar a que o sujeito em causa se sinta prejudicado e apelide de erro de arbitragem tal decisão que merece o seu repúdio. São juízos de valor assentes em factos concretos.

O erro pode ser aceitável ou desculpável, mas não será por isso que não acarreta consequências, e uma delas será a obliteração da verdade desportiva. Tanto o erro propositado como o erro inconsciente repercutem-se na verdade desportiva. Entendemos aqui por verdade desportiva como o carácter imprevisível da competição desportiva que urge salvaguardar, na esteira da definição estatuída no n.° 4, do artigo 3.0 da Convenção do Conselho da Europa sobre a Manipulação de Competições Desportivas.

Em conclusão, o ato de errar ou o prejudicar, mesmo quando não tenha no seu âmago um propósito intencional, não deixa de ser uma ação prejudicial em desfavor da parte que é lesada, com repercussão no resultado ou curso da competição desportiva.

Por tudo o exposto, a expressão que nos oferece mais dúvidas é a que implicou o recurso ao verbo sonegar. Importa a mesma o carácter intencional da ação ou pode estribar-se apenas no desiderato alcançado?

Sopesadas as circunstâncias do caso sub judice, especificamente o facto da crítica em causa, em especial o recurso ao verbo sonegar:

a) Estar apoiada em factos concretos,

b) Estar sufragada em opiniões de especialistas similares à vertida no escrito em análise,

c) Ser a cópia de uma expressão anteriormente utilizada por um reputado comunicador e jornalista enquanto ao serviço da Demandada, sem que esta tenha considerado existir qualquer desvalor,

d) Ter um significado que não implica necessariamente uma ação dolosa,

Concluímos que (i) o juízo de valor censurado pela Demandada encontra-se suportado por diversos factos e que, ademais, (ii) é razoável a dúvida gerada sobre se foi ou não vertida uma acusação de intencionalidade prejudicial por detrás das decisões de arbitragem.

E sendo esta dúvida razoável, a crítica divulgada no escrito em causa não se afigura excessiva, pelo que entendemos que o texto objeto da presente ação deve ser tolerado ao abrigo da Liberdade de Expressão.

Desde logo, como já ressalvou o TCAS, porque os “árbitros desportivos, tendo em conta o meio onde desenvolvem a sua atividade, não podem deixar de ser considerados, nesse exercício, como personalidades públicas e, consequentemente, expostos a crítica de opinião pública - incluindo a crítica dos demais agentes desportivos - veiculada pelas diversas formas de expressão ao seu dispor.” (TCAS, 15.10.2020, Proc. 53/20.5BCLSB).

Em segundo lugar, é público e notório que as questões de arbitragem desportiva - no futebol - constituem um debate de interesse público. Jornais, rádios e TV’s dedicam um espaço considerável ao tratamento deste assunto semana após semana. Aqui o TEDH tem defendido que é reduzida a aplicação do art. 10.2 da Convenção justamente por se tratarem de questões com interesse público (Stoll v. Switzerland [GC], § 106; Castells v. Spain, § 43; Wingrove v. the United Kingdom, § 58). É público e notório que o futebol profissional e comercial concede um palco relevante ao debate das questões de arbitragem.

Acrescentemos que, tendo merecido reflexão, considerando o rol de prestigiados e antigos árbitros que convalidam a existência dos apontados erros arbitrais, é igualmente razoável postular que tem maior peso junto da opinião pública - e como tal, dos adeptos do clube em causa - os escritos de quem tem conhecimento e experiência em arbitragem do que as críticas, por mais contundentes que possam ser, emanadas do próprio clube.

E como tal, o eventual perigo que daí advenha para o fenómeno na violência no desporto é substancialmente diminuto ou nulo.

Conclui-se que os escritos produzidos pela Demandante no caso concreto e que deram azo à condenação da Demandante em processo disciplinar, por tudo o exposto, não configuram a prática do ilícito disciplinar previsto e punido pelo artigo 112.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional em vigor na época 2020/21.» (sublinhados nossos).

