Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1243/09.7BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:04/24/2024
Relator:ELIANA CRISTINA DE ALMEIDA PINTO
Sumário:I - A natureza das formas de repressão empreendidas por aqueles direitos é distinta não só́ na sua nomenclatura – pena (direito penal), sanção (direito disciplinar de emprego público) – mas, sobretudo, pelo cariz.
II - As penas criminais adotam a feição mais pesada e gravosa de todo o ordenamento jurídico (encimado pela pena de prisão). Já as sanções disciplinares têm uma natureza imbricadamente funcional: afastando o trabalhador das suas funções temporariamente (suspensão, cessação da comissão de serviço) ou a título definitivo (despedimento, demissão); ou mantendo-o em funções, mas com censura ou penalização patrimonial (repreensão escrita ou multa).
III - No que diz respeito às finalidades das penas/sanções, as penas criminais têm fundamentalmente um caráter repressivo, por contraposição com finalidade corretiva- funcional das sanções disciplinares. As penas criminais têm, ainda, como fito, o restabelecimento da confiança do ordenamento jurídico na norma violada, enquanto o direito disciplinar se queda pela restauração do bom funcionamento do serviço e da dignidade do trabalhador (enquanto “servidor público”) e das suas funções.
IV - Efluindo das sanções expulsivas, no direito disciplinar, a prevalência da prevenção especial negativa (impedindo que o trabalhador volte a reincidir) e de prevenção geral (servindo de dissuasão à prática daquelas condutas pelos demais trabalhadores do serviço); e, nas sanções conservatórias, a finalidade de prevenção especial (interpelar ao cumprimento dos deveres do trabalhador).
V - O direito penal e o direito disciplinar no emprego público são autónomos e independentes entre si, de tal ordem que a valoração da mesma conduta pode ser feita e sancionada concomitantemente no âmbito respetivo sem que isso envolva violação do princípio “non bis in idem”, que só funciona no âmbito de cada específico ordenamento punitivo.
VI - A mesma conduta pode, simultaneamente, ser perseguida e punida no procedimento disciplinar e em processo penal, sem que isso represente uma dupla punição pelos mesmos factos, porquanto se trata de responsabilizações distintas, até à luz dos distintos bens jurídicos protegidos e das distintas finalidades de cada um dos direitos em causa.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I – RELATÓRIO

A........, devidamente identificado nos autos, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, datada de 1 de dezembro de 2020, que no âmbito da ação administrativa especial, instaurada pelo próprio, julgou a ação improcedente, mantendo-se a decisão disciplinar sancionatória.
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Formula o aqui Recorrente, nas respetivas alegações de recurso, as seguintes conclusões que infra e na íntegra se reproduzem:
“...
1) O Recorrente viu mantida na ordem jurídica pelo tribunal “a quo” a decisão sancionatória que determinou a Separação de Serviço a que se refere o artigo 33.º do Regulamento de Disciplina da GNR;
2) O recorrente é pessoa de bem, e dessa forma acatará a decisão que vier a ser superiormente tomada pelo Tribunal Central Administrativo do Sul;
3) Salvo o devido respeito a fundamentação do recurso que mantêm na ordem jurídica a decisão disciplinar ocorre de forma tão aligeirada e sucinta que dificulta a própria redação do presente recurso, dado que, não se vislumbra neste, respostas às impugnações que foram pelo recorrente alegadas;
4) Nomeadamente a violação do princípio da proporcionalidade que esta decisão acarreta;
5) A decisão sob recurso violou também o n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa;
6) O facto de a decisão disciplinar ir mais longe do que aquela que condenou o recorrente à prática de crimes em sede criminal subverte a lógica de "ultima ratio" subjacente ao Direito Penal.
...”.

