Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:601/18.0BELRA-S1
Secção:CA
Data do Acordão:05/09/2019
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:RECURSO COM EFEITO DEVOLUTIVO;
LEVANTAMENTO DO EFEITO SUSPENSIVO AUTOMÁTICO DO ACTO DE ADJUDICAÇÃO;
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA; RESÍDUOS; LAMAS DESIDRATADAS; PREJUÍZOS EXTRAORDINÁRIOS;
PRESTAÇÃO CONTÍNUA E CONTINUADA; PONDERAÇÃO DE INTERESSES;
ARMAZENAMENTO TEMPORÁRIO DE LAMAS DESIDRATADAS;
PREÇO ELEVADO.
Sumário:
I – O recurso da decisão relativa ao levantamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação tem efeito devolutivo;
II - A impugnação da matéria de facto e a modificabilidade da mesma pelo Tribunal superior não visa alterar a decisão de facto fundada na prova documental ou testemunhal, apenas porque a mesma é susceptível de produzir convicções diferentes, podendo ser diversa a tomada no Tribunal superior daquela que teve o Tribunal da 1.ª instância. Diferentemente, este Tribunal superior só pode alterar a matéria de facto porque as provas produzidas na 1.ª instância impunham, decisiva e forçosamente, outra decisão diversa da aí tomada;
III - Nos termos dos art.ºs. 120.º, n.º 2, 103.º-A, n.ºs. 2 e 4, do CPTA e 342.º, n.º 1, do CC, para que proceda o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação, exige-se que esteja alegado pela Entidade demandada (ou pelos Contra-interessados) e que resulte provado nos autos que tal efeito provoca um grave prejuízo para o interesse público ou que daí derivam consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos. Verificados tais prejuízos ou consequências, há, depois, que fazer um juízo ponderativo entre todos os interesses envolvidos – públicos e privados – que se orienta por um critério de proporcionalidade, passando a aferir-se se os danos que resultariam da manutenção do indicado efeito são superiores aos que venham a resultar do seu levantamento. Concluindo-se pela superioridade dos danos resultantes da manutenção do efeito suspensivo automático face aos que advêm do seu levantamento, então, há que deferir o pedido de levantamento;
IV - Quem impugna um acto pré-contratual tem à partida o direito a ver o procedimento concursal imediatamente suspenso, até que a correspondente acção seja definitivamente dirimida, situação que só pode ser invertida em situações atípicas ou extraordinárias, quando ocorram prejuízos ou danos graves e claramente desproporcionais para os interesses públicos ou contrapostos;
V- A mera circunstância de se estar frente a uma prestação de serviços que se pretende efectuada de forma tendencialmente permanente e contínua, não é, só por si, uma razão para se concluir pelo preenchimento do conceito de grave prejuízo para o interesse público;
VI- A invocação da necessidade de ter que celebrar um contrato temporário por um preço superior ao que resulta do acto de adjudicação, não preencherá, em si mesmo, o conceito de grave prejuízo para o interesse público;
VII – Não estando provado nos autos que é impossível ou excepcionalmente oneroso para a Entidade demandada recorrer a um operador devidamente licenciado para proceder ao armazenamento das lamas desidratadas nas suas instalações, até que a acção principal de que este incidente depende estiver terminada, não se pode considerar preenchido o conceito de grave prejuízo para o interesse público;
VIII – Na incerteza da caracterização e perigosidade de lamas desidratadas provenientes de águas residuais urbanas – que juntam águas domésticas com industriais - o levantamento do efeito suspensivo do acto de adjudicação, com a consequente contratação da gestão do lote 1 à Contra-interessada, que não terá licença para operar com resíduos perigosos e que os poderá destinar à valorização agrícola, muito provavelmente provocará maiores danos no ambiente, na saúde e na salubridade públicas, que aqueles que podem resultar de um eventual armazenamento das lamas desidratadas por um operador licenciado até que a acção principal de que este incidente depende estiver terminada.
Votação:Maioria
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO
……………………………., SA (...............), interpôs recurso da sentença do TAF de Leiria, que julgou procedente o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação, tomado no final do concurso público para gestão de lamas desidratadas produzidas por um conjunto de estações de tratamento de águas residuais sob a gestão da ................

Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: ”A. Tal como se expôs supra, analisada a Decisão, pode concluir-se que o Tribunal a quo acabou por levantar os efeitos suspensivos do Ato de Adjudicação exclusivamente por dois motivos:
i. Primeiro, porque, no seu entender, a alternativa proposta pela RECORRENTE (de se remeter as lamas para um operador para que as mesmas ficassem armazenadas temporariamente até decisão final do processo) (a) não seria possível à luz do quadro normativo disciplinador e (b) a esta sempre obstaria os constrangimentos legais associados aos procedimentos de contratação pública tendentes à contratação de uma terceira empresa para prestação do serviço de armazenamento;
ii. Segundo, porque a celebração de um novo contrato “ad hoc” não evitaria os prejuízos alegados pela RECORRENTE e apenas se revelaria mais custoso para a AdCL.
B. Sem prejuízo, a verdade é que o Tribunal laborou em erro já que:
i. A alternativa ao levantamento do efeito suspensivo do Ato de Adjudicação proposta pela RECORRENTE é legalmente admissível, existindo, como se demonstrou, operadores devidamente licenciados para armazenar temporariamente os resíduos até que se decida o presente litígio; e
ii. O facto de a AdCL ter que recorrer a um procedimento de contratação pública para contratar os serviços de armazenamento de um desses operadores não se afigura como um constrangimento legal, mas simplesmente como um pressuposto normal da atividade da AdCL quando contrata com entidades terceiras.
C. No caso, a RECORRENTE demonstrou inequivocamente na sua Resposta (cfr. artigo 21.º da Resposta) que existem, pelo menos, quatro operadores que se encontram devidamente licenciados para proceder à armazenagem temporária de resíduos perigosos e que podiam (e podem) perfeitamente acolher temporariamente as lamas provenientes das ETARs de Cacia e e Espinho: (i) o CIRVER do …………………………………………………………, S.A., (ii) a …………………., (iii) a ………………. e (iv) o próprio CIRVER da RECORRENTE.
D.Assim, a RECORRENTE impugna a matéria de facto da Decisão, nos termos do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, aplicável ex vi n.º 3 do artigo 140.º do CPTA, visto que apesar de alegado e demonstrado, através da junção das licenças dos operadores (cfr. Docs. 1 a 4 da Resposta), o Tribunal a quo não deu como provado que o CIRVER do ……….., a ………….., a …………… e o CIRVER da RECORRENTE dispõe de licença para proceder ao armazenamento temporário de resíduos perigosos e podiam armazenar temporariamente as lamas incluídas no Lote 1 até ao final do presente processo, factos que devem ser dados como provados.
E. Termos em que deve o Tribunal ad quem, alterar a matéria de facto da Decisão, nos termos do n.º 1 do artigo 662.º do CPC, aplicável ex vi n.º 3 do artigo 140.º do CPTA.
F. O Tribunal a quo incorreu também, quanto a esta matéria, num erro de Direito, visto que:
iii. Ao abrigo da armazenagem preliminar, prevista na alínea c) do artigo 3.º do DL 178/2006, um produtor de resíduos pode contratar um operador para proceder à deposição controlada de resíduos nas suas instalações;
iv. Ainda que assim não se entendesse – o que não se admite e apenas à cautela se equaciona –, isso não significaria que a AdCL não poderia contratar um operador para proceder ao armazenamento temporário das lamas concursadas – o que é claramente contrariado pelas licenças supra analisadas –, mas apenas que essa operação se enquadraria então no conceito de “armazenagem” prevista na alínea b) do artigo 3.º do DL 178/2006.
G. A circunstância de a AdCL ter de recorrer a procedimentos de contratação pública para contratar com entidades terceiras não obsta à contratação célere das mesmas entidades terceiras e, portanto, não obsta à adoção da solução apontada pela RECORRENTE, sendo, ao invés, uma decorrência normal da aplicação do CCP à AdCL.
H. Com efeito, o CCP prevê diversos procedimentos adjudicatórios céleres (cfr alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º, artigo 155.º e alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 20.º, todos do CCP) que permitiriam à AdCL celebrar, num curtíssimo espaço de tempo, um contrato de prestação de serviços para armazenamento temporário dos resíduos, pelo que, ao contrário do invocado pelo Tribunal a quo, não se verificam quaisquer “constrangimentos legais associados à contratação de uma terceira empresa para prestação de um novo serviço”.
I. Tendo-se demonstrado que, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo na sua Decisão, a AdCL poderia contratar operadores para proceder ao armazenamento temporário dos resíduos, torna-se muito evidente que a Decisão não se poderá manter.
J. É que, como se demonstrou, os danos que poderão resultar da manutenção do efeito suspensivo do Ato de Adjudicação – prejuízos de natureza meramente pecuniária – mostram-se incomparavelmente inferiores àqueles que, de forma irreversível, resultam do seu levantamento – danos para o ambiente e para a saúde pública –, pelo que não se verificam os pressupostos contidos no n.º 4 do artigo 103.º-A do CPTA.
K. Assim, por todo o exposto, porque a Decisão padece dos erros supra mencionados, que foram, como se demonstrou, determinantes do sentido da mesma, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a Decisão e declarando-se improcedente o incidente de levantamento do efeito suspensivo do Ato de Adjudicação, apresentado pela AdCL..“