Desde já se adianta que o assim decidido é para manter. Vejamos porquê.

Sobre o pretexto, contexto e texto deste tipo de litígios, SOFIA DAVID (2) aduz cristalinamente que «(…) A efectivação da liberdade de expressão dos agentes desportivos é uma imposição básica num Estado de direito democrático, assente no pluralismo de expressão e numa organização política, democrática e participativa.

Às federações desportivas foram delegados poderes regulamentares e disciplinares que visam a salvaguardada das regras de jogo ou da competição, a promoção da ética, do espírito, da verdade desportiva e o objectar de práticas que impliquem a “perversão do fenómeno desportivo”. Incumbe também às federações desportivas o objectar de actos que incitem ou consubstanciem actos de violência, racismo, xenofobia e intolerância.

As federações desportivas devem, pois, penalizar os comportamentos dos agentes desportivos que colidam com as atribuições que lhes foram cometidas, quando tal se mostre claramente essencial para a garantia do respeito que é devido entre os agentes desportivos ou para a repressão de actos ponham em causa os elementos essenciais e imprescindíveis para bom funcionamento das instituições desportivas.

Quanto aos actos e comportamentos que não colidam com os fins e atribuições que estão cometidos às federações desportivas, devem ficar fora do campo da sanção disciplinar.

A liberdade de expressão e de informação é um direito fundamental consagrado na CRP que tem de conviver com os direitos de personalidade, designadamente o direito ao bom nome e à reputação.

As normas regulamentares aprovadas pelas federações desportivas que punem a ofensa ao bom nome e à reputação são normas restritivas da liberdade de expressão e informação. Enquanto normas restritivas, impõe-se a sua interpretação restrita ao preciso fim que visam salvaguardar.

Na interpretação que se faça das normas punitivas exige-se, também, a observância do princípio da proporcionalidade na sua tripla dimensão, da necessidade, da adequação e da proibição do excesso.

Na protecção do direito ao bom nome e à reputação deve atender-se às circunstâncias concretas que envolvem o mundo desportivo e relativas à eventual notoriedade do individuo ou instituição lesada.

Neste sentido, a jurisprudência nacional, na esteira da jurisprudência do TEDH, tem recorrido ao conceito de figura pública, que pressupõe uma maior tolerância do visado às críticas e comentários que lhe são dirigidos.

Ocorrendo uma colisão entre a liberdade de expressão e o direito ao bom nome e à reputação, impõe-se ponderar casuisticamente todas as circunstâncias que envolvem o caso concreto por forma a encontrar a melhor harmonização entre as normas colidentes.

No raciocínio que se desenvolva, ter-se-á de cuidar que não se sacrifica o núcleo essencial de nenhum dos direitos colidentes. Igualmente, atendendo à concreta situação, há que interpretar os valores jurídicos em confronto tentando retirar a sua máxima efectivação, optimizando os comandos constitucionais relativos à liberdade de expressão e ao direito ao bom nome e à reputação – e que se protegem por via da sanção aplicada.

Na ponderação dos valores jurídicos em confronto e que se querem proteger, o interprete deve considerar não só as normas constitucionais que prevêem e delimitam os respectivos direitos, como as normas de direito internacional que nos vinculam, designadamente as que decorrem da CEDH e da jurisprudência que delas retira o TEDH.» (sublinhados nossos).

Neste pressuposto, que secundamos, retomemos o caso em apreço.

