Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:607/09.0BECTB
Secção:CA
Data do Acordão:05/10/2018
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Sumário:I – A violação do artigo 4º, nº 1, do EMJ constitui uma invalidade substantiva da decisão jurisdicional em causa.
II – A suspensão da instância implica que o tribunal não pode apreciar nenhuma das questões incluídas no objeto do processo.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO
Á…L…V…T…, S.A. (que sucedeu ope legis à Á… do Z…C…, S.A.), pessoa colectiva n.º 5…, com sede na Rua Dr. F… P…. de M…, n.º …, 6… G…, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de CASTELO BRANCO acção administrativa comum contra
MUNICÍPIO DE M…, pessoa colectiva n.º 5…, com sede no Edifício dos P… do C…, 6…-1 M….
O pedido formulado foi o seguinte:
«Condenação do Réu no pagamento à Autora da “…quantia de € 171.533,56, acrescida da quantia de € 2.453,44, a título de juros moratórios vencidos até à presente data, num total de € 173.987,00 (cento e setenta e três mil e novecentos e oitenta e sete euros), e ainda no pagamento de juros moratórios vincendos até efectivo e integral pagamento…”».
Por decisão de 07-07-2017 (e já depois de por sentença de 30/05/2017 ter determinado a extinção parcial da instância quanto ao pedido de capital formulado pela Autora contra o Réu no montante de € 125.107,47), o referido tribunal julgou procedente o pedido quanto aos juros de mora formulado pela Autora, condenando o Réu no pagamento à Autora da quantia de € 2.453,44 (dois mil e quatrocentos e cinquenta e três euros e quarenta e quatro cêntimos) respeitante aos juros moratórios vencidos e vincendos desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Mais afirmando “por obediência formal ao determinado, na presente ação, pelo Venerando Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), a presente instância encontra-se suspensa.”
*
Inconformado com tal decisão, o RÉU MUNICÍPIO DE M…. interpôs recurso jurisdicional. Em sede de alegações, formula as seguintes conclusões:
1) Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta decisão sumária, que com os demais sinais dos autos condenou o recorrente a pagar os juros moratórios vencidos e determinou a suspensão da instância em obediência ao ordenado pelo TCAS.
2) Nos presentes autos, o TCAS por acórdão de 27 de março de 2015, na sequência de recurso interposto pelo ora recorrente, ordenou «suspender a instância até que seja definitivamente decidido o processo nº 450/11.7ECTB, após o que estes autos prosseguirão no TAC».
3) O tribunal “a quo” violou o seu dever de acatamento de decisão de tribunal superior, pois proferiu decisão sumária num processo que devia estar suspenso por existência de causa prejudicial, como, aliás, o próprio tribunal “a quo” reconhece.
4) A consequência da ilegalidade da decisão de não suspender esta instância e proferir decisão sumária, não obstante a instância dever estar suspensa, é logicamente a nulidade da decisão sumária e das decisões posteriores.
6) A douta sentença recorrida violou, por deficiente interpretação, o artigo 272º nº 1 e 2 e artigo 195º do NCPC.
*
Contra-alegou a autora, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Conforme decorre das conclusões de recurso, uma vez que são estas que, de acordo com o estatuído nos arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, delimitam o seu objecto, a questão fulcral a decidir no presente recurso é a de saber se a decisão de não suspender a instância e proferir a decisão sumária constitui nulidade da decisão impugnada nos termos do disposto 195º do CPC – Cfr. conclusões 4ª e 5ª -.
II. O artigo 629.º, n.º 1, do CPC faz, assim, depender a admissibilidade da apelação da verificação cumulativa de dois requisitos: 1) que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre; 2) que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão [€ 5.000,00 – art.º 44º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário); mantendo-se o valor estabelecido no art.º 24º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13/01, LOFTJ].
III. Para o recurso ser admissível importa, pois, para o recorrente que a decisão impugnada lhe seja desfavorável em valor superior a metade da alçada do tribunal, medida pela utilidade económica imediata que se obtém ou em que se decai, o que não se verifica no caso concreto, já que a decisão recorrida não é desfavorável ao Recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido, pois o mesmo implica o pagamento de taxa de justiça no montante de 1 UC, ou seja, € 102.