O Recorrido nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões: ”1º. Veio a Autora/Recorrente interpor recurso da decisão que ordenou o levantamento do efeito suspensivo do ato de adjudicação emanado pela Recorrida no âmbito do procedimento concursal em apreço nos autos.
2º. No seu requerimento de interposição de recurso, indica a Recorrente, embora sem qualquer fundamento, que ao mesmo deve ser atribuído efeito suspensivo.
3º. Na verdade, e conforme é entendimento unânime, a alínea b) do número 2 do artigo 143.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, deve ser interpretada no sentido de ser atribuído ao recurso sobre o levantamento do efeito suspensivo automático, efeito meramente devolutivo.
4º. Porquanto, o efeito suspensivo tem um verdadeiro alcance e função de tutela cautelar, e na génese da decisão quanto ao seu levantamento é já apreciada a concreta necessidade de executar de forma imediata o ato impugnado.
5º. Pelo que, em respeito pela unidade do sistema jurídico, outro não pode ser o entendimento que não o de atribuir efeito meramente devolutivo ao recurso, o que se requer.
6º. Entende a Recorrente que na decisão recorrida, o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que as Entidades por si indicadas na sua Resposta dispõem de licença para proceder ao armazenamento temporário de resíduos perigosos, e que podiam armazenar temporariamente as lamas incluídas no Lote 1 até ao final do procedimento.
7º. Entendendo ainda que o Tribunal incorreu num erro de direito por ter concluído que a Armazenagem Preliminar era legalmente inadmissível, tentando agora a Recorrente alargar o âmbito da sua pronúncia, entendendo que a armazenamento temporário que entende ser possível se subsuma ao conceito de «armazenagem preliminar», mas que, a assim não ser, sempre poderia enquadrar-se no conceito de «armazenagem», argumento não trazido aos autos em sede de 1.ª Instância.
8º. Não tem qualquer razão de facto ou de direito a Recorrente.
9º. Em primeiro lugar porque a Armazenagem Preliminar prevista na alínea c) do artigo 3.º do Decreto-lei 178/2006 trata-se da deposição dos resíduos no próprio local de produção, pelo próprio Produtor de resíduos, antes da entrega das mesmas à entidade que efetuará o seu transporte e deposição, o que implica não existir a transferência da responsabilidade sobre a gestão dos resíduos para qualquer Entidade Externa, e para o qual nenhuma das Entidades indicadas está licenciada.
10º. Nem poderia estar, porque se trata de um armazenamento feito pelos Produtores de resíduos que estão dispensados de obter licença para esse efeito, e não pelos Operadores de Resíduos como são a Recorrente, a …………….., a ………………. e a ……………… indicados pela Recorrente.
11º. Estas empresas não estão licenciadas para realizar a armazenagem preliminar, uma vez que a licença que lhes é concedida é para a operação de valorização de resíduos à qual é atribuída a nomenclatura R13, que, nos termos do Anexo II daquele Decreto-lei 73/2011, respeita ao «Armazenamento de resíduos destinados a uma das operações enumeradas de R1 a R12 (com exclusão do armazenamento temporário, antes da recolha, no local onde os resíduos foram produzidos) (5)»., sendo que, na nota 5 à referida nomenclatura podemos ler: «Por “armazenamento temporário” entende-se o armazenamento preliminar, nos termos da alínea c) do artigo 3.º».
12º. Ou seja, da conjugação do referido diploma e das licenças juntas pela Recorrente aquando da sua Resposta, retira-se sem margem para dúvidas que a licença que foi atribuída àquelas Entidades, corresponde à operação de valorização ou eliminação dos resíduos R13, ou seja, aquelas Entidades estão apenas licenciadas para proceder ao armazenamento dos resíduos depois de lhes serem entregues pelo produtores, e antes do seu tratamento, o que, reforça-se, não corresponde à figura da Armazenagem Preliminar referida na alínea c) do artigo 3.º do Decreto-lei 178/2006, e alegada pela Recorrente na sua pronúncia.
13º. O mesmo é dizer que contratar um Operador de Resíduos não é possível no âmbito do quadro disciplinador da Armazenagem Preliminar – porque estava a Recorrida impedida de transferir para este Operador a responsabilidade pelos resíduos, e porque aqueles operadores não têm licença para esse efeito.
14º. E também não podia a Recorrida, proceder por si própria àquela Armazenagem Preliminar, na medida em que não tinha, como não tem, condições físicas para o fazer.
15º. Porquanto, as instalações da Recorrida não dispõem de espaço suficiente para proceder às intervenções de impermeabilização e contenção que são necessárias para criar condições à Armazenagem Preliminar das Lamas produzidas, na medida em que nos 800 m² disponíveis na ETAR de Cacia, só permitem a criação de condições para armazenar 800m³ de lamas, sendo que a produção da Recorrida chegou no ano de 2018 às 8.648 toneladas, o que, além disso, implicava uma delonga e custos consideráveis.
16º. Também não consegue a Recorrida entender, nem se pode aceitar, a alegação da Recorrente sobre a possibilidade de enquadrar tal «serviço de armazenamento» no conceito de Armazenagem prevista na alínea b) do Decreto Lei n.º 178/2006, desde logo porque tal alegação não foi trazida aos autos aquando da Resposta oferecida pela Recorrente, ali Autora, no âmbito do incidente deduzido para levantamento do efeito suspensivo automático do contrato, onde a Recorrida peticionou que fosse ordenado à Recorrida: «(…) que se abstenha de celebrar qualquer contrato que tenha por objeto a gestão das lamas sub judice, com exceção do contrato que vise a armazenagem preliminar das lamas, nos termos da alínea c) do artigo 3.º do Decreto lei 178/2006.»
17º. Pelo que, tal hipótese não tinha, nem poderia ser apreciada pelo Tribunal a quo, nem cabe por isso no âmbito do presente recurso.
18º. Mesmo que assim não fosse, a «armazenagem» conforme é entendida na alínea b) do artigo 3.º do Decreto-Lei 178/2006 é coisa diferente da Armazenagem Preliminar, como supra se disse, e trata-se já de uma verdadeira Operação de Valorização de Resíduos, classificada no mapa anual de resíduos.
19º. Ou seja, esta Armazenagem não é um mero acondicionamento provisório das Lamas, como parece julgar a Recorrente. Ela implica a prévia classificação do resíduo, ou seja, a definição concreta do Produtor sobre se se trata de resíduo perigoso ou não perigoso, e a sua efetiva entrega a um Gestor de Resíduos com a transferência da responsabilidade sobre os mesmos.
20º. Neste caso, com a entrega das lamas passa a ser o Gestor de Resíduos o responsável pela cadeia de valorização dos resíduos, e consequentemente, o Produtor (aqui a Recorrida), deixa de ter controlo legal e operacional sobre essa valorização, não mais podendo interferir ou alterar a sua classificação ou influir no tratamento final que lhes é dado.
21º. Como operação de gestão de resíduos que é, é destinta daquela que a Recorrida quis contratar, e também é distinta da figura de armazenagem preliminar chamada à colação pela Recorrente no âmbito da sua resposta, mas o recurso a esta operação também não se mostra viável na solução da questão em apreço nos autos.
22º. Porquanto, sendo já uma operação de gestão de resíduos, a «Armazenagem» implica a classificação prévia dos resíduos pela Recorrida, e o seu tratamento mediante essa mesma classificação.
23º. Ora, a Recorrida classificando os resíduos como resíduos não perigosos – como são na verdade, e como dispõe o quadro normativo e regulamentar vigente –, o seu tratamento e destino será o mesmo daquele que será dado no âmbito do Concurso Público Internacional em apreço nos autos.
24º. Pelo que, tal solução é inócua, e mesmo tendo sido trazida à colação em sede de 1.ª instância – o que não aconteceu, e por isso não deve se quer ser apreciada por este Tribunal – não alteraria em nada a douta decisão proferida por aquele Tribunal, que bem andou ao ordenar o levantamento do efeito suspensivo do contrato.
25º. Por tudo quanto se deixou alegado, logo se retira que bem andou o Tribunal a quo, quando concluiu pela inadmissibilidade legal da solução aventada pela Recorrente relativa à Armazenagem Preliminar.
26º. E também que a contratação de uma terceira entidade para a prestação de um novo serviço implicaria o recurso a um procedimento concursal, com maiores inconvenientes, designadamente o dispêndio de tempo e de recursos, tudo na procura de uma solução que legalmente não se pode admitir.
27º. Ainda mais quando a Recorrida tinha já concluído um procedimento concursal tendo em vista a celebração de um contrato de gestão das Lamas, em estrito cumprimento com os normativos legais aplicáveis.
28º. Além disso, não nos podemos olvidar que os danos que alega a Recorrente poderem vir a resultar da celebração de tal contrato, são meramente hipotéticos, não concretizados e não provados nos autos, insistindo a Recorrente no presente recurso em aventar um risco de contaminação dos riachos e aquíferos pela deposição dos resíduos em aterros, quando bem sabe que esses aterros, sejam eles licenciados para que efeito forem, são devidamente impermeabilizados, e os seus lixiviados são recolhidos e caracterizados, nunca existindo tal risco.
29º. Assim, e como bem concluiu o Tribunal a quo, era a interrupção do fornecimento do serviço, ou a contratação ad hoc da gestão das lamas por um preço 41% superior àquele que resulta do contrato – soluções de que de facto dispunha a Recorrida –, que «seria [m] gravemente prejudicial[is] para o interesse público ou gerador de consequências lesivas».
30º. E perante tais factos, devidamente sopesados, bem andou o Tribunal a quo ao decidir pelo levantamento do efeito suspensivo automático do ato de adjudicação do Concurso Público Internacional em apreço nos autos no que ao Lote 1 diz respeito, não merecendo a referida decisão qualquer decisão, e não tendo sido violada qualquer normativo legal vigente.”