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O recorrido, MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, notificado, apresentou contra-alegações, pronunciando-se sobre os fundamentos do recurso, mas sem formular conclusões, alegando:
1) Em 8 de abril de 2008, o ora Recorrente foi notificado da acusação, tendo apresentado defesa e requerido a realização de diligências de prova;
2) Em 9 de maio de 2008, o Instrutor indeferiu a realização das diligências com fundamento no facto de serem desnecessárias e impertinentes;
3) Em 13 de maio de 2008, o Instrutor lavrou o relatório final, mantendo os factos constantes na acusação, e propôs a aplicação da pena disciplinar de separação de serviço;
4) Em 2 de junho de 2008, o Exmo. Comandante da ex-Brigada de Trânsito determinou o envio do processo para apreciação do Excelentíssimo Comandante-Geral;
5) Em 23 de julho de 2008, o Excelentíssimo Comandante-Geral determinou o envio do processo ao Conselho de Ética, Deontologia e Disciplina (CEDD);
6) Em 27 de fevereiro de 2009, o Comandante-Geral determinou que fosse entranhado no processo disciplinar a decisão judicial transitada em julgado em 22 de janeiro de 2009, que condenou o autor pela prática de 5 (cinco) crimes consumados de roubo e 2 (dois) crimes de roubo, sob a forma tentada, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período;
7) Em 22 de junho de 2009, o CEED deliberou por 27 (vinte e sete) votos a favor e 0 (zero) contra pela aplicação da pena disciplinar de Separação de Serviço;
8) Em 19 de agosto de 2009, através do Parecer n.º 682-CM/09, a DSAJC/MAI concordou com a aplicação da pena disciplinar de separação de serviço;
9) Em 14 de setembro de 2009, Sua Excelência o Secretário de Estado da Administração Interna puniu o autor com a pena disciplinar de separação de serviço (fls. 174), por violação dos deveres de lealdade, correção e de aprumo, previstos respetivamente, nos artigos 10. °, n.ºs 1 e 2, al. b), 14. °, n.ºs 1e 2, al. a) e l), e 17. °, n.ºs 1e 2, alínea a), do RDGNR, porquanto:
a) No dia 17 de agosto de 2007, pelas 12h20, entrou na sede do balcão do B........ de Sassoeiros - Carcavelos, vestindo umas calças de ganga, polo e colete de penas, dirigiu-se de imediato ao balcão das caixas e entregou um papel à funcionária presente com a seguinte mensagem "PÕE DINHEIRO NO SACO, TENHO ARMA". Depois de mandar chamar o gerente, roubou € 1.770,00 (mil setecentos e setenta euros), montante à vista, e fugiu do local para a rua na companhia do gerente, sob a ameaça de uma arma que possuía, desaparecendo de seguida para parte incerta;
b) No dia 03OUT07, pelas 14h15, entrou na sede do balcão do B........ de Sassoeiros - Carcavelos, vestindo um colete de ganga azul, dirigiu-se ao gerente e deu-lhe um saco de plástico e mostrou-lhe um papel a dizer "O DINHEIRO TENHO ARMA".
Depois roubou €695,00 (seiscentos e noventa e cinco euros), dinheiro que se encontrava à vista, ordenou ao gerente para que lhe abrisse as portas, pediu desculpa dizendo "desculpem lá mais esta vez", fugindo pelas traseiras do balcão.
