Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:723/23.6BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/11/2024
Relator:JOANA MATOS LOPES COSTA E NORA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PRESSUPOSTOS
Sumário:I - Cabe a quem se pretenda valer da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a demonstração da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a qual deve assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
II - Para o efeito, deve o autor descrever uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca, não lhe bastando afirmar uma mera lesão dos mesmos.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

V…, de nacionalidade russa, residente na Rússia, intentou intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Ministério da Administração Interna. Pede a condenação da entidade demandada, no prazo máximo de 15 dias, a tramitar, instruir e decidir o seu pedido de autorização de residência para investimento, bem como a disponibilizar-lhe o título de residência correspondente. Alega, para tanto e em síntese, que: (i) Registou e submeteu, em 27.12.2021, através do “Portal ARI”, a sua candidatura a autorização de residência em Portugal, na modalidade prevista no artigo 90.º-A da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, e, em 28.12.2021, liquidou a taxa de análise à submissão da candidatura, tendo, em 19.01.2021, submetido a candidatura a reagrupamento familiar da sua esposa e da sua filha menor, tendo ambas liquidado, em 20.01.2022, as taxas de análise da sua candidatura, que se encontra no estado “em análise” desde a sua submissão, não tendo havido qualquer desenvolvimento desde então; (ii) A fixação de residência em Portugal por parte do autor visa melhorar as suas condições de vida, bem como da sua família, particularmente da sua filha menor, a quem pretende proporcionar melhores condições para o seu crescimento e desenvolvimento do que aquelas que poderia almejar na Rússia, país que se encontra em guerra e a convocar cidadãos do sexo masculino para o combate bélico, aí se enquadrando o autor, que conta 36 anos, sendo certo que isso lhe acarretaria prejuízos incalculáveis do ponto de vista pessoal, podendo até custa-lhe a vida, tendo o autor, para o efeito, investido os capitais necessários a garantir que lhe era concedida a autorização de residência para investimento; (iii) Toda esta situação cria uma ansiedade indescritível no autor, que se sente absolutamente deixado à sua sorte, apesar de ter cumprido todos os requisitos legais que lhe foram exigidos, e o facto de não dispor de cartão de residência limita a possibilidade de se ausentar de Portugal e de poder deslocar-se a outros países europeus como necessita, com frequência, no âmbito da sua actividade profissional; (v) Encontra-se, ainda, vedada ao autor a fruição dos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos intimamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana e que, com a residência, se encontram garantidos, como sejam a saúde e a educação.
Pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi proferida sentença a rejeitar liminarmente a petição por o autor não ter alegado factos justificativos da tutela principal urgente subjacente à intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, nos termos do art.º 109.º do CPTA.
O autor interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“A. A 6 de março de 2023, o Recorrente, instaurou junto do Tribunal a quo, uma Intimação para a Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 109.º e ss., do CPTA, peticionando, a final: (i) Serem as Entidades Requeridas, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 3.º, no n.º 1 do artigo 109.º, e no n.º 2 do artigo 111.º, todos do CPTA, intimadas a, num prazo máximo de 15 (quinze) dias, sob o cumprimento dos prazos legais, este seja tramitado, instruído e decidido, de modo a poder ser praticado o ato administrativo de concessão de autorização de residência para atividade de investimento, a que se seguirá a disponibilização ao Requerente do título de residência que há meses devia já estar emitido e, para o qual, não existe nenhuma razão plausível para que não tenha sido ainda emitido e remitido à Requerente, assim garantindo o direito à boa administração decorrente do artigo 41.º, n.º 1 da CDFUE ex vi artigo 16.º, n.º 1 da CRP, e artigo 5.º do CPA ex vi artigo 266.º, n.º 1 da CRP; (ii) Complementarmente, ser o Diretor Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Dr. F… e o Ministro da Administração Interna, Dr. J…, titulares dos órgãos a quem cabe a execução da decisão, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 3.º, no n.º 4 do artigo 110.º, e n.ºs 1 e 2 do artigo 169.º, todos do CPTA, num montante de 75,00 Euros, por cada dia de incumprimento do prazo; e (iii) Serem as Entidades Requeridas condenadas em custas e demais encargos com o processo. Senão, vejamos,
B. O Recorrente é um cidadão de nacionalidade russa, que registou e submeteu em 27 de dezembro de 2021 a candidatura à concessão de uma autorização de residência para o investimento nos termos do disposto no artigo 90.º-A da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, sendo certo que, a 28 de dezembro de 2021, liquidou a taxa de análise à submissão da candidatura.
C. A 19 de janeiro de 2022, submeteu o pedido de reagrupamento familiar da esposa M… e da sua filha menor, M… que liquidaram as respetivas taxas de análise a 20 de janeiro de 2022. Sucede que,
D. Desde então, a Entidade Demandada SEF, vetou o Recorrente a um rotundo silêncio que em muito tem perturbado a sua vida, uma vez que esta se encontra no estado “em análise” desde a sua submissão, sendo certo que num período superior a um ano, não foi sequer notificado de qualquer tipo de pré-aprovação da candidatura efetuada, decorrendo um lapso temporal manifestamente excessivo. Ora,
E. Não pode, por isso deixar de considerar o Recorrente que reúne os requisitos previstos na Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, para que lhe seja concedida uma autorização de residência para o exercício de uma atividade de investimento, sendo certo que apresentou em 27 de dezembro de 2021, o pedido e que nos termos do disposto no artigo82.º, n.º 1 da Lei 23/2007, de 4 de julho, ser decidido num prazo de 90 dias que, há muito foi ultrapassado. Sucede que,
F. A 09 de março de 2023, e para absoluta surpresa do aqui Recorrente, foi notificado da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo em 08 de março de 2023, nos termos da qual “rejeita-se liminarmente o requerimento inicial”.