O DMMP não apresentou a pronúncia.
Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, vem o processo à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
Na 1.º instância foram dados por provados os seguintes factos, que se mantém:
“1. Em 28.08.2017 foi publicado na Parte L – Contratos Públicos da II Série do Diário da República n.º 165 o anúncio de procedimento n.º 7315/2017, com o seguinte teor:
“1 – IDENTIFICAÇÃO E CONTACTOS DA ENTIDADE ADJUDICANTE
NIF e designação da entidade adjudicante:
…………………. – …………………………., S. A.
(…)
2 – OBJETO DO CONTRATO
Designação do contrato: Gestão de Lamas Desidratadas
Tipo de Contrato: Aquisição de Serviços
Valor do preço base do procedimento 2003068.98EUR
(…)
5 – DIVISÃO EM LOTES, SE FOR O CASO
Lote n.º 1
Designação do lote: Gestão de Lamas Desidratadas do Centro Operacional da Ria Norte
Preço base do lote: 544569.30EUR
(…)
Lote n.º 2
Designação do lote: Gestão de Lamas Desidratadas do Centro Operacional da Ria Sul
Preço base do lote: 234135.00EUR
(…)
Lote n.º 3
Designação do lote: Gestão de Lamas Desidratadas do Polo Mondego
Preço base do lote: 767149.68EUR
(…)
Lote n.º 4
Designação do lote: Gestão de Lamas Desidratadas do Centro Operacional de Olhavas
Preço base do lote: 457215.00EUR” – cf. doc. n.º 1 junto com a p. i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. Em 05.07.2018, foi deliberado pela Comissão Executiva da ré “por unanimidade, aprovar o Relatório Final de Análise de Propostas elaborado e subscrito pelo Júri do Procedimento (...) e, consequentemente a adjudicação à Concorrente ……………………., Lda, dos lotes n.ºs 1 e 2 (...)” – cf. fls. 420 do processo administrativo (“PA”) junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. Em 19.07.2018, foi deliberado pelo Conselho de Administração da ré “ratificar a deliberação da comissão executiva de 05/07/2018 que decidiu a aprovação do Relatório Final de Análise de Propostas elaborado e subscrito pelo Júri do Procedimento (...) e, consequentemente a adjudicação à Concorrente …………………………, Lda, dos lotes n.ºs 1 e 2 (...)” – cf. fls. 490 do processo administrativo (“PA”) junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4. A produção de lamas em resultado do tratamento de águas residuais é contínua – cf. acordo.
5. As ETAR de Cacia e Espinho não têm capacidade para armazenamento de lamas em quantidade superior às resultantes de 2 ou 3 dias de operação – cf. acordo.
6. Em 09.07.2018 a ré celebrou contrato com a empresa ………………………., Lda. para a gestão de lamas desidratadas produzidas no Centro Operacional da Ria Norte (que inclui as ETAR de Cacia, Espinho e Remolha), pelo preço unitário de € 25,00 por tonelada – cf. doc. 1 junto com o requerimento de 14.01.2018, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7. Na cláusula quarta do contrato identificado no n.º anterior estabelece-se que o respectivo prazo de execução é de 10 (dez meses), mais se estabelecendo no n.º 2 da mesma cláusula o seguinte: “O contrato cessará antes do decurso do prazo previsto no n.º 1, quando os pagamentos realizados ao adjudicatário perfaçam o montante correspondente ao preço contratual total 87.330,00€ (oitenta e sete mil, trezentos e trinta euros)” – cf. doc. 1 junto com o requerimento de 14.01.2018, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
8. A proposta adjudicada quanto ao lote 1, no âmbito do Concurso Público identificado em “1” apresenta um preço unitário de € 17,75 por tonelada – cf. relatório final constante de fls. 412 e ss. do PA, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.”

II.2 - O DIREITO
As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e contra-alegações de recurso e respectivas conclusões, são:
- aferir dos efeitos do presente recurso, que vêm fixados como suspensivos pelo despacho de 12-04-2019;
- aferir do erro no julgamento de facto por estar alegado e provado que os operadores CIRVER do ………………………., SA, a ……………………., a ……………….. e a …………… da ………….., são titulares de licenças para procederem ao armazenamento temporário de resíduos perigosos e poderiam armazenar temporariamente as lamas incluídas no Lote 1, até ao final dos autos principais;
- aferir do erro decisório e da violação do art.º 3.º, al. c), do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05-09, porque será legal e factualmente possível a um produtor de resíduos contratar um operador para proceder à deposição controlada de resíduos nas suas instalações;
- aferir do erro decisório e da violação do art.º 3.º, al. b), do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05-09, porque era possível às ……………………………, SA (ACL) recorrer a um procedimento de contratação pública célere, para armazenar temporariamente e até à decisão final do processo as lamas provenientes das ETAR de Cacia e de Espinho, pois existem pelo menos 4 operadores devidamente licenciados que poderiam proceder a tal armazenamento;
- aferir do erro decisório e da violação do art.º 103.º-A, n.º 1, do CPTA, por os danos que resultam da manutenção do efeito suspensivo da adjudicação - de natureza meramente pecuniária – serem incomparavelmente inferiores aos danos ambientais e de saúde pública que resultam do seu levantamento.

Pelo despacho de 12-04-2019, o recurso subiu com efeitos suspensivos.
Vem o Recorrido advogar que a este recurso deve ser atribuído efeito devolutivo, por aplicação do art.º 143.º, n.º 2, al. b), do CPTA.
Tem razão o Recorrido.
No art.º 103.º-A, n.º 1, do CPTA, o legislador previu um efeito suspensivo automático do acto de adjudicação por força da apresentação em juízo de uma acção impugnatória daquele acto.
Com tal efeito visa-se obstar provisoriamente, no iter processual da acção de contencioso pré-contratual, que se execute o acto adjudicatório (impugnado) e se prossiga com a celebração do contrato.

