Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05870/10
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:03/16/2017
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
REVOGAÇÃO DOS DIREITOS DE USO PRIVATIVO DO TERRENO DO DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO SEGUNDO O REGIME JURÍDICO PREVISTO NO DECRETO-LEI N° 468/71, DE 5 DE NOVEMBRO
Sumário:I- Nos casos de incumprimento das obrigações do utente, como sucedeu, pode a Administração revogar os direitos de uso privativo do terreno do domínio público hídrico, daí não resultando direito algum a indemnização para aquele.

II) - Na situação em análise, nem o anteprojecto efectivamente apresentado pela A se mostrava compatível com a localização e usos urbanísticos da zona, nem tais aspectos negativos foram alguma vez suprimidos através de outro projecto da obra - perdurando este nefasto impasse, unicamente imputável à recorrente, por mais de uma década.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SECÇÃO DO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


1- RELATÓRIO

O presente recurso jurisdicional vem interposto da sentença proferida em 21.07.2009 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, que julgou improcedente por não provada a acção administrativa comum, sob a forma ordinária, intentada por "Associação ……………………………" contra a A….. - Administração do …………, SA, Instituto Português dos Museus, e Associação ………………….. - Japão.

Dela recorreu a "Associação ………………….." apresentando as seguintes conclusões:

“1 A sentença impugnada violou o princípio do contraditório, por se ter baseado em fundamento não alegado, nem discutido durante o processo - a qualificação do protocolo como licença e a conclusão de que a sua revogação não dava origem a indemnização não foi discutida no processo, não foi abordada por nenhuma das partes, nem pelo tribunal.
2- A sentença qualificou erradamente o protocolo, que não é um acto unilateral (licença), mas um contrato.
3 A Administração Pública apenas pode rescindir unilateralmente os direitos de uso privativo por motivos de interesse público, o que não se verificou neste caso. Não está provado qualquer interesse público na rescisão do contrato. O comportamento dos RR. constitui assim acto ilícito.
4 Há direito a indemnização do particular perante a rescisão do contrato, mesmo que com fundamento em interesse público, pelo que é ilegal a decisão do tribunal em sentido contrário.
5- Por último, a A. não tem qualquer culpa no facto de o contrato não estar ainda executado, não lhe sendo portanto imputável qualquer incumprimento.”
Contra-alegou a A….., para concluir:

“1.A sentença proferida pelo Tribunal a quo não violou o princípio do contraditório.
2.Foi para cumprimento de tal princípio que se realizaram diversas "sessões e sessões de julgamento", se apresentaram, complementarmente, diversos documentos e se realizaram, durante a fase de audiência de discussão e julgamento, diligências complementares de prova, designadamente, a inquirição de peritos, que o Tribunal entendeu necessária para a produção da prova.
3.De todos os elementos de prova trazidos aos presentes autos foi dado conhecimento às partes em litígio, tendo a respectiva prova sido discutida, produzida e valorada em audiência de julgamento.
4. O Tribunal a quo julgou segundo a sua prudente convicção e com base na livre apreciação da prova, nos termos permitidos pelo art.°655.° do CPC, aplicável ex vi art.° 1.° da LPTA.
5. O juiz, na sua decisão, não está sujeito ao quadro normativo e às qualificações jurídicas referidas pelas partes no processo, a sua decisão é, antes, balizada pela prova dos factos que os litigantes trouxerem à demanda, a qual é feita em audiência de julgamento.
6. A parcela de terreno do domínio público cujo direito de uso privativo, através dos Protocolos juntos aos autos, foi atribuído à Recorrente, estava sujeita ao regime jurídico previsto no Decreto-Lei n.° 468/71, de 5 de Novembro - diploma que estabelecia, à data dos factos, o regime jurídico dos terrenos integrantes do domínio público hídrico - cfr. art.os 3.°, n.° 2 e 5.°, n.°1 do citado Decreto-Lei n.° 468/71 - e era parte integrante do domínio público portuário (hídrico) - art.° 2.° n.° 2 e art.° 7.° do Decreto-Lei 336/98, de 3 de Novembro e art.° 4.° do Estatuto Orgânico da Administração do Porto de Lisboa, aprovado pelo Decreto-Lei 309/87, de 7 de Agosto.
7. Nos termos do referido regime, os direitos de uso privativo atribuídos são-no sempre a título precário e, revistam eles a natureza de licença ou contrato de concessão, pode a autoridade competente para a sua atribuição revogá-los, ou rescindi-los, conforme for o caso), por incumprimento (art.° 27.° do citado Decreto-Lei n.° 468/71) ou, ainda, extingui-los por motivo de interesse público (art.° 28.° do mesmo diploma legal).
8.No caso concreto, independentemente de se estar perante uma instalação fixa ou não, o uso privativo em causa não preenche os requisitos impostos pela alínea e) do art.° 19.° do Decreto-Lei n.°468/71 uma vez que, relativamente à obra em questão, não houve qualquer declaração de uso de utilidade/interesse público (a edificação em causa não foi declarada de interesse para o turismo nem tão pouco foi classificada como conjunto turístico nos termos da legislação aplicável).
9. Nos termos da norma constante do art.° 18.°, n.° 2 in fine, do mesmo diploma legal, bem andou o Tribunal recorrido ao classificar o uso privativo em causa como licença, no âmbito da qual a Recorrente estava sujeita a determinadas obrigações, que não cumpriu.
10. A Recorrente apresentou para aprovação da APL, tal como era sua obrigação nos termos do "Protocolo", um Anteprojecto que mereceu parecer negativo dos técnicos da ora Recorrida que acompanharam o respectivo processo, não tendo, consequentemente, sido aprovado pelo seu Conselho de Administração, conforme resulta das alíneas H, M, O, Q, U, Y, Z, T, WW, XX, KKK, LLL, MMM, NNN dos factos provados.
11. Não havendo qualquer projecto aprovado, a APL não autorizou a realização de levantamentos topográficos nem de sondagens - cfr. alíneas R e S da matéria de facto dada como assente - não tendo, pois, a Recorrente exercido qualquer posse (pacífica e pública) sobre a parcela em questão.
12. Nunca a Recorrente submeteu à aprovação da APL qualquer outro projecto da obra em causa que suprimisse os aspectos negativos que, por diversas vezes, lhe foram comunicados ou, sequer, aceitou localizações alternativas que apresentassem menos condicionantes de envolvência.
13. Assim, não existe fundamento para o direito de indemnização alegado pela Recorrente, uma vez que na decisão recorrida foi entendido que a revogação em causa ocorreu com fundamento em incumprimento, por parte da Autora, das suas obrigações (art.°27.°, n.°1 do Decreto-Lei n.° 468/7), situação que, nos termos da lei, não confere direito a qualquer indemnização.
14. Foi a Recorrente e não a ora Recorrida que incumpriu o "Protocolo" em causa.
15. Andou bem, portanto, o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez, absolvendo a APL de todos os pedidos, não tendo tal decisão violado qualquer norma legal.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve negar-se provimento ao recurso interposto pela Recorrente, confirmando-se, em consequência, a decisão proferida pelo TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA no sentido da absolvição da Ré APL, S.A. de todos os pedidos.”