10) Inconformado, em novembro de 2009, o ora Recorrente intentou ação administrativa, na qual pede a anulação do Despacho de 14 de setembro de 2009, de Sua Excelência o Secretário de Estado da Administração Interna;
11) Efetivamente e relativamente à violação do princípio ne bis in idem, alegou o Autor, ora Recorrente, que pela sua conduta ilícita, inicialmente, foi-lhe aplicada a suspensão preventiva do exercício de funções por um período de 90 (noventa) dias e, posteriormente, por mais 90 (noventa) dias, em resultado da sua prorrogação;
12) Foi condenado pelo 2. ° Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores de Cascais na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução, sem que nesta decisão penal se faça qualquer menção a aplicação de qualquer sanção acessória, tendo sido posteriormente punido com a pena de separação de serviço;
13) Nessa medida, entende que foi punido várias vezes pelos mesmos factos, sendo tal conduta ilegal e até inconstitucional, todavia, está em manifesto erro, pois não existe qualquer ilegalidade e muito menos qualquer inconstitucionalidade nos factos descritos;
14) A suspensão preventiva do exercício de funções que lhe foi aplicada trata-se de uma medida de natureza preventiva e não uma pena disciplinar;
15) Quanto ao facto de ter sido condenado em processo crime e posteriormente em processo disciplinar, tal circunstância não viola o princípio ne bis in idem, pois os referidos processos têm finalidade distintas;
16) É irrelevante o facto de o Tribunal não ter condenado o Autor, ora Recorrente, em qualquer sanção acessória, nomeadamente na proibição do exercício de funções, uma vez que compete à Administração, em sede de processo disciplinar, valorar e enquadrar juridicamente os factos praticados por aquele, não existindo qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade neste procedimento;
17) No que respeita à violação do princípio da proporcionalidade, o Autor, ora Recorrente, alegou que: i) se encontra plenamente integrado no serviço; ii) nunca se envolveu em comportamentos menos ilícitos; iii) sempre respeitou e foi respeitado por todos os camaradas de trabalho inclusive os seus superiores hierárquicos; iv) já foi suficientemente punido; v) o seu cadastro estava totalmente limpo; vi) e era delinquente primário, sem antecedentes criminais;
18) Ora, compulsados os autos, verifica-se que o mesmo foi punido com a pena de separação de serviço pelo facto de ter assaltado, por duas vezes, a mesma agência bancária;
19) Não se vislumbra qualquer erro na escolha ou determinação da medida da pena, bem como a pena é necessária, adequada e proporcional;
20) Nos termos do artigo 41.º, n.º 2, alínea c), do RDGNR, vigente à data, às infrações disciplinares qualificadas como muito graves eram aplicáveis as penas de reforma compulsiva ou separação de serviço, não se vislumbrando qualquer violação do princípio da proporcionalidade, nem qualquer ilegalidade na escolha e determinação da pena.
Conclui pelo acerto da sentença recorrida e que a mesma deve ser confirmada.
Pede que seja negado provimento ao recurso.

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Foi notificado o Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA.


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Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
Segundo as conclusões do recurso, as questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida de natureza disciplinar de separação de serviço deve ser revogada, por ter feito uma errada interpretação do direito aplicável, por violadora do princípio da proporcionalidade, violação do princípio “non bis in idem”, violando o disposto no artigo 29.º/5 da CRP.
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III – FUNDAMENTOS

III.1. DE FACTO
Na decisão judicial recorrida foi dada por assente, por provada, a seguinte factualidade que não vem impugnada, pelo que se mantém:
1) O Autor é militar de profissão, com a categoria de Soldado nº ........36, encontrando-se a prestar serviço no Destacamento da GNR de Carcavelos, na data da propositura da ação – facto admitido e resulta do p.a.
