Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:74/19.0BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/26/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:FUTEBOL
DISCIPLINA PÚBLICO-DESPORTIVA
TAD
Sumário:I – A propósito dos artigos 186º e 187º do RD/LPFP, a violação por parte das SADs dos deveres de formação-pedagogia e de vigilância é o essencial do tipo legal de ilícito disciplinar em causa.
II - A responsabilidade subjetiva dos clubes ou SADs tem a ver apenas com os deveres de formação/pedagogia e de vigilância de cidadãos livres e imputáveis. Não tem a ver com as ações-resultados naturalmente imputados a cidadãos.
III - O acusador tem o dever constitucional de afirmar e de demonstrar a violação daqueles deveres por parte do agente indiciado.
IV - Tendo por axiomático que o princípio constitucional da culpa concreta em matéria sancionatória diz que não há ilícito sem voluntariedade, nem castigo sem culpa ou censura ao agente do facto ilegal, conclui-se que o citado princípio de Direito sancionatório é inabalável por meros juízos de suposta normalidade advindos de origem factual mediata desconhecida ou não comprovada.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I – RELATÓRIO

S………….. - FUTEBOL, SAD, filiada na Liga Portuguesa de Futebol Profissional, intentou na entidade jusarbitral legalmente designada como “Tribunal Arbitral do Desporto” (Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, na redação resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 33/2014, de 16 de junho) ação (“recurso”, na pouco rigorosa expressão legal) administrativa impugnatória, no âmbito de arbitragem administrativa necessária ou forçada, contra

FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL.

A pretensão formulada pela autora perante a entidade jusarbitral colegial a quo foi a seguinte:

- anulação do ato administrativo do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que condenou o ora Demandante pela prática das infrações disciplinares p. e p. pelos artigos 182.°, n.º 2, 186.°, e 187.°, n.°1, alínea b), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017, e pela qual aplicou a sanção de multa no valor de 16.830,00 euros (dezasseis mil oitocentos e trinta euros), por factos ocorridos no jogo n.º 127… (203.01…..), disputado entre as sociedades desportivas Clube Desportivo F…….. — Futebol, SAD e S………. — Futebol, SAD, em 18 de março de 2018, a contar para a liga NOS.

Por decisão arbitral colegial (por maioria), a entidade jusarbitral colegial a quo decidiu

- “julgar improcedente o “recurso”, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida”.

