Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:15/20.2BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:11/26/2020
Relator:JORGE PELICANO
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR.
DIREITOS DE AUDIÊNCIA E DEFESA.
Sumário:A aplicação de sanção disciplinar no âmbito do processo sumário previsto no RDLPFP, sem terem sido observados os direitos de audiência e defesa (n.º 10 do artigo 32.º e art.º 269.º, n.º 3, ambos da CRP), importa a nulidade dessa decisão nos termos do disposto no art.º 161.º, n.º 2, al. d) do CPA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

A F... – Futebol, SAD, vem interpor recurso do acórdão datado de 07/01/2019, proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto no âmbito do processo n.º 68/2018, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que, em sede de processo sumário, havia condenado a aqui Recorrente a pagar o valor total de € 2.296,00 pela prática de três infracções disciplinares p. e p. pelos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º n.º 1, als. a) e b), ambos do Regulamento Disciplinar da LPFP, alegadamente cometidas aquando do jogo de futebol n.º 10108, realizado entre o F... e o G..., no dia 11/08/2018, no Estádio do D....

A Recorrente, no recurso que dirigiu a este TACS, apresentou as seguintes conclusões com as suas alegações de recurso:
A. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 07/01/2020 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática de três infracções disciplinares p. e p. pelos arts. 127.°-1 e 187.°-1, a) e b) do RD, punindo-a em multa no valor total de € 2.296,00.

B. Acontece que, o acto punitivo proferido em 21/08/2018, e mantido pela Deliberação emitida em 18/09/2018 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol é, desde logo, nulo por violação do direito de defesa da Recorrente, e bem assim por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência.

C. Com efeito, a norma plasmada no art. 13.°, al. f) do RD, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no arts. 32.°, n.° 10 e 2 da CRP, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art. 20.°, n.° 4 da mesma Lei Fundamental — o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais.

II
D. Não se conforma a Recorrente com a decisão condenatória, porquanto desprovidos que são os autos de provas que deponham em favor da sua responsabilização, ou seja, que o clube teve uma actuação culposa na verificação dos factos, mostrava-se necessariamente prejudicada a sua condenação pelas infraeções disciplinares imputadas.
E. Em primeiro lugar, a mera circunstância de a bancada na qual teve origem a deflagração de engenhos pirotécnicos estar - por princípio - afecta a adeptos da Recorrente, sem sequer haver prova da exclusividade dessa afectação, não permite concluir - com toda a probabilidade próxima da certeza ou, pelo menos, para além de toda a dúvida razoável - que os autores das deflagrações tenham efectivamente sido sócios ou simpatizantes da recorrente.
F. Assim, não se tendo apurado qual a concreta identificação dos adeptos infractores, não bastava à Recorrida, e agora ao Tribunal a quo, invocar que os factos ocorreram em bancada afecta a adeptos desta para que se pudesse concluir (e levar à matéria assente) que os autores das condutas sub judice eram sócios ou simpatizantes da F....
G. Autoria essa que deve ser dada como não provada, o que desde já se requer.
H. Considerando as infracções em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que não só os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da F... - Futebol SAD, mas ainda que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da F... - Futebol SAD.

I. O ónus da prova em processo disicplinar cabe ao titular do poder disicplinar, pelo que, não tem arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada.

J. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência.

K. E precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente.

L. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.°, f), do RD, pode contrariar esta quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.

M. A míngua de meios de prova demonstrativos da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a Recorrente falhou nos seus deveres, entendendo que caberia à Recorrente ilidir a presunção de culpa pela qual o Tribunal se segue.

N. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da Recorrente somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.

O. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a Recorrente é titular e, do do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.

P. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s).

Q. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência,

R. e que não se imponha à Recorrente (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante,

S. Se assim não se fizer, incorrer-se-á em inconstitucionalidade: pois é inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2 o da CRP), a interpretação dos artigos 127.°-1, 187.°-1, a) e b), e 258.°, n.° 1, do RDLPFP, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais.

T. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.°, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.° 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação:a a actuação culposa da recorrente.

U. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado.

V. Sendo a actuação culposa um dos ‘‘demais elementos das infracções" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 127.°-l e 187.°-1, a) e b) do RD.

W. Como tal, é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 187.°, n.° 1, alíneas a) e b), 127.º 1 e 258.°, n.° 1, do RDLPFP, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 13.°, al. f), do RDLFPF, que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.


III

X. No que concerne à condenação pela infracção p. e p. pelo art. 187.°, n.° 1, a) do RD, sempre se diga que é completamente impossível à recorrente impedir manifestações vocais desse tipo e fica sempre por demonstrar a efectividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido.