As declarações sub judice, que motivaram a aplicação da sanção disciplinar de € 20 400 (vinte mil e quatrocentos euros), escritas e divulgadas na newsletter oficial “News B...”, do Recorrido, Edição n.° 507, no dia 22 de fevereiro de 2021, na sequência dos jogos oficialmente identificados sob o n.° 11904 e sob o n.° 12003, respetivamente disputados entre a M...- Futebol SAD e a S...... - Futebol SAD, no dia 14 de fevereiro de 2021, no Estádio Comendador Joaquim de Almeida Freitas, a contar para a 19.° Jornada da Liga NOS, e entre a Sporting Clube Farense - Algarve Futebol SAD e a S...... - Futebol SAD, no dia 21 de fevereiro de 2021, no Estádio de São Luís, a contar para a 20.° Jornada da Liga NOS, foram as seguintes – cfr. facto n.º 1 «(…) foi-nos sonegada uma grande penalidade evidente», «[a equipa] foi, novamente, prejudicada pela equipa de arbitragem» ou «torna-se óbvio que a verdade desportiva não tem sido defendida», considerando a Recorrente que, através das mesmas, se levantou uma suspeição inadmissível sobre a atuação da equipa de arbitragem, que a admissibilidade de tais expressões e suspeições revelam particular perigosidade para a credibilidade das instituições desportivas, que embora seja “corriqueiro” este tipo de insinuações, não quer dizer que as mesmas seja admissíveis e inócuas no âmbito desportivo, embora reconheçam que a atuação dos árbitros, assim como das instituições desportivas, não podem estar dentro de uma redoma de vidro que impeça um exercício legítimo de crítica.

Vejamos então.

A questão jurídica controvertida, foi já apreciada várias vezes por este TCA Sul, designadamente, nos acórdãos de 16.01.2020 e de 13.02.2020, P.154/19.2BCLSB e P.155/19.0BCLSB, respetivamente, e dos quais se pode concluir – cfr. sumário do primeiro dos acórdãos referido, no qual a primeira signatária foi adjunta, o seguinte:

1. O cometimento do tipo de ilícito disciplinar de difamação p. e p. no artº 112º nº 1RDLPFP, tal como o ilícito penal correspondente, consiste no uso de expressões idóneas a ofender a honra e consideração alheias e, do ponto de vista do elemento subjectivo exige que o agente a tenha consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, sempre tendo em linha de conta o meio social e cultural em que os factos se inserem e a “sã opinião da generalidade das pessoas de bem” ou seja, o recurso ao conceito jurídico de “ homem médio” e “bom pai de família”.

2. O tipo de ilícito difamatório exige que as palavras ou expressões usadas não tenham outro sentido que não seja o de ofender; dito de outro modo, que inequívoca e em primeira linha as palavras ou expressões usadas visem gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome do visado.

3. Considerar juridicamente difamatório o comportamento de alguém que imputa a outrem o cometimento de erros de apreciação seja em que domínio de matérias for, no caso dos autos, de erros de arbitragem, equivale a proibir as pessoas de falar, constranger as pessoas no sentido de se guardarem de expressar o seu pensamento e se auto-censurarem, derivas que o edifício jurídico português não permite.

4. O artº 37º nº l da CRP consagra o princípio da liberdade de expressão e informação, determinando que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar e de ser informado, sem impedimentos, nem discriminações".”

Sobre este aresto recaiu, em sede de recurso de revista, uma decisão em sentido diverso, do Supremo Tribunal Administrativo, nos seguintes termos – cfr. acórdão do 04.06.2020, P. 154/19.2BCLSB:

I – Preenche o tipo de infração disciplinar previsto e punido nos artigos 19.º e 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a publicação de um artigo, na imprensa privada de um clube de futebol, onde se afirma que os árbitros atuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso.

II – Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37.º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação dos árbitros (artigo 26º/1 da CRP), e a prevenção da violência no desporto (artigo 79.º/2 da CRP)”.

Assim como, por acórdão de 02.07.2020, P.139/19.9BCLSB, concluiu também aquele Colendo tribunal, que:

I – Preenche a infracção disciplinar prevista e punida pelos artºs. 19.º e 112.º do RDLPFP a publicação de um artigo na “newsletter” de um clube desportivo onde se imputa ao VAR uma actuação deliberada de erro com o objectivo de favorecer um clube em detrimento de outro, colocando em causa a sua idoneidade para o exercício das funções que desempenha.

