Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2184/14.1BESB
Secção:CA
Data do Acordão:05/09/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:ADVOCACIA
INCOMPATIBILIDADE
CAIXA DE PREVIDÊNCIA
Sumário:I - Face ao enquadramento legal em vigor à data dos factos, verifica-se que a CPAS detém dois universos distintos de beneficiários - os ordinários e os extraordinários -, sendo certo que os ordinários são aqueles que estejam “inscritos na Ordem dos Advogados” (cfr. n.º1 do artigo 5.º do RCPAS) e os extraordinários os que, designadamente, “tenham a sua inscrição suspensa no respetivo organismo profissional, desde que requeiram a manutenção da sua inscrição na Caixa ” (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do RCPAS).
II - Não obstante a norma regulamentar prevista no n.º 1 do artigo 10.º do RCPAS invocar o conceito de cancelamento, ao referir “será cancelada a inscrição”, tal cancelamento não se confunde, logico-normativamente, com o cancelamento da inscrição (suspensão) no respetivo organismo profissional a que se reporta o artigo 56.º do Regulamento n.º 232/2007 - Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários.
III - Solicitada a suspensão na respetiva ordem profissional e sendo a mesma motivada por verificação de incompatibilidade ao abrigo do artigo 77.º do EOA, como é claramente o caso presente, tem-se automaticamente por verificado o pressuposto previsto no cit. n.º 1 do artigo 10.º do RCPAS, sem necessidade de qualquer controlo e verificação por parte da CPAS.
IV - É que o dito cancelamento na CPAS tem sempre na sua génese um prévio ou concomitante pedido de suspensão de inscrição efetuado junto da O.A. ao abrigo do cit. artigo 51.º, ou a oficiosa verificação de suspensão por incompatibilidade a que se reporta o artigo 52.º, ambos do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados estagiários.
Votação:Maioria
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

I………………, com morada Avenida da M…………, n.º……., ….º andar C, 2775- …, P…….., intentou ação administrativa especial contra CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES (CPAS), com sede no L……., n.º…., … andar, 1169 -…., Lisboa.

A pretensão formulada ao T.A.C. foi a seguinte:

- Declaração de nulidade ou anulação da deliberação datada de 03/07/2014 (indeferimento do pedido de cancelamento da inscrição na CPAS), da deliberação de 10/04/2012 (ato que suspendeu a inscrição na CPAS) e da deliberação de 04/05/2011 (ato que decidiu a não aplicação dos nºs 1 e 3 do artigo 10º do RCPAS),

- Condenação da CPAS ao ato legalmente devido, consubstanciado em deliberação que declare o cancelamento da inscrição da autora junto da CPAS,

- Condenação da CPAS ao deferimento do seu pedido de resgate,

- Mais peticionando, subsidiariamente, que seja condenada a restituir a totalidade das contribuições prestadas pela autora desde 2006 a 2012, sob pena de enriquecimento sem causa daquela Caixa.

*

Após a discussão da causa, o T.A.C. decidiu condenar:

“a CPAS ao reconhecimento do cancelamento da inscrição da CPAS da autora, por motivo relacionado com o exercício de atividade legalmente incompatível com a de advogado e o consequente reconhecimento do direito da autora ao resgate das contribuições que tenha efetuado ao longo da sua carreira contributiva, nos termos previstos no artigo 10.º do RCPAS, em vigor à data dos factos, com a consequente anulação das deliberações que lhe indeferem a referida pretensão.”.

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Inconformada, a ré interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1) A Autora, ora Recorrida, não provou que tenha alegado e provado que a suspensão da sua inscrição na Ordem dos Advogados se deveu ao exercício de atividade incompatível com a advocacia;

2) A Autora não provou que a Ordem dos Advogados tenha suspendido a sua inscrição naquele organismo profissional com fundamento no exercício de atividade incompatível com a advocacia;

3) A Autora também não provou que tenha cancelado a sua inscrição como beneficiária ordinária na CPAS por ter passado a exercer atividade legalmente incompatível com a advocacia.

4) Pois, no que respeita à matéria da suspensão da inscrição na OA e cancelamento da inscrição na CPAS, ficou apenas provado que «a 30/03/2012, foi deferida a suspensão da inscrição da autora na AO; (cfr. fls. 43 do PA)» Alínea k) dos factos dados como provados);

5) E que a 23/3/2012, por despacho do Ministro da Economia e do Emprego, a autora foi designada, como técnica especialista, para realizar estudos e trabalhos técnicos no âmbito das respetivas habilitações e qualificações profissionais em Gabinete Ministerial (cfr. fls. 132 dos autos);» (alínea t) dos factos dados como provados).

6) Ora, tais factos só por si são manifestamente insuficientes para que se possa concluir que a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados foi fundamentada no facto de a Autora ter passado a exercer atividade legalmente incompatível com a advocacia;

7) Como também são insuficientes para se concluir que o cancelamento da inscrição da Autora na CPAS se fundou no facto de ter passado a exercer atividade incompatível com o exercício da advocacia.

8) Razões que se julgam suficientes para que a sentença recorrida tivesse julgado, ao invés, a presente ação como improcedente.

9) Todavia, a sentença recorrida, julgando a ação procedente, fundamentou a sua decisão no facto de o art.º 10.º do RCPAS, em vigor à data dos factos, não prever «qualquer espécie de tramitação procedimental para a comprovação do preenchimento do pressuposto do cancelamento da inscrição junto da CPAS».

10) E, por isso, acrescenta a sentença recorrida, que o referido pressuposto «é de verificação “automática” por reporte à comunicação que lhe for efetuada pela Ordem dos Advogados…»

11) Salientando, ainda, a sentença recorrida, que «solicitada a suspensão na respetiva ordem profissional e sendo a mesma motivada por verificação de incompatibilidade ao abrigo do artigo 77.º do EOA, tem-se automaticamente por verificado o pressuposto previsto no n.º 1 do artigo 10.º do RCPAS, sem necessidade de qualquer controlo e verificação por parte da CPAS…».

12) Esta interpretação não tem na letra da lei qualquer sustentação, uma vez que quando o legislador, no art.º 10.º, n.º1 do RCPAS, refere «será cancelada a inscrição do beneficiário ordinário que passe a exercer atividade legalmente incompatível com a de advogado», tem forçosamente de querer dizer que o advogado terá de alegar e provar, junto da CPAS, que passou a exercer uma atividade incompatível com a advocacia.