Trata-se de uma medida que funciona ope legis e que cumpre um efeito instrumental frente ao referido processo, do qual depende.
Requerido o incidente de levantamento daquele efeito, a decisão que aqui se toma mantém idênticas características, devendo, nessa mesma medida, ser entendida como uma decisão cautelar, pois continua a visar a garantia da utilidade da decisão que se venha a tomar a final do processo, definindo provisoriamente uma situação jurídica, à luz de critérios que convocam uma mera ponderação prejuízos, danos e interesses (e não de direitos, pois estes são apenas apreciados em sede do processo principal).
Nesta mesma medida, está aqui em causa o recurso de um incidente de uma medida cautelar, devendo aplicar-se o art.º 143.º, n.º 2, al b), do CPTA, fixando-se ao respectivo recurso efeitos devolutivos.
Neste sentido também já se decidiu no Ac. do TCAN n.º 00320/17.5BEMDL-S1, de 28-06-2018, n.º 00771/17.5BEAVR-A, de 12-01-2018, n.º 00019/17.2BEVIS-A, de 30-11-2017 e no Ac. do TCAS n.º 13747/16, de 24-11-2016.
Tal como se refere no Ac. do TCAN n.º 00019/17.2BEVIS-A, de 30-11-2017, aqui “estamos perante situação que em tudo se assemelha a uma decisão cautelar, tanto mais que é o próprio texto que faz a remissão para o artº 120º/2 do CPTA, preceito este aplicável à concessão de providências cautelares.
A decisão judicial tem um “alcance tutelar”.
Por outro lado, o mecanismo previsto neste artigo 103º-A vem substituir o recurso a processos cautelares, desde que esteja em causa a impugnação do acto de adjudicação. As providências relativas a procedimentos de formação de contratos, previstas no artº 132º do CPTA, respeitam a contratos que não estejam sujeitos ao regime da acção administrativa urgente. Ensina o Prof. Mário Aroso de Almeida: o artº 132º, nº 1, do CPTA refere-se exclusivamente a processos cautelares relativos aos procedimentos de formação de contratos não incluídos no elenco previsto no nº 1 do artigo 100º dos contratos abrangidos pelo âmbito de aplicação das Directivas da União Europeia em matéria de contratação pública - em Manual de Processo Administrativo, 2ª ed., 2016, pág. 460. Isto é, o preceito em causa (artº 103º-A), que tem ínsito um regime jurídico próprio consubstanciado na automaticidade da suspensão dos efeitos do acto de adjudicação impugnado e na previsão de um incidente motivado pelo requerimento para o seu levantamento, mais não faz, ao que aqui releva, do que substituir a anterior previsão do recurso a processos cautelares (desde que esteja em causa, repete-se, a impugnação do acto de adjudicação).
Por outro lado a previsão deste meio urgente visa, para além da tutela do princípio da concorrência, também garantir o início rápido da execução dos contratos administrativos e a respectiva estabilidade depois de celebrados. E é nessa perspectiva que surge o incidente processual em causa que leva à apreciação pelo juiz de todos os interesses em presença, tendo em vista a prolação de decisão que indefira ou defira o pedido de levantamento do efeito suspensivo efectuado, após ponderação dos interesses invocados. Isto tendo em vista, naturalmente, o início da execução do respectivo contrato.
Olhando para a referida Directiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007, que altera as Directivas 89/665/CEE e 92/13/CEE do Conselho, no que diz respeito à melhoria da eficácia do recurso em matéria de adjudicação de contratos públicos, temos que esta veio prever um prazo suspensivo mínimo, durante o qual a celebração do contrato em questão fique suspensa, independentemente do facto de a celebração ocorrer ou não no momento da assinatura do contrato. No seu artº 2º estabelece-se o seguinte:
“1. Os Estados-Membros asseguram que as medidas tomadas relativamente aos recursos a que se refere o artigo 1.º prevejam poderes para:
a)Decretar, no mais curto prazo, mediante processo de urgência, medidas provisórias destinadas a corrigir a alegada violação ou a impedir que sejam causados novos danos aos interesses em causa, designadamente medidas destinadas a suspender ou a mandar suspender o procedimento de adjudicação do contrato público em causa ou a execução de quaisquer decisões tomadas pela entidade adjudicante;
b)Anular ou mandar anular as decisões ilegais, incluindo suprimir as especificações técnicas, económicas ou financeiras discriminatórias que constem do convite à apresentação de propostas, dos cadernos de encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o procedimento de adjudicação do contrato em causa;
c)Conceder indemnizações aos lesados por uma violação.
2.Os poderes referidos no n.º 1 e nos artigos 2.º-D e 2.º-E podem ser atribuídos a instâncias distintas responsáveis por aspectos diferentes do recurso.
3.Caso seja interposto recurso de uma decisão de adjudicação de um contrato para um órgão que decida em primeira instância, independente da entidade adjudicante, os Estados-Membros devem assegurar que a entidade adjudicante não possa celebrar o contrato antes de a instância de recurso ter tomado uma decisão, quer sobre o pedido de medidas provisórias, quer sobre o pedido de recurso. (…)”
Ora, deste nº 3 da Directiva acabado de citar, retira-se que se pretende garantir a efectividade da tutela jurisdicional dos interessados, impondo-se, na sequência de atempada impugnação, um período suspensivo mínimo para que “a entidade adjudicante não possa celebrar o contrato”. Mas, esse período durará até “a instância de recurso [órgão que decida em primeira instância] ter tomado uma decisão, quer sobre o pedido de medidas provisórias, quer sobre o pedido de recurso”. O que significa, transpondo agora a matriz normativa de referência traçada na Directiva para a realidade do caso posto, que o referido efeito suspensivo durará até à decisão do tribunal que se pronuncie sobre o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático; ou seja, o efeito suspensivo previsto no nº 1 do artº 103º-A do CPTA durará até e só até à decisão incidental a que se reporta o nº 4 do mesmo artigo. Tal equivale a dizer que a suspensão durará até à decisão de primeira instância que conheça do incidente, no caso em concreto, indeferindo-o, e não para além desta.
A solução propugnada encontra, aliás, e na sequência do que bem advoga o Recorrido, a propósito da natureza cautelar desta decisão de levantamento do efeito suspensivo automático, lugar paralelo no artº 143º/2/b) do CPTA, prevendo-se aí o efeito meramente devolutivo ao recurso jurisdicional que tenha por objecto decisões respeitantes a processos cautelares e respectivos incidentes. A regra jurídica é hoje clara a este respeito.
Assim sendo, temos para nós que por via da interpretação extensiva do citado artº 143º/2/b) do CPTA se alcança a solução que é imposta pelo quadro jurídico de referência. A interpretação extensiva, por sua vez, também leva em consideração a mens legis, ampliando o sentido da norma para além do contido na sua letra, demonstrando-se que a extensão do sentido está (ainda) contida no espírito da lei- aduziu o Recorrido e aqui reitera-se.
Como ensina Oliveira Ascensão, “se o sentido ultrapassa o que resulta estritamente da letra, deve-se fazer interpretação extensiva. // (…) o intérprete deve procurar uma formulação que traduza correctamente a regra contida na lei” (em O Direito, Introdução e Teoria Geral, 4ª ed. revista, 1987, pág. 349), pelo que, e sem prejuízo do que se deixou estabelecido supra relativamente a ser sujeito interessado na alteração do efeito suspensivo do recurso o Recorrido, que foi a parte vencedora (o que deste modo se torna, em certa medida, redundante), também a alínea b) do número 2 do citado artigo 143º do CPTA comporta na sua previsão legal a decisão proferida ao abrigo do artº 103º-A/4 do CPTA (de deferimento ou de indeferimento do pedido de levantamento do efeito suspensivo automático previsto no nº 1).
Nesta linha de entendimento concluiu e, quanto a nós bem, o Tribunal a quo, pelo efeito devolutivo, no seguimento, aliás, do Acórdão do TCA Sul de 24/11/2016 em que se suportou.
É que o efeito útil da decisão recorrida ficaria desde logo em causa se o recurso tivesse efeito suspensivo; até porque a decisão do tribunal para o qual se recorre demorará a ser adoptada e, em grande parte dos casos, só será tomada depois de julgada a acção principal de contencioso pré-contratual, ou muito perto dela, permitindo a paralisação dos actos de adjudicação por vários meses mesmo quando existem graves prejuízos para o interesse público, como é o caso aqui relatado.
Também António Cadilha defende e aborda a questão do efeito devolutivo deste tipo de recurso em “O efeito suspensivo automático da impugnação de atos de adjudicação (art. 103.º-A do CPTA): uma transposição equilibrada da Diretiva Recursos?”, nos Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 119, setembro/outubro de 2016 ( págs. 12/14).”
Fixa-se, assim, o efeito devolutivo ao presente recurso.