2) Em 30 de novembro de 2007, o Comandante da ex-Brigada de Trânsito determinou a abertura do processo disciplinar n.º 08DISC/CCS/2007 ao ex-Guarda n.º …..36 - A........, ora Autor, em razão dos factos publicados, nessa mesma data, no “Diário de Notícias” e “Correio da Manhã”, relativamente a uma tentativa de roubo a uma agência bancária “B........”, em Sassoeiros - Carcavelos, por parte do Autor, o qual veio a ser detido pela PSP da Parede - fls. 02 a 07 do p.a.;
3) Em 30 de novembro de 2007, o Comandante-Geral determinou a suspensão preventiva de funções ao autor por um período de 90 (noventa) dias - fls. 09 e 10 do p.a.;
4) Em 23 de janeiro de 2008, o Instrutor propôs a suspensão do processo disciplinar (fls. 56 e 57), tendo o Comandante da ex-Brigada de Trânsito indeferido a referida proposta;
5) Em 5 de março de 2008, o Comandante-Geral, em substituição, prorrogou a medida de suspensão preventiva por mais 90 (noventa) dias - fls. 79- A do p.a.;
6) Em 2 de abril de 2008, o Instrutor deduziu acusação contra o autor, tendo-lhe imputado a violação dos deveres de lealdade, correção e de aprumo, previstos respetivamente, nos artigos 10. °, n.ºs 1 e 2, al. b), 14.°, n.ºs 1 e 2, al. a) e I), e 17.°, n.ºs 1 e 2, alínea a), do RDGNR, porquanto ( fls. 91 a 94 do p.a.):
i. No dia 17 de agosto de 2007, pela s 12h20, entrou na sede do balcão do B........ de Sassoeiros - Carcavelos, vestindo umas calças de ganga, polo e colete de penas, dirigiu-se de imediato ao balcão das caixas e entregou um papel à funcionária presente com a seguinte mensagem “PÕE DINHEIRO NO SACO, TENHO ARMA”. Depois de mandar chamar o gerente, roubou € 1.770,00 (mil setecentos e setenta euros), montante à vista, e fugiu do local para a rua na companhia do gerente, sob a ameaça de uma arma que possuía, desaparecendo de seguida para parte incerta;
ii. No dia 3 de outubro de 2007, pelas 1 4h1 5, entrou na sede do balcão do B........ de Sassoeiros - Carcavelos, vestindo um colete de ganga azul, dirigiu-se ao gerente e deu-lhe um saco de plástico e mostrou-lhe um papel a dizer “O DINHEIRO TENHO ARMA”. Depois roubou €695,00 (seis centos e noventa e cinco euros), dinheiro que se encontrava à vista, ordenou ao gerente para que lhe abrisse as portas, pediu desculpa dizendo “desculpem lá mais esta vez”, fugindo pelas traseiras do balcão; e
iii. No dia 29 de novembro de 2007, pelas 09h00, entrou na sede do balcão do B........ de Sassoeiros - Carcavelos, na tentativa de assaltar o banco, não o conseguindo, tendo abandonado o local conduzindo uma viatura que estava estacionada no exterior.
7) Em 8 de abril de 2008, foi notificado da acusação (fls. 91 a 94 do PA), tendo apresentado defesa e requerido a realização de diligências de prova – fls. 97 a 101 do p.a.;
8) Em 9 de maio de 2008, o Instrutor indeferiu a realização das diligências com fundamento no facto de serem desnecessárias e impertinentes (fls. 104 do PA);
9) Em 13 de maio de 2008, o Instrutor lavrou o relatório final, mantendo os factos constantes na acusação, e propôs a aplicação da pena disciplinar de separação de serviço (fls. 105 a 110 do p.a.);
10) Em 2 de junho de 2008, o Comandante da ex-Brigada de Trânsito determinou o envio do processo para apreciação do Comandante-Geral (fls. 113 do PA);
11) Em 23 de julho de 2008, o Comandante-Geral determinou o envio do processo ao Conselho de Ética, Deontologia e Disciplina (CEDD) (fls. 123 do PA);
12) Em 27 de fevereiro de 2009, o Comandante-Geral determinou que fosse entranhado no processo disciplinar a decisão judicial transitada em julgado em 22 de janeiro de 2009, que condenou o autor pela prática de 5 (cinco) crimes consumados de roubo e 2 (dois) crimes de roubo, sob a forma tentada, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período – fls.125 a 157 do p.a.;
13) Em 22 de junho de 2009, o CEED deliberou por 27 (vinte e sete) votos a favor e 0 (zero) contra pela aplicação da pena disciplinar de Separação de Serviço (fls. 162 do PA);
14) Em 19 de agosto de 2009, através do Parecer n.° 682-CM/09, a DSAJC/MAI concordou com a aplicação da pena disciplinar de separação de serviço (fls. 175 a 185 do PA);