Y. Responsabilizar disciplinarmente os clubes pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa puni-los por algo que, objectivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar, o que equivale a uma responsabilidade objectiva. Pelo que, não podia o Tribunal a quo condenar a recorrente pela violação do art. 187.°-1, a) do RD.


IV

Z. Ao condenar a Recorrente simultaneamente pelas infracções tipificadas nos arts. 127.° e 187.° do RD. a decisão do Tribunal a quo viola o princípio do ne bis in idem, plasmado no art. 12.° do RD.

AA. Desde logo porque em ambas as normas se tipificam comportamentos incorrectos do público, qualificando-se e agravando-se uma em função da perigosidade para a integridade pessoal de terceiros, pelo que é óbvio que ao clube que deva responder por tais comportamentos só pode imputar-se a mais grave.


V

BB. As custas fixadas pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.M e 268.°-4 daCRP).

CC. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.° e 268.°-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.

DD. O artigo 2.°, n.°s 1, 4 e 5 da Portaria n.° 301/2015, conjugado com a tabela constante do Anexo I (l.a linha) dessa mesma Portaria, em acções de arbitragem necessária com o valor de € 2.296.00, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.°, n.° 2, da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.°, n.° 1, da CRP).”



A Federação Portuguesa de Futebol, ora Recorrida, apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:

1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitrai do Desporto, datado de 7 de janeiro de 2020, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multas por aplicação dos artigos 127.5 e 187.5, n.s 1, al. a) e b) do RD da LPFP.
2. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da F... e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos, em jogo em que a Recorrente defronto o G..., no dia 11 de setembro de 2018, jogos em que a equipa da ora Recorrente participou na qualidade de visitada.
3. Sinteticamente, de acordo com os relatórios do jogo e de policiamento desportivo, os adeptos da Recorrente entoaram cânticos ofensivos e deflagraram dois engenhos pirotécnicos, proibidos por lei de entrar no recinto desportivo. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
4. Ao contrário do que entende a Recorrente, o ato punitivo proferido em processo sumário pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrida não será nulo por violação dos direitos de audiência e de defesa da Recorrente, e bem assim, por violação dos princípios da culpa e da presunção de inocência, pois, ao contrário do que entende a Recorrente, os artigos 13Q e 2145 do RD da LPFP não são inconstitucionais.
5. Isto porque, as normas constantes do RD da LPFP, em especial as constantes dos artigos 133 e 214.3, foram aprovadas pelos clubes participantes em competições profissionais, entre os quais a Recorrente, em sede de autorregulação e na medida em que o direito ao desporto tem uma aceção bastante ampla, que inclui o desporto profissional e o direito a organizar e participar em competições desportivas, a pronúncia pela inconstitucionalidade do artigo 214.3 do RD da LPFP, violaria, assim, o conteúdo essencial desse direito, neste segmento, por conseguinte, a concordância/harmonização do direito ao desporto com a garantia de audiência e defesa num momento anterior à prolação do ato punitivo não pode ser outra senão a constante do RJFD e, por conseguinte, no RD da LPFP, até porque esta audiência será sempre garantida quando, em sede de recurso, se passa para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos, sendo este, o único modelo que permite a realização de milhares de competições desportivas federadas, as quais, a sufragar a leitura restrita da Recorrente, pura e simplesmente colapsariam.
6. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.3 do rd da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, tais relatórios têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos {cfr. Artigo 13.9, al. f) do RD da LPFP).
7. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente, que aprovou as referida forma de processo com ela se conformando.
8. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios dos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.
9. Assim, os Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.q, al. f) do RD da LPFP).
10. Isto não significa que o Relatório dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres,
11. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.9 do Código Civil.
12. Para além da presunção de veracidade dos factos constantes nos relatórios dos Delegados da LPFP, bem como dos esclarecimentos adicionais prestados pelos mesmos, ter-se-á, ainda, que atender à força probatória dos relatórios das forças policiais.
13. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
14. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.
15. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitrai. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
16. Decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir comportamentos como os sub judice através do cumprimento dos deveres informando e in vigilando dos seus adeptos, em especial, do cumprimento dos deveres estatuídos no art.9 35.9, n.9 1, ais. a), b), c) e o) do Regulamento das Competições da LPFP.
17. Com efeito, a imputação culposa das condutas infratoras dos adeptos da Recorrente, pelas quais esta é diretamente responsável (tal como determina a previsão legal das infrações disciplinares em causa), resulta, pois, do incumprimento culposo de deveres de prevenção e de ação no âmbito da violência associada ao Desporto que lhe estão cometidos e que levaram, em nexo de causalidade adequado e direto, ao resultado aqui verificado: os comportamentos perigosos e incorretos dos seus adeptos e simpatizantes, num espetáculo desportivo.
18. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos.
19. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
20. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitrai do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por 14 vezes em sede de recurso de revista.
21. Não se verifica, também, a subsidiariedade entre os artigos 127.3 e 187.3 do RD da LPFP, porquanto estamos perante factos distintos, punidos por normas, também elas distintas.
22. Por outra parte, o valor das custas finais fixado pelo Tribunal o quo não é, como alega a Recorrente, desproporcional, nem compromete, de forma séria e evidente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.3, n.2 1 e 268.3, n.Q 4 do CRP).
23. Neste sentido entendeu, e bem, o Tribunal Constitucional, mediante Acórdão datado de 7 de janeiro de 2020, não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 2.2, n.9s 1 e 4, da Portaria n.e 301/2015, de 22 de setembro, em conjugação com a primeira linha da tabela do seu Anexo I.
24. Motivo pelo qual deverá, também, improceder a inconstitucionalidade suscitada resultante da conjugação do disposto no art. 2.2, n.2s 1 e 5 (e respetiva tabela constante do Anexo I, 23 linha, da Portaria n.2 301/2015), com o previsto nos artigos 76.n°s 1, 2 e 3 e 77.2, n.2s 4, 5 e 6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e da proporcionalidade.
25. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
26. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitrai, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pelas infrações disciplinares p. p. pelo artigo 127.2 e 187.2,1, al. a) e b) do RD da LPFP.”.