Na presente acção de contencioso pré-contratual discute-se a legalidade do acto de adjudicação, tomado no final do concurso público para gestão de lamas desidratadas produzidas por um conjunto de estações de tratamento de águas residuais sob a gestão da ……………….
Nessa acção, a …………. considera que as lamas desidratadas que foram incluídas no lote 1 do referido concurso público recebem águas residuais industriais, provenientes das ETAR de Cacia e de Espinho, pelo que devem ser classificados como resíduos perigosos e deve ser exigido, nos termos concursais, para os respectivos operadores, a necessária licença para a realização de operações de gestão de resíduos perigosos. Diz a ……………, que tal exigência não foi feita no concurso, que classificou aquelas lamas como resíduos não perigosos e, consequentemente, apenas exigiu aos concorrentes a titularidade de licença para a realização de operações de gestão de resíduos não perigosos.
À contrário, a ……. vem dizer que atendendo ao art.º 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 152/97, de 19-06, a mistura de águas residuais domésticas com industriais implica a classificação daquelas águas em residuais urbanas e não perigosas, sob o cod. LER 19 08 05, inexistindo, no caso, indícios de perigosidade nessas águas, por as análises técnicas que foram efectuadas assim também o não indicarem.
Entretanto, a ……….. veio requerer o levantamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação, pedido que foi deferido pela decisão ora recorrida.
Para o efeito, na decisão em recurso entendeu-se que estava em causa a execução de um serviço público essencial, que se exigia prestado de forma permanente e contínua, cuja interrupção seria causadora de prejuízos em termos de salubridade, ambiente e saúde pública. Entendeu-se, também, que a eventual armazenagem preliminar dos resíduos, em cumprimento do previsto no art.º 3.º, al, c), do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05-09, era uma solução inviável, por se verificar uma incapacidade de armazenamento nas instalações da ……… e que a celebração de um contrato com uma terceira empresa para esse serviço também se mostrava uma solução imprestável, atendendo aos tempos que se exigem para a abertura do correspondente procedimento contratual. Entendeu-se na decisão recorrida, ainda, que a celebração de um novo contrato ad hoc com a ………….., adjudicatária no concurso, aqui Contra-interessada, para prestação do serviço de gestão de lamas desidratadas, a um preço 41% superior ao concursado, nenhuma vantagem trazia, por não se acautelar melhor os riscos que vinham invocados na acção e ser muito gravoso ao interesse público em termos monetários.
Com este enquadramento, através do presente recurso vem o Recorrente invocar um erro decisório, no julgamento de facto e de direito, alicerçando a suas invocações, essencialmente, no erro de raciocínio do Tribunal, por o cerne dos autos versar sobre uma realidade que ficou ostracizada na decisão recorrida, a relativa à possibilidade de os resíduos em causa serem perigosos e estarem a ser encaminhados para operadores que não os tratam como tal e não têm licença para operar nesse segmento.
Nessa mesma medida, o Recorrente vem dizer que estava alegado e provado nos autos que os operadores CIRVER do …………, a …………., a ……………. e a ……….. da ………….., são titulares de licenças que lhes permitem armazenar temporariamente resíduos perigosos e que poderiam armazenar temporariamente as lamas incluídas no Lote 1, até ao final dos autos, facto que não foi dado por provado na decisão recorrida e relevava para a apreciação deste incidente.
Diz o Recorrente, que o referido facto ficou provado por via das licenças que fez juntar aos autos como docs. 1 a 4 da sua resposta.
Considera o Recorrente, que estando provado tal facto torna-se evidente a existência de um erro decisório e a violação do art.º 3.º, al. b), do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05-09, pois seria possível à ……… recorrer a um procedimento de contratação pública célere para armazenar temporariamente e até à decisão final do processo as lamas provenientes das ETAR de Cacia e de Espinho, pois existem pelo menos aqueles 4 operadores devidamente licenciados, que poderiam proceder a tal armazenamento.

Nos termos dos art.ºs 636.º, n.º 2 e 640.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art.º 1.º do Código de processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), podem as partes, nas respectivas alegações, impugnar a decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto.
Mas o artigo 640.º do CPC estabelece como ónus a cargo da parte que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a necessidade de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Por seu turno, os art.ºs 640.º e 662.º do CPC, permitem a reapreciação e a modificabilidade da decisão de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância apenas nas situações em que o tribunal recorrido apresente um julgamento errado, porque fixou factos de forma contrária às regras da prova, ou os fixou de forma inexacta, ou porque os valorou erroneamente.
Aqui vale o princípio da livre apreciação da prova, remetendo-se para uma íntima convicção do julgador, formada no confronto dos vários meios de prova, que uma vez exteriorizada através de uma fundamentação coerente, razoável, plausível, que obedeça às regras da lógica, da ciência e da experiência comum, torna-se uma convicção inatacável, salvo para os casos em que a prova deva ser feita através de certos meios de prova, que apresentem uma determinada força probatória.
Nestes termos, a impugnação da matéria de facto e a modificabilidade da mesma pelo Tribunal superior não visa alterar a decisão de facto fundada na prova documental ou testemunhal, apenas porque a mesma é susceptível de produzir convicções diferentes, podendo ser diversa a tomada no Tribunal superior daquela que teve o Tribunal da 1.ª instância. Diferentemente, este Tribunal superior só pode alterar a matéria de facto porque as provas produzidas na 1.ª instância impunham, decisiva e forçosamente, outra decisão diversa da aí tomada (cf. art.º 662.º do CPC).
Portanto, para a modificação da matéria de facto é necessário que haja uma dada matéria de facto que foi identificada e apreciada pelo Tribunal de 1.ª instância e que este tenha exteriorizado a sua convicção na fixação da matéria provada e não provada. Só depois, se face às provas produzidas e para as quais o Recorrente remete, se impuser forçosamente decisão diversa da tomada pela 1.ª instância, há que alterar aquela. Mas terá que se tratar de uma prova firme, indiscutível ou irrefutável, que necessariamente abala a convicção que o Tribunal de 1.ª instância retirou da prova produzida.
Pretende o Recorrente que seja aditado um facto à matéria provada, que dê por assente que as empresas CIRVER do …………, a ………….., a …………….. e o CIRVER da ……………, dispõem de licença para proceder ao armazenamento temporário de resíduos perigos e que podiam armazenar temporariamente as lamas incluídas no Lote 1, até ao final do presente processo.
Esta alegação não procede.
Não procede, em primeiro lugar, porque a prova do indicado facto pressupõe uma realidade incerta, relativa ao tempo de duração do processo principal, que não poderia ficar provada nos termos em que se pretende, por se desconhecer o tempo de duração do indicado processo. Ou seja, o que se poderia provar nos autos era apenas a capacidade de armazenamento das indicadas empresas num dado hiato temporal, a par com a prova de um tempo estimado para o termo da acção de contencioso pré-contratual, não a realidade certa e segura que o Recorrente pretende ver aditada.
Depois, o invocado facto, para relevar, pressupunha também que se alegasse e provasse a quantidade de resíduos que num dado tempo se previam produzidos e a precisar de armazenamento. Ora, esta indicação não ficou assente nos autos, desconhecendo-se quantos resíduos do lote 1 são produzidos em dada unidade temporal, para a partir daí se poder extrapolar acerca da capacidade de armazenamento que seria necessário. Dos autos apenas resulta alegado – mas não provado – que em 2018 a ETAR da Cacia produziu 8648 toneladas de lamas.
Em terceiro lugar, a prova do indicado facto também não resulta inelutável a partir dos documentos que se juntaram, tal como o ora Recorrente alega.
Apreciados os documentos juntos, a partir dos mesmos apenas se retira com segurança, relativamente à empresa ………….. da CIVER, que figura no título único ambiental (TUA) com um Código de Actividade económica (CAE) que lhe permite tratar e eliminar resíduos perigosos e não perigosos. Quanto à licença para armazenar e capacidade de armazenamento, tratar-se de realidades que não ficam claramente provadas através do que vem inscrito no indicado TUA.
Já o TUA emitido em nome da …………., refere apenas a CAE para tratamento e eliminação de resíduos perigosos. No que concerne ao armazenamento, não resulta manifesto do indicado documento que detenha CAE para o efeito ou a correspondente capacidade de armazenamento.
Por seu turno, o TUA titulado pela …………………………………, SA, indica um CAE apenas a “recolha de outros resíduos não perigosos”.
Quanto à ………………………., Lda, apresenta uma licença ambiental para a “Eliminação de Resíduos Perigosos e Armazenamento Temporário de Resíduos Perigosos e não Perigosos”, mas dai não se infere com segurança a capacidade de armazenagem de tais resíduos.
Por último e com maior relevo, verifica-se que o indicado facto também não é de todo essencial para a decisão a tomar.
Assim, claudica o invocado erro no julgamento de facto.