II – Os citados preceitos do RDLPFP não podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervêm nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

E, mais recentemente, em aresto datado de 09.09.2021, P. 050/20.0BCLSB, no qual se sumariou que: «(…) I - O complexo normativo dos regulamentos disciplinares das federações desportivas dotadas de utilidade pública desportiva tem por escopo (i) garantir o cumprimento das regras de conduta especificamente dirigidas ao universo de agentes desportivos definido no artº 3º nº 1 Lei 112/99, 03.08 (RDFD), (ii) em ordem a preservar a observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes, conforme disposto no artº 3º nº 1 Lei 5/2007, 16.01 (LBAFD) na qualidade de bens jurídicos protegidos, (iii) mediante o sancionamento de manifestações de perversão do fenómeno desportivo, conforme disposto no artº 1º nºs. 1 e 2 Lei 112/99, 03.08 (RDFD) e artº 52º nºs 1 e 2 DL 248-B/2008, 31.12 (RJFD).

II - O artº 112º nº 1 RDCLPFP ao fazer referência expressa a “escritos injuriosos ou difamatórios para com árbitros” significa que tem como âmbito de protecção o bom nome e reputação de exercício profissional dos árbitros no quadro funcional dos princípios da actividade desportiva, a saber, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes, enunciados no artº 3º nº 1 da Lei de Bases (Lei 5/2007).

III - O litígio envolvendo a aplicação do artº 112º nº 1 RDCLPFP convoca a figura do conflito entre normas que consagram direitos de igual dignidade constitucional, inscritos no catálogo dos direitos liberdades e garantias do Título II, Capítulo I da Constituição da República, a saber, (i) a norma do catálogo constitucional que protege o direito ao bom nome e reputação (artº 26º nº 1 CRP), direito fundamental que, por sua vez, é protegido pela norma regulamentar restritiva inscrita no artº 112º nº 1 e 4 RDCLPFP e (ii) a norma constitucional que protege e garante o direito à liberdade de expressão e informação (artº 37º nº 1 CRP), objecto de restrição pela norma proibitiva de ofensa à honra de agentes desportivos (artº 112º nºs 1 e 4 RDCLPFP).

IV - No quadro objectivo, restrito à circunstância concreta ocorrida, os erros técnicos assinalados ou omitidos constituem incompetência na aplicação da lex artis, constituem um minus no padrão profissional da equipa de arbitragem e, nesta vertente objectiva, constituem também o desvirtuamento da lex artis, das regras próprias de um campeonato de futebol oficial.

V - Questão diferente é o clube perdedor extravasar do plano objectivo dos erros técnicos implicados no resultado desfavorável e passar para o plano subjectivo, afirmando que os erros técnicos nas faltas assinaladas e omitidas foram levados à prática pela equipa de arbitragem por esta prever e querer o resultado desfavorável que veio a verificar-se, ou seja, imputando aos árbitros um agir claramente pré-ordenado e ilícito à luz do princípio da verdade desportiva, dirigido ao cometimento dos erros técnicos assinalados tendo por finalidade o resultado verificado.

VI - A divulgação por escrito de erros de apreciação técnica por parte da equipa de arbitragem traduz a expressão de um juízo de apreciação técnica diverso do expresso na decisão dos árbitros, juízo que, à luz do ordenamento jurídico, não tem nem subjectiva nem objectivamente, aptidão ofensiva da honra e consideração devida aos árbitros nem viola os princípios da actividade desportiva (artº 3º nº 1, Lei 5/2007 de 16.01).» (sublinhados nossos).

Por seu turno, também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), tem exigido que o direito à liberdade de expressão seja apreciado em equilíbrio com os direitos ao bom nome, à reputação e à imagem, visando a salvaguarda de uma sociedade democrática e considerando a envolvência de cada caso concreto, numa ótica de proporcionalidade.