Também o Instituto dos Museus e da Conservação, I.P. (ex-Instituto Português de Museus) contra-alegou com as seguintes conclusões:

“A. Não existiu qualquer violação do princípio do contraditório pelo Tribunal a quo na sua Sentença, tendo o processo sido pautado pelo estrito cumprimento de tal princípio e dos demais aplicáveis.
B. Não seria possível estarmos perante uma concessão na medida em que se verifica a falta de um elemento essencial para a mesma, a utilidade pública.
C. A Administração Pública pode revogar os direitos de uso privativo por incumprimento do utente das obrigações para si resultantes, como foi o caso.
D.A revogação por incumprimento dos protocolos não confere à Recorrente qualquer direito a uma indemnização a favor última.
E.A Recorrente tem, como ficou devidamente provado, culpa pelo não cumprimento dos protocolos subjudice.
Termos em que, com o douto provimento de V.Exa., deve o presente recurso ser indeferido, confirmando-se a Sentença recorrida na sua íntegra e assim se fazendo a costumada Justiça.”

O DMMP junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

2. 1 Dos factos
Ao abrigo do n.º 6 do art. 663º do CPC, remete-se para a factualidade dada como assente na sentença recorrida que consta dos autos a qual se dá por integralmente transcrita.

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2. 2 DO DIREITO

O presente recurso vem interposto da Sentença proferida em de 21 de Julho de 2009, a fls. 879 e sgs. dos autos, na qual o Tribunal a quo julgou improcedente, por não provada, a acção administrativa comum, sob a forma ordinária, intentada pela Recorrente contra a ora Recorrida, a A…. - Administração do Porto de Lisboa, S.A. e a Associação …………………….-Japão.
No âmbito da referida Sentença, o Tribunal a quo decidiu ainda, baseada na prova produzida, que a "A. não cumpriu com as obrigações que para si resultavam dos termos do «título constitutivo da licença» (...) o que constitui na esfera jurídica das contrapartes, APL e IPM, o direito à rescisão da licença de uso privativo por incumprimento das obrigações do beneficiário (artigo 27°/1 ("Não cumprimento das obrigações do utente"), do Decreto-Lei 468/71".
Na verdade, a sentença decidiu julgar improcedente a presente acção administrativa comum, sob a forma ordinária, instaurada pela A. contra a A…. - Administração do Porto de Lisboa, SA, Instituto Português dos Museus e contra a Associação de Amizade Portugal-Japão, absolvendo os RR. dos pedidos, com base na seguinte fundamentação jurídica:
“III- Direito
1. Nos presentes autos, vem requerida a condenação das RR. APL, SA e IPM no cumprimento dos "protocolos" celebrados em 1995 com a A., relativos à implantação do Museu da Criança na parcela da zona ribeirinha de Belém, correspondente à Zona do Bom Sucesso/Espelho de Água, melhor identificada na planta anexa aos mesmos.
Concretamente, são formulados os pedidos seguintes:
a) Condenar os 1.° e 2.° RR. no cumprimento dos "Protocolos" celebrados, com a A., em 24.05.1995;
b) Condenar a 3.ª R. a restituir à A. a posse dos terrenos que lhe foram cedidos para construção do Museu das Crianças;
c) Condenar os RR. no pagamento da quantia de €712.256,23, acrescidos de juros, desde a data da citação até integral pagamento, a título de responsabilidade por incumprimento do contrato.
2. Trata-se de parcela do leito do rio Tejo, integrante do domínio público estadual, sob jurisdição da Administração do Porto de Lisboa, actualmente APL, SÁ (artigos 84.°/1/a) e f), da CRP, 4.°/b), do Decreto-Lei n.° 477/80, de 15 de Outubro, 3.° do Decreto-lei n.°309/87, de 7 Agosto, 7.°/b)/b.1.), do Decreto-Lei n.° 336/98, de 3 de Novembro).
O regime jurídico da parcela em causa nos autos decorre do Decreto-Lei n° 468/71, de 5 de Novembro, diploma que estabelecia à data dos factos o regime jurídico dos terrenos integrantes do domínio público hídrico (cfr. artigo 5.° do Decreto-Lei n° 468/71, citado).
Nos termos dos artigos 17.° a 31.°, está prevista a possibilidade de outorga de licença de uso privativo da parcela em referência, direito que é sempre concedido a título precário, podendo o mesmo ser extinto por motivo de interesse público (artigo 28.° do Decreto-Lei n.° 468/71, de 5 de Novembro) ou em virtude do não cumprimento das obrigações do beneficiário da licença (artigo 27.° do Decreto-Lei n.° 468/71, citado). 2. Dos "protocolos" em referência nos autos resultaram para as demandadas as obrigações seguintes: i) O IPM «cedia», a título precário, à A. «o direito de uso» da parcela destinada à instalação do Museu de Arte Popular,
ii) As condições da «cedência» eram as seguintes: a) a A. tinha 24 meses para aí instalar o Museu das Crianças, "contados" a partir da data do respectivo licenciamento; b) as obras a levar a efeito eram por conta da A., devendo a mesma apresentar o projecto à apreciação da APL e do IPM; c) os encargos com a gestão e funcionamento do Museu das Crianças eram da responsabilidade da A. iii) A «cedência» era feita, de forma gratuita, pelo prazo de trinta anos; iv) O protocolo cessava por mútuo acordo ou por incumprimento das obrigações assumidas pela A.
3. Considerando o regime explicitado nos "protocolos", impõe-se concluir que através dos acordos em exame, a APL e o IPM atribuíram à A. uma licença de uso privativo de um bem imóvel do domínio público, sujeita a cláusulas modais, que impõem obrigações a cargo da beneficiária da licença de utilização do domínio público, neste caso, a A.
Tal como decorre do Ac. do STA, de 11.02.2003, P. 0342/01,
«l - As licenças precárias, como são aquelas que permitem a utilização do domínio público hídrico, podem ser revogadas a todo o tempo sem que o particular tenha direito a qualquer indemnização. // II - Sendo a licença de utilização revogada, ao particular apenas lhe resta remover as instalações desmontáveis e demolir as obras executadas e as instalações fixas, repondo a situação existente anteriormente à execução de tais obras». No sentido da precariedade da licença em apreço depõe, também o disposto nos artigos 27.° ("Não cumprimento das obrigações do utente") e 28.° ("Extinção de uso privativo por conveniência de interesse público"), do Decreto-Lei 468/71, citado. De referir, também, que estando em causa o uso privativo do domínio público, tem aplicação do entendimento de que: «as concessões dominiais consubstanciam actos legalmente precários [não configurando actos constitutivos de direitos ou interesses legalmente protegidos na acepção da alínea b) do n.° 1 e do n.° 2, do artigo 140.° do CPA, cuja revogação dá origem a uma pretensão indemnizatória pelos danos causados ao interessado de boa fé ...], na medida em que não se revelam susceptíveis de originar na esfera jurídica dos particulares um «ambiente de confiança» ou um «ambiente de expectativa legítima» na permanência (na "solidez") dos direitos constituídos, não é possível considerar indemnizáveis os «danos» resultantes para o particular da revogação do acto de concessão». [Ana Raquel Gonçalves Moniz, O Domínio Público - O Critério e o regime jurídico da dominialidade, Coimbra, 2006, pp. 458 e 459, e doutrina aí citada].
4. Pontos firmes sobre o regime dos bens imóveis do domínio público estadual, como sucede com a parcela dos autos, são os seguintes:
i) «Os imóveis do domínio público são os classificados pela Constituição ou por lei, individualmente ou mediante identificação por tipos» - artigo 14.° do Decreto-Lei n.° 280/2007, de 7 de Agosto (diploma que estabelece o regime jurídico do património imobiliário público RJPIP);
ii) «A titularidade dos imóveis do domínio público pertence ao Estado, às Regiões Autónomas e às Autarquias Locais e abrange poderes de uso, administração, tutela, defesa e disposição nos termos do presente decreto-lei e demais legislação aplicável» - artigo 15.° do RJPIP;