G. É sobre esta Douta Sentença do Tribunal a quo que vem o Recorrente colocar em crise, uma vez que para concluir da forma que concluiu, ignorou toda a argumentação expedida na Petição Inicial, bem como a desconsideração da Jurisprudência mais recente do Tribunal Central Administrativo Sul, nomeadamente, o Acórdão de 29 de novembro 2022, no Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO).
H. Incompreensivelmente, a Douta Sentença do Tribunal a quo, ainda promoveu um erro de julgamento relativo ao indeferimento liminar da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pela não verificação do requisito de urgência como o meio processual adequado ao caso do Recorrente.
I. A Douta Sentença, relativamente ao recurso ao meio processual de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, refere que “constitui assim pressuposto para a o recurso à intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, a verificação de, urgência da decisão de mérito para assegurar, em tempo útil, o exercício do direito com a natureza de direito, liberdade ou garantia; imposição de uma conduta positiva ou negativa da Administração e, impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar, atento o carácter absolutamente subsidiário deste meio processual”, acrescentando, ainda, que “do exposto resulta que o processo de intimação para proteção de direitos liberdades e garantias não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias, tratando-se antes de um meio de tutela subsidiária”.
J. A Douta Sentença do Tribunal a quo prossegue a sua argumentação, referindo que, “O meio correto de reação passará pela propositura de uma ação não urgente, associada à dedução do pedido de decretamento de uma providência cautelar”, entendendo, surpreendentemente, que “(…) a “(…) a intimação para proteção de direitos liberdades e garantias constitui o meio adequado, apenas, e quando, seja possível concluir que o Requerente carece de uma decisão urgente definitiva para tutelar o direito fundamental que invoca”.
K. A Douta Sentença do Tribunal a quo, considera surpreendentemente que “uma vez que o Requerente ainda não possui autorização de residência em Portugal, e reside na Rússia, necessário será concluir que a mesma não possui os direitos fundamentais de que se arroga”.
L. Este é um entendimento que se encontra ferido de morte, desde logo porque o artigo 109.º, n.º 1 do CPTA, ao referir-se aos pressupostos do pedido de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, estabelece que “a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.°”
M. Ora, como pressupostos, devem atender-se: (i) a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para a proteção de um direito, liberdade ou garantia; e, (ii) não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar no âmbito de uma ação administrativa normal. Assim, a intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias visa a obtenção de uma proteção rápida e contundente ao exercício de um direito, liberdade ou garantia pessoal, frente a qualquer tipo de ameaças, restrições, lesões ou violações.
N. Recorrendo à lição de VIEIRA DE ANDRADE, a “proteção acrescida justifica-se, na sua substância, pela especial ligação destes direitos à dignidade da pessoa humana, e, na suaoportunidade, pela consciência do perigo acrescido da respectiva lesão, que, nas sociedades actuais, decorre sobretudo de o seu exercício depender, de modo cada vez mais intenso, de actuações administrativas não apenas negativas, mas também positivas” (cfr. A Justiça Administrativa, 19.ª Edição, 2022, Coimbra, Almedina, p. 264).
O. Assim, o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é instituído como um meio subsidiário de tutela, vocacionado para intervir como uma válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas, nas situações – e apenas nessas – em que as outras formas de processo do contencioso administrativo não se revelem aptas a assegurar a proteção efetiva de direitos, liberdades e garantias, sendo certo que se afigura urgente a obtenção de uma pronúncia definitiva relativa ao mérito da pretensão.
P. Deste modo, a intimação será absolutamente necessária quando não puder ser dispensada, ou seja, quando, para proteger direitos fundamentais, a intensidade da necessidade de proteção imediata impeça, por não ser possível em tempo útil, o recurso a um outro meio processual (por exemplo a ação administrativa) que seria o meio adequado ou o meio próprio para resolver definitivamente a questão existente.
Q. Sendo certo que, é sempre no caso concreto, através de um juízo de prognose, que estas situações se identificam: i) são de natureza improrrogável, que reivindica uma composição jurisdicional inadiável; ii) têm uma natureza que não se compadece com a provisoriedade jurisdicional e que obriga o juiz a pronunciar-se de modo definitivo.
R. Definitivo, no sentido de solução fatal, já que ela matará a utilidade posterior de qualquer sentença de mérito que venha a ser emitida no âmbito de um processo principal que conheça sobre essa situação, de modo mais profundo, verificável, nomeadamente, nos casos que, pela sua urgência, se afigurem propícias a exigir uma decisão de fundo, v.g. por corporizarem situações que sejam decorrentes da limitação de exercício de direitos por parte do particular.
S. Como não pode deixar de ser, não pode colher o entendimento do Tribunal a quo segundo o qual, “o Requerente alega, a situação de guerra/conflito armado que se vive no seu país de origem, e o receio “de poder ser chamado a combater nesse conflito, o que lhe acarretaria prejuízos incalculáveis do ponto de vista pessoal podendo, no limite, custar-lhe a vida”, o que justificaria a tutela do direito fundamental à vida, contudo, incongruentemente refere que «o Requerente não pretende abandonar na totalidade o seu país, pelo que prevê, dentro dos condicionalismos que lhe são conferidos pela lei portuguesa, visitar esporadicamente a Rússia, em virtude de este ser o seu país de origem, e aquele onde desenvolveu desde sempre a sua atividade profissional»”, a que acresce a ainda mais incompreensível argumentação, segundo a qual: “se possuindo autorização de residência em Portugal o Requerente pretende visitar a Rússia, em virtude de este ser o seu país de origem, e aquele onde desenvolveu desde sempre a sua atividade profissional, correndo o risco de poder ser chamado a combater nesse conflito, falece todo o alegado, sobre a existência de um direito fundamental a salvaguardar e a eventual urgência (não alegada) na sua proteção”.
