Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:6540/02
Secção:Contencioso Tributário
Data do Acordão:07/02/2002
Relator:Francisco Rothes
Descritores:IRC
LUCRO TRIBUTÁVEL
CUSTOS OU PERDAS DE EXERCÍCIO
FURTO DE MERCADORIAS EM ARMAZÉM
PROVA DO FURTO
RISCO SEGURÁVEL
Sumário:I- Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do CIRC, «O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3 é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste código».
II- No art. 23.º do CIRC enuncia-se, a título exemplificativo, as situações que podem integrar o grupo dos elementos negativos a relevar para efeitos de determinação do lucro tributável, consagrando como critério definidor que se consideram como custos ou perdas «os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora».
III- Sendo inequívoco que a existência de mercadorias é um valor positivo, porque se destinam à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material de mercadorias, seja a que título for, designadamente por furto, não pode deixar de ser considerada como realidade que foi «indispensável para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora».
IV- Assim, demonstrado que ficou o furto de mercadorias mantidas em armazém pela Impugnante e a impossibilidade de fazer com as seguradoras assumam contratualmente o risco por tal facto, nada obsta a que o valor desse furto seja considerado como custo ou perda para efeitos fiscais.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade denominada “C..., Lda.” (adiante Recorrente, Contribuinte ou Impugnante) recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) da sentença que julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectiva (IRC) do ano de 1991 e respectivos juros compensatórios, do montante de esc. 9.838.007$00, que lhe foi efectuada por a Administração tributária (AT) ter considerado que o montante de esc. 13.428.000$00 que a Contribuinte inscreveu na declaração de rendimentos respeitante àquele ano como “Perdas em existências”, respeitante ao desvio ilícito de mercadorias do seu armazém, não tem enquadramento no art. 23.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC) Todas as referências ao CIRC se reportam ao código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/1988, de 30 de Novembro., motivo por que procedeu à correspondente correcção do lucro tributável declarado.

1.2 Na petição inicial da impugnação a Contribuinte sustentou, em síntese:
- que tal verba não pode deixar de ser considerada como custo ou perda para efeitos fiscais, pois, devendo ela ser tributada pelo lucro real efectivo, como o impõe o art. 107.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e por referência à sua contabilidade, nos termos do art. 3.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CIRC, «assiste-lhe , naturalmente, o direito de levar essa perda à sua contabilidade, por forma a que a matéria colectável sobre que incide o IRS a liquidar possa ser correctamente apurada» As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, constituem transcrições.;
- que essa verba, resultante da perda efectiva que sofreu com o desvio ilícito de mercadoria que possuía em armazém se enquadra no art. 23.º do CIRC, «quando nele se reconhece ao sujeito passivo o direito de contabilizar como custos ou perdas os valores que “comprovadamente forem indispensáveis para a realização de proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora»;
- também porque o valor correspondente às mercadorias ilicitamente desviadas teve de ser suportado pela Impugnante «por provir de um risco não tomável pelas companhias de seguro (docts. nº 7 e 8)», o prejuízo sofrido pela Impugnante tem de ser aceite como custo ou perda;
- se «vier a ser por ela recuperado, total ou parcialmente, o prejuízo sofrido, então o valor que vier a receber será tributado em IRC como proveito do exercício respectivo»;
- no que respeita aos juros compensatórios que lhe foram liquidados, porque preencheu correctamente a declaração modelo 22 «nenhuma culpa lhe pode ser imputada pelo (eventual) retardamento na liquidação do imposto e sua entrega nos cofres do Estado, mesmo quando a ela houvesse lugar».

1.3 Na sentença recorrida, o Juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto enunciou a questão a decidir como sendo a de saber «Se o furto ou desvio de mercadorias se subsume à previsão do artº 23º, do CIRC, ou seja, se pode ser considerado custo ou perda para efeitos de tributação», questão que respondeu negativamente com a fundamentação que, em resumo, se segue:
- independentemente da comprovação do furto ou desvio, tal facto não pode ser considerado como custo ou perda, pois «não corresponde a evento relacionado, de qualquer modo ou a qualquer título, com a actividade desenvolvida, nem se trata de encargo imputável a essa mesma actividade»;
- a isso não obsta o princípio constitucional vertido no n.º 3 do art. 107.º da CRP, de que a tributação das empresas incidirá fundamentalmente sobre o rendimento real, pois, como resulta da lei «no que respeita à tributação das firmas, entre os dois sistemas típicos possíveis», o da tributação dos lucros reais e o da tributação dos lucros normais «a nossa Lei Fundamental optou pela primeira», sem prejuízo de nos caso em que não é possível conhecer com fiabilidade os resultados das empresas a tributação se fazer pelos lucros presumivelmente realizados, o que «é perfeitamente compreensível, já que, de outro modo, se correria o risco de se beneficiarem as empresas com gastos desnecessários ou supérfluos, em detrimento das que tivessem uma gestão rigorosa, séria e eficiente dos recurso disponíveis».