13) Não sendo, por isso, de admitir que, pelo simples facto de no art.º 10.º do RCPAS não estar estabelecido um procedimento, que o pressuposto seja de verificação “automática”, após a comunicação de suspensão da inscrição por parte da OA.

14) Mas, mesmo que se admitisse a solução adotada pela sentença recorrida, no caso “sub judice”, nunca a mesma se poderia verificar.

15) Pois, a Autora não logrou provar que a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados tenha tido como fundamento o exercício de atividade incompatível com a advocacia.

16) É que a suspensão da inscrição da Autora na Ordem dos Advogados foi realizada ao abrigo do disposto no art.º 50.º, n.º 1, alínea a) e no art.º 51.º, n.º 1, do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários (regulamento n.º 232/2007 OA (2.ª Série), de 4 de Setembro de 2007/Ordem dos Advogados) e não ao abrigo do disposto no art.º 50.º, n.º 1, alínea b) e art.º 52.º, n.º 1 do mesmo Regulamento.

17) Pelo que, a suspensão da inscrição da Autora na Ordem dos Advogados, foi “a pedido da requerente” e não pelo facto de ter sido “declarada em situação de incompatibilidade com o exercício da advocacia”.

18) Não tendo a Autora logrado provar que o cancelamento da inscrição se deveu ao facto de ter passado a exercer atividade legalmente incompatível com o exercício da advocacia, não devia a sentença recorrida decidir como decidiu, julgando a ação procedente.

19) A sentença recorrida violou, por isso, o art.º 10.º, n.ºs 1 e 3 do RCPAS em vigor à data dos factos (Regulamento aprovado pela Portaria n.º 487/83, de 27/04 e alterado pelas Portarias n.º 623/88, de 8/09 e n.º 884/94, de 1/09); violou, igualmente, os art.ºs 50.º, 51.º e 52.º do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, em vigor à data dos factos (Regulamento n.º 232/2007 OA (2.ª Série), de 4 de Setembro de 2007/Ordem dos Advogados).

20) A sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue a presente ação administrativa improcedente, por não provada, e absolva a CPAS dos pedidos.

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A recorrida autora contra-alegou, concluindo assim:

A. Ao contrário do que a Recorrente pretende fazer crer, o objeto do litígio em apreço jamais se reduziria à falta de um mero documento probatório em sede procedimental.

B. A necessidade de produção da prova invocada pela Recorrente apenas existiria caso tivesse qualquer adesão à realidade a sua teoria, na qual uma deliberação interna da Direção da CPAS (consubstanciada na ata n.º …/2011,de 04.05.2011) fosse suscetível de alterar, derrogar ou revogar as normas gerais e abstratas contidas, quer na Portaria n.º 487/83, de 27 de abril, que aprovou o Regulamento da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (RCPAS), quer na Lei 15/2005, de 26 de janeiro 15/2005,de 26 de janeiro, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).

C. Do enquadramento jurídico aplicável ao caso sub judice, em concreto os artigos 77º e 86º do EOA e o artigo 10 do RCPAS resulta taxativamente, que um advogado que inicie uma atividade profissional legalmente incompatível com o exercício da advocacia tem o dever de suspender a sua inscrição na OA, e que a essa suspensão origina, automaticamente, o cancelamento da sua inscrição da CPAS, constituindo-se o interessado no direito de proceder ao resgate das contribuições pagas a esta última instituição .

D. Acresce que no procedimento administrativo junto aos autos, a CPAS indeferiu o pedido de resgate inicial da Recorrida também pelo facto de esta não ter «cancelado» a sua inscrição na OA, mas apenas suspendido - em flagrante contradição com a consequência legal contida nos artigos 77 e 86 do EOA.

E. Em sede contenciosa veio a Recorrente ajustar a sua posição, tendo passado a invocar apenas a falta de documentos probatórios, na tentativa de desviar a atenção do facto de ter adotado diversos atos administrativos {consubstanciados nas atas da Direção da CPAS devidamente juntas à petição inicial) contendo interpretações manifestamente contra legem, flagrantemente violadoras das mais diversas normas e princípios legais e constitucionalmente consagrados, que entretanto, deixou de tentar defender.

F. As quais foram afastadas do ordenamento jurídico pela douta sentença recorrida como consequência jurídica da pronúncia condenatória que se limitou a verificar a pretensão material da Recorrida, e reconheceu devidamente os direitos que lhe assistiam.

G. São ainda meramente dilatórias as conclusões n.ºs 16, 17 e 19 da Recorrente, porquanto seria sempre indiferente o procedimento interno adotado pela OA para a suspensão da inscrição da Recorrida, se com recurso à suspensão «a pedido» prevista no artigo 51º ou se à suspensão «por incompatibilidade», prevista no artigo 52º do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários (RIAAE), porquanto constituiria sempre uma «suspensão», e nunca um «cancelamento», conforme pretendido pela CPAS no procedimento administrativo.

H. Concluindo-se, em suma, que os argumentos de direito esgrimidos pela Recorrente, no âmbito do presente recurso, se resumem à invocação de que «quando o legislador, no artigo 10, n.º 1 do RCPAS, refere que "será cancelada a inscrição do beneficiário ordinário que passe a exercer atividade legalmente incompatível com a de advogado", tem forçosamente de querer dizer que o advogado terá de alegar e provar, junto da CPAS, que passou o exercer uma atividade incompatível com a advocacia».

I. A douta sentença recorrida assentou, e bem, na adequada aplicação conjunta dos artigos 77.º e 86º do EOA, com o artigo 10.º do RCPAS, nos termos defendidos pela Recorrida, tendo a mesma concluído que «não prevendo o referido artigo 10º qualquer espécie de tramitação procedimental para a comprovação do preenchimento do pressuposto do cancelamento do inscrição junto da CPAS, nem mesmo quanto à motivação do respetivo cancelamento, conclui-se que o referido pressuposto é de verificação "automática" por reporte à comunicação que lhe foi efetuada pela Ordem dos Advogados (...}».