*

Inconformada, a autora S….., SAD interpôs o presente recurso urgente de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação o seguinte longo quadro conclusivo:
1. Vem o presente Recurso interposto da Decisão proferida pelo Tribunal Arbitral do Desporto proferida no âmbito do processo n.° …/2018 que, considerando improcendente a acção de impugnação proposta pela ora Recorrente da Decisão proferida o Recurso interposto pela Recorrente da deliberação do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol — Secção Profissional, proferida sob a forma de Acórdão, a 3 de Julho de 2018, no âmbito do Recurso Hierárquico Impróprio n.° 0… — 18…., oriundo do Processo Disciplinar n.° 62-…/18, que condenou a Recorrente pela prática de uma infracção disciplinar prevista e punida pelo n.° 2 do artigo 182.°, de uma infracção prevista e punida pelo artigo 186.° e de uma infracção prevista e punida pelo n.° 1 do artigo 187.°, todos do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017 (RD da Liga), na sanção única de multa no valor de 220 (duzentas e vinte) UC, ou seja, € 16.830,00 (dezasseis mil, oitocentos e trinta euros).
2. A Recorrente não se conforma com o sentido da Decisão Recorrida, motivo pelo qual interpõe o presente Recurso.
3. Entre a matéria de facto dada como provada, a saber, a vertida nas alíneas n) e p) dos factos provados, conforme melhor foi detalhado em sede de Alegações, foi consagrada matéria conclusiva, mais, matéria que é contrariada pela demais factualidade considerada provada, pelo que urge expurgar tais considerações da factualidade relevante para os presentes Autos.
4. O Aresto Recorrido viola, conforme melhor se detalhou em sede de Alegações, o principio da presunção de inocência, mais, valora erradamente os factos que considerou provados, de forma a sustentar a culpa da Recorrente, conforme se detalhou em sede de Alegações.
5. Conforme se afirma no Voto de Vencido aposto no Acórdão sub judicio, "em primeiro lugar as conclusões supracitadas (apresentadas sob a forma de factos provados) não têm qualquer correspondência nos factos, ignorando mesmo os factos provados relativos ã conduta da Recorrente. Com efeito, dos autos não consta qualquer facto de onde resultem aquelas conclusões. Ou seja, pura e simplesmente, para a decisão que se analisa a ocorrência de um determinado resultado impõe que se conclua daquela forma.
Em segundo lugar, o que na decisão se faz, depois de se ter afirmado ser aplicável ao processo o principio da presunção de inocência, com a inerente impossibilidade de inversão do ónus da prova, é precisamente o contrário; invertendo-se, inequivocamente o ónus probatório, fazendo impender sobre a arguida o ónus de provar que tomou medidas a priori consideradas adequadas e suficientes para tentar evitar a verificação dos factos de sustentam a sua condenação."
6. A prova da eficácia das medidas desenvolvidas pela Recorrente é, exactamente, o facto de o seu registo disciplinar consagrar uma incidência praticamente exclusiva de infracções graves por comportamento dos adeptos nos jogos realizados na qualidade de visitante, ou seja, quando, apesar das acções de sensibilização para o fair play e desportivismo que resultaram provadas, a Recorrente não detém o controlo da operativa de segurança.
7. Compete à Recorrida demonstrar a violação, por parte desta, dos deveres legais que impendem sobre a Recorrente, sendo que, no caso concreto, não funciona a presunção de verdade dos relatórios do árbitro e delegados, porquanto nenhum dos factos objecto de prova foi directamente percepcionado por aqueles agentes desportivos ou é sequer mencionado nos mesmos.
8. Impõe-se, com os fundamentos melhor descritos em sede de Alegações, dar como provada a seguinte factualidade dada inicialmente como não provada:
i) " Não obstante, a S……….. SAD, mesmo nos casos em que joga na condição de equipa visitante, como forma de prevenção da violência, tem o cuidado de fazer-se sempre acompanhar pelo Oficial de Ligação aos Adeptos e pelo Director de Segurança ou pelo Director de Segurança Substituto, de modo a poder, através de acção de esforço conjunto com o clube visitado e com as forças públicas de segurança, criar condições acrescidas de segurança para os adeptos e prevenir quaisquer comportamentos antidesportivos de intolerância, racismo, xenofobia, violência e ou de falta de fair play";
ii) "Entre outras medidas destinadas a promover a manutenção da ordem, da segurança e da correcção entre adeptos, a S…… SAD incentiva sempre ao espírito ético e desportivo dos seus sócios e adeptos";
"É, contudo, preocupação permanente da S…… SAD contribuir activamente para a identificação e combate dos fenómenos da violência associada ao desporto, como o comprovam a presença recente da S……. SAD no amplo debate realizado na Assembleia da República sobre este tema, no qual se fez representar pelo Presidente do seu Conselho de Administração, F……., pelo seu Director de Segurança, R…….., e pelo seu Oficial de Ligação aos Adeptos, N……., numa manifestação pública clara de preocupação com este fenómeno";
"Existe uma estreita colaboração entre a Recorrente e as forças da Autoridade, de cooperação mútua permanente, que tem como objectivo minimizar os riscos inerentes ao espetáculo desportivo";
"A Recorrente dotou o seu Estádio de um sistema de CCTV muito completo, com um número elevado de câmaras, estando parte dos postos de controlo entregues aos operacionais da PSP que prestam serviço em dia de jogo e que é utilizado para identificar os autores de quaisquer ilícitos que sejam cometidos".
9. Compete, primacialmente, ao promotor do espectáculo desportivo, ou seja, ao clube visitado (no caso, o CD F……) a responsabilidade pela manutenção da ordem e da segurança no interior do recinto desportivo, bem como garantir o cumprimento de todas as regras e condições de acesso e de permanência de espectadores no recinto (cfr., entre outros, artigos 4°, 6°, b) e g), do Regulamento de Prevenção da Violência —Anexo VI do RC LPFP).
10. Compete às forças públicas de segurança responsáveis pelo policiamento desportivo e aos assistentes de recinto desportivo designados e destacados pelo clube visitado para o efeito a realização da revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objectivo de detectar elou impedir a entrada ou existência de objectos ou substâncias proibidos ou susceptíveis de possibilitar actos de violência e ou disciplinar, como é o caso dos petardos, dos potes de fumo e flash lights, que, aliás, são expressamente proibidos e devem determinar a proibição de entrada no estádio das pessoas revistadas que estejam na posse de tais objectos (cf. art. 9°, 1, m), vi), do Regulamento de Prevenção da Violência — Anexo VI do RC LPFP).
11. Concomitantemente, constituem "condições de permanência dos espectadores no recinto desportivo", entre outras, "não arremessar quaisquer objectos ou líquidos para o interior do recinto desportivo" (cf. art. 10°, 1, i), do Regulamento da Prevenção da Violência — Anexo IV do RC LPFP 2017); dever esse de fiscalização cujo cumprimento recai também sobre o promotor do espectáculo desportivo, coadjuvado pelas forças públicas de segurança.
12. No campo da responsabilidade dos clubes pelo comportamento dos seus adeptos, a ilicitude radica, sobretudo, no incumprimento dos deveres legais e regulamentares de prevenção e o combate à violência, numa dupla perspectiva:
- deveres in formando, que impendem sobre todos os clubes, traduzidos na obrigatoriedade de realizar acções de formação, campanhas e adoptar medidas que promovam e incentivem a ética e o espírito desportivo, de modo a dissuadir os adeptos de comportamentos violentos ou antidesportivos — deveres que recaem sobre todos os clubes, independentemente da posição que assumam no jogo, seja de clube visitante, seja de clube visitado; e;
- deveres in vigilando, relacionados com a segurança, e a manutenção da ordem e da disciplina nos recintos desportivos, que recaem prima facie sobre o promotor do espectáculo desportivo por ser ele quem tem o domínio do facto; dito de outra forma, a possibilidade de, através da acção conjunta das forças públicas de segurança que fazem o policiamento do recinto e dos assistentes de recinto desportivo, procederem a revistas, impedirem os espectadores de praticarem actos de indisciplina ou, se for caso disso, de expulsarem-nos do recinto.
13. O Regulamento Disciplinar acolhe, em sede disciplinar, o princípio geral da culpa, informador do direito penal e do direito sancionatório em geral, numa dupla dimensão: "nullum crimen sine culpa' e "nutra poena sine culpa". O principio da culpa prefigura-se, indubitavelmente, como pedra basilar do edifício jurídico-penal e do direito disciplinar, com expressa consagração no artigo 13° do Código Penal (CP) e inequívoco reconhecimento no artigo 17°, 1, do RD LPFP. Daí decorre que a culpa é pressuposto da infracção e concomitantemente limite da pena, podendo a infracção considerar-se cometida a título de dolo ou negligência.
