Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1692/11.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:09/15/2022
Relator:LURDES TOSCANO
Descritores:INSTRUÇÃO ADMINISTRATIVA
IRS – LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
DECLARAÇÃO FORA DE PRAZO
CADUCIDADE
Sumário:I – Estamos perante uma instrução administrativa que só vincula a própria AT. O facto de o acto tributário ter sido realizado de acordo com instruções administrativas não obsta à declaração da sua ilegalidade por parte do Tribunal se entender que essas instruções não estão em conformidade com a interpretação que este faça da lei em concreto.
II - Apresentada a declaração, a AT tinha o poder-dever de a analisar e agir em conformidade, corrigindo a liquidação oficiosa emitida, mas sem que sejam de aplicar quaisquer das limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º, limitações essas apenas consagradas para definir os critérios a seguir ao nível das liquidações oficiosas – liquidações que são provisórias por natureza, devendo as mesmas ceder perante a declaração efectiva e correcta dos rendimentos.
III - O prazo de caducidade de 4 anos, previsto no art. 45º, nº 1 da LGT (cfr.art. 76º, nº 4, do CIRS), defendido na decisão recorrida está totalmente sustentado na Jurisprudência.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 1ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO
O Representante da Fazenda Pública, com os demais sinais nos autos, veio, em conformidade com o artigo 282.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por M...., contra a decisão de indeferimento do recurso hierárquico interposto em virtude do indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o ato de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares («IRS»), e respectivos juros compensatórios n.º …..824, referente ao exercício de 2006, no valor total de €31.862,75, tendo improcedido o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.


O Recorrente termina as alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

«I O presente recurso visa reagir contra a douta sentença declaratória de procedência da impugnação, deduzida da decisão de indeferimento do recurso hierárquico, interposto do indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação oficiosa de IRS n° ……824, e respectivos juros compensatórios, relativa ao ano de 2006, no valor total de €31.862,75.

II - Especificando, a decisão em crise anulou a liquidação oficiosa de IRS impugnada, por considerar que a Administração Tributária deveria ter aceite a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, apresentada pelo contribuinte em 20-05-2010, na medida em que a mesma foi apresentada dentro do prazo de caducidade de quatro anos, conforme resulta do artigo 45°, n°1 e n°4, da LGT, por remissão do artigo 76°, n°4, do Código do IRS.

III - Não concordando com tal entendimento, a Representação da Fazenda Pública sempre dirá o seguinte:

IV - Verificou-se que, no exercício de 2006, a Impugnante se encontrava na situação de não declarante.

V - Em 26-07-2007, foi notificada, ao abrigo do art. 76°, n°3 do CIRS, para cumprir a obrigação em falta, ou seja, para entregar a M3-IRS do ano de 2006,

VI - Decorrido o prazo concedido sem que a falta tenha sido sanada, a AT liquidou oficiosamente, nos termos do disposto no artigo 76° do CIRS, “tendo por base os elementos de que a Direcção-Geral dos Impostos disponha” (cfr. alínea b), n°1 do artigo citado).

VII - Após notificada da referida liquidação oficiosa de IRS, a impugnante, em 20/05/2010, submeteu declaração M3-IRS, para o respectivo exercício de 2006, e, em 06-08-2010, apresentou reclamação graciosa.

VIII - No âmbito da reclamação graciosa, foi proferida decisão de indeferimento tendo em conta que o imposto foi liquidado oficiosamente, nos termos do n°3 do art.76° do CIRS, em virtude de não ter sido apresentada declaração de rendimentos para o ano de 2006 e, muito embora a reclamante tenha apresentado, em 2010-05-20, a declaração de IRS/2006, esta foi considerada não liquidável.