Nos termos dos art.ºs. 120.º, n.º 2, 103.º-A, n.ºs. 2 e 4, do CPTA e 342.º, n.º 1, do Código Civil (CC), para que proceda o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação, exige-se que esteja alegado pela Entidade demandada (ou pelos Contra-interessados) e que resulte provado nos autos que tal efeito provoca um grave prejuízo para o interesse público ou que daí derivam consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos. Verificados tais prejuízos ou consequências, há, depois, que fazer um juízo ponderativo entre todos os interesses envolvidos – públicos e privados – que se orienta por um critério de proporcionalidade, passando a aferir-se se os danos que resultariam da manutenção do indicado efeito são superiores aos que venham a resultar do seu levantamento. Concluindo-se pela superioridade dos danos resultantes da manutenção do efeito suspensivo automático face aos que advêm do seu levantamento, então, há que deferir o pedido de levantamento.
Este novo instituto tem por base o regime instituído na Directiva 2007/66/CE, de 11-12-2007 (Directiva Recursos), que nos considerandos 22 e 24 refere o seguinte: “No entanto, para assegurar a proporcionalidade das sanções aplicadas, os Estados-Membros podem permitir que a instância responsável pela decisão do recurso não ponha em causa o contrato ou lhe reconheça determinados efeitos, ou todos eles, caso as circunstâncias excepcionais do caso em apreço exijam o respeito de certas razões imperiosas de interesse geral. Nesses casos deverão, em vez disso, ser aplicadas sanções alternativas. A instância de recurso independente da entidade adjudicante deverá analisar todos os aspectos relevantes a fim de estabelecer se existem razões imperiosas de interesse geral que exijam a manutenção dos efeitos do contrato (…)
O interesse económico na manutenção dos efeitos do contrato só pode ser considerado razão imperiosa se, em circunstâncias excepcionais, a privação de efeitos acarretar consequências desproporcionadas. No entanto, não deverá constituir razão imperiosa o interesse económico directamente relacionado com o contrato em causa”.
Com o efeito suspensivo do acto de adjudicação visa-se, assim, tornar efectiva a via contenciosa, garantindo ao respectivo impugnante o poder de fazer paralisar a contratação em curso, obstando à celebração e execução do contrato e, dessa forma, à eventual lesão do interesse que se quis acautelar por via da interposição da correspondente acção. Ou seja, com tal efeito suspensivo pretende-se impedir a ocorrência de situações de facto consumado, decorrentes da celebração e execução do contrato, e assegurar, caso a acção venha a ser ganha, que o referido impugnante tem uma real hipótese de vir a executar o contrato em questão.
Pressupõe-se, portanto, que quem impugna um acto pré-contratual tem à partida o direito a ver o procedimento concursal imediatamente suspenso, até que a correspondente acção seja definitivamente dirimida, situação que só pode ser invertida em situações atípicas ou extraordinárias, quando ocorram prejuízos ou danos graves e claramente desproporcionais para os interesses públicos ou contrapostos.
Em suma, conforme o preceituado no art.º 103.º-A, n.ºs. 2 e 4, do CPTA, o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático só pode ser julgado procedente quando:
(i) a manutenção dos efeitos suspensivos do acto de adjudicação implique um grave prejuízo para o interesse público ou produza consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos;
(ii) e, ainda, se feito um juízo de proporcionalidade, se verificar que os danos que resultariam da manutenção do indicado efeito para os interesses da Entidade demandada ou dos Contra-interessados são superiores aos que venham a resultar do seu levantamento para o autor da acção de contencioso pré-contratual.
No que concerne à alegação - e prova - do preenchimento dos pressupostos para o deferimento do pedido de levantamento do efeito suspensivo, competem ao respectivo requerente, isto é, competem à Entidade demandada ou aos Contra-interessados.
Por seu turno, alegado o preenchimento dos indicados pressupostos pelo requerente do pedido, o A. na acção poderá contraditar os factos que fundam o invocado grave prejuízo para o interesse público, ou a verificação das consequências lesivas claramente desproporcionadas, ou a existência de danos superiores para a Entidade demandada ou para os Contra-interessados com a manutenção do efeito suspensivo, face àqueloutros que o A. defende na acção.
Ora, face à matéria factual que ficou provada na sentença recorrida, no caso em apreço não é possível concluir pela verificação dos indicados pressupostos para o levantamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação, pois nos autos não ficou provada nem a existência de um grave prejuízo para o interesse público, nem a verificação de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, nem ficou certo que os danos que resultam da manutenção do efeito suspensivo são superiores aos que venham a resultar do seu levantamento.
Como decorre das alegações da …………, o concurso em questão foi aberto na sequência de anteriores contratos semelhantes, cujo prazo de execução havia terminado no final de 2017.
Tendo ocorrido uma delonga no concurso, a ………. celebrou com a ora Contra-interessada, em 09-07-2018, um contrato ad hoc para a gestão das lamas desidratadas, para que estas fossem tratadas na pendência do concurso (atrasado).
Porque se terá produzido mais resíduos que as quantidades estimadas, a ……. diz que o referido contrato está prestes a esgotar-se. Daí que a ………. invoque uma necessidade real e urgente em avançar com a adjudicação neste último concurso público, sob pena de ter que renovar a anterior contratação ad hoc, agora com um preço bem superior ao que resulta da adjudicação havida no concurso público.
Ora, como ressalta à evidência, a mera circunstância de se estar frente a uma prestação de serviços que se pretende efectuada de forma tendencialmente permanente e contínua, não é, só por si, uma razão para se concluir pelo preenchimento do conceito de grave prejuízo para o interesse público. Se assim se entendesse estar-se-ia, nas mais das vezes, a permitir o levantamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação para todos os fornecimentos que se pretendessem feitos de forma permanente e contínua.
Da mesma forma, a invocação da necessidade de ter que celebrar um contrato temporário por um preço superior ao que resulta do acto de adjudicação, não preencherá, em si mesmo, o conceito de grave prejuízo para o interesse público, por a Directiva 2007/66/CE, de 11-12-2007, afastar essa ideia nos considerandos 22 e 24.
Porém, já no que concerne à alegada impossibilidade de armazenamento temporário das lamas desidratadas, há que deter-nos em tal invocação, aferindo, à luz da factualidade provada se a mesma pode reconduzir-se ao tal conceito de prejuízo grave.
Quanto à possibilidade aventada pela A. e Recorrente de se poder proceder a um armazenamento preliminar das lamas, nos termos do art.º 3.º, al. c), do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05-09, aceita-se, face aos factos provados, que se trata de uma hipótese impossível. Como decorre do regime legal aplicável, esse armazenamento teria de ser feito, necessariamente, no próprio local da produção dos resíduos. Ora, dos factos provados resulta assente que as ETAR de Cacia e Espinho não têm capacidade imediata para tal.
No entanto, face à factualidade provada já não se pode afastar a hipótese de armazenamento temporário das lamas desidratadas com recuso à contratação de um operador devidamente licenciado, tal como clama o ora Recorrente.
Na verdade, nos presentes autos não ficou provado nenhum facto que ateste que as indicadas lamas não possam ser transitoriamente armazenadas, designadamente, que não seja legal e factualmente possível à ………, enquanto produtor de resíduos, contratar um operador para proceder à deposição controlada de resíduos nas suas instalações.
Mais se mencione, que não obstante a ……. alegar que não dispõe de área livre suficiente para proceder a uma armazenagem preliminar e ter ficado provado que as ETAR de Cacia e de Espinho não têm capacidade para armazenamento de lamas em quantidade superior às resultantes de 2 ou 3 dias de operação, não figuram no elenco dos factos provados as quantidades totais de resíduos produzidos pela ……… nas indicadas ETAR. Da mesma forma, também não ficou dada por provada a alegação de que os operadores privados que vem indicados pelo A., ora Recorrente, não têm capacidade de resposta para armazenar as lamas produzidas pela ……, seja a que título for. Assim como não se indicou entre os factos provados que era impossível dar qualquer destino provisório aos resíduos.
Realce-se, que a Entidade demandada não impugnou a decisão recorrida, aceitando estar certo o correspondente julgamento da matéria de facto.
De notar, por fim, que o ………. alega – facto este que ficou provado – que desde o final de 2017 as lamas têm sido entregues para gestão à ora Contra-interessada, ao abrigo de um contrato celebrado ad hoc. O que significa, que a própria ……. - face à demora do procedimento concursal que agora vem impugnado - já antes recorreu a uma contratação mais simples e célere para acautelar esta mesma necessidade em termos meramente temporários.
Pelo exposto, considerando a factualidade que ficou dada por provada na decisão recorrida, teremos de concluir que nos presentes autos não está demonstrada a existência de um grave prejuízo para o interesse público, ou produção de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, caso não seja levantado o efeito suspensivo automático do acto de adjudicação.
Como acima se disse, a alegação e prova da existência de tais prejuízos ou consequências lesivas competia à Entidade demandada ou ao Contra-interessado.
Assim, não tendo ficado provados os factos a partir dos quais se possa inferir a existência dos indicados prejuízos ou consequências, o presente incidente tinha, fatalmente, de improceder.
Nesta mesma lógica, foi errado imputar ao A., ora Recorrente, o ónus de alegar e de fazer prova da inexistência de prejuízos graves para o interesse público, pois o efeito suspensivo automático do acto de adjudicação opera a seu favor e não ao inverso. Isto é, o A., ora Recorrente, tem a seu favor o dito efeito. Logo, para proceder o levantamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação, era à ………. que incumbia provar a verificação dos pressupostos do art.º 103.º-A, n.ºs. 2 e 4, do CPTA. Não estando feita esta prova, teria de claudicar a sua pretensão.
Consequentemente, também não faz sentido a discussão acerca da viabilidade ou inviabilidade das várias soluções preconizadas pelo A., ora Recorrente, para se justificar a procedência do pedido de levantamento dos efeitos suspensivos requeridos pela Entidade Demandada, pois era a esta Entidade que incumbia alegar e fazer prova que não lhe era possível, de forma alguma, ou que lhe era muito oneroso não prosseguir de imediato com a execução do acto de adjudicação e com a consequente celebração do contrato de gestão de resíduos.