T. Concluindo, esta inenarrável argumentação e fundamentação, decidindo que “falece o mencionado pressuposto de que depende o uso da intimação para direitos Liberdades e garantias - a urgência da tutela requerida. E não sendo demonstrada a urgência na presente ação, não se encontra verificado também o pressuposto específico da subsidiariedade da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias”.
U. Salvo melhor entendimento, é absolutamente desprovido de sentido este tipo de conclusão, uma vez que o Tribunal a quo, parece acreditar de uma forma absolutamente negacionista de toda a realidade história que um conflito armado se pode manter ad aeternum, considerando aquela que seria uma perspetiva de um futuro que pode ser mais próximo ou longínquo consoante as situações, como o Santo Graal que fundamenta o falecimento do pressuposto que fundamentaria a urgência é, salvo melhor entendimento e o devido respeito, uma consideração desprovida de qualquer conexão com a realidade, e sem qualquer cabimento no complexo legal vigente, uma vez que, a concessão de uma autorização de residência não confina com a necessidade de abdicar de raízes pessoais e familiares, in casu pelo Recorrente.
V. Afiança, a Douta Sentença do Tribunal a quo que o Recorrente não alega factos concretos que demonstrem a sua urgência – como se uma espera superior a um ano sem qualquer avanço para o exercício dos mais elementares direitos garantidos por uma autorização de residência não fosse já sacrifício suficiente para quem se limitou a cumprir tudo o que lhe era exigido – e, como tal, a situação de urgência se meça perante determinados factos da vida real que reclamem uma decisão imediata do pedido, conduzindo ao indeferimento liminar da pretensão. Ora,
W. O pressuposto de urgência, não pode ser mensurado sem uma consideração dos efeitos do decurso do tempo, basta para tal pensar-se na proteção do direito fundamental à água que, na mesma circunstância do direito fundamental a uma boa administração, também não decorre diretamente do texto constitucional. O tempo que o serviço público de água demorar a ligar um contador à rede distribuidora é o que fundamenta a urgência na sua ligação constituindo a restrição à fruição do referido direito fundamental.
X. É que, a urgência na obtenção da autorização de residência, que não existia ao momento da submissão da candidatura, passou a existir com o espoletar do conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia e o decurso do tempo decorrente da inação da Entidade Demandada SEF.
Y. Vejamos, ainda, que o decurso do tempo, para além de violação do elementar princípio administrativo da decisão estatuído no artigo 13.º do CPA, também se demonstrou apto a bulir com o direito fundamental a uma boa administração que para além de ser um direito fundamental, é também, um princípio jurídico ao qual a Entidade Demandada SEF se encontra vinculada, em função do disposto no artigo 5.º do CPA.
Z. De igual modo, não colhe a consideração de que bastaria uma ação administrativa conciliada com uma providência cautelar, uma vez que, a jurisprudência mais recente, estoicamente ignorada pelo Tribunal a quo, estabeleceu que: “o uso de meios cautelares, nomeadamente antecipatórios, mostrar-se-iam os mesmos inidóneos, pois a atribuição de uma providência desse tipo implicaria a atribuição efetiva, durante o tempo em que decorresse o processo principal, da indicada autorização de permanência ou de residência. Isto é, o uso da tutela cautelar antecipatória equivaleria à atribuição de facto, efetiva, do direito que só por via do processo definitivo havia de ser concedido, sobrepondo-se tal tutela àquela que pudesse corresponder à do processo principal. A tutela cautelar aniquilaria os efeitos que resultariam de uma hipotética procedência do pedido feito no processo principal, isto pelo menos no iter processual desse processo principal” (cfr. Acórdão do TCAS, de 29-11-2022, Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO)).
AA. Ora, os pressupostos de admissibilidade da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, deve partir da consideração da absoluta necessidade de emissão de uma decisão de mérito pelo facto de uma medida cautelar se revelar, num certo sentido, como impossível ou insuficiente, o que recorrendo ao clarividente ensino de CATARINA SANTOS BOTELHO a impossibilidade de recurso à tutela cautelar poderá resultar do facto de o juiz, “para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão” (cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, A Intimação para a Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias – Quid Novum?, in O Direito, N.º 143, Vol. I, 2011, Coimbra, Almedina, p. 36).
BB. Acresce que, com apoio em RUI MESQUITA GUIMARÃES, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, fica “reservada apenas para as situações em que aquela via normal não é possível ou suficiente para assegurar o exercício em tempo útil e a título principal do direito, liberdade ou garantia que esteja em causa e cuja defesa reclame uma intervenção jurisdicional. E essa falta de aptidão há de, em concreto, atender à – e estar condicionada – pela provisoriedade das providências cautelares, como um meio que pretende prevenir os perigos que possam advir, durante o tempo em que a ação se encontra pendente, ou mesmo antes da propositura desta, portanto, com vista a evitar que a decisão final que vier a ser proferida seja inútil. Nos casos em que a adoção de uma providência esgote, retirando efeito útil, a ação principal, não será um meio processual idóneo – como seria o caso de ser permitida, através de um meio cautelar, a realização de uma manifestação considerando que uma vez realizada ficaria esgotado o efeito útil do que viesse a ser a decisão na ação principal” (cfr. RUI MESQUITA GUIMARÃES, Intimação para Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias – O Impacto do Decurso do Tempo, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 135, maio-junho de 2019, Braga, C.E.J.U.R., pp.7-8).