IX - É que tratando-se de uma liquidação efectuada com base em pressupostos e condicionalismos especiais (parte final do n.° 3 do art.º 76.° do CIRS), também a reclamação terá necessariamente de se cingir às especificidades dessa mesma liquidação. Assim a revisão da liquidação só pode ser fundamentada em erro na sua situação pessoal bem como nos elementos tidos em consideração na própria liquidação (rendimento, dedução pessoal imputável, retenções na fonte e pagamentos por conta) sem ter em consideração o mínimo de existência bem como o regime de tributação pois para determinar os rendimentos da categoria B se aplica sempre o coeficiente mais elevado previsto no n° 2 do art.º 31° do CIRS.

XI - Esta decisão de indeferimento assentou também nas instruções veiculadas através do oficio 20142 de 2009/ 12/03 da DSIRS.

X - Face ao exposto, a liquidação impugnada resulta dum procedimento especial de liquidação (métodos indirectos), porque a contribuinte se colocou na posição de faltosa perante a Administração Tributária, pelo que a mesma, face aos argumentos apresentados, nos termos do disposto no artigo 76° do CIRS, não se mostra susceptível de ser alterada, visto que foi elaborada de acordo com as normas tributárias previstas para o efeito.

XI - Por último, cabe-nos ainda discordar, no que respeita ao prazo de caducidade aplicável ao caso em discussão nos presentes autos.

XII - Estabelece o n°2 do artigo 45° da LGT, na redacção vigente à data, redacçâo dada pela Lei n°15/2001, de 05/06, que “ 2 — Nos casos de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo ou de utilização de métodos indirectos por motivo da aplicação à situação tributária do sujeito passivo dos indicadores objectivos da actividade previstos na presente lei, o prazo de caducidade referido no número anterior è de três anos.”

XIII - Aplicando-se ao caso concreto, o referido regime especial de liquidação (métodos indirectos) por falta de entrega da declaração M3-IRS do ano de 2006, o prazo de caducidade para estes casos é de três anos, por força do artigo transcrito no ponto anterior.

XIV - Resulta dos autos que a liquidação de IRS impugnada se refere ao ano de 2006, pelo que, aplicando-se o artigo 45°, n°2 e n°4, da LGT, o prazo de caducidade de 3 anos terminava em 31-12-2009

XV - Ora, tendo a impugnante apresentado, em 20-05-2010, a declaração M3-IRS, fê- lo já depois de decorrido o prazo de caducidade de 3 anos do direito de liquidação, pelo que a mesma não pode ser considerada na liquidação oficiosa de IRS, aqui impugnada.

XVI - Assim, salvo melhor opinião, não se vislumbra em todo este procedimento seguido pela AT qualquer ilegalidade.

XXI - Pelo que a douta sentença proferida pelo Mm°. Juiz a quo fez, a nosso ver, uma incorrecta interpretação das normas legis e da ratio legis que a fundamenta, nomeadamente o disposto no artigo 45°, n°1 e n°4, da LGT, por remissão do artigo 76°, n°4, do Código do IRS, incorrendo assim em erro de julgamento, devendo, por esse motivo, ser revogada, mantendo-se a liquidação de IRS impugnada.

Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente anulando-se a douta decisão em apreço, aqui recorrida, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»

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A Recorrida, devidamente notificada para o efeito, optou por não contra alegar.
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Notificado, o Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, emitiu parecer no sentido de procedência do recurso.
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Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que a recorrente remate a sua alegação (art.º 639º do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do referido tribunal.

De outro modo, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, as questões fundamentais a decidir são as de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento, nomeadamente, saber se a entrega da declaração do IRS de 2006, apresentada já depois da emissão da liquidação oficiosa efectuada pela AT, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 76º do CIRS, ainda se encontra dentro do prazo de caducidade, conduzindo à anulação da liquidação controvertida nos autos.