Para o efeito, remetemos para a publicação deste Tribunal Europeu, sob o título, «Guide sur l’article 10 de la Convention européenne des droits de l’homme. Liberté d’expression.” Conseil de l’Europe/Cour européenne des droits de l’homme. Première édition – 31 mars 2020»(3), da qual consta uma vastíssima resenha da citada jurisprudência do TEDH sobre a matéria, e na qual se salienta a necessidade de distinguir um juízo de valor gratuito e ofensivo de um juízo de valor alicerçado em factos e proferido no âmbito de um debate de ideias, remetendo-se para o Ac. Lopes Gomes da Silva c. Portugal, P. nº 37698/97, de 28/09/2000, ou para o Ac. n.º 733/06, Lombardo e outros c. Malta, de 24/07/2007, ou n.º 25968/02, Dyuldin e Kislov c Russia, de 31/10/2007 (cf. pp. 39 e 40 da indicada publicação).

De destacar, igualmente, o Ac. n.º 49418/99, Hrico c. Eslováquia, em que o TEDH discutiu a publicação de críticas relativamente a julgamentos produzidos por um juiz do supremo tribunal e onde considerou que tais criticas correspondiam a juízos de valor que tinham uma base factual suficiente para se considerarem no âmbito da liberdade de expressão (cf. p. 39 da indicada publicação).

Entre as afirmações que foram consideradas pelo TEDH como ainda cabendo na liberdade de expressão salientam-se, a título de exemplo, o apelidar de um titular de um órgão de um clube futebolístico de “patrão dos árbitros” (cf. Ac. do TEDH Colaço Mestre e SIC - Sociedade Independente de Comunicação, SA c. Portugal, P. n.º 11182/03 e 11319/03, de 26/04/2007), a afirmação de que os dirigentes de dois clubes de futebol cometeram um crime de abuso de confiança fiscal (cf. Ac. Público – Comunicação Social, SA. e outros c. Portugal, P. n.º 39324/07, de 07/12/2010), a afirmação de que o presidente de um clube de futebol era “o campeão nacional dos arguidos” e um “inimigo figadal” da selecção” (cf. Ac. do TEDH, Ac. Sampaio e Paiva de Melo c. Portugal, n.º 33287/10, de 23/10/2013), entre muitos.

Foi também o TEDH que veio explicitar «(…) que as opiniões não são verdadeiras nem falsas. Podem ter mais ou menos sustento factual, mas não passam de opiniões, de juízos de valor que variam de pessoa para pessoa, pelo que não faz sentido condenar uma pessoa por ter uma opinião falsa; já os factos serão verdadeiros ou falsos.(…)» (4).

Neste pressuposto, regressemos ao caso concreto, atentando no que resulta dos autos e que se pode resumir no seguinte:

i) na mesma publicação, por parte do Recorrido, da qual constam as expressões que motivaram a aplicação da sanção disciplinar em apreço, são também feitas críticas à atuação da equipa de futebol do Recorrido – cfr. facto nº 1- nos seguintes termos: «(...) outras jogadas houve que, com um pouco mais de clarividência e pontaria, poderiam ter resultado em golo. (…) A falta de eficácia tem sido prejudicial à nossa equipa ao longo da época (...)»;

ii) A publicação em causa consubstancia uma opinião pessoal, que se viu reforçada por declarações posteriores de antigos e reputados árbitros de futebol – cfr. factos 9 a 13 supra;

iii) A expressão “sonegar”, não tem evidente conotação dolosa, ou não tem apenas uma conotação dolosa, na língua portuguesa;

iv) Igual expressão já foi usada, também em contexto desportivo e sem qualquer conotação dolosa aparente pela Recorrente – cfr. facto n.º 14 supra;

Perante o que, e dispondo, por seu turno, o art. 112.º, n.º 1 e 4, do RDLPFP, que:

«1. O clube que use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga Portugal ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC.