15. Uma leitura atenta da Decisão Recorrida (aliás, na senda da Decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol) leva a concluir que a Recorrente não se presume inocente. Aliás, é, neste particular, impressivo que no Aresto do Conselho de Disciplina as conclusões escamoteadas entre os factos tenham como suporte probatório a "convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade". Tal afirmação, por si só, afasta a presunção de inocência. A Recorrente, pelo menos a Recorrente, mas, eventualmente, todas as SAD's/SDUQ's, Clubes se presumem culpados pois, segundo juizos de normalidade de razoabilidade incumprem as regras. A Decisão ora Reclamada é mais hábil neste aspecto pois procura ser mais subtil com a imputação de uma responsabilidade verdadeiramente objectiva.
16. A Decisão Recorrida nunca concretiza quais os concretos deveres violados pela Recorrente, qual ou quais as medidas que omitiu, impossibilitando a criação de um parâmetro de legalidade da conduta. No dizer do Aresto Recorrido, a mera verificação do resultado faz extrair a inevitável conclusão de que os deveres foram violados, o que corresponde ao estabelecer de uma responsabilidade objectiva, já considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional,
18. A prova da violação de deveres por parte da Recorrente não corresponde à prova de um facto negativo. A verdade é que nem a Recorrida sabe que facto é que pretende demonstrar.0 princípio da presunção de inocência obsta à inversão do ónus da prova nesta matéria.
19. Conforme se refere no Voto de Vencido aposto no Acórdão em Crise "perante a prova de factos que manifestamente demonstram que a demandante tomou medidas para que os espectadores que pudessem ser considerados seus adeptos não adoptassem comportamentos incorretos, o detentor do poder disciplinar (e o julgador) estava obrigado a fundamentar porque é que tais factos não eram de molde a criar a dúvida sobre a culpa da demandante, não podendo constituir a mera ocorrência de um resultado a única justificação, sob pena de não passarem de palavras vãs e sem conteúdo, as afirmações de que ao clube cabe apenas lançar a dúvida no espírito do julgador sobre a sua culpa, demonstrando que alguma coisa fez para evitar o resultado. Com efeito, foi isso que a demandante fez e o tribunal ignorou!'
20. A tese expendida no Aresto Recorrido e na Decisão do Conselho de Disciplina é pois a da responsabilidade objectiva, inconstitucional por violação do do n.° 2 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
21. O conceito de simpatizante não se mostra legalmente consagrado, o que impede a imputação dos factos à Recorrente.
22. É, requisito necessário ao cometimento da infracção prevista no número 1 do artigo 186° do RD que os objectos arremessados sejam idóneos a provocar lesão de especial gravidade
23. O objecto "isqueiro" não consta do elenco de "objectos, substâncias e materiais susceptíveis de possibilitar actos de violência" insito no artigo 35°, 2, do RC LPFP e 9°, 2, m), do Regulamento da Prevenção da Violência — Anexo IV do RC LPFP.
24. E isso sucede porque, como é evidente, o arremesso de isqueiro para o terreno de jogo, mesmo que porventura atinja o árbitro ou qualquer outro agente, não é idóneo, pela sua natureza, a provocar qualquer ofensa corporal ou lesão, seja pelo peso do objecto, pela sua forma circular e ou ainda pela distância a que é arremessado.
25. Pelo contrário, os petardos, potes de fumo, flash lights e demais artefactos ou engenhos pirotécnicos integram a lista de abjectos proibidos.
26. Como se viu, mesmo na condição de equipa visitante, a Recorrente afixou no Estádio do CD F….. cartaz a sensibilizar os seus adeptos para a adopção de comportamento desportivamente correcto e para o não uso de quaisquer objectos do género.
27. A fazer valer a tese expendida no Acórdão em crise, todo e qualquer objecto seria um objecto perigoso. E esse não é, manifestamente, o fito da norma sancionatória em causa.
28. A Recorrente sancionada por pretensas infracções disciplinares p. e p. no artigo 182°, 2, 186°, 1 e 2, e 187°, 1, b), do RD LPFP.
29. Dispõe artigo 182° do RD LPFP, epigrafado "agressões graves a espectadores e outros intervenientes" que "o clube cujo sócio ou simpatizante, designadamente sob a forma coletiva ou organizada, agrida fisicamente espectador ou elemento da comunicação social ou pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo, antes, durante ou depois da realização do jogo, de forma a causar lesão de especial gravidade, quer pela sua natureza, quer pelo tempo de incapacidade é punido com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de um e o máximo de dois jogos e, acessoriamente, na sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC' (n.° 1); e, bem assim, que "se a agressão prevista no número anterior não causar lesão de especial gravidade, o clube é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC'.
29. Nos termos do artigo 182°, no n.° 1, os casos de agressões a espectadores ou intervenientes no recinto desportivo que causem lesão e especial gravidade, e, no n.° 2, os casos de agressões simples a espectadores ou intervenientes no recinto desportivo. Em qualquer das situações, para preenchimento do tipo, é necessário que estejamos perante agressão ou tentativa de agressão.
30. É sabido, o arremesso de isqueiros para o terreno de jogo normalmente visa manifestar descontentamento. É essa a intenção - naturalmente censurável - dos adeptos.
31. Não é, contudo, intenção dos adeptos agredir quem quer que seja através do arremesso de isqueiros, até porque, dado o peso do isqueiro e a distância a que é arremessado, não se trata de objecto idóneo a perturbar o corpo e a saúde de quem quer que seja.
32. Considerando assim que, de acordo com a factualidade indiciada, em momento algum, qualquer espectador porventura adepto da Recorrente agrediu ou tentou agredir qualquer outro espectador ou pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo — constatando-se, em concreto, quanto ao arremesso de isqueiros, que nenhum dos referidos artefactos atingiu qualquer jogador do CD F……. nem tão-pouco existe prova que demonstre, para além de qualquer dúvida razoável, que a intenção dos adeptos foi a de atingir os jogadores do CD F….. — ter-se-á que considerar como inaplicável in casu o referido artigo 182°, n.° 2.
33. O que não se pode aceitar é que se afirme que "lesões de especial gravidade são as descritas na al. I) do artigo 4.9 do RDLPFP e com a amplitude ai consignada e que não cabe aqui analisar uma vez que a Recorrente foi punida nos termos do nº 2 na forma tentada".
34. A tentativa de cometimento de um ilicito não dispensa a verificação dos elementos do tipo, embora dispense — apenas e só — a consumação do resultado típico.
35 Para que o arremesso de petardo pudesse enquadrar-se na previsão do citado artigo 186.° necessário é que esse objecto seja considerado idóneo, pela sua natureza a provocar tal tipo de lesões, qualificadas de especial gravidade.
36. Estamos, contudo, perante conceito que exige especiais conhecimentos técnicos e médicos, pelo que, não obstante a censura que o arremesso de petardo merece, n]ao existem nos autos informações e ou dados de natureza técnica ou médica que permitam concluir, com segurança, que o petardo, pela sua natureza, é idóneo a provocar as lesões integradas naquele conceito de especial gravidade.
37. Assim, na dúvida sobre a susceptibilidade do referido objecto poder integrar o conceito de idoneidade para provocar "lesão de especial gravidade", tal dúvida deve aproveitar à arguida, pelo que, salvo melhor entendimento, a factualidade apurada não pode ser subsumida à norma insita no artigo 186°, 1, do RD LPFP.
38. Pelo sobredito, a factualidade indiciada poderia integrar, sim, em tese, desde que reunidos todos os requisitos de punibilidade, a infracção p. e p. pelo artigo 187°, 1, b), do RD LPFP, que dispõe que "fora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adoptem comportamento social ou desportivamente incorrecto, designadamente através do arremesso de objectos para o terreno de jogo, de insultos ou de actuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: (...)
b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC".
39. Impondo-se, naturalmente, às instâncias disciplinares o dever de perseguir e censurar disciplinarmente os comportamentos incorrectos dos espectadores, impõe-se-lhes igualmente, com a devida vénia, o dever de avaliar, qualificar e graduar tais comportamentos de acordo com a dignidade e gravidade jusdisciplinar das condutas relatadas no confronto com os demais tipos de infracções disciplinares relativos a comportamentos praticados pelos espectadores, e os elementos teleológicos e sistemáticos que devem presidir à interpretação e aplicação do direito.
40. Não se apurou — e não se apurou porque não se verificam — se as circunstâncias em que foi arremessado objecto em causa para o recinto eram hábeis a produzir o resultado tipico pretendido pelo Conselho de Disciplina — duvida-se que fosse esse o resultado tipico pretendido pelo adepto que arremessou o petardo. 129.°
41. O facto de, em abstracto, um determinado meio ser hábil a produzir determinado resultado típico, não dispensa a aferição in casu da possibilidade de consumação desse mesmo resultado.