15) Em 14 de setembro de 2009, Sua Excelência o Secretário de Estado da Administração Interna puniu o autor com a pena disciplinar de separação de serviço (fls. 174), por violação dos deveres de lealdade, correção e de aprumo, previstos respetivamente, nos artigos 10. °, n.ºs 1 e 2, al. b), 14. °, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e I), e 17. °, n.ºs 1 e 2, alínea a), do RDGNR, porquanto (fls. 91 a 94):
a. No dia 17 de agosto de 2007, pelas 12h20, entrou na sede do balcão do B........ de Sassoeiros - Carcavelos, vestindo umas calças de ganga, polo e colete de penas, dirigiu-se de imediato ao balcão das caixas e entregou um papel à funcionária presente com a seguinte mensagem “PÕE DINHEIRO NO SACO, TENHO ARMA”. Depois de mandar chamar o gerente, roubou € 1.770,00 (mil setecentos e setenta euros), montante à vista, e fugiu do local para a rua na companhia do gerente, sob a ameaça de uma arma que possuía, desaparecendo de seguida para parte incerta; e;
b. No dia 030UT07, pelas 1 4h1 5, entrou na sede do balcão do B........ de Sassoeiros - Carcavelos, vestindo um colete de ganga azul, dirigiu-se ao gerente e deu-lhe um saco de plástico e mostrou-lhe um papel a dizer “O DINHEIRO TENHO ARMA”. Depois roubou €695,00 (seiscentos e noventa e cinco euros), dinheiro que se encontrava à vista, ordenou ao gerente para que lhe abrisse as portas, pediu desculpa dizendo “desculpem lá mais esta vez”, fugindo pelas traseiras do balcão.
16) A presente ação entrou em juízo em 3 de Novembro de 2009 – resulta dos autos.

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III.2. DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso, segundo a sua ordem de precedência, recordando que cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões da respetiva alegação, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nºs 1, 2 e 3, todos do CPC, “ex vi” artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito a este TCA Sul conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, razão pela qual a nulidade de sentença suscitada nas alegações, mas não constando das respetivas conclusões, não será apreciada.
Desde logo foi invocada a violação do princípio da proporcionalidade na determinação concreta da sanção disciplinar aplicada ao recorrente, de separação do serviço; assim como a violação do artigo 29.º/5 da CRP (non bis in idem) e, também, o facto da decisão disciplinar ir mais longe do que aquela que condenou o recorrente à prática de crimes em sede criminal subverte a lógica de "última ratio" subjacente ao Direito Penal.
Vejamos então.
(Violação do princípio da proporcionalidade e do princípio “non bis in idem”)
Alegou em concreto que recorre da decisão de 1.ª instância que julgou a ação improcedente, mantendo na ordem jurídica a decisão sancionatória impugnada nos autos que determinou a separação de serviço referida no artigo 33.º do Regulamento de Disciplina da GNR e que tal decisão viola o princípio da proporcionalidade, explicitando que entende que a decisão sancionatória foi excessiva na medida em que foi mais longe do que aquela que condenou o recorrente à prática de crimes em sede criminal subverte a lógica de "última ratio" subjacente ao Direito Penal.
Sobre o assunto, o recorrido alega que o recorrente foi punido com a pena de “separação de serviço” pelo facto de ter assaltado por duas vezes a mesma agência bancária, inexistindo qualquer violação ao princípio da proporcionalidade, entendendo, até, que a pena foi adequada e necessária.
A proporcionalidade (entendida em sentido amplo) é, pois, considerada como princípio geral de limitação da atividade do poder público. Em geral, afirma-se que o princípio da proporcionalidade relaciona meios e fins, visando responder ao problema de saber se, depois de aferida a legitimidade dos últimos, a sua consecução se pode alcançar através das medidas selecionadas, que hão de ser idóneas e exigíveis, causando mais benefícios que prejuízos. Quer dizer, o teste da adequação ou da aptidão, postulando um juízo ex ante de prognose causa (essencialmente – mas não só – de natureza empírica), a repetir, a posteriori pelo julgador, exige que a medida se revele um mecanismo idóneo para a satisfação da finalidade dada.
