Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:939/19.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/15/2020
Relator:LINA COSTA
Descritores:PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITO À HABITAÇÃO
HABITAÇÃO SOCIAL.
Sumário:1. No artigo 3º, nº 3, em conjugação com o disposto no artigo 4º, ambos do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, encontra-se consagrado o princípio do contraditório, que, constituindo corolário do direito fundamental de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20º da CRP, garante uma participação efectiva das partes no desenrolar do litígio num quadro de equilíbrio e lealdade processuais e lhes assegura a participação em idênticas situações até ser proferida decisão, proibindo decisões-surpresa;

2. O indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 590º do CPC, acarreta a imediata inutilidade da prática de qualquer acto posterior de instrução ou de discussão – como a citação da parte contrária para contestar e juntar outros meios de prova e, consequentemente, a inquirição de testemunhas que tenham sido arroladas e a prestação de declarações e depoimentos de parte -, actos que, por inúteis, são proibidos por lei;

3. Havendo indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório é assegurado de forma diferida quer pela arguição de nulidade perante o tribunal da primeira instância quer em sede de recurso;

4. Peticionando a Recorrente o direito à habitação social, por pretender manter-se a residir num fogo municipal integrado no património edificado habitacional que o Município de Lisboa afecta ao arrendamento, sob gestão da Recorrida, sem ter observado os termos e condições legalmente previstos para o efeito, é de concluir que a sentença recorrida ao manter o acto que determinou a desocupação pela Recorrente do fogo em causa, não constitui violação do direito à habitação.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

M….., autora nos autos de acção administrativa instaurada contra GEBALIS - Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa, E.M., S.A., inconformada veio interpor recurso jurisdicional da sentença, de 30.5.2019, do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que julgou o pedido formulado na presente acção manifestamente improcedente e, em consequência, indeferiu liminarmente a petição inicial.
Na acção em referência a autora peticionou “(…) a nulidade do procedimento imposto pela primeira Ré em decorrência dos vícios ali presentes quanto à ausência de publicidade dos seus actos com prejuízos substanciais ao exercício do contraditório e da ampla-defesa; revogando-se na íntegra a decisão de desocupação exarada por aquela nos respectivos autos.

Nas respectivas alegações, a Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem: «
1. a Tendo sido o Recorrente notificado da decisão do Tribunal á quó, relativamente ao Processo n.° 939/19.OBELSB, Processo esse que correu os seus termos junto da Unidade Orgânica 1 do Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa,
2. a Diga - se em abono da verdade que a referida decisão deixou o Recorrente completamente confuso e estupefacto uma vez que o Tribunal á Quó não teve aspectos cruciais que deveriam de ter sido tidos em conta,
3. a O referido Tribunal violou um principio constitucionalmente consagrado que é o principio do contraditório, o Tribunal não designou a Audiência de Julgamento para que fossem ouvidas as testemunhas do Recorrente, bem como para que aquela prestasse o seu depoimento de parte, sendo que a Audição seria conveniente para que a decisão fosse outra,
4. a Convém acrescentar que o Tribunal á Quó tendo proferido a decisão que levou a cabo, colocou em causa um direito constitucionalmente consagrado, o Direito á Habitação,
5. a Diga - se em bom rigor com essa violação levada a cabo pelo Tribunal implicou que a Recorrente e a sua família não tenham uma habitação condigna, quando além do mais aquela encontra-se gravemente doente,
6. a Assim sendo logo e em face do que se foi expondo ao longo do presente Recurso entende-se por sinal que há todas as condições para que a decisão do Tribunal á Quó seja anulada,”
Requerendo a final:
“Deve […] ser revogada na integra a Decisão proferida pelo Tribunal á Quó, e em consequência ser proferida outra que julgue como provada a Acção intentada pela Recorrente.”

A Recorrida, citada para a acção e notificada para o recurso, apresentou contestação.

O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Notificadas do parecer do Ministério Público, as partes nada disseram.

Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos (mas com envio prévio a estes do projecto de acórdão), o processo vem à Conferência para julgamento.

A questão suscitada pela Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 635º e nos nºs 1 a 3 do artigo 639º, do CPC ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA, consiste, no essencial, em saber se a sentença recorrida padece de erros de julgamento por ter incorrido em violação do princípio do contraditório e do direito à habitação.