2. Se dos factos previstos na segunda parte do número anterior resultarem graves perturbações da ordem pública ou se provocarem manifestações de desrespeito pelos órgãos da hierarquia desportiva, seus dirigentes ou outros agentes desportivos, os limites mínimo e máximo das sanções previstas no número anterior são elevados para o dobro.

3. Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo das multas previstas nos números anteriores serão elevados para o dobro.

4. O clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, diretamente ou por interposta pessoa.»

Entende este tribunal de recurso que as declarações em causa se reconduzem a uma discordância com algumas decisões das equipas de arbitragem, discordâncias que surgem secundadas por comentários de árbitros, ou ex-árbitros, alguns eles internacionais, e assentes em factos concretos, que evidenciam potenciais erros técnicos, sem o propósito de imputar determinada ação dolosa, mas apenas consequências desfavoráveis para o Recorrido, na sequência daqueles. Mas não só, pois que, no mesmo texto o Recorrido refere falhas no jogo da sua equipa.

Razões pelas quais não vislumbra este tribunal de recurso que o tribunal a quo tenha incorrido em erro ao ter considerado que «(i) o juízo de valor censurado pela Demandada encontra-se suportado por diversos factos e que, ademais, (ii) é razoável a dúvida gerada sobre se foi ou não vertida uma acusação de intencionalidade prejudicial por detrás das decisões de arbitragem. E sendo esta dúvida razoável, a crítica divulgada no escrito em causa não se afigura excessiva, pelo que entendemos que o texto objeto da presente ação deve ser tolerado ao abrigo da Liberdade de Expressão.»

Decisão diferente seria caso o Recorrido tivesse extravasado o plano objetivo dos erros técnicos implicados no resultado desfavorável e tivesse passado para o plano subjetivo, afirmando que os erros técnicos nas faltas assinaladas e omitidas foram levados à prática pela equipa de arbitragem, em virtude de esta querer provocar determinado resultado, «ou seja, imputando aos árbitros um agir claramente pré-ordenado e ilícito à luz do princípio da verdade desportiva, dirigido ao cometimento dos erros técnicos assinalados tendo por finalidade o resultado verificado.» pois que, e ao invés, «a divulgação por escrito de erros de apreciação técnica por parte da equipa de arbitragem traduz a expressão de um juízo de apreciação técnica diverso do expresso na decisão dos árbitros, juízo que, à luz do ordenamento jurídico, não tem nem subjectiva nem objectivamente, aptidão ofensiva da honra e consideração devida aos árbitros nem viola os princípios da actividade desportiva (artº 3º nº 1, Lei 5/2007 de 16.01)». (5)


III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e em manter a decisão recorrida.

Lisboa, 02.06.2022

Dora Lucas Neto (Relatora)

Pedro Nuno Figueiredo

Ana Cristina Lameira (com declaração de voto)

*

Declaração de voto:

O presente contexto da newsletter, o seu conteúdo, e as dúvidas geradas sobre os jogos em questão, como se alude na fundamentação do presente acórdão, leva-nos a concluir que, ao contrário do sucedido no Proc. nº 53/20.5BCLSB (em que não obtivemos vencimento neste TCA SUL), os comentários em causa da Recorrida se inserem no exercício do direito de liberdade de expressão do clube e sem colidir com os deveres inerentes aos artigos 19º e 112º do RDFPFP.

Ana Cristina Lameira


(1) Disponível em www.dgsi.pt
(2) Da liberdade de expressão dos agentes desportivos, à falta dela, in e-Pública Vol. 8 N.º 1, Abril 2021, pgs. 172-203, disponível aqui: https://e-publica.pt/volumes/v8n1/pdf/a8n1v8.pdf
(3) disponível em https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_10_FRA.pdf
(4) Teixeira da Mota, Liberdade de Expressão – A Jurisprudência do TEDH e os Tribunais Portugueses, Revista Julgar, n.° 32, 2017, pgs. 181-184.
(5) Cfr. ac. STA de 09.09.2021, supra citado e transcrito.