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O Digníssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que defende que deve ser negada procedência ao recurso e diz acompanhar a fundamentação vertida nas contra-alegações, bem assim como o decidido nos acórdãos n.º 01/18.2BCLSB, de 19/06/2019, n.º 039/19.2BCLSB, de 16/01/20 e n.º 048/19.1BCLSB, de 12/12/2019, todos do STA e ainda, quanto à matéria das custas arbitrais, o decidido pelo Tribunal Constitucional no ac. n.º 392/18, de 16/10/2019.
A Recorrente apresentou resposta em que se opôs a tal sentido de decisão.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à Conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.
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Há, assim, que decidir, perante o alegado nas conclusões de recurso, se o acórdão arbitral recorrido sofre dos erros de julgamento que lhe são imputados e se deve ser revogado por:
- a norma que consta e 214.º do RDLPFP, que, no âmbito do processo sumário não admite a audição do arguido em momento anterior ao da aplicação da sanção disciplinar, violar os direitos de audiência e defesa e ainda os princípios da culpa e da presunção de inocência (art.º 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP);
- a norma que consta do art.º 13.º, al. f) do RDLPFP, ao atribuir presunção de veracidade aos relatórios, se mostrar inconstitucional;
- não ter sido feita prova demonstrativa de actuação ilícita e culposa da Recorrente, devendo dar-se como não provado que foram os adeptos da Recorrente que praticaram os factos que levaram à punição desta;
-o entendimento que dá como provado, com fundamento no art.º 13.º, al. f) e nos artigos 187.°, n.° 1, alíneas a) e b), 127. n.º1 e 258.°, n.° 1, do RDLPFP, que o clube violou os deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes, violar o princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e o princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP);
- existir entre os artigos 127.º e 187.º do RDLPFP uma relação de subsidiariedade, não podendo a Recorrente ser punida pela prática das duas infracções ali previstas, sob pena de violação do princípio ne bis in idem;
- o valor das custas arbitrais fixado nos termos do art.º 2.°, n.°s 1, 4 e 5 da Portaria n.° 301/2015, conjugado com a tabela constante do Anexo I (l.a linha) dessa mesma Portaria, violar, no caso, o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o direito de acesso à justiça e o princípio da proporcionalidade a que se referem os artigos 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, todos da CRP.
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Dos factos.
Na decisão recorrida foi fixada a seguinte matéria de facto:
a. ) No dia 11 de Agosto de 2018, no Estádio do D..., no P…, realizou-se o jogo n.º 1… (203.01.00) entre "F... - Futebol, SAD / G... - Futebol, SAD", a contar para a l.1 jornada da "Liga NOS". [Relatório do Árbitro, Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo]
b. ) A Bancada Sul (sectores 8, 9 e 10) do Estádio do D... é a zona do estádio reservada unicamente a membros do Grupo Organizado de Adeptos "S…" afecto ao F.... [Relatório do Delegado, Relatório de Policiamento Desportivo e esclarecimentos prestados pelos Delegados da Liga e PSP]
c. ) No âmbito do jogo em apreço, os membros do Grupo Organizado de Adeptos "S…" afectos ao F... foram instalados na Bancada Sul (sectores 8, 9 e 10) do Estádio do D..., estando identificados com adereços do respectivo clube, designadamente cachecóis, bandeiras, camisolas e tarjas. [Relatório do Delegado, Relatório de Policiamento Desportivo e esclarecimentos prestados pelos Delegados da Liga e PSP]
d. ) Os adeptos do GOA "S…" afecto ao F..., situados na indicada bancada do Estádio do D..., deflagraram os seguintes potes de fumo: 1 (um) aos 14 minutos da primeira parte e 1 (um) aos 45 minutos da primeira parte. [Relatório do Delegado, Relatório de Policiamento Desportivo e esclarecimentos prestados pelos Delegados da Liga e PSP];
e. ) Os adeptos do GOA "S…" afecto ao F...; situados na sobredita bancada do Estádio do D..., aos 16 minutos da segunda parte, entoaram por duas vezes o cântico "S..., S..., S..., S..., S..., S..., Filhos da Puta, S...". [Relatório do Delegado, e esclarecimentos prestados peios Delegados]
f. ) O F... não adoptou as medidas preventivas adequadas e necessárias a fim de impedir que os seus adeptos entrassem, permanecessem e deflagrassem no interior do Estádio do D..., os artefactos pirotécnicos descritos no facto provado d). [Convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade]
g. O F... não adoptou as medidas preventivas adequadas e necessárias à evitação dos acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, descritos no facto provado e). [Convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade]
h. ) O F... agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade organizadora do evento desportivo em causa e clube participante no dito jogo de futebol. [Convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade]
i) Na presente época desportiva, à data dos factos, o F... ainda não havia sido sancionado, por decisão transitada em julgado, pelo cometimento de qualquer infracção disciplinar. [Cadastro disciplinar do F...]
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Direito
Da violação do direito de audiência e defesa.
A Recorrente começa por alegar que, por força da norma que consta do art.º 214.º do RDLPFP, não lhe foi conferida a possibilidade de se pronunciar e defender em momento anterior ao da aplicação da sanção disciplinar, o que diz importar a nulidade desta por violação dos direitos de audiência e defesa e ainda os princípios da culpa e da presunção de inocência, conforme disposto nos artigos 30.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da CRP.
O art.º 214.º do RDLPFP estatui que “salvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar.”