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos, conforme se transcreve:

«A) – A Autora é mãe de M….., nascido em 13.11.2011, de B….., nascido em 16.01.2013, e de N….., nascida em 17.12.2018. – Cfr. docs. juntos com a p.i.;

B) – Em 01.12.2018, a Autora ocupou o fogo municipal, sito na ….., em Lisboa, onde passou a residir, com os filhos identificados na alínea anterior. – Cfr. confissão [arts. 3.º a 5.º e 7.º da p.i.];

C) – Em 14.05.2019, a Autora recebeu o ofício, subscrito pela Vogal do Conselho de Administração da Gebalis - Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa, E.M., S.A., com a referência “....., de cujo teor, que aqui se dá por integralmente reproduzido, se extrai o seguinte:

“Notifica-se V. Exa. para proceder à desocupação, no prazo de três dias úteis a contar da recepção da presente notificação, da habitação municipal sita ….., deixando-a livre e devoluta, com fundamento nos seguintes factos:

a) V. Exa. ocupou a habitação municipal em causa sem autorização e à revelia da CML

b) Todas as ocupações não autorizadas de habitações municipais vagas são desocupadas.

A ocupação de uma habitação municipal ou pátios, jardins ou espaços vedados anexo à mesma, sem autorização e à revelia da CML/GEBALIS, constitui um crime de usurpação de coisa imóvel e introdução em lugar vedado ao público, conforme disposto nos artigos 215.º e 191.º do Código Penal, pelo que será igualmente apresentada a respectiva queixa-crime.

A presente ordem de desocupação é feita ao abrigo do nº 1 e nº 2 do artigo 4.º do Regulamento das Desocupações de Habitações Municipais (RDHM), publicado no 2.º suplemento ao boletim Municipal n.º 937, de 2 de Fevereiro de 2012, com as alterações introduzidas pela Proposta n.º 490/CM/2012 (deliberação n.º 91/ALM/2012), publicada no 2.º Suplemento ao Boletim Municipal N.º 980 de 29 de Novembro de 2012 e republicado no 2º Suplemento do BM n.º 992 de 21/02/2013 e do n.º 2 do artigo 35.º da Lei 32/2016, primeira alteração à Lei 81/2014, de 19 de Dezembro.

No caso de não proceder à desocupação no prazo acima referido, a Polícia Municipal executará a desocupação de forma coerciva, transferindo os bens para depósito municipal e, caso não os reclamem no prazo de 60 dias, serão considerados abandonados, podendo a CML/GEBALIS dispor deles, sem direito a qualquer compensação, nos termos do disposto no nº 6 do artigo 4.º do RDHM e no nº 5 do artigo 28.º da Lei 32/2016, de 24 de Agosto.

(…)

Informa-se ainda que a CML/GEBALIS atualmente dispõe dos seguintes programas de acesso à habitação e de apoio ao arrendamento, cuja informação está disponível em http://www.cm-lisboa.pt/viver/habitar
1. Regime de Acesso à Habitação Municipal (…)
2. Programa Renda Convencionada (…)
3. Subsídio Municipal ao Arrendamento (…)
Poderá ainda recorrer à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para a prestação de apoio habitacional, assim como da Junta de Freguesia da área da sua residência para encaminhamento para outros apoios sociais.”
– Cfr. confissão [art. 3.º do r.i.] e doc. junto com a p.i..

D) – Em 16.05.2019, a Autora deu entrada, no sítio electrónico da Câmara Municipal de Lisboa, do seguinte requerimento, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:

[Imagem no original]

– Cfr. doc. junto com a p.i..


**

A convicção que permitiu julgar provados os factos acima descritos formou-se com base na confissão da Autora e na análise dos documentos constantes dos autos, conforme discriminado em cada uma das alíneas dos factos assentes.»


Considerada a factualidade assente, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso.

Do erro de julgamento por violação do princípio do contraditório:

A este propósito a Recorrente alega que: a decisão proferida a deixou confusa e estupefacta por não ter tido em atenção aspecto cruciais; o tribunal recorrido violou o princípio do contraditório por não ter designado a audiência de julgamento para que fossem ouvidas as testemunhas que arrolou e pudesse prestar depoimento de parte, convenientes para que a decisão fosse outra; nem teve em conta a documentação que apresentou, ignorando que tem três filhos e se encontra gravemente doente, por sofrer de depressão e estar a ser acompanhada pelo Hospital Júlio de Matos.