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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. De facto

A sentença recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:


«Com interesse para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

1. No ano de 2006, a Impugnante encontrava-se colectada para o exercício da actividade com o CAE 55306 – Restaurantes NE - cf. sistema de registo de contribuintes a fls. 39 do processo administrativo apenso;

2. A Impugnante cessou actividade em 20/04/2006 – cf. acordo (12º da petição inicial e informação/contestação) e registo de dados de contribuinte a fls. 37 do processo administrativo apenso;

3. Para o ano de 2004, a Impugnante apresentou declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, tendo declarado o seguinte: «Rendimentos Brutos (obtidos em território português) – Vendas de mercadorias e produtos: 20.696,67; Prestações de serviços de actividades hoteleiras, restauração e bebidas: 116.112,17; Outras prestações de serviços e outros rendimentos (inclui Mais-Valias): 13.928,29» – cf. declaração, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a fls. 41 do processo administrativo apenso;

4. Em 09/03/2010, foi emitida a declaração oficiosa modelo 3 de IRS da Impugnante para o ano de 2006, constando do campo 4, do Anexo B, o seguinte: «Rendimentos Brutos (obtidos em território português) A – Rendimentos Profissionais, Comerciais e Industriais – Outras prestações de serviços e outros rendimentos (inclui mais-valias) – 130.040,46.» - cf. declaração, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a fls. 45 a 46 do processo administrativo apenso;

5. Em 18/04/2010 e na sequência da emissão da declaração oficiosa de IRS identificada no ponto anterior, foi emitida a liquidação de IRS n.º ……6824, acrescida de juros compensatórios, no montante de €31.862,75, relativo ao ano de 2006 – cf. acordo (artigo 4º da petição inicial e informação/contestação) e nota de cobrança a fls. 37 e 38 do processo administrativo apenso;

6. Em 20/05/2010 a Impugnante submeteu a primeira declaração modelo 3 de IRS para o ano de 2006 – cf. declaração a fls. 12 a 13 dos autos;

7. A Impugnante apresentou reclamação graciosa da liquidação oficiosa de IRS identificada no ponto 5 - cf. petição de reclamação graciosa a fls. 52 a 56 do processo administrativo apenso;

8. Por despacho de 10/11/2010 do chefe do serviço de finanças de Mafra a reclamação graciosa referida no ponto anterior foi indeferida - cf. despacho e informação a fls. 57 do processo administrativo apenso;

9. A Impugnante apresentou recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa identificada no ponto anterior - cf. petição de recurso hierárquico a fls. 1 a 6 do processo administrativo apenso;

10. Por despacho de 20/04/2011 da directora de serviços do IRS o recurso hierárquico identificado no ponto anterior foi indeferido com os seguintes fundamentos «14. (…) i. Relativamente ao exercício de 2005, nunca apresentou a respectiva declaração M3-IRS; ii. No que toca ao exercício de 2006, era não declarante em sede de IRS, tendo sido notificada em 26/07/2007, para cumprir a obrigação em falta; iii. Perante a manutenção da falta declarativa em 03/05/2010, foi a recorrente notificação da liquidação ora reclamada (exercício de 2006) nos termos do art. 76º, n.º 3, do CIRS; iv. Apenas em 20/05/2010 submeteu a declaração M3-IRS, para o exercício de 2006 (…). 18. Nas situações (…), em que não é apresentada declaração, as alíneas b) e c), do n.º 1 do art. 76º do CIRS determinam as formas de proceder e de liquidar o imposto. 19. A al. b) citada no ponto 18. refere que (…)20. Esta disposição será aplicada caso não sejam observadas as circunstâncias definidas na alínea c) do n.º 1 do art. 76º do CIRS. 21. Assim, a al. c) referida no ponto anterior, será aplicada: i.. “…quando não tenha sido declarada a respectiva cessação da actividade.”, situação que no caso vertente não ocorreu, porquanto, no exercício de 2006 a recorrente exerceu actividade no período compreendido entre 01/01/2006 e 20/04/2006, e ii. Se os valores do ano mais próximo (no caso 2004), conhecidos da DGCI, foram superiores aos elementos de que a DGCI dispõe (2006). (…) 23. Esta alínea tem ainda que ser conjugada com o n.º 3 do Art. 76º do CIRS: (…) 24. (…) o art. 76º, n.º 1, al. c) é aplicável à recorrente porque no exercício de 2006 esta exerceu actividade, ainda que parcialmente. (…).» - cf. despacho e informação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a fls. 33 a 39 do processo administrativo apenso;

11. Em 04/02/2011, a Impugnante procedeu ao pagamento do valor da liquidação identificada no ponto 5. – cf. acordo (artigo 40º da petição inicial e informação/contestação) e certidão de dívida a fls. 40 do processo administrativo apenso.»