A Recorrida reconhece que o procedimento disciplinar em que aplicou a sanção que a Recorrente impugna, seguiu sob a forma de processo sumário.
Diz, no entanto, que não se verifica a apontada inconstitucionalidade, por a garantia dos direitos de audiência e defesa do arguido no âmbito de processos sancionatórios ter de se harmonizar com o direito ao desporto, que é também um direito constitucionalmente consagrado.
Entende que o afastamento do “direito de audiência prévia do arguido” no processo sumário (artigos 259.º, n. 1 e 214.º, do RD da LPFP) se justifica por estar em causa o exercício da acção disciplinar relativamente “a infrações disciplinares menos graves ou, em qualquer caso, infrações disciplinares puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos (artigo 257.º do RD da LPFP) e que o mesmo é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito, nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP”.
Lembra ainda que o prazo de decisão de decisão é de cinco dias a contar da recepção dos relatórios dos árbitros, delegados ou de policiamento desportivo e respectivos autos, nos termos do art.º 259.º, n.º 3 do RD da LPFP, o que diz ser necessário para se permitir o normal e atempado desenrolar das competições.
Conclui, dizendo que:
“(…)
(i) as normas constantes do RD da LPFP, em especial as constantes dos artigos 139 e
214.9, foram aprovadas pelos clubes participantes em competições profissionais, entre os quais a Recorrente, em sede de autorregulação;
(ii) Na medida em que o direito ao desporto tem uma aceção bastante ampla, que inclui o desporto profissional e o direito a organizar e participar em competições desportivas, a pronúncia pela inconstitucionalidade do artigo 214.2 do RD da LPFP, violaria, assim, o conteúdo essencial desse direito, neste segmento;
(iii) A concordância/harmonização do direito ao desporto com a garantia de audiência e defesa num momento anterior à prolação do ato punitivo não pode ser outra senão a constante do RJFD e, por conseguinte, no RD da LPFP;
(iv) O modelo, assim desenhado, é o único que permite a realização de milhares de competições desportivas federadas, as quais, a sufragar a leitura restrita da Recorrente, pura e simplesmente colapsariam.”.