Quanto aos juros compensatórios a sentença considerou que haveria que ter-se em conta o teor do despacho proferido pelo Director de Finanças ao abrigo do disposto no art. 130.º do Código de Processo Tributário (CPT), que determinou que tais juros apenas deviam ser contados pelo período de 180 dias, uma vez que o atraso na liquidação decorria de erro evidenciado pela própria declaração, que foi apresentada em prazo legal.

1.4 O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.5 A Recorrente alegou e formulou as seguintes conclusões:
«
1ª - Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. 70/75 que julgou improcedente, por não provada, a impugnação da liquidação adicional, em IRC, ano de 1991, no montante de 9 838 007$00, constante da petição de fls. 2/38.
2ª - A questão a decidir no presente recurso pode resumir-se assim: Tendo a Recorrente suportado, no exercício de 1991, uma perda em mercadorias descaminhadas, de 13 428 000$00, poderá aquela verba ser levada a custos do exercício (custos ou perdas extraordinários) ? E recusando esse tratamento contabilístico-fiscal respeita-se o disposto no art. 104.º/2 da Constituição de 1976 ?
3ª - A Recorrente sustentou (e sustenta) que a consideração da referida perda como custo extraordinário do exercício é o tratamento fiscal que mais correctamente interpreta e aplica o regime constitucional e legal (lei ordinária) vigente na matéria.
4ª - Posição diferente é a da douta sentença recorrida que julgou não se poder “valorar como custo ou perda uma factualidade que não corresponde a evento relacionado, de qualquer modo ou a qualquer título, com a actividade desenvolvida, nem se trata de encargo imputável a essa mesma actividade” (cfr. fls. 73).
5ª - E julgou também que a não consideração daquela perda como custo do exercício não viola o art. 104.º/2 da Constituição de 1976 porque a utilização do termo "fundamentalmente" nesta disposição constitucional "marca a diferença", permitindo "que a tributação das empresas incida "fundamentalmente" (e não em termos absolutos) sobre o rendimento real" (cfr. fls. 74, ao cimo).
6ª - Sinceramente se pensa que a razão não está com a douta sentença recorrida.
7ª - Em primeiro lugar, por que a perda das mercadorias descaminhadas é, contrariamente ao que foi decidido, um evento estreitamente relacionado com a actividade desenvolvida pela Recorrente: porque ela vende, por grosso, artigos de cosmética e especialidades farmacêuticas, tem de os possuir em armazéns para satisfazer as encomendas dos seus clientes.
8ª - E a circunstância de os possuir depositados em armazém, fê-la correr o risco do descaminho de alguns desses produtos.
9ª - Para poder continuar a sua actividade teve a Recorrente de repor, em armazém, as mercadorias descaminhadas.
10ª - Suportou, assim, a Recorrente um duplo custo: o primeiro, correspondente à perda das mercadorias descaminhadas e o segundo, equivalente ao valor de reposição do stock para poder continuar a exercer a sua actividade.
11ª - É, deste modo, patente a existência duma estreita ligação entre o evento (descaminho de mercadorias do armazém da Recorrente) e a actividade desta (venda por grosso das mercadorias armazenadas).
12ª - Trata-se de um evento cujo risco a Recorrente não conseguiu (nem consegue) transferir para empresa seguradora autorizada a explorar o ramo.
13ª - Se, em teoria, todos os riscos são, tecnicamente, seguráveis, a verdade é que na prática há riscos cuja transferência as seguradoras não aceitam. Este é um deles !
14ª - Quando a lei fala em "eventos cujo risco seja segurável" (art. 41.º/l-e) do Código do IRC), está, evidentemente a reportar-se a riscos seguráveis no comércio normal de seguros (p.e., incêndio, acidente de viação, acidente de trabalho, etc.).
15ª - Flui, assim, evidente estar-se, no caso desta perda por descaminho de mercadorias, perante custos que foram “indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos (da Recorrente) sujeitos a imposto” - art. 23.º/1 do Código do IRC.
16ª - A entender-se de modo diferente, como entendeu a douta sentença recorrida, ficar-se-ia perante o absurdo de não se atribuir um custo às mercadorias descaminhadas !
17ª - Mais absurdo ainda, se possível, aquelas mercadorias desapareceriam como que por encanto dos registos contabilísticos da Recorrente, sem receberem ali qualquer tratamento no plano da contabilidade e da fiscalidade da empresa, ficando assim desprovidas de qualquer relevância na vida desta !
18ª - Em segundo lugar, a razão não está com a douta sentença decorrida porque a não consideração do valor das mercadorias descaminhadas como custo do exercício viola a regra da tributação das empresas tal qual a estabelece o art. 104.º/2 da Constituição de 1976.
19ª - E não tem razão aquela douta sentença quando, apoiada no termo "fundamentalmente" usado na sobredita disposição constitucional, entende que ele lhe permite recusar à Recorrente a consideração como custo do exercício valor das mercadorias descaminhadas.
20ª - Isso só podia ser assim se a contabilidade da recorrente não proporcionasse um sistema fiável de conhecimento dos seus resultados.
21ª - O que não é, nem nunca foi, o caso e jamais foi questionado pela Administração Fiscal ou censurado nos autos, pois a Recorrente tem a sua contabilidade organizada e montada em termos que permitem uma leitura fácil, analítica e fidedigna dos resultados, tal qual se exige às empresas actualizadas e eficientes.
22ª - De modo que, revelando a contabilidade da Recorrente a perda, em existências, no ano de 1991, no valor de 13 428 000$00, deve ela ser tratada (tal qual a Recorrente a tratou) como custo do exercício, sob a pena de não se estar a tributar o seu lucro real e efectivo, correspondente ao saldo apurado na conta de ganhos e perdas, violando-se o disposto nos arts. 104.º/2 da Constituição de 1976 e 19.º/3 da Lei n.º 106/88.
23ª - Quanto aos juros compensatórios, e em face do que fica precedentemente exposto, não deve subsistir a sua liquidação.
24ª - Decidindo como decidiu, a douta sentença recorrida não interpretou nem aplicou correctamente o art. 23.º/1 do Código do IRC, violando desse modo os arts. 104.º/2 da Constituição de 1976 e 19.º/3 da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, e inobservou o art. 80.º/1 do Código do IRC.