Factos não provados

«Nada mais se provou com interesse para a decisão da causa.»

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Motivação da matéria de facto

«O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na posição das partes vertidas nos articulados e na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, nomeadamente do processo administrativo apenso, conforme identificado nos factos provados.»


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II.2. De Direito

Em sede de aplicação de direito, a sentença recorrida:

a) Julgou procedente o pedido de anulação da liquidação oficiosa de IRS impugnada e de admissão da declaração de rendimentos modelo 3 de IRS apresentada pela Impugnante;

b) Julgou improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.


Inconformada, a Fazenda Pública veio interpor recurso da referida decisão alegando (segundo entendemos, pois não está expressamente escrito) erro de julgamento, pois tratando-se de uma liquidação efectuada com base em pressupostos e condicionalismos especiais (parte final do nº 3 do art. 76º do CIRS), também a reclamação terá necessariamente de se cingir às especificidades dessa mesma liquidação.
Por outro lado, alega que a decisão de indeferimento assentou também nas instruções veiculadas através do ofício 20142 de 2009/12/03 da DSIRS.
[conclusões de recurso IX e XI]

Antes de mais, importa ver o que dispunha o art. 76º do CIRS:

“1 - A liquidação do IRS processa-se nos termos seguintes:

a) Tendo sido apresentada a declaração até 30 dias após o termo do prazo legal, a liquidação tem por objecto o rendimento colectável determinado com base nos elementos declarados, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 65.º;

b) Não tendo sido apresentada declaração, a liquidação tem por base os elementos de que a Direcção-Geral dos Impostos disponha;

c) Sendo superior ao que resulta dos elementos a que se refere a alínea anterior, considera-se a totalidade do rendimento líquido da categoria B obtido pelo titular do rendimento no ano mais próximo que se encontre determinado, quando não tenha sido declarada a respectiva cessação de actividade.

2 - Na situação referida na alínea b) do número anterior, o rendimento líquido da categoria B determina-se em conformidade com as regras do regime simplificado de tributação, com aplicação do coeficiente mais elevado previsto no n.º 2 do artigo 31.º.

3 - Quando não seja apresentada declaração, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual a liquidação é efectuada, não se atendendo ao disposto no artigo 70.º e sendo apenas efectuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79.º e no n.º 3 do artigo 97.º.

4 - Em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.”.


Prosseguindo.

Importa apreciar a alegação de que a decisão de indeferimento assentou também nas instruções veiculadas através do ofício 20142 de 2009/12/03 da DSIRS.
Estamos, pois, perante uma instrução administrativa que só vincula a própria AT, conforme Jurisprudência dos Tribnais Superiores indicando-se, a título de exemplo, o Acórdão do STA de 16/09/2020, Proc. 02483/10.1BELRS, relativo a esta instrução administrativa, de onde se retira o seguinte:
«A Recorrente suscita no essencial uma única questão: a de saber se a sentença recorrida padece do vício de erro de julgamento, por errónea interpretação e aplicação do disposto no nº1 do artigo 68º-A da LGT, uma vez ter o ato tributário sido efetuado ao abrigo da doutrina veiculada pelo Ofício-Circulado n.º 20142, de 03-12-2009.
Nos termos do nº1 do artigo 68º-A da LGT, a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes das circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, as quais visam a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias.
De acordo com o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (in Diário da República – II Série, de 24 de Outubro de 1998), «As circulares são actos do poder de direcção típico das relações de hierarquia administrativa, concretizando instruções gerais, vinculativas para os órgãos, funcionários e agentes a quem se dirige, acerca do sentido em que devem – mediante interpretação ou integração – entender-se normas ou princípios jurídicos que, no âmbito do exercício das suas funções, lhes caiba aplicar» (Cfr. igualmente neste sentido o acórdão do STA, de 31 de Maio de 2006, recurso n.º 26.622).