CC. Ora, imagine-se, por absurdo de raciocínio, que o Recorrente recorria à providência cautelar e requeria que o Tribunal, provisoriamente instasse a Entidade Demandada SEF a iniciar a análise do seu caso? Ou, alternativamente, poderia requerer que deferisse temporariamente o seu pedido até decisão final que iniciasse a tramitação do processo? Ou, ainda, que decidisse provisoriamente a concessão da autorização de residência por um período compreendido entre o deferimento da providência e a prolação da decisão final? E, ao Tribunal, seria admissível uma decisão a instar a Administração, in casu a Entidade Demandada SEF, a uma destas condutas, tendo em consideração o princípio da separação de poderes? Como parece resultar de forma absolutamente clara, para que o juiz da causa se possa pronunciar sobre esta gama de casos, a providência cautelar não é o meio adequado, desde logo, porque se evidencia a necessidade de uma decisão de fundo, i.e. de mérito neste tipo de situações, o que se afigura incompatível com o tipo de avaliação realizado em sede de procedimentos cautelares.
DD. Ora, o Tribunal a quo viu-se colocado na posição de decidir se, a Administração incumpriu com algum dos seus deveres relativamente à obrigação legal de decidir uma determinada pretensão administrativa; e, se mediante essa ausência de decisão, violou ou não algum direito fundamental, quer diretamente, quer por efeito dessa ausência de decisão.
EE. Sendo certo que, decorrentemente, da estrutura da concessão de uma autorização de residência para o investimento, o ato administrativo final a praticar é um ato vinculado, uma vez que, cumpridos os requisitos pelo candidato, não restará alternativa à Administração que não seja a concessão da autorização de residência, motivando que a Administração tenha optado por não tomar a decisão relativa a este processo, uma vez que se o fizesse teria de conceder a autorização de residência para o investimento ao Recorrente o que, não pretendia fazer, em função da nacionalidade russa do Recorrente.
FF. Ora, esta é uma conduta que se encontra eivada de ilegalidade, uma vez que a nacionalidade de origem do candidato não se afigura um requisito excludente da concessão de autorização de residência para o investimento, sendo certo que a Administração em todo o seu labor se encontra vinculada ao princípio da legalidade que é, também ele, aqui violado.
GG. Assim, resultará da análise caso a caso saber quando é que as pronúncias de mérito são necessárias, por contraste com as insuficientes pronúncias cautelares, visto que estas são sempre, na sua globalidade, provisórias, quer sejam emitidas com especial urgência no início do processo cautelar ou não.
HH. Ao considerar não verificada a situação de urgência, o Tribunal a quo ignorou de forma estoica, a mais recente jurisprudência do Tribunal Administrativo SUL, em que se considera a verificação de urgência nos casos em que: “o Autor apresentou o seu pedido no SEF há mais de 2 anos (30/3/2020), entidade que teria 90 dias para se pronunciar face à manifestação de interesse com vista à obtenção de autorização de residência ao abrigo do regime do art.º 88.º/2 da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, não tendo a Administração, até ao momento, emitido qualquer tipo de decisão, o que determina que aquele esteja indocumentado e a residir no nosso país ilegalmente, por não ser titular nem de uma autorização de permanência, nem de uma autorização de residência, embora se mantenha a trabalhar” (cfr. Acórdão do TCAS, de 29-11-2022, Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO)).
II. Sendo certo que, “a urgência da situação é evidente e trata-se de uma urgência atual”, uma vez que, enquanto o título de residência não for emitido, ou a autorização de residência não lhe for concedida, “padecerá de todos os males que decorrem de estar ilegal no nosso país”, concluindo-se, por isso, que se considera “existir uma necessidade imediata do Recorrido em deter um título ou uma autorização para se poder manter a residir legalmente em Portugal e aqui continuar a viver e a trabalhar na qualidade de estrangeiro com título legal de permanência” (cfr. Acórdão do TCAS, de 29-11-2022, Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO)).
JJ. Sendo verificável nos termos da Douta Sentença que, o Tribunal a quo deu como assente que o Recorrente deu início ao processo de autorização de residência para o investimento em 27 de dezembro de 2021.
KK. Acresce que, a cada minuto, a cada hora, a cada dia, a cada semana ou, ainda, a cada mês que passa mais urgente se torna a concessão de autorização de residência para o investimento ao aqui Recorrente.
LL. Mais, o protelar de uma simples avaliação ou instrução do processo, para além de ilegal, fundamenta e aumenta a urgência existente, não sendo destacável, a faixa etária em que se encontra o Recorrente, e a sua nacionalidade de origem que, ainda que a Douta Sentença do Tribunal a quo tenha surpreendentemente desvalorizado, lhe condiciona todo um conjunto de liberdades no seu país de origem, podendo nomeadamente ser chamado a qualquer momento para combater numa intervenção militar, com a qual não concorda.
MM. Como bem se compreenderá, facilmente se demonstra como cumprida a verificação do requisito de existência de uma situação de urgência, ao contrário do decidido pela Douta Sentença do Tribunal a quo.
NN. É igualmente de rejeitar, a consideração que o aqui Recorrente não tenha demonstrado a violação de um determinado direito fundamental violado, ou que não tenha concretizado em que medida essa violação se lhe afigura especialmente penosa.