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS PROVADOS

O tribunal recorrido decidiu estar provada a seguinte factualidade:

A. A 14/03/2006, a autora inscreveu-se na Ordem dos Advogados (OA), tendo automaticamente sido inscrita na CPAS, como número de beneficiário 044….., 01/04/2006 (provado por acordo e cfr. fls. 8 do Processo Administrativo apenso [PA]);

B. A 18/05/2006, foi deferida a suspensão da inscrição da autora na OA (cfr. fls. 12 do PA).

C. Por ofício da CPAS, n.º038…., datado de 01/06/2006, a autora foi informada que ¯[…] Foi comunicada à CPAS a suspensão da inscrição de V. Exa. no seu organismo de representação profissional com efeitos a partir de 18/05/2006[…] pelo que[…] foi cancelada a inscrição de V. Exa, nesta Caixa como beneficiário ordinário com efeitos […]desde 18/05/2006 mais informando que ¯poderá requerer a inscrição como beneficiário extraordinário e que ¯ enquanto mantiver a situação de cancelamento da sua inscrição na CPAS, ao abrigo, nos termos e para os efeitos do Artigo 10.º, n.º3, conjugado com o artigo 92.º, ambos do RCPAS, V.Exª, pode, a todo o tempo, requerer o resgaste das contribuições pagas[…](cfr. fls. 15 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

D. A 28/09/2006, a autora requereu à CPAS a sua inscrição como beneficiária extraordinária, o que foi deferido a 3/10/2006 (cfr. fls. 16 e 18 do PA);

E. A 21/08/07, a autora informou a CPAS da alteração de morada, solicitando que a correspondência da CPAS lhe fosse endereçada para Av. M………, n.º….., ….ºc, 2775- ….. P……. (cfr. fls. 22 do PA);

F. A 01/04/2010, a autora foi reinscrita na CPAS, como beneficiária ordinária, por levantamento da suspensão da inscrição na OA (cfr. fls. 25 e 26 do PA);

G. A 08/04/2010, a autora declarou à CPAS, embora inscrita como beneficiária extraordinária, manter valor das contribuições que tinha vindo a efetuar como beneficiária extraordinária, mantendo-se inscrita no 2.º escalão (cfr. fls. 28 do PA);

H. A 23/07/2010, foi deferida a suspensão da inscrição da autora na OA (cfr. fls. 30 do PA);

I. Por ofício da CPAS, n.º15….., datado de 08/09/2010, a autora foi informada que ¯[…] Foi comunicada à CPAS a suspensão da inscrição de V. Exa. no seu organismo de representação profissional com efeitos a partir de 23/07/2010[…] pelo que[…] foi cancelada a inscrição de V. Exa, nesta Caixa como beneficiário ordinário com efeitos […]desde 23/07/2010 mais informando que ¯poderá requerer a inscrição como beneficiário extraordinário e que ¯ enquanto mantiver a situação de cancelamento da sua inscrição na CPAS, ao abrigo, nos termos e para os efeitos do Artigo 10.º, n.º3, conjugado com o artigo 92.º, ambos do RCPAS, V.Exª, pode, a todo o tempo, requerer o resgaste das contribuições pagas[…](cfr. fls. 32 e 33 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

J. Com efeitos a 01/09/2010, a autora foi reinscrita na CPAS, como beneficiária ordinária, por levantamento da suspensão da inscrição na OA (cfr. fls. 36 e 37 do PA);

K. A 30/03/2012, foi deferida a suspensão da inscrição da autora na OA (cfr. fls. 43 do PA);

L. Por ofício da CPAS, n.º88…., datado de 27/04/2012, remetido para Rua C….. de St. A…….., … A, Edf. A….., 2780-…. Oeiras, a autora foi informada que ¯[ …] Foi comunicada à CPAS a suspensão da inscrição de V. Exa. no seu organismo de representação profissional, com efeitos a partir de 30/03/2012[…] pelo que[…] foi cancelada a inscrição de V.Exa, nesta Caixa como beneficiário ordinário com efeitos […]desde 23/07/2010 mais informando que ¯poderá requerer a inscrição como beneficiário extraordinário (cfr. fls. 45 do PA);

M. A 31/12/2013, a autora, “tendo as suas contribuições devidamente regularizadas e a inscrição cancelada […], solicit[ou] o resgate das contribuições efetivamente pagas ao longo da sua carreira contributiva, nos termos do n.º3 do artigo 10.º, valor ao qual não será dedutível qualquer benefício uma vez que nunca foi solicitado ou obtido (cfr. fls. 47 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

N. Por ofício da CPAS, n.º….., datado de 03/01/2014, a autora foi informada que ¯[a]o abrigo nos termos e para os efeitos do Artigos 10.º do RCPAS, o direito ao resgate das contribuições depende da verificação da seguinte condição: cancelamento da inscrição na Ordem dos Advogados, por motivo de exercício de atividade legalmente incompatível e consequente cancelamento da inscrição na CPAS; Na presente data V.Ex.ª não preenche a referida condição, razão pela qual, não é possível deferir o pedido de V.Ex.ª (cfr. fls. 49 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

O. A 14/01/2014, a autora requereu a reavaliação da análise efetuada, informando a CPAS que, “solicitou em 19/03/2013 a suspensão da sua inscrição na AO, precisamente com fundamento no exercício de atividade legalmente incompatível com os estatutos desta associação, conforme se atesta com cópia do seu pedido e que “ em consequência, a inscrição da requerente foi suspensa, conforme ofício n.º…./DA/12 do Conselho Geral da AO, de 30.03.2012 que se junta informando ainda que a “mesma missiva informava ainda, que seria feita a respetiva comunicação à CPAS (cfr. fls. 50 e 51 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

P. Por ofício da CPAS, n.º61….., datado de 15/04/2014, a autora foi notificada, do indeferimento da sua pretensão, com fundamento na proposta anexa à ata n.º…/2014, da reunião da Direção da CPAS de 11/04/2014, na qual pode ler-se o seguinte: “1. Através do ofício n.º C 18…, rececionado em 05.04.2012, a Ordem dos Advogados comunicou à CPAS a suspensão da inscrição da beneficiária com efeitos a partir de 30.03.2012. Consequentemente, nos termos do artigo 5.º do RCPAS, em sessão da Direção de 10.04.2012, Ata n. º…/2012, foi deliberado proceder à suspensão da inscrição da beneficiária na CPAS, com efeitos a partir de 30.03.2012, por ter sido suspenso o exercício da atividade profissional que determinara a inscrição obrigatória da beneficiária na CPAS. A referida suspensão da inscrição na CPAS foi comunicada à beneficiária através do nosso ofício n. º88…, de 27.04.2012. Por carta rececionada em 14.01.2014, a beneficiária veio requerer o resgate das suas contribuições, nos termos e com os fundamentos para que ora se remetem. O resgate de contribuições está previso no artigo 10.º n.º3 do Regulamento da CPAS, e tem lugar no caso de ser cancelada na CPAS, nos termos do n.º1 do mesmo artigo 10.º, a inscrição dos beneficiários que passem a exercer uma atividade legalmente incompatível com a de advogado ou solicitador, consoante a profissão que determinou a inscrição obrigatória na Caixa. No caso em apreço, a inscrição da beneficiária foi suspensa na CPAS, nos termos do artigo 5.º do RCPAS, e não nos termos do artigo 10.º do RCPAS, situação que, desde logo e face ao exposto, não lhe confere o direito ao resgate das contribuições. Nestes termos, e com os fundamentos atrás constantes, proponho o indeferimento do pedido de resgate de contribuições (cfr. fls. 57 a 59, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