Trata-se, contudo, de “direito circulatório” que vincula apenas os serviços da administração tributária, embora seja certo que como referia Saldanha Sanches (in Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, 2007, pág. 127), “as virtualidades das orientações administrativas são incontestáveis: ditam certos comportamentos à Administração, permitindo, assim, ao sujeito passivo prever o comportamento desta em situações incertas, e clarificam os deveres de cooperação deste quando (como cada vez mais vezes sucede) têm como destinatários os particulares a quem exigem certas condutas necessárias para a aplicação da lei fiscal”. E também é pacífico o entendimento segundo o qual as circulares não são fontes de direito. Segundo Soares Martinez elas "não têm por destinatários os particulares, os cidadãos, os contribuintes", nem vinculam "os Tribunais, que tratam de aplicar as leis fiscais sem qualquer dependência dos critérios adoptados pela Administração" (Direito Fiscal, Almedina, 1993, pag. 111). Também Alberto Xavier defende que as circulares desenvolvem "a sua eficácia exclusivamente na ordem interna da Administração de onde provêm. Não vinculam nem os contribuintes nem os tribunais", e que "delas não nascem direitos ou deveres extra ou contra legem" (Manual de Direito Fiscal, 1, Lisboa, 1981, pags. 139-140).
Ora, o facto de os serviços da administração tributária estarem vinculados ao entendimento vertido no ofício circulado n.º 20142, de 03-12-2009, e de o ato tributário ter sido realizado de acordo com as determinações ali exaradas, não obsta à declaração da sua ilegalidade por parte do tribunal se aquele entendimento não estiver em conformidade com a interpretação que este faça da lei na situação em concreto. Na verdade, o que releva é saber se o entendimento vertido no ofício circulado respeita ou não a lei ou se faz uma correta interpretação da mesma, pois caso contrário vai inquinar a validade do ato tributário realizado à sua sombra e constituir fundamento para a sua anulação por parte do tribunal.»

Assim, na esteira do Acórdão citado, o facto de o acto tributário ter sido realizado de acordo com instruções administrativas não obsta à declaração da sua ilegalidade por parte do Tribunal se entender que essas instruções não estão em conformidade com a interpretação que este faça da lei em concreto.

Adianta-se, desde já, que é esse o caso dos presentes autos.

Vejamos o disposto na mencionada instrução administrativa - ofício 20142 de 2009/12/03 da DSIRS:

“1 - Os sujeitos passivos devem apresentar, anualmente, uma declaração modelo 3, acompanhada dos anexos respectivos, relativa aos rendimentos do ano anterior e a outros elementos informativos relevantes para a sua concreta situação tributária. Após a apresentação da declaração dentro dos prazos legalmente estabelecidos, a liquidação é efectuada tendo por base os elementos declarados pelos sujeitos passivos.

2 - Caso a declaração não tenha sido apresentada, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual é efectuada a liquidação. Nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 e nº 3 do artigo 76º do Código do IRS, esta liquidação terá por base os elementos de que a Direcção-Geral dos Impostos disponha, sem se atender ao mínimo de existência (artigo 70º) e sendo apenas efectuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79º (dedução pessoal do sujeito passivo) e no n.º 3 do artigo 97º (retenções na fonte e pagamentos por conta).

3 – Tratando-se de uma liquidação realizada com base em pressupostos e condicionalismos especiais (parte final do nº 3 do artigo 76º do CIRS), também uma eventual reclamação terá necessariamente de se cingir às especificidades dessa mesma liquidação. Assim, estando em causa uma liquidação efectuada a um sujeito passivo individualmente considerado, a revisão da liquidação só pode ser fundamentada em erro na sua situação pessoal, bem como nos elementos tidos em consideração na própria liquidação (rendimento do contribuinte, a dedução pessoal que lhe seja imputável e as retenções na fonte e pagamentos por conta, não se tendo em consideração o mínimo de existência).