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A recorrida FPF contra-alegou, concluindo assim:

1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitrai do Desporto, datado de 24 de abril de 2019, que confirmou a decisão, do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, de sancionar a ora Recorrente pela prática das infrações disciplinares p. e p. pelos artigos 182, n 2, 186 e 187, n 1, alínea b), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

2. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da S….. e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos.

3. Sinteticamente, de acordo com os relatórios do jogo e de policiamento desportivo, os adeptos da Recorrente incendiaram cadeiras, deflagraram vários artefactos pirotécnicos, arremessaram vários objetos para o terreno de jogo e na direção de jogadores da equipa do F….. . A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenham sido adeptos da S…. os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
4. Com efeito, entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório elaborado pela equipa de arbitragem, do relatório elaborado pelos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo da PSP) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.
5. Assim, os Relatórios da equipa de arbitragem e dos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente nos casos concretos. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13, al. f) do RD da LPFP).
6. Isto não significa que tais relatórios contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos mesmos, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
7. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.° do Código Civil.
8. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
9. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal o quo.
10. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitrai. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
11. Ainda que se entenda —o que não se concede — que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido — a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres — foi retirado de outros factos conhecidos.
12. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
13. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por sete vezes em sede de recurso de revista e o TCA Sul uma vez em sede de recurso de apelação.
14. Carece de fundamento a alegação de que a norma do artigo 187 é inconstitucional, porquanto o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em matéria em tudo idêntica, defendendo a responsabilidade subjetiva neste âmbito, o que se revela conforme à CRP.
15. No que ao tipo disciplinar previsto no artigo 182, n 2 do RD da LPFP, pelo qual a Recorrente também foi sancionada, ao contrário do que esta alega, um isqueiro, arremessado da bancada em direção a jogadores que aí se encontram próximos, desarmados, pois, face ao arremesso contra si desse mesmo objeto, pode revelar-se de alta contundência, constituindo, desse modo, um instrumento dotado da potencialidade de poder desencadear um perigo para a integridade física do agente desportivo visado, de consequências que, abstratamente, se podem revestir de especial gravidade em função da parte do corpo atingida.
16. Sendo certo que um isqueiro, pela simples circunstância de ser um instrumento que permite atear fogo a outros objetos e materiais sempre seria, abstratamente, um objeto idóneo a causar lesão de especial gravidade.
17. Acresce que, ainda que se considere que tal arremesso constitui uma manifestação de desagrado, não pode deixar de se concluir que com o comportamento apontado, os seus autores, adeptos afetos à Recorrente, quiseram atingir os jogadores, ou, ainda que assim não fosse, que a realização desse facto (atingir os jogadores ou qualquer outra pessoa presente no recinto desportivo) fosse representada como uma consequência possível dessa conduta.
18. Por outra parte, e agora no que diz respeito ao tipo disciplinar p. e p. pelo artigo 186, n 1, do RD da LPFP, o arremesso para o terreno do jogo de artigos pirotécnicos, tendo pelo menos um petardo aí explodido violentamente, num contexto em que os visados estão atentos ao desenrolar do jogo, impotentes em face do seu arremesso, não podem deixar de revelar-se de alta contundência, constituindo, desse modo, instrumentos dotados de potencialidade para desencadear um perigo para a integridade física de qualquer dos agentes.
19. Com efeito, dúvidas não nos suscitam, como, de resto, tão-pouco as teve o Conselho de Disciplina e o Tribunal Arbitral do Desporto, que, atendendo à factualidade provada, se encontram preenchidos os tipos disciplinares p. e p. pelos artigos 182, n.° 2.° 186 do RD da LPFP.
20. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira — limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
21. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitrai, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pela infração p. p. pelo artigo 182, n.2, 186.° e 187, 1, al. a) e b) do RD da LPFP.

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Cumpridos que estão neste tribunal superior os demais trâmites processuais, vem o recurso à conferência para o seu julgamento.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DA APELAÇÃO - QUESTÕES A DECIDIR

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal ou a entidade jusarbitral a quo, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso. Esta alegação apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de Direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou pela entidade jusarbitral a quo, ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Assim, tudo visto, cumpre a este tribunal apreciar e resolver aqui o seguinte:

1 - Erro de julgamento, porque entre as alíneas n) e p) dos factos provados, conforme melhor foi detalhado em sede de Alegações, foi consagrada matéria conclusiva, mais, matéria que é contrariada pela demais factualidade considerada provada, pelo que urge expurgar tais considerações da factualidade relevante para os presentes Autos;

2 - Erro de julgamento, por omissão de vários factos relevantes provados;

3 - Erro de julgamento de direito, ao desconsiderar que compete, primacialmente, ao promotor do espectáculo desportivo, ou seja, ao clube visitado (no caso, o CD F…..) a responsabilidade pela manutenção da ordem e da segurança no interior do recinto desportivo, bem como garantir o cumprimento de todas as regras e condições de acesso e de permanência de espectadores no recinto. Afinal, constituem "condições de permanência dos espectadores no recinto desportivo", entre outras, "não arremessar quaisquer objectos ou líquidos para o interior do recinto desportivo" (cf. art. 10°, 1, i), do Regulamento da Prevenção da Violência — Anexo IV do RC LPFP 2017); dever esse de fiscalização cujo cumprimento recai também sobre o promotor do espectáculo desportivo, coadjuvado pelas forças públicas de segurança.

4 - Erro de julgamento de direito, porque o suporte probatório é a convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade, pois tal afirmação, por si só, afasta a presunção de inocência (a Decisão Recorrida nunca concretiza quais os concretos deveres violados pela Recorrente, qual ou quais as medidas que omitiu, impossibilitando a criação de um parâmetro de legalidade da conduta; afinal no dizer do Aresto Recorrido, a mera verificação do resultado faz extrair a inevitável conclusão de que os deveres foram violados, o que corresponde ao estabelecer de uma responsabilidade objectiva); aliás, mesmo na condição de equipa visitante, a Recorrente afixou no Estádio do CD F… cartaz a sensibilizar os seus adeptos para a adopção de comportamento desportivamente correcto e para o não uso de quaisquer objectos do género.

5 - Erro de julgamento de direito, porque o arremesso de isqueiros não integra a previsao legal que conduziu a uma das punições do arguido ora recorrente.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS PROVADOS

O TAD, entidade jusarbitral aqui recorrida, fixou o seguinte quadro factual:

“Texto Integral com Imagem”

“Texto Integral com Imagem”

*

II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Tendo presente o exposto, passemos agora à análise dos fundamentos do presente recurso de apelação.