iii) «Os imóveis do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito privado» - artigo 18.° do RJPIP;
iv) «Os particulares podem adquirir direitos de uso privativo do domínio público por licença ou concessão» - artigo 27.° do RJPIP.
5. Dos "protocolos" resultava a obrigação, a cargo da A., de construção do Museu da Criança, no prazo de 24 meses a contar da data da aprovação do respectivo licenciamento, bem como a obrigação de não utilizar a parcela em causa para outra finalidade que não fosse a instalação e funcionamento do referido museu. Por outras palavras, a concessão da licença de uso privativo estava sujeita à cláusula modal de apresentação de um projecto de construção do Museu da Criança, que fosse compatível com os usos urbanísticos da zona, isto é, que se compatibilizasse com a fruição comum do bem do domínio público portuário em causa. Do probatório resulta que a A. apresentou à apreciação da APL, entidade com jurisdição sobre o domínio público portuário em causa, um anteprojecto que propunha cérceas, volumetrias e superfícies cobertas excessivas para os usos admissíveis na zona, seja atendendo ao facto de se tratar da frente ribeirinha do CCB e do Mosteiro de Jerónimos, seja atendendo ao facto dos usos dominantes na área se centrarem sobre a componente náutico-recreativa, a qual não se mostrava compatível com um projecto da dimensão do apresentado, seja atendendo ao impacte urbanístico do mesmo, não apenas no que se refere à fruição da frente rio, mas também pelo agravamento das condições de acessibilidade, circulação e estacionamento na zona. A mesma posição de rejeição do projecto foi assumida pelo IPPAR e pela CML (alíneas Y. a AÃ. vi) dos F A).
Estava em causa a "cedência" gratuita e precária de utilização privativa de parcela integrante do domínio público portuário. A referida licença assentava na contrapartida a realizar pela A., da prestação consistente na implantação do Museu da Criança e da sua exploração, de forma compatível com os usos da zona.
Este último facto não se verificou, atendendo a que a A. não logrou apresentar projecto de construção do referido Museu que fosse considerado viável, do ponto de vista do uso do solo em referência por parte das entidades com competência na matéria, ou seja, a APL e a CML.
A A. não cumpriu com as obrigações que para si resultavam dos termos do «título constitutivo da licença», ou seja, a obrigação de elaboração e construção de Museu viável e compatível com os usos da parcela do domínio público em apreço, o que constituiu na esfera jurídica das contrapartes, APL e IPM, o direito à rescisão da licença de uso privativo por incumprimento das obrigações do beneficiário (artigo 27.°/1 ("Não cumprimento das do utente"), do Decreto-Lei 468/71, citado).
No caso sujeito, está em causa licença de uso privativo do domínio público, de natureza gratuita, para instalação de um Museu em parcela do domínio público portuário.
A referida licença constitui restrição aos princípios de administração dos bens de domínio público da onerosidade da ocupação - artigo 4.° do RJPIP - e do "uso comum ordinário" - artigo 25.° do RJPIP - bem como dos usos de apoio náutico-turísticos, próprios da afectação pública da parcela do domínio público portuário em exame.
O desuso da referida licença, no período de mais de uma década, durante o qual, não foi apresentado, pela A., projecto de Museu que fosse considerado viável pelas entidades competentes, configura uma situação de perda de causa do negócio jurídico de atribuição da referida licença de uso privativo do domínio público, a qual, seja nos termos do artigo 27.°/1 ("Não cumprimento das obrigações do utente"), do Decreto-Lei 468/71, citado, seja nos termos dos artigos 795.°/1 e 801°/2, do CC (resolução por incumprimento nos contratos bilaterais), justifica o direito de "resolução extintiva" do mesmo.
Note-se que, mesmo que a caducidade do título constitutivo não tivesse ocorrido ao abrigo do artigo 27.°/1, do Decreto-Lei 468/71, citado, sempre se verificariam os pressupostos do artigo 28.°/1, do Decreto-Lei 468/71, citado, na medida em que o uso da parcela em análise, tendo em vista o usos compatíveis com a afectação pública da mesma determinaram a extinção da referida utilização privativa da mesma.
Do exposto, impõe-se concluir pela improcedência da asserção do imputado incumprimento por parte dos RR. dos "protocolos".
6.No que respeita ao pedido de restituição da posse da parcela referida, cumpre recordar o regime dos bens do domínio público estadual.
De referir que, nos termos do artigo 4.° do ETAF, falece a esta jurisdição administrativa competência para conhecer de semelhante pretensão, a qual é apreciada, atento o disposto no artigo 288.°/3, do CPC.
O regime jurídico dos bens do domínio público assenta nas notas seguintes: a)inalienabilidade; b) imprescritibilidade; c), impenhorabilidade; d) insusceptibilidade de oneração por direitos reais; e) insusceptibilidade de sujeição a restrições de interesse privado; f) auto-tutela g) dimensão de polícia associada à protecção da integridade material e respeito da afectação dos bens (artigo 202.°/2, do CC)-
Vide Jorge Miranda, Constituição Anotada, 2006, Tomo II, pp. 87/88 e Gomes Canotilho, Constituição Anotada, 2007, p. 1005); Ana Raquel Gonçalves Moniz, O Domínio Público - O Critério e o regime jurídico da dominialidade, Coimbra, 2006, pp. 416/441.
O regime jurídico acima descrito não consente a posse correspondente a direito reais de matriz privatística no que concerne a bens do domínio público portuário como é o caso dos autos.
Do probatório resulta que tal posse não existiu, já que a A. não exerceu qualquer direito ou faculdade de disposição sobre a parcela mencionada; ao invés, verifica-se que, desde a celebração dos "protocolos", a parcela manteve-se sob a jurisdição da APL, que impediu a A. de realizar estudo, sondagem, trabalho topográfico ou qualquer acto de disposição sobre a mesma, bem como deu conta à A. da sua oposição à pretensão de instalação do Museu, nos termos pela mesma configurados (alíneas P. a S. dos FA).
Termos em que improcede a invocação de que a A. exerceu sobre a parcela em questão a posse pública e pacífica.
7. No que concerne ao pedido indemnizatório formulado pela A., verifica-se, tal como visto nos números anteriores, a mesma não logrou demonstrar o preenchimento dos pressupostos de que depende a efectivação da responsabilidade civil a título contratual das entidades RR.
Não se demonstrou a existência de qualquer incumprimento por parte dos RR. dos referidos "protocolos"; os RR. procuraram encontrar, em consenso com a A., uma solução para a construção do Museu da Criança, sem pôr em causa o regime de uso da parcela do domínio público portuário, seja através da compatibilização dos usos, o que exigiria ou a apresentação, pela A., de um projecto adequado aos parâmetros urbanísticos e de uso da "frente rio" em referência ou a adopção de soluções de localização alternativa.
Concretamente, não se detecta qualquer ilicitude na actuação das RR., seja quando rejeitaram, em conjunto com o IPPAR e a CML, projectos, apresentados pela A., que não se adequam aos parâmetros urbanísticos e de uso da parcela, seja quando procuraram acertar com a A. uma solução consensual para a instalação do Museu, seja quando, decorrida mais de uma década sobre a celebração dos "protocolos, determinaram a extinção do direito de uso da parcela, ao abrigo dos normativos legais aplicáveis (o Decreto-Lei 468/71, de 5 de Novembro), nem tal é alegado ou demonstrado pela A.
Do exposto, impõe-se julgar improcedente a imputada responsabilidade contratual dos RR. APL e IPM, absolvendo-os, do pedido indemnizatório.
Termos em que se impõe absolver as entidades demandadas de todos os pedidos.”