Nestes termos e nos mais, de direito, que sempre serão supridos no provimento do presente recurso, deve ser proferido acórdão que revogue a sentença de fls. 70/75, ordenando a anulação da liquidação adicional efectuada em IRC, no montante de 9 838 007$00, e a sua restituição à Recorrente, acrescido de juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º da Lei Geral Tributária, aplicada por remissão do art. 128.76 do Código do IRC, para que assim se cumpra a LEI e faça JUSTIÇA».

1.6 A Fazenda Pública contra-alegou, manifestando o seu acordo com a decisão recorrida, no sentido de que «o desaparecimento ou furto de mercadorias não é evento relacionável com a actividade desenvolvida, não sendo por isso susceptível de ser considerado como encargo tal como o define o artigo 23º, nº 1 do CIRC».
Mais considerou que «não resultou provado o facto alegado pela ora recorrente no artigo 25º da sua petição de impugnação de que a situação dos autos não é segurável, pelo que também não podem proceder as conclusões 11.ª a 14ª da alegação da recorrente».

1.7 O STA declarou-se incompetente em razão da hierarquia para conhecer do recurso, declarando competente para o efeito este Tribunal Central Administrativo (TCA), ao qual o processo foi remetido mediante requerimento da Recorrente.

1.8 O Representante do Ministério Público junto deste TCA emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, nos seguintes termos:
«Em nosso entender, a decisão não merece qualquer reparo.

Efectivamente, não ficou provado nos autos que tenha havido o alegado furto ou desvio de mercadorias porque tal facto não poderia ter sido levado em consideração.

Estamos inteiramente de acordo com as teses defendidas e adoptadas na decisão no que se refere ao enquadramento do furto ou desvio da mercadorias nos encargos a que se refere o art. 23º Nº1 do CIRC, bem como no que se refere à violação do art. 104º, Nº 2, da CRP, nada se nos oferecendo acrescentar».