Abordaremos as seguintes questões:

1 - Erro de julgamento, porque entre as alíneas n) e p) dos factos provados, conforme melhor foi detalhado em sede de Alegações, foi consagrada matéria conclusiva, mais, matéria que é contrariada pela demais factualidade considerada provada, pelo que urge expurgar tais considerações da factualidade relevante para os presentes Autos;

2 - Erro de julgamento, por omissão de vários factos relevantes provados ("a S…… SAD, mesmo nos casos em que joga na condição de equipa visitante, como forma de prevenção da violência tem o cuidado de fazer-se sempre acompanhar pelo Oficial de Ligação aos Adeptos e pelo Director de Segurança ou pelo Director de Segurança Substituto, de modo a poder, através de acção de esforço conjunto com o clube visitado e com as forças públicas de segurança, criar condições de segurança para os adeptos e prevenir quaisquer comportamentos antidesportivos de intolerância, racismo, xenofobia, violência e ou de falta de fair play"; "Entre outras medidas destinadas a promover a manutenção da ordem, da segurança e da correcção entre adeptos, a S…. SAD incentiva sempre ao espírito ético e desportivo dos seus sócios e adeptos"; “há presença recente da S…. SAD no amplo debate realizado na Assembleia da República sobre este tema, no qual se fez representar pelo Presidente do seu Conselho de Administração, F….., pelo seu Director de Segurança, R….., e pelo seu Oficial de Ligação aos Adeptos, N…. "; "Existe uma estreita colaboração entre a Recorrente e as forças da Autoridade, de cooperação mútua permanente, que tem como objectivo minimizar os riscos inerentes ao espetáculo desportivo"; "A Recorrente dotou o seu Estádio de um sistema de CCTV completo, com um número elevado de câmaras, estando parte dos postos de controlo entregues aos operacionais da PSP que prestam serviço em dia de jogo e que é utilizado para identificar os autores de quaisquer ilícitos que sejam cometidos");

3 - Erro de julgamento de direito, ao desconsiderar que compete, primacialmente, ao promotor do espectáculo desportivo, ou seja, ao clube visitado (no caso, o CD F…..) a responsabilidade pela manutenção da ordem e da segurança no interior do recinto desportivo, bem como garantir o cumprimento de todas as regras e condições de acesso e de permanência de espectadores no recinto. Afinal, constituem "condições de permanência dos espectadores no recinto desportivo", entre outras, "não arremessar quaisquer objectos ou líquidos para o interior do recinto desportivo" (cf. art. 10°, 1, i), do Regulamento da Prevenção da Violência — Anexo IV do RC LPFP 2017); dever esse de fiscalização cujo cumprimento recai também sobre o promotor do espectáculo desportivo, coadjuvado pelas forças públicas de segurança.

4 - Erro de julgamento de direito, porque o suporte probatório é a convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade, pois tal afirmação, por si só, afasta a presunção de inocência (a Decisão Recorrida nunca concretiza quais os concretos deveres violados pela Recorrente, qual ou quais as medidas que omitiu, impossibilitando a criação de um parâmetro de legalidade da conduta; afinal no dizer do Aresto Recorrido, a mera verificação do resultado faz extrair a inevitável conclusão de que os deveres foram violados, o que corresponde ao estabelecer de uma responsabilidade objectiva); aliás, mesmo na condição de equipa visitante, a Recorrente afixou no Estádio do CD F…… cartaz a sensibilizar os seus adeptos para a adopção de comportamento desportivamente correcto e para o não uso de quaisquer objectos do género.

5 - Erro de julgamento de direito, porque o arremesso de isqueiros não integra a previsao legal que conduziu a uma das punições do arguido ora recorrente.

1.

Preliminarmente, deve-se sublinhar que o voto de vencido do coárbitro dr. R….., em que se baseia a recorrente S…., revela de modo eloquente e claro muitos pontos importantíssimos para o tema geral de que tratamos numa matéria delicada como é a do Direito sancionatório.

Mas também devemos ter presentes os recentes arestos do Supremo Tribunal Administrativo sobre esta matéria e alguns arestos deste Tribunal Central Administrativo Sul coincidentes com a recente doutrina resultante do Supremo Tribunal Administrativo.

Por outro lado, não se deve ignorar que em nenhuma área do Direito sancionatório o princípio da culpa (não há delito sem culpa; a sanção só aplicável em consequência da prática pelo sancionado de um facto que a lei declare punível) tem veleidades, e que aqui a S…. não teve o domínio do facto-resultado. Muito menos quando lidamos com factos voluntários adotados por cidadãos dados como adeptos ou meros simpatizantes da entidade castigada.

Também não podemos considerar caducadas as pacíficas e corretas teses expressas em ACÓRDÃOS do Supremo Tribunal Administrativo como os consabidos de 28-04-2005, p. nº 333/05, e de 17-05-2001, p. nº 40528.

Finalmente, deve-se sublinhar que o que o TC considera expressamente que está aqui em causa é o tema da violação – subjetiva ou voluntária - de deveres; e não a responsabilidade disciplinar por condutas voluntariamente praticadas por outras pessoas que são “simpatizantes” de outrem.

Lateralmente, como membro de um tribunal estadual-órgão de soberania vinculado primeiro à Constituição portuguesa e depois aos artigos 8º a 11º e 342º ss do Código Civil, nem o juiz togado português, nem o Direito positivo português, estão em caso algum vinculados a um quase-Direito estrangeiro (eufemisticamente chamado de “soft law”, Direito suave, próprio de sistemas anglo-saxónicos), de origem corporativa privada e estrangeira (casos da UEFA ou da FIFA).

2.

Ainda antes de entramos no núcleo das questões, parece importante evidenciar o que se deve entender por ónus - objetivo e material - da prova (que não é um ónus, nem um dever, mas sim uma regra legal dirigida ao julgador; cf. a teoria das normas de L. ROSENBERG, recebida de modo assumido, entre nós, por ANSELMO DE CASTRO, e os arts. 411º, 413º e 414º do CPC).

“A essência e o valor das normas sobre a carga da prova consistem na instrução dada ao juiz acerca do conteúdo da sentença que deve emitir, num caso em que não se pode comprovar a verdade de uma afirmação de facto relevante.” (LEO ROSENBERG, La Carga de la Prueba, 2ª ed. em castelhano de 1956 da 3ª edição alemã de 1951, B de F, Montevideo-Buenos Aires, 2002, p. 17).

“Na origem da carga objetiva da prova está o processo de aplicação do Direito, segundo o qual o tribunal deve estar convencido positivamente da existência dos pressupostos das normas jurídicas cuja aplicação se discute. Qualquer dúvida sobre um desses pressupostos impede o juiz de aceitar a aplicação das normas jurídicas” (LEO ROSENBERG, La Carga de la Prueba, 2ª ed. em castelhano de 1956 da 3ª edição alemã de 1951, B de F, Montevideo-Buenos Aires, 2002, p. 43-44).

Os limites do problema do chamado ónus da prova “coincidem com os que existem entre a questão de facto e a questão de direito. As normas relativas ao encargo da prova só estão destinadas a resolver as dúvidas no terreno da questão de facto e só têm capacidade para isso” (LEO ROSENBERG, La Carga de la Prueba, 2ª ed. em castelhano de 1956 da 3ª edição alemã de 1951, B de F, Montevideo-Buenos Aires, 2002, p. 26).