Vinculadamente às conclusões de recurso, à decisão recorrida são assacados os vícios que, de forma muito sucinta e clara, a recorrente elenca do seguinte modo:
Nesta acção discute-se a responsabilidade dos RR. pelo incumprimento de um protocolo celebrado com a A.. O protocolo diz respeito à construção de um museu numa parcela do domínio público portuário. O museu não foi até hoje construído, apesar do muito que a A. fez e gastou com esse propósito. Os RR. rescindiram unilateralmente o contrato. A A. pretende, com o presente processo, ser colocada na posição em que se encontrava antes da rescisão ilícita, o que significa: ou a devolução da parcela para a construção do museu; ou a indemnização pelos danos que teve em virtude da rescisão.
As razões da sentença:
O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou a acção inteiramente improcedente por 3 razões:
1 O protocolo consubstancia uma licença de uso privativo, cuja revogação por motivos de interesse público não dá direito a indemnização;
2- Foi a A. que incumpriu o protocolo, ao não construir o Museu das Crianças; 3a Não houve qualquer ilicitude no comportamento dos RR..
As razões da A.:
1ª Violação do princípio do contraditório, por a decisão se ter baseado em fundamento não alegado, nem discutido durante o processo - a qualificação do protocolo como licença e a conclusão de que a sua revogação não dá origem a indemnização não foi discutida no processo. Não foi abordada por nenhuma das partes, nem pelo tribunal.
2ª Errada qualificação jurídica do protocolo, que não é um acto unilateral (licença), mas um contrato.
3ª A Administração Pública apenas pode rescindir unilateralmente os direitos de uso privativo por motivos de interesse público, o que não se verificou neste caso. Não está provado qualquer interesse público na rescisão do contrato. O seu comportamento constitui assim acto ilícito.
4ª Há direito a indemnização do particular perante a rescisão do contrato, mesmo que com fundamento em interesse público, pelo que é ilegal a decisão do tribunal em sentido contrário.
5ª Por último, a A. não tem qualquer culpa no facto de o contrato não estar ainda executado, não lhe sendo portanto imputável qualquer incumprimento.
Vejamos, ponto por ponto, se alguma das razões assiste à recorrente motivadora do sucesso recursório que almeja.
Antes de mais, emerge do probatório, com utilidade para a apreciação do presente recurso, que, por virtude dos "protocolos" celebrados, a APL e o IPM concederam à "Associação ……………………………", gratuitamente e pelo prazo de 30 anos, uma autorização de uso privativo do acima referido bem imóvel do domínio público - sendo ali previsto que tal cedência termine por mútuo acordo ou por incumprimento das obrigações assumidas pela "AAHA".
Na verdade e como observa o EPGA no seu douto Parecer, esse uso privativo é invariavelmente concedido a título precário (v. a este propósito o teor do acórdão de 11.02.2003 do S.T.A. - processo 0342/02), podendo o mesmo ser extinto por incumprimento das obrigações do beneficiário da licença (Decreto-lei n° 468/71 de 5 de Novembro, artigo 27) e também, designadamente, por motivo de interesse público (idem, artigo 28).
Ora, constituía encargo desta Associação a apresentação de um projecto de construção do Museu da Criança, compatível com os usos urbanísticos da zona.
Contudo, tal obrigação não foi observada pela "AAHA", que nunca logrou apresentar um projecto de construção do referido Museu, considerado viável por parte das entidades para o efeito competentes (a APL e a Câmara Municipal de Lisboa) no tocante ao uso do solo em causa. E como acertadamente concluiu a sentença do TAF de Lisboa, dessa circunstância, decorreu para as contrapartes APL e IPM o direito à rescisão da licença de uso privativo, por incumprimento das obrigações do beneficiário (v. artigos 27 n.°1 do Decreto-lei n.° 468/71 de 5 de Novembro, e 795 n.°1 e 801 n° 2 do Código Civil).
Face a este enquadramento, vejamos de seguida se procedem as razões aduzidas pela recorrente e atrás sumariadas segundo a bem delineada arrumação que delas fez a Recorrente:

I- Violação do princípio do contraditório
Sustenta a recorrente que o princípio do contraditório, enquanto parte integrante do princípio do processo justo (due process), estabelece uma garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
Ora, para recorrente essa principiologia não foi observada pelo julgador na mediada em que a qualificação jurídica do acto como uma licença de uso privativo não foi, nunca, tema discutido no processo. Muito menos a inexistência do direito a ser indemnizada que tal qualificação acarretaria para a A..
Segundo a recorrente, uma tal qualificação jurídica provocaria a inutilidade de todo o julgamento, designadamente a prova dos danos já e, assim sendo, se não havia direito a indemnizar por que se andou a provar durante sessões e sessões de julgamento os factos constitutivos do direito a indemnizar?
A esta argumentação opõem os recorridos que, nos termos da legislação processual aplicável, foi sempre garantida a totalidade dos direitos às partes pelo Tribunal a quo, exercendo o contraditório relativamente a toda a prova produzida, sendo realizadas diligências complementares quando úteis, ouvidos peritos, etc, sendo que a produção de prova dos danos a que se refere a Recorrente foi um corolário do respeito pelo Tribunal a quo dessas disposições, independentemente da relevância que a final a mesma possa vir a ter.
Por outro lado, a prova dos danos foi efectuada documentalmente, por via das peças processuais apresentadas pela então A., não tendo sido objecto de discussão no julgamento, ao contrário do alegado, antes tendo sido objecto de discussão o incumprimento ou não de cada uma das partes relativo aos protocolos assinados, o qual determinaria a relevância da prova documental então produzida.
É inaceitável a violação do princípio do contraditório, sendo certo que a correcta aplicação do mesmo pelo Tribunal a quo determinou inclusive o que a Recorrente designa por "sessões e sessões de julgamento".
Assim, o princípio fundamental do contraditório do direito processual civil, plasmado no art.° 3.° do Código de Processo Civil (CPC), foi totalmente respeitado pelo Tribunal recorrido até porque "o sentido essencial do princípio do contraditório está em que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve aí ser tomada pelo juiz sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade, ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar."- cfr. Ac. do Trib Const. N.° 172/92, de 06.05.1993.
Donde que foi plenamente observado esse princípio quer através das diversas "sessões e sessões de julgamentos", quer pela apresentação complementar de documentos, quer ainda através da realização, durante a fase de audiência de discussão e julgamento, de diligências complementares de prova, designadamente, a inquirição de peritos, que o Tribunal entendeu necessária para a produção da prova.
O princípio do contraditório impede que o Tribunal decida um qualquer conflito de interesses com fundamento em elementos ou documentos juntos aos autos por uma das partes sem que a parte contrária disso tenha conhecimento ou oportunidade para sobre eles se pronunciar.
Constitui, assim, este princípio, um corolário do "Princípio do Processo Equitativo" e do "Princípio da Igualdade" consagrados nos art.ºs 13.° e 20.°, n° 4 da Lei Fundamental.
Ora, no caso concreto, as partes em litígio tiveram amplo e efectivo conhecimento de todos os elementos de prova juntos aos autos e discutidos em julgamento.
Toda a prova trazida pelas partes a estes autos foi discutida e produzida em audiência de julgamento, tendo o Tribunal a quo julgado segundo a sua prudente convicção e com base na livre apreciação da prova, nos termos permitidos pelo art.° 655.° do CPC, aplicável ex vi art.° 1.° da LPTA.
Com efeito, o juiz, na sua decisão, não está sujeito ao quadro normativo e às qualificações jurídicas referidas pelas partes no processo, a sua decisão é, antes, balizada pela prova dos factos que os litigantes trouxerem à demanda, a qual é feita em audiência de julgamento.
O Tribunal a quo, na sequência das diversas sessões de julgamento para discussão de todos os elementos de prova trazidos ao processo, considerou assente a matéria de facto constante do ponto II - Factos, da sentença impugnada pela Recorrente, não tendo esta, no seu recurso, impugnado a matéria de facto que o Tribunal considerou assente/provada.
E foi com fundamento na mesma matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, e que a Recorrente teve efectiva oportunidade de discutir e valorar durante as várias sessões, que foi proferida a decisão sob recurso.
Por estas razões, os recorridos não aceitam a alegada violação do princípio do contraditório invocada pela Autora Recorrente.
O artigo 3°, n° 3, do Código de Processo Civil é plenamente aplicável em processo judicial administrativo e tem como finalidade declarada evitar, proibindo-as, as denominadas decisões - surpresa.
Assim, caso não seja dada possibilidade à Recorrente de se pronunciar sobre um facto decisivo para a decisão recorrida, a sentença em causa incorreria em nulidade, por violação do princípio do contraditório e do artigo 3°, do Código de Processo Civil.
O artigo 3º nº. 3 do C. Processo Civil estipula que o Juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
O princípio do contraditório, que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil, assegura não só a igualdade das partes, como, no que aqui interessa, é um instrumento destinado a evitar as decisões -surpresa.
Tendo a acção sido decidida com base nos factos alegados e provados, factos esses de que a recorrente teve conhecimento e contra os quais poderia esgrimir os argumentos que entendesse convenientes, na altura própria, como bem se objectiva na tramitação dos autos a decisão tomada no em nada afectou quer a pretensão deduzida, quer a defesa.
Na verdade e tal como também entende o EPGA, resulta de toda a tramitação dos autos, que o principio do contraditório nunca deixou de ser assegurado pelo Tribunal, nas múltiplas diligências a que procedeu (mormente as várias sessões de julgamento) - mostrando-se inteiramente deslocada a invocação da sua pretensa violação.
Termos em que improcede o fundamento de recurso sob análise.