Q. A 13/05/2014, a autora apresentou reclamação graciosa do ato de indeferimento a que se refere a alínea anterior do probatório (cfr. fls. 60 a 69 do PA);

R. Por ofício da CPAS, n.º94…., datado de 11/07/2014, a autora foi notificada do indeferimento da sua reclamação, com fundamento na proposta anexa à ata n.º…/2014, da reunião da Direção da CPAS de 03/07/2014, na qual pode ler-se o seguinte: ¯[…] Atentas desde logo, as normas do RCPAS relativas ao assunto do resgate e consequências emergentes de tal procedimento, em sessão de 04.05.2011, constante da Ata n.º…/2011, a Direção deliberou o seguinte: «o resgate das contribuições consiste na devolução ao beneficiário do valor das contribuições pagas ao longo de toda a sua carreira contributiva, com dedução de 15% para o fundo de assistência e de 5% para despesas de administração ( artigo 92.º do RCPAS), e do valor dos benefícios eventualmente recebidos. Na prática é um mecanismo através do qual os Beneficiários renunciam à proteção social garantida e assegurada pela CPAS. É, por isso, uma situação limite irreversível, através da qual: se frustra a regra básica subjacente a todos os regimes de segurança social: ¯ a todo o tempo de trabalho deve corresponder igual tempo de descontos; se frustra o direito à segurança social constitucionalmente consagrado no artigo 63.º da CRP, quer na sua aceção, quer no dever institucional de prover a sua concretização e defesa efetiva: se quebra o laço de solidariedade intergeracional a que todos os trabalhadores estão adstritos e a que os trabalhadores que dispõe de uma Caixa de reforma de índole profissional, como é o caso, devem estar particularmente sujeitos; a todo o tempo e de forma imprevisível, a CPAS fica sujeita a descapitalização, facto que, num, regime de repartição, como é o caso, pode, no limite comprometer a usa sustentabilidade e dificulta os estudos actuariais e prospetivos da instituição e as correlativas tomadas de decisões estratégicas ( pois os resgate são uma premissa de contornos bastante voláteis). Assim sendo, o resgate deve ser uma possibilidade restrita apenas aos Beneficiários que preencham a condição taxativamente exigida no n,º 1 do mesmo artigo 10. º do RCPAS, ou seja, aos Beneficiários cuja inscrição seja cancelada na CPAS por passarem a exercer uma atividade incompatível com a de advogado ou solicitador, consoante a profissão que determinou a inscrição obrigatória na Caixa. Pelo que, ao contrário do que até aqui vinha sucedendo, apenas deverá ser cancelada na CPAS, ao abrigo do artigo 10º do RCPAS, a inscrição dos beneficiários que tenham cancelado no respetivo organismo de representação profissional a sua inscrição e que provem que passaram a exercer uma atividade legalmente incompatível com a advocacia ou solicitadoria, consoante o caso. Sendo que, apenas, e só, os Beneficiários cuja inscrição seja cancelada na CPAS, ao abrigo do referido artigo 10.º n, º 1 do Regulamento, poderão resgatar as suas contribuições nos termos do t o 3 do mesmo artigo 10.º. Todas as restantes situações de cancelamento da inscrição nos organismos profissionais terão também como consequência o cancelamento da inscrição na CPAS, mas, desta feita, ao abrigo do artigo 5. o do Regulamento, por ter sido cancelado o exercício da atividade profissional que determinou a inscrição obrigatória na CPAS, e não ao abrigo do seu artigo 10. n. 3, cuja previsão normativa é expressa e taxativamente, restringida pelo legislador às situações de cancelamento por exercício de atividade legalmente incompatível. Idêntico procedimento se deverá adotar relativamente às situações de suspensão da inscrição no organismo profissional, ou seja, dever-se-á proceder à suspensão da inscrição na CPAS, ao abrigo do artigo 5. o do Regulamento, por ter sido suspenso o exercício da atividade profissional que determinou a inscrição obrigatória na CPAS, e não ao abrigo do artigo 10.º n.º 1 do Regulamento. Em síntese, entende-se assim, que, tal como, aliás, até aqui sempre sucedeu, o resgate de contribuições deverá ser requerido e deferido ao abrigo do n.º 3 do artigo 10.º do RCPAS, verificada que seja a situação de cancelamento da inscrição na CPAS nos termos do n.º 1 do mesmo artigo 10º; Contudo, para que a inscrição na CPAS seja cancelada ao abrigo do artigo 10.º n.º 1 do RCPAS, deverá passar a ser exigido a comprovação do requisito exigido pelo legislador, ou seja, o exercício de atividade legalmente incompatível com a advocacia ou a solicitadoria. Tal constatação denota, clara e preocupantemente, a perversão que pode ser atingida através do mecanismo dos resgates se, como até aqui, bastar a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados ou na Câmara dos Solicitadores, a pedido dos beneficiários, para que o consequente cancelamento da inscrição na CPAS lhes confira o direito ao resgate das contribuições, fazendo emergir a necessidade e a urgência de redefinir o entendimento sobre esta matéria. Com este novo entendimento e procedimentos conexos, entendemos que melhor se adaptará a realidade em apreço ao contexto de grave crise económica e financeira que assola o mundo, o país e, inevitavelmente, as profissões de advogado e de solicitador e, simultaneamente, melhor se protegerão os superiores interesses dos Beneficiários da CPAS e os superiores interesses da instituição, respeitando-se e conferindo-se efetiva plenitude à vontade do legislador e ao espírito da norma expressa no artigo 10.