OO. Nem tão-pouco que, pelo facto de ainda não possuir autorização de residência não pode chamar à colação qualquer tipo de direito fundamental em vigor no nosso ordenamento jurídico, uma vez que isso só acontece por incúria da Administração, in casu o SEF, não devendo o Tribunal a quo beneficiar quem atuou sem qualquer diligência e na mais absoluta violação do direito a uma boa administração conforme alegado na Petição Inicial pelo aqui Recorrente.
PP. É, igualmente, de rejeitar a ideia segundo a qual, o Recorrente não demonstrou a violação de um determinado direito fundamental, ou não tenha concretizado em que medida se afigura essa violação especialmente penosa, uma vez que, ainda nas palavras do Tribunal Administrativo Sul, “as regras da experiência, que aqui valem como presunção judicial, nos termos do art.º 607.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 1.º do CPTA, indicam-nos que a falta de um título que permita a permanência, em termos de legalidade, do Recorrido no território nacional, podem pôr em causa o reduto básico, que se liga ao principio da dignidade da pessoa humana (cf. art.º 1.º da CRP) dos indicados direitos à liberdade, à livre deslocação no território nacional, à segurança (cf. art.ºs. 27.º e 44.º da CRP), à identidade pessoal (art.º 26.º, n.º 1, da CRP), a trabalhar e à estabilidade no trabalho (cf. art.ºs. 53.º, 58.º e 59.º da CRP) ou à saúde (cf. art.º 64.º da CRP)” (cfr. Acórdão do TCAS, de 29- 11-2022, Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO)).
QQ. Prosseguindo o aresto, corretamente ainda que espantosamente não tenha sido valorado pelo Tribunal a quo, que o Recorrente se encontra limitado “na vida quotidiana, com receio de uma possível expulsão, de invocar um apoio policial, caso necessite, de se deslocar livremente, ou de se apresentar e celebrar de negócios civis básicos, ou de deslocar-se a um hospital, ou de tentar alcançar trabalho, ou, ainda, de reclamar as devidas condições para o trabalho que consiga angariar nessa situação”, concluindo-se, por isso, que “a falta de tal título contende quer com um feixe alargado de direitos de índole pessoal, que serão reconduzíveis à tipologia de direitos, liberdades e garantias, quer com direitos económicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho ou à saúde, que são direitos fundamentais não integrados pela Constituição naquela primeira categoria, mas que quando coartados na sua dimensão mais essencial, ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana e à própria liberdade individual, terão de ficar abrangidos pelo regime aplicável àqueles direitos, liberdades e garantias e logicamente pelo âmbito desta intimação” (cfr. Acórdão do TCAS, de 29-11-2022, Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO)).
RR. Não colhe, ainda, a afirmação do Tribunal a quo na Douta Sentença, segundo o qual: “o Requerente não alega, nem demonstra, cfr artigo 342º do Código Civil, quaisquer factos que permitam concluir que o recurso ao processo de intimação é indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de tais direitos, isto é, qualquer situação de urgência, para lá dos normais incómodos associados à incerteza de estar a aguardar uma decisão da Administração há um tempo já (demasiado) longo, relativamente à decisão do seu pedido de autorização de residência”.
SS. Basta recorrer ao texto decorrente do n.º 1 do artigo 41.º da CDFUE, que estabelece que todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável” (sublinhados nossos), sendo certo que a explanação do que se deve entender pela consagração deste Direito, quer jurisprudencialmente aceite pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, quer pela inquestionável aplicação ao nosso Direito pátrio, foi amplamente realizada pelo aqui Recorrente, então Autor, na Petição Inicial nomeadamente, nos artigos 125.º a 153.º.
TT. Acresce ainda, a alegação do Recorrente que, evidentemente, a violação do direito a uma boa administração nos termos consagrados, era o direito violado que conduziria a uma restrição, ainda que eventual, de outros direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados, o que nos termos do aresto já citado do Tribunal Central Administrativo Sul, se afigura suficiente para desencadear um processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
UU. Acresce que, se afigura apenas relevante sob pena de violação do disposto no artigo 20.º, n.º 5 da CRP, que “melhor será partir da acepção ampla que a letra do art. 109.º, n.º 1, acolhe, verificando apenas, como senha de entrada, se a pretensão do requerente se circunscreve à defesa de um interesse pessoal, concretamente individualizado, de cuja disponibilidade se encontra privado por força de uma conduta, activa ou omissiva, de entidades no exercício de funções materialmente administrativas. Esta constitui, para nós, a única barreira à utilização do art. 109.º, n.º 1, do CPTA e decorre, pelo menos implicitamente do n.º 5 do art. 20.º da CRP” (cfr. CARLA AMADO GOMES, Intimação para Protecção de que Direitos, Liberdades e Garantias?, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 50, março-abril de 2005, Braga, C.E.J.U.R., pp. 42-43).
VV. Com apoio na lição de JORGE REIS NOVAIS, arrumada que se encontra a verificação do único pressuposto segundo o qual, cremos, encontrar-se o erro de julgamento do Douto Tribunal a quo – i.e. a verificação do requisito de urgência –, “há lugar para recorrer à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias desde que, verificados os restantes pressupostos, se trate de um direito fundamental em sentido material, portanto um direito da maior relevância material e, além disso, tenha um conteúdo normativo tao precisamente determinado (pela Constituição e/ou pela lei) que permita a intervenção do juiz administrativo sem perda ou afectação da separação de poderes própria de Estado de Direito” (cfr. JORGE REIS NOVAIS, “Direito, Liberdade ou Garantia”: Uma Noção Constitucional Imprestável na Justiça Administrativa, in Cadernos de Justiça Administrativa. N.º 73, janeiro/fevereiro de 2009, Braga, C.E.J.U.R., pp. 58-59).