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II- Errada qualificação jurídica do protocolo, que não é um acto unilateral (licença), mas um contrato

É o segundo esteio do recurso e para a sua construção o Recorrente chama a terreiro o Decreto-Lei 468/71, de 5 de Novembro, aplicável ao domínio público hídrico, por força do qual, diz, os usos privativos só podem ser atribuídos mediante licença ou concessão (artigo 18.º), sendo que o que diferencia um de outro é que o contrato é aplicável quando implique investimentos em instalações fixas e indesmontáveis e sejam consideradas de utilidade pública; e a licença em todos os restantes usos privativos.
Posto isto, considera o Recorrente ser evidente que neste caso a relação é contratual e se verifica o preenchimento de todos os requisitos, a saber: (i)trata-se da construção de um imóvel, uma instalação fixa, portanto; (ii)esta instalação fixa e indesmontável a construir é de utilidade pública, conforme o artigo 19.º e) do mesmo diploma e (iii) a edificação tem interesse para o turismo: é um Museu para o público, aberto ao público, em particular para as crianças.
Daí que o Recorrente conclua que falar de precariedade a este propósito é completamente descabido e contrário ao artigo 18.º Decreto-Lei Lei 468/71, de 5 de Novembro e para o ilustrar dá o seguinte exemplo: Pense-se na hipótese de a A. ter iniciado fisicamente a construção. Poder-se-ia nesse caso dizer que o tinha feito com base numa licença? Obviamente que não.
Não estamos, portanto e de todo, perante uma licença a título precário. A sua qualificação nestes termos é um erro crasso de aplicação do Direito.
Vejamos.
Na sentença recorrida considerou-se que, por meio dos ditos Protocolos a APL, S.A. e o IPM atribuíram à ora Recorrente uma licença de uso privativo de um bem imóvel do domínio público, sujeita a cláusulas modais, as quais impõem à beneficiária da licença determinadas obrigações, o que vai contra a tese da Recorrente supra exposta.
Ora, é pacífico que a parcela de terreno do domínio público cujo direito de uso privativo, através dos Protocolos juntos aos autos, foi atribuído à Recorrente, estava sujeita ao regime jurídico previsto no Decreto-Lei n°468/71, de 5 de Novembro o qual estabelecia, ao tempo dos factos, o regime jurídico dos terrenos integrantes do domínio público hídrico - cfr. art.os 3.°, n.° 2 e 5.°, n.°1 do citado Decreto-Lei n.° 468/71 - e era parte integrante do domínio público portuário (hídrico) - art.° 2.° n.° 2 e art.° 7.° do Decreto-Lei 336/98, de 3 de Novembro e art.° 4.° do Estatuto Orgânico da Administração do Porto de Lisboa, aprovado pelo Decreto-Lei 309/87, de 7 de Agosto.
Ora, desse diploma legal decorre que os direitos de uso privativo atribuídos são-no sempre a título precário e, revistam eles a natureza de licença ou contrato de concessão, pode a autoridade competente para a sua atribuição revogá-los, ou rescindi-los, por incumprimento (cfr. art.° 27.° do mesmo diploma legal) ou, ainda, extingui-los por motivo de interesse público (vide art.° 28.°).
Valer isto por dizer que, por força do princípio da legalidade, jamais o Tribunal a poderia qualificar os Protocolos como um contrato de concessão, e, mesmo que o lograsse, sempre era lícito à APL, S.A. rescindi-lo uma vez que a Autora não cumpriu as obrigações estipuladas no título constitutivo do direito de uso privativo em causa, não sendo, nesse caso, devido à Recorrente qualquer indemnização por tal rescisão (com justa causa).
Ademais, ainda segundo aquele regime legal, independentemente de se estar perante uma instalação fixa ou não, o uso privativo em causa não preenchia os requisitos impostos pela alínea e) do art.° 19.° do Decreto-Lei n.° 468/71, uma vez que, relativamente à obra em apreço, não houve qualquer declaração de uso de utilidade/interesse público. Com efeito, não objectivam os autos que a questionada edificação haja sido declarada de interesse para o turismo ou que tivesse sido classificada como conjunto turístico nos termos da legislação aplicável.
É inelutável, pois, que, face ao disposto o art.° 18.°, n.° 2, último segmento, que o Tribunal procedeu a uma correcta qualificação do uso privativo em causa como licença, no âmbito da qual a Recorrente estava sujeita a determinadas obrigações, que não cumpriu.
Na verdade e desde logo, os referidos Protocolos obrigavam a Recorrente a apresentar o projecto para aprovação da APL e do IPM referente à obra a realizar pela Autora e o que evidencia o probatório é que se limitou a apresentar, para aprovação da APL, um Anteprojecto que mereceu parecer negativo dos técnicos que acompanharam o respectivo processo, não tendo, por isso, sido aprovado pelo seu Conselho de Administração- vide as alíneas H, M, O, Q, U, Y, Z, T, WW, XX, KKK, LLL, MMM, NNN do probatório.
E foi porque não havia qualquer projecto aprovado, que a APL, não autorizou a realização de levantamentos topográficos nem de sondagens - cfr. alíneas R e S da tela factual assente.na sentença.
Acresce que nunca a Recorrente submeteu, para aprovação da APL qualquer outro projecto da obra em causa que suprimisse os aspectos negativos que, por diversas vezes, lhe foram comunicados, o que impõe a conclusão definitiva e inabalável de que não cumpriu as obrigações que sobre ela impendiam por força dos ajuizados Protocolos.
E isso resulta claro da fundamentação da sentença, mormente da parte que se volta a excertar:
"Do probatório resulta que a A. apresentou à apreciação da APL, entidade com jurisdição sobre o domínio público portuário em causa, um anteprojecto que propunha cérceas, volumetrias e superfícies cobertas excessivas para os usos admissíveis na zona, seja atendendo ao facto de se tratar da frente ribeirinha do CCB e do Mosteiro dos Jerónimos, seja atendendo ao facto dos usos dominantes na área se centrarem sobre a componente náutico-recreativa, a qual não se mostrava compatível com um projecto da dimensão do apresentado, seja atendendo ao impacte urbanístico do mesmo, não apenas no que se refere à fruição da frente do rio, mas também pelo agravamento das condições de acessibilidade, circulação e estacionamento da zona."
(…)
"O desuso da referida licença, no período de mais de uma década, durante o qual não foi apresentado pela A. Projecto de Museu que fosse considerado viável pelas entidades competentes, configura uma situação de perda de causa do negócio jurídico de atribuição da referida licença de uso privativo do domínio público, a qual, seja nos termos do art.° 27.°/1 ("Não cumprimento das obrigações do utente"), do Decreto-Lei n° 468/71, citado, seja nos termos dos artigos 795.°/1 e 801.°/2, do CC (resolução por incumprimento nos contratos bilaterais), justifica o direito de "resolução extintiva" do mesmo."
Em suma: independentemente de se tratar de uma instalação fixa ou não, o critério basilar legalmente definido para a qualificação jurídica do protocolo (cfr. art° 18°, número 2 do Decreto Lei nº468/71) era o reconhecimento a tal instalação do estatuto de utilidade pública, e no caso inexiste tal declaração relativamente à Recorrente ou ao seu projecto, o que implica que o protocolo haja sido, e bem, qualificado pelo Tribunal a quo, como uma licença
E a situação dos autos também não é enquadrável na previsão da alínea e) do art° 19° do Decreto-Lei 468/71, pois ela abrange instalações de distinta natureza como os estabelecimentos hoteleiros e similares, ou seja, conjuntos turísticos.
Na douta e sábia conclusão do EPGA, não faz sentido a pretendida "transmutação" da verificada licença (v. artigo 18 n° 2, parte final, do D.L. 468/71) em concessão, visto falhar, no caso, um elemento essencial desta última: o reconhecimento de estatuto de utilidade pública da instalação em causa (diploma citado, artigo 19 alínea e)).
Também este fundamento de recurso não motiva qualquer censura à sentença, pelo improcede.
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III- A Administração Pública apenas pode rescindir unilateralmente os direitos de uso privativo por motivos de interesse público, o que não se verificou neste caso. Não está provado qualquer interesse público na rescisão do contrato. O seu comportamento constitui assim acto ilícito.