1.9 Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

1.10 As questões sob recurso, delimitadas pelas conclusões da Recorrente, são as seguintes:

1.ª - o valor de um furto pode ou não considerar-se como custo do exercício ?
2.ª - está demonstrado nos autos a existência do furto ?
3.ª - está demonstrado nos autos que o prejuízo resultante de furto não é segurável ?

* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

2.1.1 A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos, que ora se reproduzem ipsis verbis:
«
1- A sociedade impugnante exerce a actividade de “produção de cosméticos, comércio por grosso de especialidades farmacêuticas" - CAE 24520 - REV II;
2- em 20/10/94 foi efectuada pelos SPIT, através de análise interna à declaração mod. 22 de IRC do ano de 91, oportunamente entregue, uma correcção ao lucro tributável no montante de 13.428.000$00, de que resultou a liquidação adicional no valor de 9.838.007$00, sendo 6.544.447$00 de imposto e 3.293.560$00 de juros compensatórios;
3- na base desta correcção esteve o facto de não ser considerado como custo de exercício a regularização de existências, originada por alegado furto de mercadorias, eventualmente praticado por funcionários da aqui impugnante, no ano de 90 e nos três primeiros meses de 91;
4- a liquidação da soma atrás referida foi notificada à impugnante através da nota de cobrança nº..., com data limite de pagamento em 10/07/95;
5- a impugnante pagou aquele quantitativo em 10/07/95;
6- e, em 21/06/91, apresentou, na Directoria do Porto da Polícia Judiciária, uma participação-crime contra incertos, denunciando o desaparecimento de produtos armazenados, no valor de 13.428.000$00;
7- esta impugnação deu entrada na RF em 22/09/95».

2.2.1 Nos termos do disposto no art. 712.º do Código de Processo Civil (CPC), consideramos ainda provada a seguinte factualidade:

8- A sociedade ora Recorrente, ao proceder ao inventário físico das mercadorias em 31 de Dezembro de 1990 verificou que tudo indicava terem desaparecido ilicitamente do armazém 27.309 contos de mercadorias ao longo do ano de 1990 (cfr. cópia do relatório de auditoria apresentado pela Impugnante de fls. 19 a 29);
9- Para confirmar tal facto, a sociedade encerrou o armazém em Março de 1991 e, não só confirmou o desaparecimento de mercadoria naquele valor, como verificou que no primeiro trimestre do ano de 1991 tinha também ocorrido o desaparecimento ilícito de mercadorias no valor de 13.428 contos (cfr. o mesmo relatório);
10- Na sequência dos procedimentos de controlo instituídos pela sociedade, no mês de Abril de 1991 já não se verificou o desaparecimento de qualquer mercadoria (cfr. o mesmo relatório);
11- Embora não exista qualquer impedimento legal à celebração de contrato de seguro que cubra o risco de furto mercadorias de um armazém, as companhias de seguros não aceitam tal risco (cfr. os ofícios do Instituto de Seguros de Portugal, a fls. 61, e da “A ..., Companhia de Seguros, S.A.”, a fls. 65).
*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 SOBRE AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

A AT, no uso dos seus poderes de fiscalização e controlo das declarações, considerando que a Contribuinte tinha declarado indevidamente como custo de exercício a regularização de existências originada por furto de mercadorias, no montante de esc. 13.428.000$00, procedeu à correspondente correcção do lucro tributável declarado e ulterior liquidação adicional de IRC e respectivos juros compensatórios.
A referida correcção teve por base o entendimento de que o furto de mercadorias não é susceptível de ser considerado como custo ou perda de exercício para efeitos fiscais.

A Contribuinte insurgiu-se contra esse entendimento, impugnando judicialmente a liquidação com os seguintes fundamentos: que o desaparecimento ilícito de mercadorias do seu armazém não pode deixar de ser considerado como custo para efeitos fiscais, sob pena de ela não ser tributada pelo lucro real efectivo, como é imposição constitucional (cfr. art. 107.º, n.º 3, da CRP) e por referência à sua contabilidade, nos termos do art. 3.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CIRC; que essa verba, resultante da perda efectiva que sofreu com o desvio ilícito de mercadoria que possuía em armazém se enquadra no art. 23.º do CIRC, pois é de considerar como indispensável para a realização de proveitos ou para a manutenção da fonte produtora; que o valor correspondente às mercadorias ilicitamente desviadas teve de ser suportado pela Impugnante «por provir de um risco não tomável pelas companhias de seguro».