A referência à vertente da necessidade (ou indispensabilidade) permite acentuar que, no confronto com outros meios igualmente adequados, a medida deve constituir o instrumento menos lesivo ou menos intrusivo. Ou seja, a ponderação custos-benefícios pretende, numa perspetiva positiva, sopesar as vantagens (para a consecução do fim) e as desvantagens implicadas pela medida. Por outro lado, numa ótica negativa, o princípio apela à regra segundo a qual, em situações de incerteza, deve o decisor escolher a alternativa cuja pior consequência seja superior às piores consequências das restantes. Em síntese, o princípio pressupõe uma ponderação entre a importância do benefício social atingido pela consecução do fim subjacente à medida (satisfação do interesse público ou garantia de outro direito fundamental) e a importância social que existiria se se não restringisse o direito fundamental, num juízo que se propõe avaliar o estado desses benefícios antes e depois da restrição, comparando os respetivos efeitos marginais.
A proporcionalidade em sentido estrito constitui o momento azado para a ponderação custos-benefícios e aponta no sentido do equilíbrio, da racionalidade e da razoabilidade.
Pois bem, o atual artigo 7.º do CPA, dedicado exclusivamente ao princípio da proporcionalidade, dispõe no seu n.º 1 que “...Na prossecução do interesse público, a Administração Pública deve adotar os comportamentos adequados aos fins prosseguidos...” e no n.º 2 que “...As decisões da Administração que colidam com direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares é podem afetar essas posições na medida do necessário e em termos proporcionais aos objetivos a realizar...”, passa a acolher as três dimensões do princípio da proporcionalidade, isto é, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Acrescenta-se a ideia de que a razoabilidade vem, muitas vezes, associada a este princípio da proporcionalidade, assimilando-se à sua dimensão de proporcionalidade em sentido estrito, ou, em alternativa, autonomizando-se como uma sua quarta dimensão, levando-nos a refletir acerca da natureza dos juízos de proporcionalidade e dos juízos de razoabilidade que estão subjacentes aos artigos 7.º e 8.º do CPA.
Assim, se, quanto ao princípio da proporcionalidade, há quem fale em proibição do excesso, tendo em conta o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), enquanto princípio com uma dimensão maior que contém várias dimensões, entre as quais se destacam a adequação ou idoneidade, a necessidade ou exigibilidade, a proporcionalidade em sentido estrito ou princípio da justa medida e, ainda, por outro lado, para outros, torna-se relevante a tal dimensão da razoabilidade.
Contudo, não obstante, ter sido alegada a violação do princípio da proporcionalidade da decisão recorrida, importa recordar que a causa de pedir tem implícita a limitação do princípio da substanciação que é caracterizada pela facticidade e necessidade de concretização, estruturando-se na envolvência dos factos concretos correspondentes à previsão das normas substantivas, concedentes da situação jurídica alegada pelas partes, independentemente da respetiva valoração jurídica.
Pois bem, estas limitações são aplicáveis às alegações de recurso. É facto que a possibilidade de interposição de recurso, dentro de determinados condicionalismos previamente fixados na lei, constitui uma faculdade processual que se integra no direito constitucional à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º/5, da CRP. Sabemos que a natureza da fase recursiva se revela, assim, como continuação da instância e não com a configuração de uma nova instância, o que baliza o objeto do recurso a conhecer pelo Tribunal Superior, pelo que, interposto um recurso jurisdicional, o recorrente fica sujeito a dois ónus:
a) o primeiro é o ónus de alegar, no cumprimento do qual se espera que o interessado analise e critique a decisão recorrida, refute as incorreções ou omissões de que, na sua ótica, ela enferma, argumentando e postulando circunstanciadamente as razões de direito e de facto da sua divergência em relação ao julgado,
b) o segundo ónus é o de finalizar essa alegação, com a formulação sintética de conclusões, sendo estas que procedem ao levantamento das questões controversas apresentadas ao Tribunal Superior e permitem a real viabilização do exercício do contraditório. Por isso, é de suma importância que, pelo menos as conclusões, sejam elaboradas criteriosamente, como mandam as regras processuais nesta matéria.