No mais, tal como refere o Recorrente, existem diversos procedimentos de contratação pública que permitem uma contratação rápida, porque urgente, não sendo esta legislação, em si mesma, um óbice à celebração de um contrato temporário.
No que concerne aos custos acrescidos e decorrentes da necessidade de se celebrar um contrato – designadamente para a armazenagem dos resíduos – durante o tempo em que que decorrer a presente acção, como acima se indicou, não deve tal interesse económico ser necessariamente entendido como um grave prejuízo para o interesse público.
Em suma, face à prova feita nestes autos não se pode concluir que seja impossível ou excepcionalmente oneroso recorrer a um operador devidamente licenciado para proceder ao armazenamento das lamas desidratadas – nomeadamente em pilhas ou medas - nas suas instalações, até que a acção principal de que este incidente depende estiver terminada.
Como já se referiu, com os efeitos suspensivos do acto de adjudicação – ou da execução do contrato, quando este já tenha sido celebrado - pretende-se garantir o interesse (público) correspondente à própria legalidade ou respeito pela legislação nacional e comunitária em sede de contratação pública e assegurar uma tutela efectiva por banda dos particulares concorrentes, valores que foram eleitos pelo legislador como primordiais ou preponderantes em sede de contratação pública. Assim, só em casos limite ou excepcionais se considerou poder perigar a efectividade da tutela judicial, designadamente, porque se lhe retire os efeitos de “congelamento” da contratação em curso.
Logicamente, quando o legislador - europeu e nacional – impôs o regime da suspensão automática do acto de adjudicação e reduziu as possibilidades do seu levantamento aos casos excepcionais, pressupôs que todas as consequências naturais, normais, coevas, ou imediatamente decorrentes da não execução imediata do contrato seriam prejuízos que se assumiam como necessários e que se tinham como não tão relevantes quanto os interesses que se queriam proteger por via da aplicação do referido instituto da suspensão automática do acto de adjudicação.
Por conseguinte, só quando tais prejuízos excedessem a normalidade, ou se tornassem gravemente prejudiciais, ou claramente desproporcionais, haviam os mesmos de ser tomados em conta e ponderados frente aos interesses do impugnante do acto de adjudicação.
Logo, para que se possa afastar o indicado regime é necessário, primeiro, que a Entidade demandada ou os Contra-interessados venham alegar e provar a existência de tais efeitos extraordinários – gravemente prejudiciais ou de lesividade claramente desproporcional – e, depois, terão os mesmos que alegar e provar que os danos que para si resultam da manutenção do efeito suspensivo do acto de adjudicação são superiores aos que podem resultar para o A. da acção com a não suspensão desse acto. Ou seja, a Entidade demandada ou os Contra-interessados terão de alegar e provar que a não execução imediata do contrato provoca danos superiores àqueles que possam resultar da sua execução diferida. Terão a Entidade demandada e os Contra-interessados que alegar e provar que a impossibilidade de execução do contrato pelo A. na acção – uma vez tendo ganho a causa – e o consequente ressarcimento do seu prejuízo pela via indemnizatória - ao invés da reconstitutiva - é um dano inferior àquele que resultará da execução imediata do contrato por um outro concorrente, com os correspondentes efeitos dessa mesma execução imediata. Basicamente, terá de ser alegado e provado que a execução imediata do contrato por um outro concorrente é um interesse superior à perda dessa possibilidade pelo A. da acção e ao decorrente pagamento da correspondente indemnização por impossibilidade de execução de um (possível ou eventual) julgado anulatório.
Ora, nesta acção não só a ……… não alegou e provou aqueles prejuízos excepcionais, como ainda não logrou provar que a execução imediata do contrato pelo concorrente que ficou posicionado em 1.º lugar do acto de adjudicação, com a consequente situação de facto consumado e o eventual pagamento de uma indemnização ao A. desta acção, pela impossibilidade da reconstituição in natura, é um interesse superior ao deferimento do início da execução do contrato até ao trânsito em julgado desta acção – cf. art.ºs 103.º-A, n.ºs. 2, 4 e 120.º, n.º 2, do CPTA.
No pedido de levantamento do efeito suspensivo automático, a ……… vem aduzir que a interrupção do serviço de recolha, transporte e envio a destino final das lamas produzidas, por não estarem esses serviços devidamente acautelados por contrato, determinaria a necessidade de descarga das águas residuais no meio hídrico, sem tratamento, gerando situações impensáveis, quer do ponto de vista ambiental, quer no que respeita à salvaguarda da saúde pública. Mais aduz a …….., que não tem condições para assegurar a prestação de tal serviço após a cessação do contrato que celebrou temporariamente com a ………….. e que a celebração de um novo contrato temporário pode representar um acréscimo de 41% do preço em relação ao preço da proposta já adjudicada.
Quanto ao primeiro argumento aduzido pela ………, afigura-se falacioso, pois, no caso, não se está a discutir a gestão e o tratamento das águas residuais – a cargo da própria Entidade demandada – mas a posterior gestão das lamas desidratadas que provêm dessas águas residuais. Ou seja, nos presentes autos apenas se discute acerca de um concurso para gestão de lamas desidratadas produzidas por um conjunto de estações de tratamento de águas residuais sob a gestão da ……….. Está-se, portanto, apenas a discutir acerca do destino de tais lamas, se podem ser armazenadas temporariamente ou se têm de seguir imediato para um destino final, v.g. para aterro ou compostagem ou para valorização agrícola.
No demais, a Entidade demandada não provou nestes autos que não lhe sendo possível prosseguir com a celebração do contrato relativo à proposta já adjudicada fica na iminência de não poder continuar a tratar das águas residuais que gere.
Quanto à impossibilidade de celebração de um novo contrato em termos temporários porque a legislação de contratação pública a tal inviabiliza, trata-se de uma alegação que é desmentida pela própria celebração do anterior contrato com a ………………….
Ademais, através do regime de contratação pública, atendendo à urgência da situação, será sempre possível à ………. celebrar um contrato para salvaguardar temporariamente a situação por ajuste directo ou através de um outro procedimento mais célere.
No que diz respeito aos custos significativamente acrescidos de tal celebração temporária, face ao preço da proposta já adjudicada, também este argumento não pode justificar o afastamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação, sob pena de se defraudar o próprio fim que se pretendeu atribuir àquele efeito, como já se disse.
Mais se recorde, que a acção que dá mote a este incidente tramita como um processo urgente, com prazos abreviados. Seguindo o seu rito processual normal, tal acção terminará com a decisão de 1.ª instância, ou, eventualmente, após recurso para o TCA. Também, eventualmente, pode ocorrer um recurso de revista para o STA, mas aqui, apenas se verificados os requisitos apertados para esta 3.ª via de recurso. Por conseguinte, atendendo à forma processual utilizada, esta acção terá uma tramitação célere, que não será maior que 1 ano e meio ou 2 anos, no seu todo.
Sem embargo, no caso ora em apreciação, o efeito suspensivo do acto de adjudicação poderá cumprir outro objectivo, igualmente de defesa do interesse público e que deve ser tido por preponderante, relativo à garantia de que se irá dar um destino adequado aos indicados resíduos, caso os mesmos venham a ser classificados como perigosos por decorrência da acção pré-contratual.
Tal como já se referiu, nestes autos discute-se a caracterização e perigosidade de lamas desidratadas provenientes de águas residuais urbanas – que juntam águas domésticas com industriais. É sabido que as descargas de águas residuais que possam ser feitas por unidades industriais, ainda que monitorizadas, poderão não ser totalmente controladas pelas entidades oficiais. Nessa mesma medida, tal como se invoca nestes autos, as águas residuais urbanas podem, ou não, ser qualificadas de resíduos perigosos, atendendo aos seus níveis maiores ou menores de contaminação.
O A., ora Recorrente, invoca que as lamas desidratadas do lote 1 devem ser qualificadas como resíduos perigosos nos termos do Regulamento (UE) n.º 1357/2014 da Comissão, de 18-12-2014 e da alínea ll) do art 3.º do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05-09, por se terem verificado em análises realizadas em 2016 e 2017 que continham características cancerígenas, mutagénicas e ecotóxicas.
Neste enquadramento, na incerteza acerca da caracterização dos indicados resíduos, o levantamento do efeito suspensivo do acto de adjudicação, com a consequente contratação da gestão do lote 1 à Contra-interessada, que não terá licença para operar com resíduos perigosos e que os poderá destinar à valorização agrícola, muito provavelmente provocará maiores danos no ambiente, na saúde e na salubridade públicas, que aqueles que podem resultar de um eventual armazenamento das lamas desidratadas por um operador licenciado até que a acção principal de que este incidente depende estiver terminada.
Como já se frisou, a …….. não logrou provar no âmbito do presente incidente que os indicados resíduos não devam ser, de todo, caracterizados como perigosos. Ou seja, invocada tal perigosidade pelo A. fica em duvida sobre tal ocorrência.
Por conseguinte, em sede de ponderação dos vários interesses envolvidos, dever-se-á também considerar o interesse na prevenção antecipada de riscos para o ambiente, a saúde e a salubridade públicas, que ficarão melhor assegurados com a manutenção dos efeitos suspensivos do acto de adjudicação e a celebração de um contrato temporário para o armazenamento das lamas desidratadas, que com a atribuição, de imediato, da sua gestão à Contra-interessada, que poderá, desde logo, reintroduzi-los no meio ambiente por via da valorização que lhes dê para um fim agrícola.
Em conclusão, nestes autos não ficou provada a existência de uma situação de grave prejuízo para o interesse público ou a existência de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, por forma a preencher os critérios do art.º 103.º-A do CPTA.
Da mesma forma, nestes autos não está provado que os danos que resultam da manutenção do efeito suspensivo são superiores aos que venham a resultar do seu levantamento.
Pelo exposto, teremos de revogar a decisão recorrida e de determinar a improcedência do pedido formulado pela …….. para que seja levantado o efeito suspensivo automático do acto de adjudicação.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em fixar ao presente recurso efeitos devolutivos;
- em conceder provimento ao recurso interposto, revogar a decisão recorrida e julgar improcedente o pedido formulado pela …….. para que seja levantado o efeito suspensivo automático do acto de adjudicação, tomado no final do concurso público para gestão de lamas desidratadas produzidas por um conjunto de estações de tratamento de águas residuais sob a gestão da ………….;
- custas pelo Recorrido …… (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