º do RCPAS. Com efeito, com este novo entendimento, visamos: Respeitar a ratio legis do artigo 10. n.º 1 e n.º 3 do RCPAS, preceitos à luz dos quais o resgate de contribuições deverá ser equacionado. Com efeito, ao restringir o cancelamento da inscrição na CPAS, ao abrigo do artigo 10. º n. º 1 do RCPAS, aos casos expressa e taxativamente previstos pelo legislador nesse preceito, garantir-se-á que o resgate de contribuições apenas poderá ser deferido relativamente aos beneficiários que cancelem a sua inscrição no organismo profissional (que, desde logo, é uma situação definida nos respetivos estatutos, como sendo uma situação definitiva) e que passem a exercer outra atividade profissional, legalmente incompatível com a de advogado ou de solicitador, (situação que, desde logo, determinará, obrigatoriamente, a inscrição do Beneficiário noutro regime de proteção social). Evitar as possíveis "corridas ao dinheiro" que, no caso dos resgates, são verdadeiras "corridas contra a segurança social". A atual crise financeira e económica poderá fazer com que os requerimentos de resgates de contribuições sejam motivados por carência económica dos nossos beneficiários, em detrimento de toda a sua carreira contributiva e da proteção social, até então, garantida pela CPAS, que, na maioria das vezes, é o único regime pelo qual os Beneficiários estão assegurados. Ao passar a ser exigido, para que haja possibilidade de resgate, o prévio cancelamento da inscrição na CPAS, nos termos do ARTIGO 10. N.º 1 do RCPAS, limitar-se-á, drasticamente, o universo de Beneficiários que poderão resgatar as suas contribuições, e, ainda mais importante que a limitação quantitativa é, nesta medida, a constatação de que apenas poderão resgatar as suas contribuições os beneficiários que deixem de exercer, a título definitivo, a profissão de advogado ou de solicitador, por passarem a exercer uma outra profissão, a qual determina o enquadramento dos referidos beneficiários noutro regime de proteção social. c)Evitar o esvaziamento de capitais da CPAS, facto que, num regime de repartição, como é o caso, pode, no limite, comprometer a sustentabilidade da Instituição. A limitação dos resgates de contribuições aos casos expressamente previstos no artigo 10.º do RCPAS, além de minimizar o universo de Beneficiários que poderão resgatar as suas contribuições, toma menos volátil e mais previsível esta realidade, facto que, por si só, facilita os estudos actuariais e as correlativas tomadas de decisões estratégicas. Este novo entendimento deverá ser aplicado a todos os processos que venham a ser apreciados pela Direção a partir da presente data." 6.Neste contexto, verifica-se, assim, ter sido devidamente ponderada e fundamentada pela Direção a interpretação das normas em presença, não se vislumbrando que a deliberação ora em reapreciação padeça de qualquer vício que inquine a sua legalidade, designadamente, os invocados pela beneficiária (igualdade, proporcionalidade, boa-fé e legalidade). Com efeito, tratando-se, justificadamente, todos os casos iguais de forma idêntica a partir de uma determinada data, no caso 04.05.2011, garante-se escrupulosamente o princípio da igualdade de tratamento; tratando-se de assunto da competência da Direção, decidido no âmbito das suas atribuições e em plena conformidade com o espirito e letra da lei, assegura-se o principia da legalidade; a existência de fatores de vária ordem denota a proporcionalidade do entendimento versado na presente deliberação na medida em que se assegura que apenas os beneficiários que abandonam definitivamente o exercício da profissão se poderá desvincular do respetivo sistema de segurança social. Por todo o exposto e também pelo facto de tal entendimento constar do site da CPAS e das informações prestadas aos beneficiários não é sequer beliscado o princípio da boa-fé. Neste contexto, relativamente ao facto gerador do direito ao resgate de contribuições, ao invés do que entende a beneficiária, a CPAS mantém o entendimento expresso na deliberação ora em reapreciação, segunda o qual aquele só pode ser deferido nas situações em que a inscrição dos beneficiários na CPAS tenha sido cancelada nos termos do artigo 10.º n.º 3 do RCPAS, ou seja, cancelamento da inscrição no organismo profissional e exercício de atividade legalmente incompatível com a advocacia, situação relativamente à qual a beneficiária não veio trazer ao processo nenhum facto novo, nem nenhum fundamento de direito, que façam alterar o sentido da Deliberação tomada. Do que decorre supra, afigura-Se que a deliberação de 11.04.2014, constante da Acta N.º …/2014, ora em reapreciação, não padece de quaisquer vícios que inquine a sua legalidade, designadamente a invocada peia beneficiária, devendo manter-se inalterada a decisão então tomada. Nestes termos e pelas razões atrás expostas, proponho o indeferimento da reclamação (cfr. fls. 86 a 87 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