Hoje, com um princípio dispositivo muito mitigado, o “ónus” ou carga da prova (vd. artigo 342º CC) orienta o tribunal apenas depois da produção dos meios de prova, “sendo”, até esse momento, apenas um interesse em provar determinada factualidade, isto é, uma indicação às partes a quem mais interessa a aquisição processual de certos factos essenciais ou principais, relevantes por via das normas de direito substantivo em que cada parte assentou a sua pretensão e a sua defesa.

A face processual da carga da prova é (i) que, na dúvida insanável sobre a realidade de um facto, o juiz deve decidir contra a parte que tal facto beneficia (artigo 414º CPC); e (ii) que o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que tinha interesse em produzi-las (artigo 413º CPC). Na verdade, não estamos no âmbito da prova, mas no da construção da fundamentação da sentença (CASTRO MENDES, D.P.C., II, p. 669).

Concluindo:

1º - é mais rigoroso falar (i) em “carga objetiva da prova”, (ii) em “critério material de julgamento” e (iii) em “risco para a parte processual decorrente de, no momento do julgamento, não haver demonstração dos factos, de sentido positivo ou negativo, correspondentes às normas jurídicas constitutivas, extintivas, modificativas ou impeditivas da situação jurídica favorável à parte”;

2º - sem dúvidas do julgador sobre a solução a dar ao objeto do processo (isto é, à matéria sobre a qual o tribunal é chamado a pronunciar-se, constituída pela forma de tutela jurisdicional requerida para a invocada posição jurídica subjetiva favorável e pelos factos essenciais identificadores daquela posição), não interessam as regras do chamado ónus da prova, já que o tribunal está sujeito especialmente à disciplina dos arts. 410º a 414º e 607º/4/5 do C.P.C. e, no caso do Direito sancionatório, ao princípio constitucional da culpa do agente punido.

3.

Quanto à matéria de facto:

3.1.

O vertido na factualidade provada sob N) nada tem de matéria de facto.

Pelo que “A Arguida não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias à evitação de tais acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, ficando a dever-se a tal omissão a ocorrência dos sobreditos factos.” deve ser eliminado do probatório, ao abrigo do artigo 662º/1 do Código de Processo Civil.

Em conexão e por conter também matéria de Direito, também deve ser eliminado do probatório o seguinte: “A Arguida agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que, ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência”. (sob S)).

Note-se que é notório que não era sequer possível à recorrente evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos.

Quando muito, isso seria talvez possível às polícias e ao clube visitado, que são os legalmente responsáveis pela segurança e paz pública naquele local concreto.

3.2.

O TAD considerou, sem justificação, como não provado o seguinte:

T) - "a S…… SAD, mesmo nos casos em que joga na condição de equipa visitante, como forma de prevenção da violência tem o cuidado de fazer-se sempre acompanhar pelo Oficial de Ligação aos Adeptos e pelo Director de Segurança ou pelo Director de Segurança Substituto, de modo a poder, através de acção de esforço conjunto com o clube visitado e com as forças públicas de segurança, criar condições de segurança para os adeptos e prevenir quaisquer comportamentos antidesportivos de intolerância, racismo, xenofobia, violência e ou de falta de fair play";

U) - "Entre outras medidas destinadas a promover a manutenção da ordem, da segurança e da correcção entre adeptos, a S…… SAD incentiva sempre ao espírito ético e desportivo dos seus sócios e adeptos";

V) - “há presença recente da S….. SAD no amplo debate realizado na Assembleia da República sobre este tema, no qual se fez representar pelo Presidente do seu Conselho de Administração, F….., pelo seu Director de Segurança, R……, e pelo seu Oficial de Ligação aos Adeptos, N…..";

X) - "Existe uma estreita colaboração entre a Recorrente e as forças da Autoridade, de cooperação mútua permanente, que tem como objectivo minimizar os riscos inerentes ao espetáculo desportivo";

Z) - "A Recorrente dotou o seu Estádio de um sistema de CCTV completo, com um número elevado de câmaras, estando parte dos postos de controlo entregues aos operacionais da PSP que prestam serviço em dia de jogo e que é utilizado para identificar os autores de quaisquer ilícitos que sejam cometidos").

Só que tais factos ficaram provados com base no seguinte meio de prova: depoimento da testemunha R……., min. 4.07 a 6.34, min. 19.59 a 22.00, min. 23.16 a 25.00.

Pelo que devem ser e são aqui aditados ao probatório, ao abrigo do artigo 662º/1 do Código de Processo Civil.

4.

Diz o RD da LPFP:

Artigo 182.º Agressões graves a espectadores e outros intervenientes

1. O clube cujo sócio ou simpatizante, designadamente sob a forma coletiva ou organizada, agrida fisicamente espectador ou elemento da comunicação social ou pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo, antes, durante ou depois da realização do jogo, de forma a causar lesão de especial gravidade, quer pela sua natureza, quer pelo tempo de incapacidade, é punido com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de um e o máximo de dois jogos e, acessoriamente, na sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC.

2. Se a agressão prevista no número anterior não causar lesão de especial gravidade, o clube é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC.

Artigo 186.º Arremesso perigoso de objetos

1. O clube cujos sócios ou simpatizantes arremessem para dentro do terreno de jogo objetos, líquidos ou quaisquer outros materiais que pela sua própria natureza sejam idóneos a provocar lesão de especial gravidade aos elementos da equipa de arbitragem, agentes de autoridade em serviço, delegados e observadores da Liga, dirigentes, jogadores e treinadores e demais agentes desportivos ou qualquer pessoa autorizada por lei ou regulamento a permanecer no terreno de jogo, sem todavia dar causa a qualquer perturbação no início, reinício ou realização do jogo, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 50 UC e o máximo de 150 UC.

2. Em caso de reincidência, o limite mínimo da sanção de multa prevista no artigo anterior é elevado para o dobro.

Artigo 187.º Comportamento incorreto do público

1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos:

a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC;

b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC.

2. Na determinação da medida da pena prevista na alínea a) do n.º 1 do presente artigo não será considerada a circunstância agravante de reincidência prevista nos artigos 52.º e 53.º, n.º 1 alínea a) do presente regulamento.

3. Se do cumprimento social ou desportivamente incorreto resultarem danos patrimoniais cuja reparação seja assumida pelo clube responsável e aceite pelo clube lesado, através de acordo dado a conhecer ao delegado da Liga, não há lugar à aplicação da sanção prevista no n.º 1.

Como resulta dos artigos 1º, 2º, 32º/2 e 112º da Constituição e do artigo 1º do Código Civil, estas normas meramente administrativas estão submetidas, nomeadamente,

-ao princípio da legalidade administrativa,

-ao princípio da legal interpretação jurídica (artigo 9º do Código Civil) e

-aos princípios nucleares do Direito sancionatório.