Tal como refere a Recorrente, a questão já foi tratada, entre outros, pelo acórdão n.º 4/19.0BCLSB, de 10/12/2019, deste TCAS, que decidiu pela apontada inconstitucionalidade.
Recentemente, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 594/2020, datado de 10/11/2020, também julgou inconstitucional “a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional”, o que fez de acordo com a seguinte fundamentação:
“(…)

A República Portuguesa, enquanto Estado Democrático de Direito, garante a existência de um processo disciplinar justo. Sendo um instrumento para apurar e punir infrações disciplinares, o processo disciplinar apresenta relações com o Direito Processual Penal, designadamente na medida em que se encontra também necessariamente subordinado a princípios e regras que assegurem os direitos de defesa.
A Constituição assume aquela relação, no artigo 32.º, sob a epígrafe “garantias do processo penal”, ao assegurar, no n.º 10, as garantias do direito de audiência e defesa nos processos contraordenacionais e em «quaisquer processos sancionatórios». Esta norma constitucional foi introduzida pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios.
De acordo com Germano Marques da Silva e Henrique Salinas «O n.º 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. Neste sentido, entre outros, os Acs. n.ºs 659/06, 313/07, 45/08, e 135/09, esclarecendo-se ainda, no Ac. n.º 469/97, que esta exigência vale não apenas para a fase administrativa, mas também para a fase jurisdicional do processo» (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (coord.), vol. I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 537).
Pronunciando-se sobre o sentido da garantia prevista no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, o Tribunal Constitucional referiu no Acórdão n.º 135/2009, do Plenário, ponto 7:
«(…) [C]omo se sustentou nos Acór­dãos n.ºs 659/2006 e 313/2007, com a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nes­ses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressa­mente assegurados aos argui­dos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspon­dente ao atual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qual­quer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qual­quer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defen­der-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejei­tada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garan­tias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitu­cional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assem­bleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466)».

No Acórdão n.º 338/2018, da 3.ª Secção, ponto 14, o Tribunal voltou a afirmar:
«No que diz respeito ao n.º 10 do artigo 32.º, referiu-se no Acórdão n.º 180/2014 que o mesmo releva “no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004)».

Em suma, e como se reconhece no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, os direitos de audiência – de ser efetivamente ouvido antes do decretamento da sanção –, e defesa – de apresentar a sua versão dos factos, juntar meios de prova e requerer a realização de diligências – constituem uma dimensão essencial tanto do processo criminal como dos processos de contraordenação como, finalmente, também de todos os processos sancionatórios. No caso dos processos sancionatórios disciplinares no contexto da função pública, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa é reforçada ainda pelo artigo 269.º, n.º 3, da Constituição. O sentido útil desta «explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa» (Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 841).
Exigindo o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição que o arguido nos processos sancionatórios não-penais ali referidos seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões, imperioso será concluir que uma norma que permita a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas se apresenta necessariamente como violadora da Constituição.

14. O processo sumário regulado no RD-LPF é um processo disciplinar. Visa punir o ilícito disciplinar com uma sanção disciplinar, tendo, portanto, natureza sancionatória. Nessa medida, encontra-se abrangido pelo âmbito de aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição. Sendo assim, inequívoco se afigura que a norma do referido Regulamento, que suprime o direito de audiência no âmbito do processo disciplinar sumário, contraria flagrantemente o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição.
Em face do exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade material da norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do RD-LPF, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. (…)”.

Tal entendimento, com que se concorda inteiramente, é aqui plenamente aplicável, dada a identidade da situação.

Há, assim, que concluir que no procedimento em que foi aplicada a sanção disciplinar à Recorrente existe um vício de violação de lei desde a fase em que foi proferida a decisão punitiva, por violação dos direitos de audiência e defesa (n.º 10 do artigo 32.º e art.º 269.º, n.º 3, ambos da CRP), o que importa a nulidade dessa decisão termos do art.º 161.º, n.º 2, al. d) do CPA.
A existência de tal vício prejudica o conhecimento dos demais que foram invocados.
O acórdão recorrido tem de ser revogado por ter mantido na ordem jurídica a sanção disciplinar aplicada à Recorrente.
Por ter ficado vencida, as custas correm pela Recorrida em ambas as instâncias.
Decisão
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul em conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrida em ambas as instâncias, por ter ficado vencida – art.º 533.º do CPC.
Lisboa, 26 de Novembro de 2020

O relator consigna, nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, que têm voto de conformidade com o presente acórdão os restantes Juízes Desembargadores que integram a formação de julgamento.

Jorge Pelicano

Celestina Castanheira

Ricardo Ferreira Leite.