4 – Conclui-se assim que, num eventual pedido de revisão da liquidação através do mecanismo da reclamação graciosa, somente poderão ser objecto de revisão os seguintes aspectos:

• Estado civil do sujeito passivo (invocando que é casado, não relevando assim a indicação de unido de facto, por esta se tratar de uma opção e não de regime regra);

• Rendimento bruto e correspondente dedução específica (com excepção dos rendimentos da categoria B, aos quais se aplica sempre o coeficiente mais elevado previsto no nº 2 do artigo 31º, conforme disposto no artigo 76º nº 2);

• Retenções na fonte e pagamentos por conta”.


A referida instrução administrativa considerava que o tratamento a dar à declaração de rendimentos apresentada pelos administrados tem as limitações constantes dos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º do CIRS.

Não concordamos, como supra já referimos.
Esta matéria foi já decidida por Acórdão deste TCA de 14/10/2021, Proc. 1058/11.2BELRS, disponível em www.dgsi.pt, de onde se extrai o seguinte:

«Desde já se adiante que não se subscreve tal entendimento, que não encontra respaldo na disciplina aplicável.

Com efeito, e independentemente de o Recorrente não ter apresentado a declaração de rendimentos dentro do prazo legalmente previsto para o efeito, tal não significa que não deve ser considerada, no seu todo, a declaração de rendimentos apresentada, ainda que fora do prazo legal (desde que respeitado, desde logo, o prazo de caducidade do direito à liquidação). Isto independentemente de a mesma não gozar de presunção de veracidade, uma vez que, não obstante esta circunstância, no caso dos autos de modo algum a AT pôs em causa o declarado, limitando-se a entender não ser admissível a consideração de parte dos valores nos termos assinalados.

Na verdade, não se entende que a consideração do teor da declaração apresentada fora de prazo esteja limitada aos termos dos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º - isto sem prejuízo de a AT poder pôr em causa a correção dos elementos constantes daquela declaração, o que não sucedeu in casu.

Como já se referiu supra, o art.º 76.º, n.º 4, do CIRS prevê especificamente, para todos os casos previstos no n.º 1, sem exceção, a possibilidade de a liquidação poder ser corrigida, respeitado que seja o respetivo prazo de caducidade.

Portanto, apresentada a declaração mencionada em 7. do probatório, a AT tinha o poder-dever de a analisar e agir em conformidade, corrigindo a liquidação oficiosa emitida, mas sem que sejam de aplicar quaisquer das limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º, limitações essas apenas consagradas para definir os critérios a seguir ao nível das liquidações oficiosas – liquidações que, como referimos, são provisórias por natureza, devendo as mesmas ceder perante a declaração efetiva e correta dos rendimentos (e respetivas deduções).

Aliás, quer o n.º 2 quer o n.º 3 do art.º 76.º expressamente referem serem aplicáveis nos casos de falta de apresentação de declaração, nada decorrendo do n.º 4 que estenda tais limitações em situações como a dos autos.

Trata-se, aliás, da interpretação mais consentânea com o princípio da capacidade contributiva, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-tributário.

Com efeito, dispõe o art.º 104.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que “… [o] imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, ou seja, prevê o princípio da capacidade contributiva, que determina que a tributação seja efetuada em função dos rendimentos efetivos.

Interpretação em sentido distinto, como refere o Recorrente na sua petição, implicaria uma dupla penalidade, na medida em que, face ao atraso na apresentação da declaração, já é punido em sede contraordenacional, não havendo sustentação para se ignorar o rendimento efetivamente obtido.

Aliás, reiteramos, a AT em momento algum põe em causa a adesão à realidade dos valores declarados.

Como tal, assiste razão ao Recorrente, padecendo o ato impugnado de vício, conducente à sua anulação.»

Concordamos inteiramente com a fundamentação do Acórdao supra citado, que fazemos nossa.