Ora, a recorrente foi punida com base nos artigos 186º/1/2, 187º/1-b) e 182º/2 cits.

Estes artigos, criados por uma entidade privada com poderes públicos, serão inconstitucionais quando entendidos assim: no significado literal dos mesmos; e ou significando (cf. artigo 9º do Código Civil) que os factos-resultado previstos naqueles artigos implicam necessariamente a responsabilidade (subjetiva, culposa) dos clubes ou SADs.

Violariam dessa forma o princípio fundamental da culpa concreta, próprio do Direito sancionatório.

Prova disto é que tal significaria que o responsável pela ação-resultado desviante seria outrem, atuante ou não atuante muito a montante, sem qualquer elemento de ligação causal natural ou jurídica entre o outrem a montante e o agente a jusante.

Mas isso está esclarecido pelo TC: aqui a responsabilidade (subjetiva) dos clubes ou SADs tem a ver apenas com os deveres de formação/pedagogia (?) e de vigilância de cidadãos livres e imputáveis. Não tem a ver com as ações-resultados descritas nos cits. artigos.

É que os artigos 32º/2/10 e 269º/3 da Constituição, aqui aplicável, significam: proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; preferência pela absolvição contra o arquivamento do processo; in dubio pro reo (CANOTILHO/MOREIRA, Constituição da R P Anot., I, 4ª ed., p. 518).

5.

O contexto geral jurisprudencial atual, aparentemente sempre aplicável a estes processos vindos do TAD, é o seguinte:

- II – A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas pelos comportamentos social ou desportivamente incorretos dos seus adeptos e simpatizantes não é objetiva, mas subjetiva por se estribar numa violação de deveres legais e regulamentares que sobre eles impendem. III – Resultando da matéria de facto considerada provada que os comportamentos sancionados foram perpetrados por adeptos do Futebol Clube do P…… e que este incumpriu culposamente os deveres de formação e de vigilância a que estava adstrito, terá de se concluir que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento quando considerou existir violação dos princípios da culpa e da presunção de inocência do arguido (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 05-09-2019, p. nº 065/18…);

- I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem, ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência. II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19-06-2019, p. nº 01/18…);

- I – A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percecionados, de acordo com o disposto no art. 13º, alínea f) do Regulamento Disciplinar da LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não é inconstitucional. II - O acórdão que revogou a decisão do Tribunal Arbitral do Desporto, considerando que não se podia atender àquela presunção, incorreu em erro de direito. III – A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas pelos comportamentos social ou desportivamente incorretos dos seus adeptos e simpatizantes não é objetiva, mas subjetiva, por se basear numa violação de deveres legais e regulamentares que sobre eles recaem (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 02-05-2019, p. nº 073/18…);

- I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência. II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. III - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência. IV - A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido. (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-02-2019, p. nº 033/18…).

Adotamos aqui esta jurisprudência.

Mas a realidade é diversificada.

E, juridicamente, há que distinguir sempre e em geral algo que parece simples:

-por um lado, (i) “dever a cargo das SADs de formação de cidadãos livres, maiores e imputáveis, e dever de vigilância desses mesmos cidadãos”;

-por outro lado, (ii) “ações violentas ou desordeiras praticadas por esses cidadãos”.

O primeiro postulado lógico-natural-jurídico é o de que aqueles dois polos, para relevarem, necessitam de um ponto de conexão, uma ligação natural ou jurídica entre os dois, de uma causalidade natural ou jurídico-normativa entre os dois. Ligação causal, remota ou não, que não se demonstra existir.

São duas realidades ilícitas distintas. Pode haver uma sem a outra.

E, como se disse, quanto às SADs, o que está em causa são aqueles deveres de formação e de vigilância, e não o que seja praticado por outrem.

O mesmo o entende o TC para concluir haver aqui responsabilização subjetiva e não a inconstitucional responsabilização sancionatória objetiva.

Caso não estivesse em causa a violação voluntária daqueles deveres, o TC nunca teria podido concluir que se tratava de responsabilização culposa.

O que quer dizer que “a violação daqueles deveres” é o essencial do tipo legal de ilícito disciplinar aqui em causa, segundo o Supremo Tribunal Administrativo, o TC e segundo a Constituição. O que implica que o acusador tem o dever constitucional de afirmar e de demonstrar a violação daqueles deveres por parte do agente indiciado.

(Não nos devemos impressionar com “regras” oriundas de meras entidades privadas aparentemente supranacionais, mas de nacionalidade suíça ou outra. Aqui tratamos de Direito público e de direitos fundamentais; não tratamos de desportos, nem dos negócios privados do desporto)

Dali resulta que, (1º) se não se demonstrar no procedimento administrativo disciplinar ou no processo jurisdicional que a SAD incumpriu aqueles deveres (de pedagogia?), nunca haverá um ilícito disciplinar a ela imputável só por haver condutas e resultados imputáveis objetiva e subjetivamente aos cits. cidadãos.

(2º) Também significa que não se pode, obviamente, presumir a violação dos cits. deveres com base nos factos-resultados praticados pelos cits. cidadãos, invertendo a ordem das coisas.

É o que resulta cristalino do artigo 32º/1/2 da Constituição: presunção de inocência da pessoa indiciada num procedimento sancionatório (com a consequente proibição de inversão do ónus da prova quando esta figura for necessária).

Na verdade, uma SAD pode até cumprir escrupulosamente os deveres de formação e vigilância que lhe foram impostos por regulamentos administrativos e, ainda assim, na sua autonomia e liberdade, os cidadãos adeptos ou simpatizantes ou outros poderão optar por cometer delitos nos estádios de futebol.

6.

6.1.

Ora, já vimos que alguns “factos” em que se baseou o TAD não são factos.

6.2.

Por outro lado, tendo sempre presente os artigos 9º do Código Civil e 32º/2 da Constituição, não se descortina no ato administrativo impugnado ou na decisão arbitral recorrida qualquer facto que baseie a conclusão de que a recorrente nada fez para cumprir os seus cits. deveres.

O que é bem diferente de nada fazer para evitar que cidadãos lives e imputáveis praticassem certas ações desviantes.

6.3.

Mais. Nem o ato administrativo impugnado, nem a decisão arbitral recorrida, indicam qualquer omissão da recorrente sobre eventuais outras ações preventivas adequadas e necessárias para evitar aquelas ações desviantes só imputáveis àqueles cidadãos. Além das comprovadas nos factos sob O)[1], R)[2] e S)[3]. E nos factos T) a Z).

Faltaram medidas adicionais? Quais? De quem? Das polícias, do clube visitado ou do clube visitante?

Portanto, o probatório, depurado das meras conclusões como fizemos supra, não permitia à entidade administrativa autora do ato administrativo, nem à entidade arbitral aqui recorrida, concluir que a recorrente violou os cits. deveres que explicam a sua responsabilidade não objetiva.