IV. Assim, considerando que o recurso incide sobre a quantia de 2 453,44 € correspondente ao valor da sucumbência do Recorrente na acção em apreço, o presente recurso é legalmente inadmissível.
V. Os arts. 195º, nº 1, e 196º do CPC referem que a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva fora do âmbito das chamadas nulidades principais (cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III pág. 105) só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame e apreciação da causa.
VI. Ora, as partes lograram alcançar um acordo extrajudicial parcial nos presentes autos, tendo o Recorrente procedido ao pagamento, na íntegra, do capital peticionado pela Recorrida na presente acção, pelo que não podia o Tribunal deixar de declarar a extinção da instância e de proferir decisão de condenação nos juros que ficaram por liquidar.
VII. Os serviços de que o Recorrente beneficiou, tanto ao nível do abastecimento de água como de recolha de efluentes, não são atingidos pela eventual declaração de nulidade do contrato de concessão invocada na acção nº 450/11.7BECTB atento o reconhecimento da dívida efectuado pelo Recorrente com o pagamento dos serviços em causa nos presentes autos, razão pela qual a decisão a proferir no referido processo não tem qualquer influência nestes face à extinção da dívida de capital, extinção, a que o Recorrente, aliás, deu causa pelo pagamento.
VIII. E se a obrigação de remuneração dos serviços prestados pela Recorrida ao Recorrente se encontra cumprida, então não há razão alguma para se entender que essa acção nº 450/11.7BECTB tem impacto nos presentes autos em que o pagamento dos serviços já foi por este efectuado, o que tanto basta para se concluir que a falta [omissão de não suspender a instância e proferir decisão sumária] não tem qualquer influência no exame ou decisão da causa atenta autonomia e independência da obrigação de juros – Cfr. art. 561º do CC e acórdão da RL, de 04/06/2015, tirado no processo nº 143342/14.6YIPRT.L1-8 -.
IX. Aliás, importa referir, a propósito da existência da suspensão do processo por existência de causa prejudicial (450/11.7BECTB), que o STA decidiu que “deve admitir-se o recurso de revista da decisão do TCA que suspendeu a instância, com fundamento na pendência de uma outra acção, a qual tem como objecto a declaração de nulidade do contrato de concessão ao abrigo do qual foram celebrados contratos de prestação de serviço cujo pagamento é reclamado nos autos, uma vez que, de acordo com a mais recente jurisprudência deste STA, a nulidade do contrato de prestação de serviços não impede a condenação do devedor a esse pagamento” – Cfr. Acórdão nº 775/17 – o sublinhado e destacado é nosso.
X. Admitindo-se, porém, que tal falta pudesse influir no exame ou na decisão da causa, porque não consta dentre as enumeradas no art.º 196.º do CPC, constituiria nulidade meramente secundária dependente de reclamação da parte interessada (cfr. art.º 197.º do mesmo Código).
XI. Ora, o Recorrente teve conhecimento da pretensa nulidade aquando da notificação do despacho de 12 de Outubro de 2016, pelo que a nulidade devia ter sido arguida no prazo de 10 dias, após essa data (cfr. art.º 149.º, n.º 1, do CPC), no tribunal recorrido, ou, constatando-se que a mesma estava coberta por despacho, devia ter sido interposto recurso dele a fim de evitar o trânsito em julgado e a formação do consequente caso julgado formal, pelo que, não o tendo sido em momento algum, é evidente que a arguição feita no recurso da decisão final é manifestamente extemporânea.
XII. No que concerne à ilegitimidade da sua arguição, decorre do facto de ser o Recorrente o culpado da omissão verificada, por ser ele que deu causa à nulidade, porquanto ao proceder ao pagamento do capital peticionado nos presentes autos (cfr. art. 197, nº 2, do CPC), gerou a extinção da instância.
XIII. Efectivamente, a acolher-se a posição do Recorrente, configuraria uma situação de abuso de direito nos termos do art. 334º do CC, na medida em que sendo imputável ao Recorrente a omissão de não suspender a instância, arguir a nulidade precisamente com base nessa omissão por ele provocada, fruto do pagamento dos serviços peticionados na presente lide, com o que deu causa à extinção da instância e à decisão de pagamento de juros, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé.