Lisboa, 9 de Maio de 2019.
(Sofia David)

(Helena Telo Afonso)
[com declaração de voto quanto aos efeitos do recurso]

(Pedro Nuno Figueiredo)
[voto integralmente a decisão, revendo posição anteriormente assumida quanto aos efeitos do recurso]



Voto de vencido
Salvo o devido respeito pelo enquadramento jurídico que obteve vencimento, quanto ao efeito do recurso, manteria o despacho que o fixou, pelas seguintes razões:
A doutrina e a jurisprudência têm divergido sobre o efeito do recurso da decisão proferida sobre pedido de levantamento do efeito suspensivo automático(1), face à ausência de previsão legal expressa do mesmo.
No n.º 2, do artigo 143.º do CPTA ou em qualquer lei especial não foi expressamente reconhecido ao recurso interposto da referida decisão, o efeito meramente devolutivo. Assim, não estamos no âmbito de um processo cautelar, em que a decisão proferida - após apreciação dos requisitos do fumus boni iuris, periculum in mora e ponderação de interesses -, se for de procedência do processo cautelar será de decretamento da providência cautelar adequada a acautelar o efeito útil da sentença a proferir no processo principal. E se a decisão cautelar for de improcedência cessa a proibição de executar o acto - se a mesma ainda se mantiver, nos termos do estabelecido no artigo 128.º do CPTA-, o que sucede após apreciação dos referidos requisitos e ponderação de interesses, evitando-se, assim, que com o recurso interposto se protele, sem fundamento a execução do acto.
Ao invés, as decisões de levantamento do efeito suspensivo automático, como é evidente, retiram o efeito suspensivo automático ao acto de impugnação de decisão de adjudicação, ou seja, retiram a “tutela cautelar” concedida “ope legis” ao concorrente que impugnou o acto de adjudicação, sem apreciação – pelo menos como critério autónomo - do fumus boni iuris(2) e do periculum in mora, diferentemente do que ocorre nos processos cautelares.
Sendo que, perante uma decisão que tenha levantado o efeito suspensivo automático, nos termos do n.º 2 do presente artigo 103.º-A (que não é uma decisão proferida em processo cautelar ou respectivo incidente, como já se referiu), o autor da acção de impugnação não tem a possibilidade de solicitar a adopção de uma qualquer medida cautelar, destinada a acautelar o efeito útil da sentença de eventual procedência da pretensão deduzida no processo de contencioso pré-contratual.
Assim, se o efeito suspensivo automático tem um verdadeiro alcance cautelar, a decisão de levantamento do mesmo, não se revesta da mesma natureza e características de uma decisão proferida em processo cautelar, retirando a tutela “cautelar” conferida “ope legis” ao impugnante de uma decisão de adjudicação no âmbito do contencioso pré-contratual.
São, pois, distintas as situações e finalidades a acautelar, com as decisões nos dois “meios processuais” (incidente de levantamento do efeito suspensivo automático e processo cautelar), razão pela qual, na falta de previsão legal expressa de atribuição do efeito meramente devolutivo aos recursos da decisão de levantamento do efeito suspensivo automático – pois, só neste caso é que tem consequências a atribuição do efeito suspensivo ao recurso, na medida em que nas situações de não levantamento do efeito suspensivo automático o efeito do recurso é destituído de consequências práticas, pois, mantém-se o efeito suspensivo automático decorrente do acto de impugnação do acto de adjudicação -, se entende que o presente recurso não pode ter aquele efeito.
Assim, o efeito a atribuir ao recurso interposto da decisão recorrida que determinou o levantamento do efeito suspensivo automático previsto no artigo 103.º-A, n.º 1, do CPTA - na ausência de expresso reconhecimento pela lei de efeito meramente devolutivo -, é o efeito suspensivo, que é o efeito geral da interposição de recurso. No sentido de que o efeito dos recursos destas decisões é suspensivo, decidiu-se no acórdão deste TCA Sul, de 04-10-2018, proferido no processo n.º 722/18.0BELSB-S1(3).
Em face do exposto e aderindo à fundamentação do referido acórdão do TCA Sul, que aqui damos por reproduzida, conclui-se que o recurso interposto da decisão recorrida deveria ter efeito suspensivo, pelo que, manteria o despacho que atribuiu ao presente recurso efeito suspensivo.

Lisboa, 9 de Maio de 2019.

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(Helena Afonso)


1 Sobre a questão do efeito do recurso e divergências da doutrina e jurisprudência – cfr. Ana Gouveia Martins, in CJA n.º 124, “Efectividade da tutela cautelar”, págs. 17-19.
2 A propósito das divergências quanto ao critério da decisão do pedido de levantamento do efeito suspensivo automático, pode ver-se o acórdão do TCA Sul de 04-10-2017, proc. n.º 1329/16.1BELSB, consultável em www.dgsi.pt., como todos os acórdãos sem indicação de fonte.
3 Tal como, já havia sido anteriormente decidido no Ac. do TCA Sul de 24-11-2016, Proc. 919/16, consultável em www.dgsi.pt. No sentido de que ao recurso de decisão relativa a pedido de levantamento do efeito suspensivo automático deve ser atribuído efeito meramente devolutivo, pode ver-se o acórdão do TCA Sul de 24/11/2016, proferido no processo n.º 13747/16.