Começando por estas últimas alegações, na decisão da matéria de facto o tribunal recorrido considerou provado nos pontos A) e B) que a autora é mãe de três filhos, que identificou, indicando as respectivas datas de nascimento, e que aquela reside, com os seus filhos, no fogo municipal sito na ….., em Lisboa, conforme documentos juntos à petição inicial – pelo que o juiz a quo não ignorou esses factos apenas não os considerou na apreciação de direito como a Recorrente pretenderia.
Sobre a doença grave de que alega padecer, na petição inicial apenas consta do artigo 6º que: “Além disso a Autora sofre de diversas patologias conforme documento que protesta juntar, como também o seu Filho de seu nome b….. conforme Documento nº 3 que junta[sublinhado nosso], sendo que não juntou o tal documento protestado e ainda que o tivesse feito o mesmo não serviria para provar o que não alegou no articulado (cfr. o disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 552º e no º1 do artigo 423º, do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA), concretamente que se encontra gravemente doente, sofre de depressão e está a ser acompanhada pelo Hospital Júlio de Matos, como vem agora afirmar no recurso.
Pelo que bem andou o juiz a quo quanto aos factos que considerou provados com base na documentação junta com a petição inicial.
Continuando, a Recorrente para além de não ter impugnado a decisão sobre a matéria de facto, não indica os factos que, no seu entender, ficaram por provar por não ter sido produzida a prova testemunhal e em que termos seriam susceptíveis de determinar a prolação de outra decisão, de procedência.
Acresce que, lida a petição inicial constatamos que não arrolou testemunhas e requereu a prestação de declarações de parte, sem indicação discriminada dos factos sobre que iriam recair, obstando assim que se possa aferir da respectiva necessidade.
Retornando à sentença recorrida, efectuado o relatório, consta da mesma o seguinte: “Aberta conclusão dos autos, verifica-se a existência de fundamento de indeferimento liminar da petição inicial, cumprindo, por isso, proferir o despacho a que alude o artigo 590.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA, não se facultando o contraditório, em razão de manifesta desnecessidade – cfr. artigo 3º, nº3, do CPC”.
O artigo 590º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, com a epígrafe “Gestão inicial do processo”, estatui no nº 1 que: “Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente (…)”.
O artigo 3º, com a epígrafe “Necessidade do pedido e da contradição”, dispõe no nº 3 que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Assim, esta norma em conjugação com a do artigo 4º [“Igualdade das partes”] consagra o princípio do contraditório na lei processual civil, aqui aplicável supletivamente, que, constituindo corolário do direito fundamental de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20º da CRP, garante uma participação efectiva das partes no desenrolar do litígio num quadro de equilíbrio e lealdade processuais e lhes assegura a participação em idênticas situações até ser proferida decisão, proibindo decisões-surpresa (v. acórdão do STJ, de 24.3.2017, no proc. 6131/12.7TBMTS-A.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Uma decisão-surpresa implica uma solução jurídica que a parte interessada não podia nem tinha a obrigação de prever.
O que não se verificou no caso em análise em que a Recorrente alegou ter ocupado um fogo municipal sem autorização para o efeito, pelo que não pode constituir surpresa para si a decisão do tribunal recorrido de que não lhe assiste direito a habitar o mesmo imóvel, sendo manifesta a falta de fundamento da sua pretensão impugnatória do acto da Recorrida que determinou a respectiva desocupação.
Mais, estando prevista no nº 1 do referido artigo 590º a possibilidade de indeferimento liminar quando o pedido seja manifestamente improcedente, a sentença recorrida que, ao abrigo de tal norma, assim decidiu não pode, também nesta perspectiva, ser considerada uma decisão-surpresa.
O indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido acarreta a imediata inutilidade da prática de qualquer acto posterior de instrução ou de discussão – como a citação da parte contrária para contestar e juntar outros meios de prova e, consequentemente, a inquirição de testemunhas que tenham sido arroladas e a prestação de declarações e depoimentos de parte -, actos que, por inúteis, são proibidos por lei (no mesmo sentido o acórdão do TRL, de 4.2.2020, no proc. 959/13.8TBALQ-A.L17 in www.dgsi.pt).
Não sendo de notificar o autor para se pronunciar sobre a intenção do tribunal de indeferir liminarmente a petição inicial, por manifesta desnecessidade, o princípio do contraditório é assegurado de forma diferida quer pela arguição de nulidade perante o tribunal da primeira instância quer em sede de recurso (v. o acórdão do TRP, de 11.4.2019, no proc. 699/13.8GCOVR-B.P1 in www.dgsi.pt).
Face ao exposto não procede este fundamento do recurso.

Do erro de julgamento por violação do direito à habitação:

Alega a Recorrente que a decisão recorrida colocou em causa o direito à habitação, constitucionalmente consagrado, por não ter para si e a sua família, uma habitação condigna.
Da fundamentação de direito da sentença recorrida extrai-se, a este propósito, o seguinte:
“(…)
Além disso, mostra-se, de igual modo, manifesta a improcedência da pretensão formulada, com fundamento na invocada falta de audiência prévia, pois tendo a Autora ocupado ilicitamente o imóvel em causa – sem o acto atributivo do direito a habitar esse fogo municipal, em observância às normas legais e regulamentares aplicáveis –, não se afigura, no caso, possível outra actuação por parte da Entidade Demandada, que não a emissão da ordem de desocupação.
Acresce que, conforme julgou o Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão de 11.07.2018, proferido no Proc. n.º 747/18.5BELSB – em situação análoga à dos presentes autos –, o direito à habitação, consagrado no artigo 65.º da CRP, enquanto direito fundamental de natureza social, «“pressupõe uma mediação do legislador ordinário, destinado a concretizar o respectivo conteúdo” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 829/96), dele não se retirando um “ direito imediato a uma prestação efectiva” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/93).
Em concretização deste princípio a Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, contempla uma certa dimensão do direito à habitação no regime de habitação social, ao permitir a ocupação de fogos de agregados familiares com escassos rendimentos, mediante o pagamento de uma “renda social” ou “apoiada”.
Independentemente disso, a habitação social é, em si mesma, “um bem escasso e que visa acudir à satisfação das necessidades básicas da população mais carenciada, pelo que, a ocupação da mesma deve ser atribuída após uma ponderação concreta das necessidades dos indivíduos e famílias elegíveis para o efeito, de modo a que se possa equilibradamente proceder a uma distribuição correcta das habitações existentes” (Acórdão do TCAN de 9 de Fevereiro de 2007 in Proc. n.º 01321/04.9 BEPRT).
Por conseguinte, estando em causa a atribuição de um bem escasso (habitação social) a determinado agregado familiar, o legislador prevê um conjunto de exigências de que faz depender a atribuição do direito a utilizar a habitação social, (cfr. designadamente, artigos 1.º, 3.º, 5.º, 6.º, 14.º e 18.º do Regulamento do Regime de Acesso à Habitação Municipal, publicado no 2.º Suplemento ao Boletim Municipal da CM de Lisboa, nº 992, de 21.02.2013), exigências essas que não foram cumpridas pelo ora Recorrente.»” [sublinhados nossos].

Com efeito, e de acordo com entendimento vertido no acórdão do TCAN, de 26.7.2019, proc. 00720/19.6BEPRT, in www.gdsi.pt, ao qual aderimos, “(…) é consabido que a Constituição estabelece na Parte I, dois tipos de direitos fundamentais: os direitos, liberdades e garantias que integram o Título II da Parte I, bem como os direitos de carácter análogo (art.º 17º) e os direitos económicos, sociais e culturais, vulgo “direitos sociais” que integram o Título III da Parte I, a que faz corresponder regimes jurídicos diferentes.
No âmbito desta distinção dos direitos fundamentais previstos na Constituição e segundo os ensinamentos de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. Revista, págs. 344/345, o direito à habitação apresenta uma dupla natureza, consistindo, por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste forma de direito negativo, ou seja, de direito de defesa, determinando um direito de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias (cf. art.º 17º). Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la, traduzindo-se na exigência de medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objetivo. Neste sentido, o direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio direito social.
Assim sendo, o direito à habitação, que na veste de direito de defesa, análogo aos direitos liberdades e garantias, é diretamente aplicável, nos termos do art.º 18º, n.º 1, da Constituição, implica para o Estado a obrigação de se abster de adotar condutas que, de modo arbitrário, privem o cidadão do acesso a uma habitação.
Já no que se refere à vertente da obtenção de uma morada decente ou condigna, o direito à habitação assume essencialmente uma dimensão social de “um direito a prestações, de conteúdo não determinável ao nível das opções constitucionais, a pressupor, antes, uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, cuja efetividade está dependente da reserva do possível, em termos políticos, económicos e sociais(cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 374/2002).
A Lei n.º 81/2014 concretiza legislativamente uma certa dimensão do direito à habitação, uma vez que contempla um regime de habitação social, que permite a ocupação de fogos por parte de agregados familiares com menores rendimentos, mediante o pagamento de uma renda “social” ou “apoiada”, ou seja, inferior à de mercado.
(…).
E como se conclui no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.03.2006, processo n.º 01203/05, “o direito à habitação, assegurado pelo art.º 65º da CRP, é um direito da generalidade dos cidadãos, que não é necessariamente afetado quando é retirado a determinado agregado familiar o direito a ocupar uma habitação social para o atribuir a outro agregado”.
Por isso mesmo, porque está em causa a atribuição de um bem escasso (habitação social) a um determinado agregado familiar, o que é feito necessariamente em detrimento de outras famílias com idênticas necessidades, o legislador prevê um conjunto de exigências de que faz depender o direito a utilizar a habitação social. (…)” [sublinhados nossos].

Donde, peticionando a Recorrente o direito à habitação social, por pretender manter-se a residir num fogo municipal integrado no património edificado habitacional que o Município de Lisboa afecta ao arrendamento, sob gestão da Recorrida, sem ter observado os termos e condições legalmente previstos para o efeito, é de concluir que a sentença recorrida ao manter o acto que determinou a desocupação pela Recorrente do fogo em causa, não constitui violação do direito à habitação.

Razão porque também não procede este fundamento do recurso.

Por tudo quanto vem exposto acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário.

Registe e Notifique.

Lisboa, 15 de Outubro de 2020.

(Lina Costa – relatora que consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Carlos Araújo e Ana Paula Martins).