*
O digno magistrado do M.P. junto deste tribunal foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º, tendo emitido Parecer no sentido da admissibilidade do recurso (questão suscitada pelo Recorrido), e, a final, no sentido de ser concedido provimento ao mesmo.
*
Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.
*
DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
O fundamento deste recurso é a violação do dever de o tribunal de 1ª instância acatar e fazer cumprir as decisões dos tribunais superiores, como manda o artigo 4º/1 do EMJ, ex vi artigo 57º do ETAF.
De outra perspetiva, trata-se de recorrer de uma decisão que ofende o caso julgado formal constituído pelo cit. Ac. deste TCA Sul que suspendeu a instância (cf. artigo 629º/2-a)-2ª parte do CPC), reiniciada pelo TAC.
Por isso, o direito de recorrer não depende do valor da causa (cf. artigo 142º/3 do CPTA).
Portanto, é de admitir este recurso, ao contrário do invocado pelo recorrido.
*
DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.
Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.
As questões a resolver neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido
O tribunal “a quo” deu como provada a seguinte matéria de facto
1. Em 15 de Setembro de 2000, e no exercício das suas actividades, a Autora celebrou com o Réu um contrato de fornecimento, no qual se obrigou a fornecer ao município água destinada ao abastecimento público, mediante o pagamento de tarifas devidas [cf. documento (doc.) constante de fls. 40/50 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
2. Em 15 de Setembro de 2000, e no exercício das suas actividades, a Autora celebrou com o Réu um contrato de recolha, no qual a Autora se obriga a recolher efluentes provenientes do sistema próprio do Réu, mediante o pagamento de tarifas devidas [cf. documento (doc.) constante de fls. 51/59 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
3. As partes acordaram que as facturas referentes a débitos de consumo e de recolha de efluentes, bem como as relativas a quaisquer outros fornecimentos ou serviços prestados, seriam pagas pelo Réu, na sede da Autora, até sessenta dias após a data da emissão da correspondente factura [factualidade admitida por acordo].
4. A execução dos mesmos contratos referidos em 1) e em 2) faz-se também nos termos e de acordo com as condições previstas no contrato de concessão celebrado entra a Autora e o Estado Português [cf. documento (doc.) constante de fls. 15/39 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido]
5. O Réu não pagou, no devido prazo, as facturas elencadas na petição inicial [factualidade admitida por acordo].
6. Na pendência da presente acção, o Réu procedeu ao pagamento do montante constante das facturas elencadas na petição inicial [cf. decisão proferida em 30-05-2017 nos presentes autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
7. Tem-se aqui presente o teor dos documentos e das informações constantes dos autos [cf. documentos e informações constantes dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
*
II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O recurso demanda que se resolva o seguinte: o TAC violou ou não o artigo 4º/1 do EMJ cit., por estar a contrariar o cit. Ac. deste TCA Sul de 27-03-2015, transitado em julgado, e que decidiu “suspender a instância até que seja definitivamente decidido o processo nº 450/11.7ECTB, após o que estes autos prosseguirão no TAC”.
E, com efeito, o recorrente tem razão.
Estranhamente, o TAC, mesmo invocando a suspensão da instância e o cit. Ac. deste TCAS, acabou por fazer o processo andar na 1ª instância. Fê-lo, emitindo duas decisões: 1º) julgou parcialmente extinta a instância (o que não tinha qualquer interesse naquele momento); 2º) julgou a questão de fundo referente aos juros de mora peticionados.
Ora, como o processo nº 450/11.7ECTB ainda não está findo (cf. SITAF), é notório que a decisão recorrida constitui uma violação do dever previsto no artigo 4º/1 do EMJ, ex vi artigo 57º do ETAF: o dever de o juiz acatar e respeitar as decisões dos tribunais superiores emitidas no processo (aqui, é o cit. Ac. deste TCA Sul de 27-03-2015).
Conclui-se, portanto, que a ilegalidade apontada à decisão recorrida não é uma nulidade de entre as previstas nos artigos 195º ou 615º/1 do CPC, mas sim uma ilegalidade substancial por violação do artigo 4º/1 do EMJ, ex vi artigo 57º do ETAF.
*
III. DECISÃO
Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrido.
Lisboa, 10-05-2018

(Paulo Pereira Gouveia - relator)


(Catarina Jarmela)


(Conceição Silvestre)