S. A autora efetuou até 2012 o pagamento de todas as contribuições devidas à CPAS (provado por acordo, cfr. art.º 3 da PI e art. º18 da Contestação);

T. A 23/03/2012, por despacho do Ministro da Economia e do Emprego, a autora foi designada, com técnica especialista, para realizar estudos e trabalhos técnicos no âmbito das respetivas habilitações e qualificações profissionais em Gabinete Ministerial (cfr. fls. 132 dos autos).

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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Delimitação do objeto do recurso:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso - cf. artigos 144º-2 e 146º-4 do CPTA, artigos 5º, 608º-2, 635º-4-5 e 639º do CPC-2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA -, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo - cf. artigos 73º-4, 141º-2-3, 143º e 146º-1-3 do CPTA. Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule - isto no sentido muito amplo utilizado no CPC - deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e as condições legalmente exigidos para o efeito.

Ora, tudo visto, as questões a resolver contra a decisão ora recorrida são as seguintes:

- Erro de julgamento na aplicação aos factos provados dos artigos 77º e 86º-1-d) do EOA, 10º-1-3 do RCPAS e 50º a 52º do RIAAE.

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Temos presente tudo o que já expusemos, bem como: (1º) que a ordem jurídica posta através de atos humanos – o jurídico real e social – se refere a um conjunto de regras e princípios jurídicos ordenado em função de um ou mais pontos de vista [sistema], sendo o ordenamento jurídico um sistema social – no sentido do jurista e sociólogo N. Luhmann: um sistema da sociedade moderna, funcionalmente diferenciado, autopoiético, coerente e racional, cuja função é manter estáveis as expectativas socio-normativas independentemente da sua eventual violação – mas sistema aberto e alterável, nomeadamente em consequência de novos objetivos e do acoplamento estrutural entre sistemas sociais; (2º) que o Direito administrativo é Direito constitucional democrático concretizado; (3º) que existe uma correta, objetiva e racional metodologia jurídica para conhecer o direito objetivo e uma correta, objetiva e racional metodologia jurídica para decidir processos jurisdicionais [cf. os essenciais artigos 8º a 11º do CC quanto à interpretação dos enunciados normativos infraconstitucionais: o elemento filológico ou gramatical, o elemento lógico-sistemático, o elemento pragmático-teleológico-objetivo e o elemento genético-histórico; vd. Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., AAFDL Edit., Lisboa, 2018, capítulo I, nº 3, e capítulo III], no âmbito de um Estado democrático e social de Direito Constitucional – cf. os artigos 1º a 3º, 9º, 110º-1, 112º, 202º-1-2, 203º e 204º da CRP e os artigos 1º a 11º, 335º, 342º e 343º do CC; (4º) que, para compreender objetivamente o direito objetivo [por contraposição: a proporcionalidade (que, no Direito de hoje, proíbe decisões administrativas muito ou pouco desproporcionais, a sindicar pelos tribunais administrativos - cf. assim Mário Aroso, T.G.D.A., 5ª ed., pp. 87-88 e 92-98), a “right” na língua inglesa] aplicado, é mister assumir (i) que o direito objetivo vigente não é a opção político-jurídica ou valorativa que está a montante das fontes, (ii) que metódica da dogmática jurídica, metódica jurisdicional e metódica filosófica são três coisas distintas, (iii) que o direito objetivo tem na sua natureza o princípio estrutural da segurança jurídica [cf. artigos 1º e 2º da CRP], e (iv) que as máximas metódicas ou postulados aplicativos da igualdade e da proporcionalidade (que, no Direito de hoje, proíbe decisões administrativas muito ou pouco desproporcionais, a sindicar pelos tribunais administrativos - cf. assim Mário Aroso, T.G.D.A., 5ª ed., pp. 87-88 e 92-98) administrativas, fora das vinculações jurídicas estritas, implicam um específico dever de fundamentação expressa – cf. artigos 1º e 2º da CRP e 7º do CPA; (v) destaca-se ainda, nesta Jurisdição, o princípio jurídico geral da prossecução do interesse coletivo por parte de todas as atividades de administração pública – cf. artigos 266º e 268º-3-4 da CRP.

Passemos, pois, à análise do recurso de apelação.

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A)

Sobre este tema em geral podemos encontrar a seguinte jurisprudência:

- Ac. do Plenário do STA de 06-03-2016, P. nº 01150/15:

“Compete ao Tribunal Administrativo conhecer da ação administrativa especial em que se pede a anulação da deliberação da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) que indeferiu o requerimento para pagamento das contribuições relativas ao período de estágio de uma beneficiária falecida, com fundamento em que aquele pedido só poderia ter sido feito pela própria beneficiária, e não já pelos seus herdeiros e em que, para acesso ao subsídio de sobrevivência, o requisito de 10 anos de inscrição teria que estar preenchido à data da morte da beneficiária, condição que, no caso concreto, não se verificava nem poderia verificar”;

- Ac. do Plenário do STA de 10-09-2014, P. nº 0621/14:

“I - Não é a função - administrativa ou tributária - em que a Administração exerce o seu poder que determina a competência do Tribunal para o julgamento do conflito, visto essa competência resultar do facto deste emergir de uma relação jurídica administrativa ou de uma relação jurídica tributária. II - Só se pode falar em relação jurídica tributária quando um dos seus sujeitos for uma das entidades identificadas no n.º 3 do art.º 1.º da LGT e o seu objeto for a liquidação e cobrança de tributos ou a resolução dos conflitos daí decorrentes (art.º 30.º do mesmo diploma), como só se pode falar em relação jurídica administrativa se o sujeito público que nela intervém não for uma das citadas entidades e não prosseguir as finalidades prosseguidas pela Administração tributária. III - Tendo sido proposta uma ação administrativa comum para efetivação de responsabilidade civil extracontratual do Estado – com vista à condenação deste no pagamento de uma quantia que repare os danos sofridos em resultado da ilegal retenção do IVA – não se está perante um conflito emergente de uma relação jurídica tributária tout court mas perante um conflito que, apesar de ter a sua origem remota nesse ato tributário, lhe é posterior e que nasce por diferentes razões. IV - Por ser assim, aquela ação é uma típica ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado, a qual se rege não por normas de direito tributário, mas por normas de direito civil e de direito administrativo, o que, desde logo, determina que os Tribunais Administrativos sejam competentes para o seu conhecimento”;

- Ac. do Plenário do STA de 29-01-2014, P. nº 01771/13:

“I - Não é a função – administrativa ou tributária – em que a Administração exerce o seu poder que determina a competência do Tribunal para o julgamento do conflito, visto essa competência resultar do facto do conflito emergir de uma relação jurídica administrativa ou de uma relação jurídica tributária. II - Só se pode falar em relação jurídica tributária quando um dos seus sujeitos for uma das entidades identificadas no n.º 3 do art.º 1.º da LGT e o seu objeto for a liquidação e cobrança de tributos ou a resolução dos conflitos daí decorrentes (art.º 30.º do mesmo diploma) como só se pode falar em relação jurídica administrativa se o sujeito público que nela intervém não for uma das citadas entidades e não prosseguir as finalidades prosseguidas pela Administração tributária. III - Tendo sido proposta uma ação administrativa comum para efetivação de responsabilidade civil extracontratual do Estado – com vista à condenação deste no pagamento de uma quantia que repare os danos sofridos em resultado da ilegal liquidação de um imposto e da sequente anulação judicial da mesma – não se está perante um conflito emergente de uma relação jurídica tributária tout court – a liquidação do imposto judicialmente anulado – mas perante um conflito que, apesar de ter a sua origem remota nesse ato tributário, lhe é posterior e que nasce por diferentes razões, ainda que complementares. IV - Por ser assim aquela ação é uma típica ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado a qual se rege não por normas de direito tributário, mas por normas de direito civil (Cod. Civil) e de direito administrativo (Lei 67/2007, de 31/12), o que, desde logo, determina que os Tribunais Administrativos sejam competentes para o seu conhecimento”;

- Ac. da Secção de Contencioso Administrativo do STA de 29-11-2001, P. nº 040490:

“I - O art.º 7, n.º 2, do Regulamento da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, aprovado pela Portaria n.º 487/84, de 27.4, com a redação que lhe foi dada pela Portaria n.º 884/94, de 1.10, não amplia quaisquer direitos dos beneficiários II - Um ato administrativo vale normalmente para futuro (art.º 127, n.º 1 do CPA) e o art.º 5º A do citado Regulamento apenas se aplica à situação particular de estágio nele contemplada”;

- Ac. da Secção de Contencioso Administrativo do TCA Sul de 06-06-2013, P. nº 05440/09:

“I – Nos termos do artigo 9º nº 1 do Código Civil, na interpretação da lei deve o interprete tomar em consideração para além “da unidade do sistema jurídico” e “das circunstâncias em que a lei foi elaborada” também “as condições especificas em que é aplicada”. II – Os 36 anos de exercício de profissão de advogado ou de solicitador, exigidos na al. b) do nº 1 do artigo 13º do RCPAS, para atribuição da pensão de reforma, correspondem a 36 anos de inscrição na CPAS com contribuições pagas. III – Tal interpretação, que não resulta da análise literal da norma supra citada (artigo 13º nº 1 al. b), decorre contudo do recurso aos lugares paralelos dos demais normativos conexos do RCPAS, como sejam, os artigos 5º, 5º A, 7º, 14º, 72º, 74º, 91º e 114º do referido Regulamento e ainda subsidiariamente da invocação dos princípios gerais da contributividade e das condições gerais de acesso à proteção social pelo regime de sistema previdencial (Lei Bases da Segurança Social) que pressupõem o autofinanciamento do regime, bem como a inscrição da obrigação contributiva”.

Note-se que aqui, à semelhança do explanado nos cits. acs. do plenário do STA, não se discute qualquer tributo ou paratributo, nem há um litígio emergente de uma relação tributária. Por exemplo, aqui não se está a discutir se são ou não são devidas contribuições para a CPAS. Não estamos em sede de liquidação e cobrança de tributos ou de resolução dos conflitos daí decorrentes.

O litígio presente emerge, com efeito, da relação administrativa com a O.A. e da relação administrativa com a CPAS no que respeita ao cancelamento da inscrição da autora na CPAS em consequência da suspensão da inscrição da O.A., tudo em resultado da existência de uma incompatibilidade entre a atividade de advogada e a atividade presente da autora.

Sobre a natureza jurídica da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (cf. DL 119/2015, alterado pelo DL 116/2018; e antes Portaria 487/83, alterada pela Portaria 623/88 e pela Portaria 884/94), diremos que:

- A Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, criada pelo Decreto-Lei n.º 36.550, de 22 de outubro de 1947, e reconhecida pelo artigo 106.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, alterada pela Lei n.º 83-A/2013, de 30 de dezembro, tem por fim estatutário conceder pensões de reforma aos seus beneficiários e subsídios por morte às respetivas famílias, exercendo ainda uma atividade ao nível de assistência social;

- O seu objetivo prioritário é o de prover aos advogados e solicitadores uma velhice condigna, que represente adequadamente a recompensa de uma vida de trabalho e da inerente participação no sistema previdencial;

- É uma pessoa coletiva de direito público.

Estando nós no âmbito do Direito administrativo relativo às ordens profissionais e “seus” sistemas privativos e especiais de segurança social (“privada”), (i) sem se debater tributos ou paratributos em si, (ii) sem se debater isenções contributivas ou deveres contributivos (iii) e sem se debater atos administrativos de Direito tributário, trata-se aqui de um litígio compósito emergente da relação jurídica de Direito administrativo entre a autora e a CPAS, que, neste ponto, é alheia à matéria (paratributária) do dever de pagar ou de não pagar contribuições (talvez parafiscais) para a CPAS.

B)

Passemos agora a expor o essencial do quadro normativo abordado na sentença recorrida e nas alegações, a interpretar e aplicar tendo presentes os arts. 8º a 11 do CC:

Do E.O.A. de 2005, que contém normas legislativas:

Artigo 77º

1 - São, designadamente, incompatíveis com o exercício da advocacia os seguintes cargos, funções e atividades:

a) Titular ou membro de órgão de soberania, representantes da República para as Regiões Autónomas, membros do Governo Regional das Regiões Autónomas, presidentes de câmara municipal e, bem assim, respetivos adjuntos, assessores, secretários, funcionários, agentes ou outros contratados dos respetivos gabinetes ou serviços;

2 - As incompatibilidades verificam-se qualquer que seja o título, designação, natureza e espécie de provimento ou contratação, o modo de remuneração e, em termos gerais, qualquer que seja o regime jurídico do respetivo cargo, função ou atividade, com exceção das seguintes situações:

a) Dos membros da Assembleia da República, bem como dos respetivos adjuntos, assessores, secretários, funcionários, agentes ou outros contratados dos respetivos gabinetes ou serviços;

b) Dos que estejam aposentados, reformados, inativos, com licença ilimitada ou na reserva;

c) Dos docentes;

d) Dos que estejam contratados em regime de prestação de serviços.

3 - É permitido o exercício da advocacia às pessoas indicadas nas alíneas j) e l) do n.º 1, quando esta seja prestada em regime de subordinação e em exclusividade, ao serviço de quaisquer das entidades previstas nas referidas alíneas, sem prejuízo do disposto no artigo 81.º

4 - É ainda permitido o exercício da advocacia às pessoas indicadas nas alíneas j) e l) do n.º 1 quando providas em cargos de entidades ou estruturas com carácter temporário, sem prejuízo do disposto no estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado.

Artigo 86º

Constituem deveres do advogado para com a Ordem dos Advogados:

a) Não prejudicar os fins e prestígio da Ordem dos Advogados e da advocacia;

b) Colaborar na prossecução das atribuições da Ordem dos Advogados, exercer os cargos para que tenha sido eleito ou nomeado e desempenhar os mandatos que lhe forem confiados;

c) Declarar, ao requerer a inscrição, para efeito de verificação de incompatibilidade, qualquer cargo ou atividade profissional que exerça;

d) Suspender imediatamente o exercício da profissão e requerer, no prazo máximo de 30 dias, a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados quando ocorrer incompatibilidade superveniente;

e) Pagar pontualmente as quotas e outros encargos, designadamente as obrigações impostas como penas pecuniárias ou sanções acessórias, devidos à Ordem dos Advogados, estabelecidos neste Estatuto e nos regulamentos;

f) Dirigir com empenhamento o estágio dos advogados estagiários;

g) Comunicar, no prazo de 30 dias, qualquer mudança de escritório;

h) Manter um domicílio profissional dotado de uma estrutura que assegure o cumprimento dos seus deveres deontológicos, nos termos de regulamento a aprovar pelo conselho geral;

i) Promover a sua própria formação, com recurso a ações de formação permanente, cumprindo com as determinações e procedimentos resultantes da regulamentação a aprovar pelo conselho geral.