WW. Ora, como se demonstrou, é evidente a violação do direito a uma boa administração e, por isso, facilmente se compreenderá, que essa violação se materializa na ausência de uma decisão por parte da Administração, sendo certo que a decisão é um dos componentes do direito fundamental a uma boa decisão, e consta ela própria do disposto no artigo 13.º do CPA.
XX. Nos termos do disposto no artigo 13.º, n.º 1 do CPA, o princípio da decisão, impõe que “os órgãos da Administração Pública têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados e, nomeadamente, sobre os assuntos que aos interessados digam diretamente respeito, bem como sobre quaisquer petições, representações, reclamações ou queixas formuladas em defesa da Constituição, das leis ou do interesse público”, sendo certo que, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “a falta, no prazo legal, de decisão final sobre pretensão dirigida a órgão administrativo competente constitui incumprimento do dever de decisão, conferindo ao interessado a possibilidade de utilizar os meios de tutela administrativa e jurisdicional adequados”.
YY. Assim, et pour cause, existe uma obrigação de pronúncia da Administração relativamente à pretensão apresentada, como ensina SÉRVULO CORREIA, uma vez que “em face da declaração de uma pretensão, a Administração deve tomar uma posição e comunicá-la ao interessado. Mesmo que porventura considere que a pretensão é infundamentada porque nem sequer existe a relação jurídica substantiva ideada pelo requerente, o facto é que o pedido do particular desencadeou uma relação jurídica procedimental marcada pela deslocação pendular entre a comunicação da pretensão e a notificação da pronúncia. Nestas situações, não assiste à Administração qualquer «discricionariedade de silêncio». O particular não é mais um Untertan, titular de uma mera expectativa de que lhe seja feita a graça de uma pronúncia. Como a Administração, ele é um sujeito de direito com que esta tem de contar e a quem não pode ignorar” (cfr. O Incumprimento do Dever de Decidir, in Escritos de Direito Público, Vol. I, 2019, Coimbra, Almedina, p. 464). Acresce que,
ZZ.O Tribunal a quo com a Douta Sentença, corporiza uma sucessão inqualificável de erros, uma vez que erra quando considera que não se verifica nenhuma situação de urgência, erra quando considera que o argumento relativo à existência de uma guerra falece quando o Recorrente entende que a certa altura poderá voltar à Rússia, erra quando se afigura incapaz de compreender que o direito fundamental a uma boa administração se encontra densificado no nosso ordenamento jurídico-administrativo de molde suficiente a se fazer valer da aplicação do regime dos direitos fundamentais e, bem assim, da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias e, por fim, erra também quando entende que existe um pressuposto final e criação decisória de subsidiariedade, sem que tenha tido a capacidade de o densificar de modo a ser sindicável em sede de inevitável recurso.
AAA. Ora, assim, e conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa”, prosseguindo o aresto estabelecendo que “o erro consiste num desvio da realidade factual ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma” (cfr. Acórdão do STJ, de 30-09-2010, Processo n.º 341/08.9TCGMR.G1.S2 (ÁLVARO RODRIGUES)).
BBB. Recentemente, também o Supremo Tribunal de Justiça, estabeleceu que, “enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma” (cfr. Acórdão do STJ, de 03-03-2021, Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1 (LEONOR CRUZ RODRIGUES)).
CCC. Não pode, por isso, deixar de se alegar que, andou mal o Tribunal a quo a decidir da forma que decidiu, desprotegendo a tutela devida ao Recorrente, perigando ainda mais a sua situação jurídica, desde já precária, em face da inação da Entidade Demandada SEF e sua proverbial incapacidade decisória.
DDD. Ora, decidindo como decidiu na Douta Sentença, o Tribunal a quo incorreu em um evidente erro de julgamento por parte do Tribunal a quo na Douta Sentença que ora se coloca em crise, uma vez que se verifica, dentro dos limites apresentados na mais recente jurisprudência do Venerando Tribunal Central Administrativo, uma evidente situação de urgência de alguém que para vir para o nosso país, se encontra a aguardar a emissão de uma autorização de residência para investimento num período superior a um ano, desde a submissão do pedido de concessão da autorização de residência e o momento presente, com evidentes limitações nos seus mais elementares direitos ou, ainda, numa clara e evidente violação do princípio da dignidade da pessoa humana decorrente do artigo 1.º da CRP.”
A entidade recorrida não respondeu à alegação do recorrente.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso, nos termos da sentença recorrida, em virtude de o autor não ter alegado factos concretos que levassem a concluir pela necessidade da emissão urgente de uma decisão de mérito. Acrescenta ainda que a situação em apreço não é atinente à identidade ou cidadania do autor, tratando-se de mera autorização de residência, pelo que, verificados os pressupostos legais, seria enquadrável na concessão de uma providência cautelar antecipatória, com eventual decretamento provisório, que intimasse a entidade administrativa a emitir um título provisório de permanência do autor no país na pendência da acção principal. Encontrando-se o autor a viver legalmente no país de que é nacional, onde, como tal, poderá exercer os seus direitos básicos enquanto cidadão desse país (v.g. habitação, saúde, trabalho, educação), nele desenvolvendo a sua actividade profissional, sem pretender abandonar na totalidade esse país, podendo do mesmo sair para outros países, não está em causa o reduto básico ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, além de que, não obstante a referência que é feita na petição inicial ao “momento bélico em que o país vive” e à possibilidade “de ser chamado a combater, contra a sua vontade” (v.g. artigos 56º a 58º), nada foi concretizado na petição inicial a respeito dessa “possibilidade” nem quanto à sua iminência.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

A questão que ao Tribunal cumpre solucionar é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento por ter considerado não verificados os pressupostos de que depende o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida não fixou factos.