Na sentença recorrida não se deu razão à Contribuinte por se ter considerado, em síntese, que, independentemente da comprovação do furto ou desvio, tal facto não pode ser considerado como custo ou perda, pois «não corresponde a evento relacionado, de qualquer modo ou a qualquer título, com a actividade desenvolvida, nem se trata de encargo imputável a essa mesma actividade». Mais se considerou, sempre em síntese, que a este entendimento não obsta o princípio constitucional vertido no n.º 3 do art. 107.º da CRP, de que a tributação das empresas incidirá fundamentalmente sobre o rendimento real, pois, como resulta da lei «no que respeita à tributação das firmas, entre os dois sistemas típicos possíveis», o da tributação dos lucros reais e o da tributação dos lucros normais «a nossa Lei Fundamental optou pela primeira», sem prejuízo de nos caso em que não é possível conhecer com fiabilidade os resultados das empresas a tributação se fazer pelos lucros presumivelmente realizados, o que «é perfeitamente compreensível, já que, de outro modo, se correria o risco de se beneficiarem as empresas com gastos desnecessários ou supérfluos, em detrimento das que tivessem uma gestão rigorosa, séria e eficiente dos recurso disponíveis».

Daí que a questão central que cumpre apreciar e decidir nestes autos seja a de saber se a sentença recorrida enferma ou não de erro de julgamento, na medida em que considerou que o furto ou desvio de mercadorias não é subsumível à previsão do art. 23.º, do CIRC, ou seja, que não pode ser considerado custo ou perda para efeitos de tributação.
Se tal questão for respondida no sentido afirmativo, de que se verifica tal erro, haverá ainda que indagar se pode dar-se como demonstrado nos autos a existência do furto e que o respectivo risco não é segurável.
Isto, porque, apesar da AT não ter posto em causa a ocorrência dos furtos nem sequer que o risco resultante dos mesmo seja segurável, certo é que a posição por ela assumida, de que um furto nunca poderia constituir custo ou perda, afastou liminarmente a consideração daquelas outras questões.

2.2.2 O FURTO DE MERCADORIAS PODE SER CONSIDERADO CUSTO FISCAL ?

A AT recusou frontalmente tal possibilidade e também a sentença recorrida a recusou, considerando-se inadmissível. Isto, porque entendeu que «de maneira alguma, se pode valorar como custo ou perda uma factualidade que não corresponde a evento relacionado, de qualquer modo ou a qualquer título, com a actividade desenvolvida, nem se trata de encargo imputável a essa mesma actividade».
Será assim ?
Salvo o devido respeito, entendemos não ser esse o melhor entendimento.
Nos termos do disposto no art. 23.º do CIRC, «Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora».
Como resulta do art. 17.º, n.º 1, do CIRC, «O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3 é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste código».
Significa isto que serão de considerar como custos ou perdas aqueles que, devidamente comprovados, sejam indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto e para a manutenção das respectiva fonte produtora.
Já no âmbito da Contribuição Industrial, cujo código que tinha disposição paralela – o art. 26.º – a AT vinha recusando que o valor das mercadorias ou valores em dinheiro furtados pudessem ser considerados como “custos de exercício”.
Mas já então esse critério merecia a crítica de VÍTOR FAVEIRO, que escrevia:
«A Administração Fiscal vem seguindo o critério geral de não aceitar, como custos ou perdas, o roubo ou o extravio de mercadorias, e, portanto, o seu abatimento ao inventário das existências. Trata-se, porém, de um entendimento manifestamente errado, enquanto critério geral uniforme, porquanto se a existência de mercadorias é havida como um valor positivo porque se destinam à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material de tais unidades, seja a que título for, e desde que comprovada em termos razoáveis, não pode deixar de ser havida como realidade que «foi indispensável suportar para a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora»» Noções Fundamentais de Direito Fiscal, 1986, II volume, pág. 603..
O mesmo Autor, em nota de rodapé, dava o seguinte exemplo:
«O assalto a um estabelecimento em que, além do arrombamento de portas, janelas ou cofres, logo se constata e verifica o roubo de determinadas mercadorias é um evento negativo integrado no exercício da actividade, devendo, por isso, ser levado à conta de resultados os abatimentos ao inventário do «stock» de momento e adrede elabora, bem como as despesas de reparação dos bens danificados.
O mesmo deverá suceder com os desvios de mercadorias em trânsito, quer por acidente quer por furto de viaturas ou seu arrombamento razoavelmente comprovado» Ibidem, nota de rodapé com o n.º 1..
Também a jurisprudência parece alinhar-se por esse critério, como resulta do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de Junho de 1997, proferido no recurso com o n.º 12.610 e de cujo sumário doutrinal consta a seguinte asserção: «O valor do furto de dinheiro ou de mercadorias constitui custo ou perda imputável ao exercício respectivo, com previsão no art. 26.º do CCI» Acórdão publicado no Apêndice ao Diário da República de 9 de Outubro de 2000, págs. 1739 a 1745..
Parece-nos ser este o melhor entendimento. Na verdade, parece-nos ser o que melhor responde ao conceito de existências e à repercussão das variações positivas e negativas das mesmas. O desaparecimento de mercadorias originado por causas exógenas, ou seja, estranhas à actividade da empresa, deve ser havido como perda.
Por outro lado, como bem salienta a Recorrente, é este entendimento que melhor se adequa ao tratamento contabilístico a dar às mercadorias desaparecidas ilicitamente, bem como ao princípio constitucional da tributação das empresas pelo lucro real.
Na verdade, como alegou a Recorrente, a não ser assim, qual o tratamento contabilístico a dar às mercadorias desaparecidas ? E porque haveria de tributar-se a Contribuinte por um lucro que não teve ?
Assim, a sentença recorrida, que entendeu de forma diversa, não pode manter-se, devendo ser revogada, como se decidirá a final.