É este o 3º fundamento recursório ao qual atribui importância crucial ao afirmar que antes até de se tratar da questão do direito à indemnização por rescisão com fundamento em interesse público, é preciso chamar a atenção precisamente para a inexistência de prova de que tenha sido com base neste interesse que as RR. extinguiram a relação jurídica com a A..
Na verdade, para a Recorrente só há direito à extinção se, conforme o artigo 28.º n.º1 do Decreto-Lei 468/71, de 5 de Novembro, os terrenos dominiais forem necessários à utilização pelo público sob a forma de uso comum ou se outro motivo de interesse público assim o exigir. Só há possibilidade de rescisão do contrato se houver um interesse público na retoma pela Administração daquele bem.
Cingindo-se ao caso em análise, a Recorrente conclui que não há interesse público na retoma do bem já que, como é do conhecimento público (pois trata-se de domínio público acessível a todos), a parcela em causa está actualmente abandonada, sem qualquer utilidade para o cidadão.
Apreciando:
Como acabamos de constatar, para a Recorrente a Administração Pública só pode rescindir unilateralmente os direitos de uso privativo por motivos de interesse público.
Mas tal entendimento é desde logo derrogado pelo regime jurídico previsto no Decreto-Lei n° 468/71, de 5 de Novembro, já citado e nos termos do qual, como vimos acima, os direitos de uso privativo atribuídos têm, sempre, natureza precária e, revistam eles a natureza de licença ou contrato de concessão, pode a autoridade competente para a sua atribuição revogá-los, ou rescindi-los, conforme for o caso, por incumprimento (art.° 27.° do mesmo diploma legal) ou, ainda, extingui-los por motivo de interesse público (art.° 28.° do citado Decreto-Lei n° 468/71).
Todavia, o Mº Juiz a quo, não deixando de afirmar que o interesse público é uma das formas de extinção dos direitos de uso privativo de parcelas do domínio público, fundamentou a sua decisão em que a Recorrente, com apresente acção, não logrou provar qualquer incumprimento dos "Protocolos" por parte das Rés, tendo tal decisão entendido, ainda, existir na esfera jurídica da APL e do IPM, o direito à rescisão da licença de uso privativo por incumprimento, sim, das obrigações do beneficiário, isso por apelo ao disposto no art.° 27.°, n.°1 do citado Decreto-Lei n° 468/71.
E esse entendimento é o correcto porquanto resultou provado nos autos que, para além do incumprimento dos "Protocolos" por parte da Recorrente, existiram, igualmente, razões de interesse público suficientes para fundamentarem a extinção do uso privativo em causa (art.° 28.°, n.°1 do aludido Decreto-Lei n° 468/71) sendo que, em tal situação, e no caso em concreto, não haveria direito a qualquer indemnização (quer porque se está perante uma licença – artºs 18° e 28.°, n° 2 do mesmo diploma legal -quer porque, mesmo que se estivesse perante uma concessão, não haveria qualquer custo relativo a obras realizadas para amortizar - art.° 28.° n° 3).
Em suma: o Tribunal a quo não invocou ou decidiu com base no referido interesse público, apenas o mencionando como uma das formas de extinção dos direitos de uso privativo, tendo sido com base art° 27° do citado diploma legal, que dispõe sobre o "Não cumprimento das obrigações do utente" que foi produzida a prova e demonstrado o incumprimento da ora Recorrente que legitimou, nos termos do seu número l, a rescisão dos protocolos em questão.
Improcede, pois, o fundamento de recurso de que se cuida pois é patente que, contra o sustentado pela Recorrente, flui dos autos que a prova produzida se ateve unicamente ao incumprimento da Recorrente face aos termos dos protocolos assinados, o qual determinou a revogação dos mesmos e a consequente inexistência do dever de indemnização pretendido por aquela.
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IV- Há direito a indemnização do particular perante a rescisão do contrato, mesmo que com fundamento em interesse público.
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É este o fundamento seguinte no escalonamento traçado pela própria Recorrente nas suas contra-alegações.
Segundo ela e e para censurar a sentença que entendeu adversamente, ainda que se considere que a rescisão do contrato teve fundamento em interesse público - o que só por dever de patrocínio se alega -, por se tratar de uma relação contratual há direito a indemnização nos termos da lei - artigo 28.º nº3 do Decreto-Lei nº 468/71, de 5 de Novembro, e 180.º c) CPA.
Em abono da sua tese, sustenta que o princípio da indemnização por rescisão contratual com fundamento em interesse público está previsto ainda no actual Código dos Contratos Públicos, consubstanciando um princípio geral básico do Direito Administrativo - o princípio do equilíbrio financeiro do contrato administrativo.
Mais aduz que de acordo com o artigo 180.º c) CPA, aplicável ao caso, a Administração pode rescindir unilateralmente os contratos por imperativo de interesse público, sem prejuízo do pagamento de justa indemnização. Este princípio aplica-se sem dúvida aos contratos relativos ao domínio público hídrico.
Terá a Recorrente razão sobretudo em face d que já antes se expendeu quanto aos demais fundamentos?
Entendemos que inexiste fundamento para o direito de indemnização pretendido pela Recorrente, pela singela razão de que, tal como se fundamento na decisão recorrida, a revogação em causa ocorreu com fundamento em incumprimento, por parte da Autora, das suas obrigações (art.° 27.°,n.°1 do Decreto-Lei n° 468/7), situação que, nos termos da lei, não confere direito a qualquer indemnização.