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Alega o recorrente que a sentença recorrida errou ao considerar que uma espera superior a um ano pela decisão de pedido de autorização de residência não consubstancia uma situação de urgência, sendo certo que a urgência na obtenção da autorização de residência, que não existia ao momento da submissão da candidatura, passou a existir com o despoletar do conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia e com o decurso do tempo de inacção da entidade demandada, considerando que o decurso do tempo, para além de violar o princípio da decisão, consagrado no artigo 13.º do CPA, bule com o direito fundamental a uma boa administração, que constitui também um princípio jurídico, nos termos do artigo 5.º do CPA, conduzindo a uma restrição, ainda que eventual, de outros direitos fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana, o que é suficiente para justificar o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Mais alega que a sentença recorrida desconsiderou a jurisprudência mais recente deste Tribunal Central, no sentido da inidoneidade do uso de meios cautelares para situações como a que aqui está em causa, em que há necessidade de uma decisão urgente de fundo com vista à concessão de autorização de residência para viver e trabalhar em Portugal. Defende ainda que, sob pena de violação do disposto no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição, deve partir-se de uma acepção ampla da norma do artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, “verificando apenas, como senha de entrada, se a pretensão do requerente se circunscreve à defesa de um interesse pessoal, concretamente individualizado, de cuja disponibilidade se encontra privado por força de uma conduta, activa ou omissiva, de entidades no exercício de funções materialmente administrativas”.

A sentença recorrida rejeitou liminarmente a petição por o autor não ter alegado factos justificativos da tutela principal urgente subjacente à intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, nos termos do art.º 109.º do CPTA. Mais precisamente, consta o seguinte da sentença recorrida:
“(…)
Ora, in casu, o Requerente alegou que a falta de decisão/resposta da Entidade Requerida à sua manifestação de interesse apresentada com vista a obter autorização de residência ao abrigo do artigo 90.º-A da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho.
No entanto, uma vez que o Requerente ainda não possui autorização de residência em Portugal, e reside na Rússia, necessário será concluir que a mesma não possui os direitos fundamentais de que se arroga.
E pelo facto de não dispor de cartão de residência, tal não “limita a possibilidade de se ausentar de Portugal e de poder deslocar-se a outros países europeus como necessita, com frequência, no âmbito da sua atividade profissional.” e não veda “a fruição daqueles direitos fundamentais constitucionalmente protegidos que se encontram intimamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana e que, com a residência, se encontram garantidos, como sejam a saúde e a educação.” pois residindo presentemente na Rússia, tal mostra-se objetivamente impossível.
Não obstante, e uma vez que a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, cabe averiguar se se encontra preenchido o pressuposto urgência de prolação de uma decisão de mérito.
Sucede, que o Requerente alega, a situação de guerra/conflito armado que se vive no seu país de origem, e o receio “de poder ser chamado a combater nesse conflito, o que lhe acarretaria prejuízos incalculáveis do ponto de vista pessoal podendo, no limite, custar-lhe a vida”, o que justificaria a tutela do direito fundamental à vida, contudo, incongruentemente refere que “o Requerente não pretende abandonar na totalidade o seu país, pelo que prevê, dentro dos condicionalismos que lhe são conferidos pela lei portuguesa, visitar esporadicamente a Rússia, em virtude de este ser o seu país de origem, e aquele onde desenvolveu desde sempre a sua atividade profissional.”.
Ora, se possuindo autorização de residência em Portugal o Requerente pretende visitar a Rússia, em virtude de este ser o seu país de origem, e aquele onde desenvolveu desde sempre a sua atividade profissional, correndo o risco de poder ser chamado a combater nesse conflito, falece todo o alegado, sobre a existência de um direito fundamental a salvaguardar e a eventual urgência (não alegada) na sua proteção.
Assim, do exposto resulta que o Requerente não alega, nem demonstra, cfr artigo 342º do Código Civil, quaisquer factos que permitam concluir que o recurso ao processo de intimação é indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de tais direitos, isto é, qualquer situação de urgência, para lá dos normais incómodos associados à incerteza de estar a aguardar uma decisão da Administração há um tempo já (demasiado) longo, relativamente à decisão do seu pedido de autorização de residência.
Assim, falece o mencionado pressuposto de que depende o uso da intimação para direitos Liberdades e garantias - a urgência da tutela requerida. E não sendo demonstrada a urgência na presente ação, não se encontra verificado também o pressuposto específico da subsidiariedade da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
Pelo que, no presente caso, não se mostra válido o uso da intimação para proteção de direitos liberdades e garantias.
E, no presente caso, também não se justifica fazer o convite a que se refere o artigo 110.ºA, n.º 1, do CPTA, uma vez que, este só deve ser aplicado quando, no requerimento inicial, tenham sido alegados factos indiciadores de que a situação sub judice carece de tutela provisória ou cautelar, nos termos dos artigos 112.º e seguintes do CPTA.
Pelo que deste modo mostra-se inútil convidar o Requerente, ao abrigo do Artigo 110-A a substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, cfr artigo 130º do CPC aplicável ex vi artigo 1º do CPTA.
(…).”

Vejamos.