2.2.3 ESTÁ PROVADO O FURTO E A IMPOSSIBILIDADE DE SEGURAR O RISCO RESPECTIVO ?

Poderá eventualmente sustentar-se que a prova produzida nos autos não permite que se dê como provada a ocorrência do furto nem a impossibilidade de segurar o respectivo risco (cfr. art. 41.º, n.º 1, alínea e), do CIRC).
Afigura-se-nos que tal argumentação não colhe, havendo prova razoável num e noutro sentido.
Desde logo, a Impugnante apresentou cópia de um relatório de auditoria no qual se dá conta, detalhada e pormenorizadamente, do método por que se concluiu pelo desaparecimento ilícito das mercadorias em armazém, tudo indiciando que se trata de furto praticado por empregados seus; por outro lado, também apresentou queixa-crime pelos referidos factos.
Tais elementos afiguram-se-nos suficientes para que se dê como provado o desaparecimento ilícito das mercadorias. Aliás, se assim não fosse, haveria que determinar-se a inquirição das testemunhas arroladas pela Impugnante na petição inicial.
Quanto à impossibilidade de segurar o risco de furto de mercadorias armazenadas, pese embora em abstracto nada obstar à transferência contratual desse risco para uma empresa seguradora, certo é que, em concreto, as seguradoras não o aceitam, como resulta da carta que a Impugnante apresentou nos autos.
Afigura-se-nos, pois, estar suficientemente demonstrado quer o furto das mercadorias, quer a impossibilidade prática de segurar o risco respectivo.
2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I – Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do CIRC, «O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3 é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste código».

II – No art. 23.º do CIRC enuncia-se, a título exemplificativo, as situações que podem integrar o grupo dos elementos negativos a relevar para efeitos de determinação do lucro tributável, consagrando como critério definidor que se consideram como custos ou perdas «os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora».

III – Sendo inequívoco que a existência de mercadorias é um valor positivo, porque se destinam à realização de operações de afluxo de valores positivos ao rédito da empresa, a perda material de mercadorias, seja a que título for, designadamente por furto, não pode deixar de ser considerada como realidade que foi «indispensável para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora».

IV – Assim, demonstrado que ficou o furto de mercadorias mantidas em armazém pela Impugnante e a impossibilidade de fazer com as seguradoras assumam contratualmente o risco por tal facto, nada obsta a que o valor desse furto seja considerado como custo ou perda para efeitos fiscais.

* * *

3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo acordam, em conferência, conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e, conhecendo em substituição, anular a liquidação impugnada.

Sem custas.

*
Lisboa, 2 de Julho de 2002