Antes pelo contrário. Basta reler os factos sob O), R) e S).

Logo, não há ilicitude. Ou melhor, não há sequer uma identificada conduta praticada ou omitida pela ora recorrente.

6.4.

Tendo por axiomático que o princípio constitucional da culpa concreta em matéria sancionatória diz que não há ilícito sem voluntariedade, nem castigo sem culpa ou censura ao agente do facto ilegal, cabe sublinhar que o princípio é inabalável por meros juízos de suposta normalidade advindos de origem factual desconhecida ou não comprovada.

Isto significa que o ato administrativo impugnado e a decisão arbitral recorrida, além de contradizerem os factos provados sob O), R) e S), valoraram/analisaram mal os verdadeiros factos afirmados e provados no ato administrativo.

Quer dizer, não há necessidade de recorrer às regras do ónus (objetivo e material) da prova para aferir a responsabilidade (subjetiva) da SAD recorrente quanto áquilo que o TC admite como justificando constitucionalmente essa responsabilização: a inobservância dos deveres de formação e vigilância dos sócios e simpatizantes.

É que o probatório demonstra que a SAD recorrente cumpriu os seus deveres cits.

O probatório não permite, assim, concluir pela ilicitude da conduta (qual, aliás?) da ora recorrente quanto àquilo que o Direito lhe impõe como responsabilidade sua, subjetiva: o cumprimento dos cits. deveres de formação e vigilância de cidadãos sócios e simpatizantes. Deveres de formação e vigilância que não são, obviamente, causa normal, habitual, necessária ou desnecessária da existência ou inexistência das ações-resultado descritas nos cits. artigos do RD/LPFP.

6.5.

Note-se, finalmente, que a novel presunção de verdade dos relatórios dos árbitros e delegados (“oficiais públicos”?) nada tem a ver com os factos legalmente imputáveis aos clubes, i.e., os factos referentes aos deveres de formação e vigilância cits. em estádios próprios ou mesmo em estádios alheios (sobre estes, vd. os artigos 4º, 6º e 10º do regulamento administrativo privado constante do Anexo VI do RDLPFP).

6.6.

Alega ainda a recorrente que nem todos os objetos arremessados (isqueiros) eram ou são idóneos a provocar lesão de especial gravidade, como refere o artigo 186º/1 cit.

E tem razão. Caso o ato administrativo confirmado pelo TAD demonstrasse a responsabilidade disciplinar (subjetiva) da SAD recorrente, por violação dos cits. deveres (e não pelas ações dos cits. “sócios ou simpatizantes”), ainda assim, o arremesso de isqueiros, sem mais, nunca poderá caber na previsão do artigo 186º cit., mas sim no artigo 187º cit. (cf. artigo 9º do Código Civil).

No mais, está claro que houve cidadãos livres e imputáveis, supostamente sócios e simpatizantes da ora recorrente, que praticaram as ações descritas nos artigos 186º e 187º cits.

7.

Em síntese, o ato administrativo impugnado e a decisão arbitral colegial (por maioria) recorrida contêm os seguintes erros de julgamento:

- Não afirmou como provados factos (positivos ou negativos, é indiferente) que consubstanciem violação dos cits. deveres de formação e de vigilância (aqui, num estádio visitado) por parte da recorrente, apesar de esta violação dos deveres ser, segundo a lei, este Tribunal Central Administrativo, o Supremo Tribunal Administrativo e o TC, o elemento subjetivo do tipo de ilícito em causa; como é evidente, o elemento subjetivo do ilícito disciplinar imputado à SAD não pode ser a vontade de uma outra pessoa totalmente autónoma e livre;

- Considerou como facto uma simples conclusão (vd. o “facto” sob N)[4]; e ainda a conclusão sob P) sem meio de prova como base;

- Intuiu que as cits. presunções de verdade dos relatórios, duvidosas, mas que admitimos aqui, se reportariam também à suposta violação daqueles deveres, o que é ostensivamente incorreto;

- Não afirmou e provou qualquer ligação fáctica ou jurídico-normativa entre a (não provada) violação objetiva dos cits. deveres de formação e de vigilância (aqui, num estádio visitado) e o resultado material ocorrido;

- Contradisse na fundamentação de Direito o que fez constar dos já transcritos factos sob O), R) e S), concluindo paradoxalmente pela violação dos deveres da SAD que o probatório elencara como cumpridos, a que se acrescentam os factos agora aditados sob T) a Z);

- Concluiu pela (imprescindível) violação objetiva e voluntária dos cits. deveres a partir apenas da existência de factos objetiva e subjetivamente imputáveis a outrem, a cidadãos concretos, invertendo assim a ordem lógico-jurídica da questão;

- Caso o ato administrativo confirmado pelo TAD demonstrasse a responsabilidade disciplinar (subjetiva) da SAD recorrente, por violação dos cits. deveres (e não pelas ações dos cits. “sócios ou simpatizantes”), ainda assim, o arremesso de isqueiros, sem mais, nunca poderá caber na previsão do artigo 186º cit., mas sim no artigo 187º cit.

*

III - DECISÃO

Nestes termos e ao abrigo do artigo 202.º da Constituição e do artigo 1.º, nº 1, do EMJ (ex vi artigo 57.º do ETAF), os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão arbitral recorrida e anular o ato administrativo impugnado.

Custas a cargo da FPF em ambas as instâncias.

Lisboa, 26-09-2019


Paulo H. Pereira Gouveia

Catarina Jarmela

Helena Afonso


[1] “A Arguida providenciou a produção e afixação no Estádio M…… e nas respetivas zonas de acesso/limítrofes, de um documento/cartaz, de tamanho A3, onde se lê:

"E PLURIBUS UNUM

O S…….. ADVERTEM QUE A UTILIZAÇÃO DE QUALQUER TIPO DE ENGENHO PIROTÉCNICO ANTES E NO DECORRER DO JOGO DETERMINARÁ APLICAÇÂO DE SANÇÕES DISCIPLINARES GRAVES AO NOSSO CLUBE.

(Ex. Exclusão das Provas Nacionais ou Jogos à Porta Fechada)

A S…………. APELA E AGRADECE O APOIO INCANSÁVEL DE TODOS, MAS SEM O RECURSO A QUALQUER TIPO DE ARTEFACTO PIROTÉCNICO"

[2] “A Demandante, no jogo dos autos em que atuou na condição de equipa visitante, como forma de prevenção da violência, teve o cuidado de fazer-se acompanhar pelo Oficial de Ligação aos Adeptos e pelo Diretor de Segurança.”

[3] “A Demandante tem incentivado, pelo menos desde há três anos, ao espírito ético e desportivo dos seus sócios e adeptos.”


[4] “A Arguida não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias à evitação de tais acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, ficando a dever-se a tal omissão a ocorrência dos sobreditos factos.”