Se o recorrente alegar e concluir, o recorrente terá ainda o sub-ónus de proceder a duas estirpes de especificações: i) uma relativa às normas que entende violadas, mal interpretadas ou erroneamente aplicadas (artigo 685.º-A, n.º 2 do CPC) e ii) outra que lhe impõe a menção concreta dos pontos de facto e dos meios probatórios a considerar em sede de recurso (artigo 639.º do CPC).
Além destes, existe ainda um ónus de especificação de cada um dos pomos da discórdia do recorrente com a decisão recorrida, seja quanto às normas jurídicas e à sua interpretação, seja a respeito dos factos que considera incorretamente julgados e dos meios de prova que impunham uma decisão diferente. Procura-se assim evitar a impugnação geral, vaga e indefinida, para obstar a que a parte contrária se veja numa situação insustentável na preparação do contraditório, sem entender convenientemente a posição do recorrente, os seus motivos de divergência, ficando assim privada de elementos importantes para organizar a sua defesa em contra-alegações.
E o recorrente não cumpriu estes seus ónus de recurso, limitando-se a vagamente alegar a violação do princípio da proporcionalidade, por entender que a sanção disciplinar foi excessiva, mas sem explicitar em que medida e em que fundamenta o seu raciocínio de excesso face aos bens jurídicos tutelados pela aplicação da concreta sanção disciplinar, por referência aos normativos legais aplicáveis, que, alegadamente, a decisão judicial de 1.ª instância terá julgado erradamente.
Por fim, recorda-se, ainda, que as conclusões têm a importante função de definir e delimitar o objeto do recurso e, desta maneira, circunscreverem o campo de intervenção do Tribunal Superior encarregado do julgamento, nos termos definidos pelos artigos 639.º e 640.º do CPC.
Pois bem, vamos, em concreto, aos autos.
A decisão do Tribunal a quo decidiu que “... perante a gravidade dos factos e o alarme social criado à sua volta, com a publicitação do comportamento ilícito do Autor, outra não poderia ter sido a atuação do Ministério demandado, por razões de segurança e de defesa da imagem pública da instituição...”, e que “... Os factos cometidos pelo Autor são demasiado graves, para que seja possível retomar a relação laboral com a hierarquia. São factos ilícitos de uma gravidade valorativa que impedem definitivamente o retomar de uma normal relação laboral, pelo que se mostra inevitável, nada violando o Princípio da proporcionalidade a pena aplicada de Separação de Serviço – nem podia ser outra...”.
O recorrente diz pouco quanto às razões que o levam a considerar ter sido a decisão do Tribunal de 1.ª instância errada, por errada interpretação do direito aplicável, em razão da alegada violação do princípio da proporcionalidade na determinação concreta da sanção disciplinar. Limita-se a esgrimir como fundamento aquilo que seria a sua conclusão: “... violação do princípio da proporcionalidade...”.
Falta-lhe efetivamente substanciação nas alegações de recurso e nas suas conclusões. Limita-se a referir que considera a decisão disciplinar de separação de serviço excessiva e violadora do princípio da proporcionalidade porque a decisão sancionatória foi excessiva na medida em que foi mais longe do que aquela que condenou o recorrente à prática de crimes em sede criminal subverte a lógica de “ultima ratio" subjacente ao Direito Penal. Contudo, não procede este argumento.
De facto, sem prejuízo da decisão judicial sintética, o facto é que a realidade disciplinar e criminal é efetivamente diversa e sempre se reconhecerá a autonomia entre os procedimentos disciplinares e criminais, persistindo em cada um deles uma capacidade autónoma de apreciação e valoração dos mesmos factos.