Daí que também não colha a invocação, pela Recorrente, do art° 28° do Decreto-Lei 468/71 e art. 180°, alínea c) do CP A, declarado que foi que a revogação teve por base o art° 27°,nº1 do Decreto-Lei 468/71, de 5 de Novembro: o incumprimento das obrigações resultantes para aquela dos protocolos, sendo certo que nos termos das alíneas d) e e) do art° 180° do CPA (entretanto revogado pelo CCP aprovado pelo Decreto-Lei 18/2008, de 29 de Janeiro), cabe à Administração Pública "fiscalizar o modo de execução do contrato" e "aplicar as sanções previstas para a inexecução do contrato".
Daí que seja evidente que a Recorrida agiu no estrito cumprimento dos deveres e direitos que legalmente lhe incumbem ou assistem.
Concluindo-se não haver qualquer direito a indemnizar a Recorrente, vale isso por dizer que improcede o fundamento de recurso a cuja análise se acaba de proceder.
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V- Por último, vejamos se a A. não tem qualquer culpa no facto de o contrato não estar ainda executado, não lhe sendo portanto imputável qualquer incumprimento.
No ponto, afirma a Recorrente que não tem qualquer culpa no facto de o contrato não estar ainda executado, não lhe sendo portanto imputável qualquer incumprimento.
Isso porque, não corresponde à verdade o que se diz no ponto 5. da sentença recorrida, em que o tribunal entende que a A. não cumpriu com as obrigações que para si resultavam do protocolo, designadamente a elaboração e a construção de um Museu viável e compatível com os usos da parcela do domínio público em apreço. Para a Recorrente, esta interpretação-conclusão dos factos é pura e simplesmente o modo com os RR pretendem que eles - os factos - sejam vistos.
O certo é que, diz ainda a Recorrente em reforço da sua tese, a A. tudo fez e tudo tentou para construir o Museu por ser o seu fim, o seu único interesse e se a Administração veta por critérios estéticos, se porque muda de ideias, se porque a sua interpretação do que é o interesse público é inconstante e impossível de acompanhar, não podem estas razões ser depois fundamento para se dizer que o incumprimento é da A..
Nesse sentido, aponta para os factos provados D, N, P, W, AÃ, AÃ', AAi), CC, LL, QQ, assim como todos os danos que se encontram provados (YY a JJJ) pelo que dizer que a A. não cumpriu as suas obrigações é falso perante a prova que está produzida no processo e constitui grave erro de decisão.
Enfim, para a Recorrente a inexecução do contrato não é imputável à A., mas apenas e tão só às constantes alterações de pensamento das RR..
Que dizer?
A alegação da Recorrente que não tem qualquer culpa no facto de o contrato não estar ainda executado e que não lhe é, por isso, imputável qualquer incumprimento, já foi sobejamente analisada no âmbito da apreciação dos fundamentos supra operada, em termos de se poder concluir, através da análise da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal, que dos Protocolos resultava a obrigação, para a Recorrente, de apresentação para aprovação, junto da APL e do IPM, de um projecto para a construção do "Museu da Criança".
Patenteia o probatório que a Recorrente apenas apresentou à ora Recorrida um anteprojecto em que propunha a construção de um edifício que constituía uma barreira arquitectónica, uma vez que possuía uma excessiva volumetria face à envolvência do local - alíneas U, Y Z, Z' do ponto II -Factos da decisão recorrida.
Embora as razões da não aprovação do referido anteprojecto tivessem sido comunicadas à Recorrente, esta nunca apresentou à Recorrida APL qualquer outro projecto ou sequer, aceitou localizações alternativas que apresentassem menos condicionantes de envolvência.
Enfatize-se- pois não é despiciendo - que o anteprojecto apresentado pela Recorrente à APL data de 1996 - cfr. alínea D do ponto II - Factos, da sentença recorrida e docs. de fls. 153 a 157 - e que a primeira apreciação negativa da ora Recorrida é, igualmente, de 1996, pelo que, face a essa objectividade fáctica, não pode a Recorrente afirmar que não tem qualquer culpa e que não lhe é imputável qualquer incumprimento.
Por esse prisma, não é passível de censura a sentença ao julgar, perante o incumprimento dos "Protocolos" por parte da Autora, que se constituiu-se na esfera jurídica da ora Recorrida o direito à rescisão do direito de uso privativo em causa, não consubstanciando esta rescisão nenhum incumprimento, por parte da ora Recorrida, dos "Protocolos", tendo, em consequência, absolvido a APL - Administração do Porto de Lisboa, S.A., de todos os pedidos.
Improcedem, pois, in totum, os fundamentos do recurso.
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Em suma e na senda do Parecer do EPGA:
Afigura-se claro que nos casos de incumprimento das obrigações do utente, como sucedeu, pode a Administração revogar os direitos de uso privativo do terreno do domínio público hídrico, daí não resultando direito algum a indemnização para aquele (neste sentido aponta, por exemplo, o acórdão de 11.02.2003 do Supremo Tribunal Administrativo - processo 0342/02).
Na situação em análise, nem o anteprojecto efectivamente apresentado pelo AAHA se mostrava compatível com a localização e usos urbanísticos da zona, nem tais aspectos negativos foram alguma vez suprimidos através de outro projecto da obra - perdurando este nefasto impasse, unicamente imputável à recorrente, por mais de uma década.
Decorrentemente, e porque a sentença não enferma de erro algum de julgamento, o recurso interposto não deverá ser provido, como de seguida se declara no dispositivo.
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3. -DECISÃO

Nesta conformidade, acordam, em conferência, os Juízes do 2º Juízo, 1ª Secção, do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

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Lisboa, 16-03-2017
(José Gomes Correia)
(António Vasconcelos)
(Pedro Marchão)