A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias “(…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” - cfr. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA. Trata-se de um meio processual sumário e principal, pois que visa a prolação de uma decisão urgente e definitiva, recortado para “situações de especial urgência (lesão iminente e irreversível de DLG)” e “destinado a conferir protecção qualificada aos direitos, liberdades e garantias, no âmbito da concretização do comando constitucional consignado no n.º 5 do artigo 20.º da CRP.” – cfr. FERNANDA MAÇÃS, “Meios Urgentes e Tutela Cautelar”, «A Nova Justiça Administrativa», Centro de Estudos Judiciários, 2006, Coimbra Editora, pp. 94 e 95. Por isso mesmo, esta intimação tem carácter excepcional, só se justificando se constituir o único meio para obstar à violação de um direito, liberdade e garantia, sendo a regra a da utilização da acção não urgente, sempre que esta, ainda que conjugada com o processo cautelar, seja apta a satisfazer a pretensão deduzida em juízo.
Nestes termos, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, apenas pode ser utilizada quando se verifiquem os referidos pressupostos; ou seja, não só (i) que a célere emissão de uma decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também (ii) que, nas circunstâncias do caso, não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar. Assim, cabe a quem pretenda valer-se deste meio processual alegar factos concretos idóneos ao preenchimento dos referidos pressupostos, de modo a demonstrar que a situação concreta reclama uma decisão judicial definitiva e urgente.
No que concerne ao primeiro pressuposto – o da indispensabilidade da emissão de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, como escrevem Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 883, o seu preenchimento“(…) pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso, a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”
Quanto ao segundo pressuposto – o da impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar -, “A impossibilidade poderá resultar do facto de o juiz, para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão. Estamos a referir-nos àquelas situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas demarcadas, maxime, questões relacionadas com eleições, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado (como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo), situações de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém, ou, ainda, casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa.” – cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, “A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: quid novum?”, O Direito, n.º 143, I, 2011, pp. 31-53.

Considerando o descrito enquadramento jurídico, cumpre aferir se se mostram verificados no caso os pressupostos de recurso ao meio processual utilizado pelo autor.

O recorrente alega que que está em causa uma situação de urgência porque há mais de um ano que aguarda pela decisão do seu pedido de autorização de residência, existindo um conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia. Mais alega que o decurso do tempo, para além de violar o princípio da decisão, consagrado no artigo 13.º do CPA, bule com o direito fundamental a uma boa administração, que constitui também um princípio jurídico, nos termos do artigo 5.º do CPA, conduzindo a uma restrição, ainda que eventual, de outros direitos fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana.
Sobre a urgência da situação, entendeu o tribunal a quo que se o autor admite visitar esporadicamente a Rússia após obter autorização de residência em Portugal, desse modo correndo o risco de ser chamado para combater no conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia, tal significa que não existe urgência na protecção de qualquer direito fundamental, estando em causa apenas “normais incómodos associados à incerteza de estar a aguardar uma decisão da Administração há um tempo já (demasiado) longo, relativamente à decisão do seu pedido de autorização de residência”.
E, de facto, assim é. Com efeito, a alegação do recorrente reconduz-se a uma pressa na obtenção da autorização de residência, e a uma expectativa - legítima, aliás – de ver decidido o seu pedido no prazo legal, que não se confunde com uma situação de urgência, não tendo sido alegada qualquer factualidade consubstanciadora de uma situação de urgência na tutela de um direito fundamental. O autor recorrente não descreve uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca – necessária ao preenchimento dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias -, limitando-se a afirmar uma mera lesão dos mesmos, não sendo possível extrair da sua alegação qualquer urgência para o recorrente na concessão de autorização de residência. É que não basta estar em causa um direito, liberdade e garantia, sendo ainda necessário demonstrar que é urgente a sua tutela, o que o recorrente, nos termos expostos, não fez.

Alega ainda o recorrente que a sentença recorrida desconsiderou a jurisprudência mais recente deste Tribunal Central, no sentido da inidoneidade do uso de meios cautelares para situações como a que aqui está em causa, em que há necessidade de uma decisão urgente de fundo com vista à concessão de autorização de residência para viver e trabalhar em Portugal.
No entanto, o sentido de tal jurisprudência não é independente da factualidade alegada em cada uma das situações concretas a que se reporta (antes sendo por ela condicionada), além de que a “jurisprudência” – correspondente ao conjunto de decisões dos tribunais de recurso – não tem, no nosso sistema jurídico, força vinculativa fora do processo a que respeita. Nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário, aplicável aos tribunais administrativos por força do artigo 7.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “Os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.”, donde se retira que tal dever de acatamento apenas opera no próprio processo a que respeita.
De todo o modo, sempre se dirá que, atentos os contornos factuais alegados, a situação de facto descrita pelo autor recorrente é susceptível de ser acautelada com a adopção de uma providência cautelar que intime a entidade demandada a emitir um título de residência provisório, de modo a permitir que o autor permaneça, de modo regular, em Portugal até ser proferida decisão em acção principal de condenação a decidir o pedido de autorização de residência, não se mostrando, assim, imprescindível, nem sequer necessário, que se decida definitivamente com carácter urgente se o autor tem direito à emissão de autorização de residência. Tal decretamento, para além de suficiente para tutela dos direitos cuja violação o recorrente invoca, não põe em causa o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território português, constante da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, considerando que a entidade a quem cabe decidir o pedido de autorização de residência não se pronunciou ainda sobre o preenchimento das condições legalmente previstas para a concessão de tal autorização.

Ante o exposto, concluímos que não foi alegada factualidade apta a demonstrar a verificação dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, nem a indispensabilidade de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, nem, tão-pouco, a impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar.

Termos em que se impõe julgar improcedentes os fundamentos de recurso invocados.
*
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 11 de Abril de 2024

Joana Costa e Nora (Relatora)
Pedro Nuno Figueiredo
Lina Costa