Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1456/18.0 BELSB-A
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:04/06/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:PEDIDO DE ESCUSA DE JUIZ
FUNDAMENTOS
Sumário:I- Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 119.º do CPC (pedido de escusa por parte do juiz), “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
II- Não constitui fundamento de escusa a circunstância de a juiz requerente ter sido, há mais de uma década, advogada estagiária na sociedade de advogados em causa nos autos e ter tido como patrona a I. Advogada que patrocina a Autora.

III- As razões em que se funda o pedido de escusa não consubstanciam um condicionalismo adequado a que a intervenção daquela magistrada possa ser encarada com desconfiança sobre a sua imparcialidade, de modo a que haja a necessidade de a defender de qualquer suspeita de não ser capaz de a conservar.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
DECISÃO

1. A Senhora Juíza de Direito a exercer funções no Juízo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, Dra. …………………., veio, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.º 1, in fine, do CPC aplicável ex vi artigo 1º do CPTA, apresentar pedido de escusa na acção administrativa que com o nº 1456/18.0 BELSB lhe foi distribuída e em que a aí Autora ………………., constituiu como seus mandatários os advogados Dra. A ………………. e Dr. P………….., ambos da sociedade de advogados R………………..- Sociedade de Advogados de Responsabilidade Limitada.

Fundamentou tal pretensão no facto de, no período em que foi advogada-estagiária [desde Março de 2006 a Maio de 2008], ter tido como sua patrona a Advogada da Autora. Alegou ainda que continuou a exercer a sua actividade profissional naquela sociedade de Advogados até 31.07.2009 e que interveio em “diversos processos judiciais na qualidade de mandatária da ………….., S.A.”.

2. Com o pedido de escusa juntou cópia da petição inicial da acção onde figura como Autora L ……………….., S.A. e réu I……………………..e uma procuração passada pela L ………………a favor dos advogados Dra. A………………………….e Dr. P …………………..

3. Apreciando:

4. Aos juízes na sua missão de julgar é exigido estatutariamente, como garantia do seu exercício, que o façam com o dever de independência e imparcialidade, nos artigos 4.º e 7.º do EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30-7, sucessivamente alterado e republicado pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto.

5. Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o juízo-valorativo com sujeição apenas à lei, à consciência e às decisões dos tribunais superiores. E ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida.

6. Pode dizer-se, de um modo geral, que a causa de recusa do juiz, ou pedido de escusa do juiz, há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objecto da sua decisão (cfr. Alberto do Reis, Comentário, vol. I, p. 439 e ss.).

7. Esses especiais contactos e/ou relação(ões) deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz.

8. Como já repetidamente afirmamos, a imparcialidade é um atributo fundamental dos juízes e da função judicial que visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo. Recai sobre os julgadores o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.

9. É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa” , estando constantemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante…” (Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pelo ASJP).

10. «No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição -art.32.º, n.º9-, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita.» (cfr. ac. do STJ de 14.06.2006, proc. n.º 1286/06-5).

11. A escusa do juiz tem como um único objectivo ou finalidade, a de garantir a imparcialidade do juiz, que se presume e que só em situações limite por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve o mesmo ser escusado de intervir num processo.

Vejamos o presente caso.

12. A Senhora Juíza escusante invoca a susceptibilidade de ser posta em causa a sua imparcialidade, baseando-se na relação profissional que manteve na sociedade de advogados em questão e, em particular, com os Ilustres Mandatários que constam da procuração forense passada pela Autora.

Mas isso ocorreu há mais de uma década.

13. Avaliados os elementos invocados, julga-se não existirem razões para colocar em causa a imparcialidade da Senhora Juíza, sob o ponto de vista subjectivo, não se vislumbrando motivos para admitir que o seu relacionamento pessoal e profissional com aqueles causídicos possa ter repercussões na sua intervenção nos autos principais a que este incidente é apenso.

14. Nem sob a perspectiva objectiva, se considera que a situação narrada possa, perante a comunidade em geral, colocar em causa a sua isenção e imparcialidade da Senhora Juíza escusante.

15. O eventual melindre que a situação lhe possa causar decorre das inevitáveis relações que se estabelecem na vida em sociedade; nada para além disso.

16. Veja-se, em caso análogo (e até mais ponderoso), o que se concluiu no ac. de 9.12.2010 do STJ, no proc. n.º 3755/05.2TDPRT.P1-A.S1:

I - Os fundamentos de dúvida sobre a imparcialidade de um juiz podem conduzir à impossibilidade de o juiz exercer a sua função num processo, a qual deve ser declarada independentemente de qualquer objecção suscitada pelos participantes processuais – impedimentos –, ou podem dar aos sujeitos processuais a possibilidade de recusarem a intervenção do juiz – suspeições.

II - O art. 43.º, n.º 1, do CPP não indica taxativamente os fundamentos de suspeição – e, na verdade, são várias as razões que podem levar a pôr em causa a capacidade de um juiz se revelar imparcial –, o que releva não é tanto o facto de o juiz conseguir ou não manter a sua imparcialidade, mas defendê-lo da suspeita de a não conservar, não dando azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados – cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, págs. 303/304.

III - É certo que o filho da requerente do pedido de escusa é estagiário de advocacia, tendo como patrono o advogado subscritor da motivação de recurso que deve ser apreciada pela mesma no Tribunal da Relação onde exerce funções; tal circunstancialismo não conforma qualquer perigo de a intervenção da requerente no julgamento do recurso ser encarada, pela comunidade, com desconfiança e suspeita sobre a sua imparcialidade.

IV - Desde logo, porque na base dele, não se pode estabelecer um relacionamento especial, pessoal e directo entre a requerente e os associados e colaboradores da sociedade de advogados, de modo a criar a suspeita de que a requerente não seja capaz de conservar a sua imparcialidade nos processos em que qualquer deles tenha intervenção e, por outro lado, o relacionamento do filho da requerente com a mesma sociedade, particularmente com o advogado seu patrono, não só não se reflecte, directamente, na esfera pessoal da requerente, como não implica, ainda que na perspectiva exclusiva do filho da requerente, uma qualquer forma de dependência pessoal condicionante de lhe ser atribuído o título de advogado – cf. arts. 184.º, 185.º, n.º 1, 186.º, n.ºs 4 e 5, todos do EOA..

V - Diferente seria se o próprio filho da requerente, ainda que sob orientação do patrono, exercesse funções próprias de advogado no processo em causa – cf. art. 189.º, n.º 1, al. b), do mencionado Estatuto.

(…)”

17. Em suma, os fundamentos em que assenta o pedido de escusa não consubstanciam “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

18. Pelo exposto, decidindo, indefere-se o pedido de escusa apresentado, devendo, por conseguinte, manter-se a Senhora Juíza Dra. …………………… como a titular do processo.

Sem tributação.

Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

PEDRO MARCHÃO MARQUES