Por sua vez, no Acórdão do STA, de 05/12/2018, Proc. 0220/11.2BEVIS 0286/18, escreveu-se que «o disposto no artº 76º nº 4 do CIRS, vigente à data dos factos, que alguma razão de ser, na harmonia do sistema legislativo, há-de ter (…) [, a] nosso ver possibilita/impõe à Administração Tributária a correcção da liquidação oficiosa por si elaborada quando seja suprida pelo sujeito passivo a sua falta declarativa dentro dos prazos ali previstos».


Pelo que forçoso é concluir que não assiste razão à recorrente, pois que, apresentada a declaração mencionada no ponto 6. do probatório, a AT tinha o poder-dever de a analisar e agir em conformidade, corrigindo a liquidação oficiosa emitida, mas sem que sejam de aplicar quaisquer das limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º, limitações essas apenas consagradas para definir os critérios a seguir ao nível das liquidações oficiosas – liquidações que, como referimos, são provisórias por natureza, devendo as mesmas ceder perante a declaração efectiva e correcta dos rendimentos.

Por último, veio a recorrente discordar no que respeita ao prazo de caducidade aplicável ao caso em discussão nos presentes autos.

Entende a recorrente que se aplica o nº 2 do art. 45º da LGT, aplicando-se ao caso concreto, o referido regime especial de liquidação (métodos indirectos) por falta de entrega da declaração M3-IRS do ano de 2006, o prazo de caducidade para estes casos é de três anos, pelo que a liquidação de IRS impugnada se refere ao ano de 2006, pelo que, aplicando-se o artigo 45°, n°2 e n°4, da LGT, o prazo de caducidade de 3 anos terminava em 31-12-2009, pelo que a impugnante tendo apresentado, em 20-05-2010, a declaração M3-IRS, fê- lo já depois de decorrido o prazo de caducidade de 3 anos do direito de liquidação, pelo que a mesma não pode ser considerada na liquidação oficiosa de IRS, aqui impugnada.

Mais uma vez, a recorrente não tem razão.

Segundo julgamos perceber, a recorrente apelida, o regime especial de liquidação, previsto no art. 76º do CIRS, de métodos indirectos.

Mas nem a própria AT defende tal alegação.

Na contestação apresentada (que é uma informação da Divisão de Justiça Contenciosa da Direcção de Finanças de Lisboa), a final de fls.2, podemos ler “Importa referir que a liquidação reclamada foi efectuada no estrito cumprimento das regras previstas no art. 76º do CIRS.»

Como é sabido, a avaliação indirecta vem prevista nos arts. 87º e sgs. da LGT, que nada tem a ver com o caso que nos ocupa.

Vejamos.

Sendo apresentada declaração dentro do prazo legal previsto para o efeito, a liquidação de IRS é efetuada com base na mesma, cfr. art.º 76.º, n.º 1, al. a), do CIRS.

Não sendo apresentada a declaração e não se tratando de situação de exclusão da obrigação de apresentação da declaração (cfr. art.º 58.º do CIRS), a liquidação é oficiosamente emitida, nos termos do mesmo n.º 1 do art.º 76.º do CIRS, com base em elementos de que a administração tributária disponha (1), cfr. art.º 76.º, n.º 1, als. b) e c), do CIRS.

Aliás, o prazo de caducidade de 4 anos, previsto no art. 45º, nº 1 da LGT, defendido na decisão recorrida está totalmente sustentado na Jurisprudência. Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do STA de 05/12/2018, Proc. 0220/11.2BEVIS, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler:

«No presente caso a apresentação da declaração de substituição, referida na alínea I) do probatório, dentro do prazo de caducidade previsto no artº.45, nº.1, da L.G.T. (cfr.artº.76, nº.4, do C.I.R.S.), não podia ser desconsiderada na sua substância, como o foi pela AT (…)»

Termos em que improcede a presente alegação.

Face ao exposto, improcede na totalidade o presente recurso, e mantém-se a sentença recorrida na ordem jurídica.

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III – DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes da 1ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, e em consequência, manter a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 15 de Setembro de 2022

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[Lurdes Toscano]

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[Maria Cardoso]

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[Hélia Gameiro Silva]




(1) Sublinhado e negrito nossos.