Efetivamente, o procedimento disciplinar é independente e autónomo do processo criminal sendo diferentes os pressupostos da respetiva responsabilidade e diversa natureza e finalidade das sanções aplicadas naqueles processos. Quando versamos sobre o direito disciplinar no âmbito da relação jurídica de emprego público, verdadeiro direito administrativo sancionatório, e sobre o direito penal, encontramos como denominador comum o exercício de direito punitivo publico. Em ambas as situações, situamo-nos no âmbito do direito publico e é prosseguida a punição (por intermédio de sanção/pena) do infrator – o caráter estadualmente sancionatório. Porém, desenhadas as convergências entre direito disciplinar e direito penal, olhando àquilo que os distingue, apresenta-se apodítico que é diferente a tutela de bens jurídicos por eles preconizada, bem como a natureza e as finalidades das respetivas penas/sanções. Enquanto no direito penal se visa a proteção de bens jurídicos com referentes constitucionais, no direito disciplinar de emprego público, os bens jurídicos tutelados encontram o seu referente na relação jurídica de emprego público e do funcionamento do serviço), na deverosidade funcional e organizacional, delimitada pela relação jurídica de emprego e pelos deveres e obrigações que a traduzem.
A natureza das formas de repressão empreendidas por aqueles direitos é distinta não só́ na sua nomenclatura – pena (direito penal), sanção (direito disciplinar de emprego público) – mas, sobretudo, pelo cariz. As penas criminais adotam a feição mais pesada e gravosa de todo o ordenamento jurídico (encimado pela pena de prisão). Já as sanções disciplinares têm uma natureza imbricadamente funcional: afastando o trabalhador das suas funções temporariamente (suspensão, cessação da comissão de serviço) ou a título definitivo (despedimento, demissão); ou mantendo-o em funções, mas com censura ou penalização patrimonial (repreensão escrita ou multa).
No que diz respeito às finalidades das penas/sanções, as penas criminais têm fundamentalmente um caráter repressivo, por contraposição com finalidade corretiva- funcional das sanções disciplinares. As penas criminais têm, ainda, como fito, o restabelecimento da confiança do ordenamento jurídico na norma violada, enquanto o direito disciplinar se queda pela restauração do bom funcionamento do serviço e da dignidade do trabalhador (enquanto “servidor público”) e das suas funções. Efluindo das sanções expulsivas, no direito disciplinar, a prevalência da prevenção especial negativa (impedindo que o trabalhador volte a reincidir) e de prevenção geral (servindo de dissuasão à prática daquelas condutas pelos demais trabalhadores do serviço); e, nas sanções conservatórias, a finalidade de prevenção especial (interpelar ao cumprimento dos deveres do trabalhador).
Posto isto, dir-se-á que o direito penal e o direito disciplinar no emprego público são autónomos e independentes entre si, de tal ordem que a valoração da mesma conduta pode ser feita e sancionada concomitantemente no âmbito respetivo sem que isso envolva violação do princípio “non bis in idem”, que só funciona no âmbito de cada específico ordenamento punitivo.
A mesma conduta pode, simultaneamente, ser perseguida e punida no procedimento disciplinar e em processo penal, sem que isso represente uma dupla punição pelos mesmos factos, porquanto se tratam de responsabilizações distintas, até à luz dos distintos bens jurídicos protegidos e das distintas finalidades de cada um dos direitos em causa. Dá-se a coexistência de espaços valorativos e sancionatórios próprios.
Improcede, por isso, a violação do princípio da proporcionalidade e do princípio “non bis in idem”.
Improcede o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.



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Em consequência, será de negar provimento ao recurso, por não provados os seus fundamentos e em manter a sentença recorrida, com a fundamentação antecedente.
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IV – DISPOSITIVO

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, por não provados os seus fundamentos e em manter a sentença recorrida, com a fundamentação antecedente.
Custas pelo recorrente.
Registe e Notifique.
Lisboa, 24 de abril de 2024

(Eliana de Almeida Pinto - Relatora)

(Teresa Caiado – 1.º adjunta)

(Maria Helena Filipe – 2.º adjunta)