Do R.C.P.A.S. aqui aplicável, que contém normas administrativas:

Artigo 5º - Inscrições ordinárias

1 – São inscritos obrigatoriamente como beneficiários ordinários todos os advogados inscritos na Ordem dos Advogados e todos os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores, desde que não tenham mais de 60 anos de idade à data da inscrição.

2 – A inscrição na Caixa contar-se-á, para todos os efeitos, a partir do 1.º dia do mês seguinte àquele em que se verifique a inscrição no organismo profissional respetivo.

3 – Os estagiários podem inscrever-se facultativamente, a seu pedido, contando-se a inscrição desde o 1.º dia do mês seguinte ao da sua admissão.

4 – Os advogados e solicitadores, até ao final do mês seguinte ao da comunicação da sua inscrição inicial na Caixa, podem requerer, uma única vez, a suspensão provisória dos efeitos da sua inscrição por início da atividade, até três anos a contar dessa sua inscrição inicial.

5 - Os conselhos gerais da ordem dos Advogados e da Câmara dos Solicitadores comunicarão à direção da Caixa, no prazo de 10 dias, o nome completo e abreviado dos profissionais inscritos, as datas do seu nascimento, da formatura, havendo-a, e da inscrição no organismo e ainda o endereço do respetivo escritório, juntando certidão do registo de nascimento ou outro documento de identificação bastante.

Artigo 7º - Inscrições extraordinárias

1 – São inscritos obrigatoriamente como beneficiários extraordinários os advogados e solicitadores que:

a) Optarem pela inscrição no regime geral de previdência dos trabalhadores independentes;

b) Tenham a sua inscrição suspensa no respetivo organismo profissional, desde que requeiram a manutenção da sua inscrição na Caixa.

2 - As inscrições extraordinárias asseguram aos beneficiários os mesmos direitos que decorrem das inscrições ordinárias quanto aos benefícios diferidos.

3 – A inscrição do beneficiário extraordinário reportar-se-á ao 1.º dia do mês seguinte ao da verificação de qualquer dos eventos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do presente artigo.

4 – Será convertida em ordinária a inscrição do beneficiário a quem seja levantada a suspensão da sua inscrição no organismo profissional competente.

Artigo 10º - Cancelamento da inscrição

1 - Será cancelada a inscrição do beneficiário ordinário que passe a exercer atividade legalmente incompatível com a de advogado ou solicitador, sem prejuízo dos artigos 6.º e 7.º

2 - O efeito do cancelamento será retrotraído à data em que se tiverem produzido os factos que lhe deram origem.

3 - Cancelada a inscrição, pode, a todo o tempo, o beneficiário requerer o resgate das contribuições pagas, exceto das destinadas à ação de assistência e da percentagem afeta a despesas de administração, deduzidas dos benefícios recebidos.

4 - O beneficiário com mais de 15 anos de inscrição na Caixa, se não tiver recebido o resgate, tem direito ao valor das pensões e subsídios.

Do R.I.A.A.E. (Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários, Regulamento n.º 232/2007 OA (2.ª série), de 4 de setembro de 2007 / Ordem dos Advogados[1]), que contém normas administrativas internas:

Artigo 2.º - Inscrição e uso do título de advogado e de advogado estagiário

1 - Só podem inscrever-se na Ordem dos Advogados os titulares do grau académico necessário nos termos previstos no EOA, que reúnam os demais requisitos de inscrição prescritos no EOA e no presente regulamento.

2 - A inscrição e sua manutenção em vigor é condição do exercício dos direitos e do título de «advogado» e de «advogado estagiário».

Artigo 50º - Suspensão da inscrição

1 - A inscrição do advogado ou do advogado estagiário é suspensa:

a) A pedido do requerente quando pretenda cessar temporariamente o exercício da advocacia;

b) Se for declarado em situação de incompatibilidade com o exercício da advocacia;

c) Se no âmbito de processo de verificação da existência de incompatibilidades não forem prestadas, pelo interessado, as informações que lhe tenham sido solicitadas;

d) Se for decretada a suspensão preventiva ou condenado na pena de suspensão efetiva.

2 – A inscrição de advogado estagiário será ainda suspensa:

a) Nos termos do n.º 3 do artigo 8.º do presente regulamento;

b) Nos demais casos previstos no regulamento de estágio que estiver em vigor.

Artigo 51º - Suspensão a pedido do requerente

1 - O requerimento de suspensão da inscrição a pedido do interessado será dirigido ao Presidente do Conselho Geral ou ao presidente do conselho distrital competente, consoante se trate de advogado ou de advogado estagiário respetivamente, por escrito, e remetido por qualquer meio que garanta a identificação do requerente, designadamente via postal, fax, ou mensagem de correio eletrónico da conta de correio eletrónico atribuída pela Ordem com aposição de assinatura digital.

2 – A decisão é notificada ao requerente com indicação expressa da data a partir da qual produz efeitos que é a data da receção do requerimento.

3 – No caso de circunstâncias excecionais, pode, nos termos da lei, ser atribuída eficácia retroativa ou diferida à suspensão da inscrição desde que devidamente fundamentada.

Artigo 52º - Suspensão por incompatibilidade

1 – A declaração de incompatibilidade com o exercício da advocacia e a consequente suspensão da inscrição são deliberadas pelo Conselho Geral ou pelo conselho distrital competente, nos termos dos artigos 76.º e seguintes do EOA.

2 – Os conselhos distritais ou o Conselho Geral podem solicitar às entidades com quem os advogados ou os advogados estagiários possam ter relações profissionais, bem como a estes, as informações que entendam necessárias para a verificação da existência de incompatibilidade.

3 – Os pedidos de informação aos advogados ou aos advogados estagiários são notificados por carta registada, com aviso de receção.

4 – A deliberação final do Conselho Geral ou do conselho distrital, quando esteja proposta a declaração de incompatibilidade, é precedida da audiência do interessado.

5 – Para os efeitos previstos no número anterior, o interessado é notificado por carta registada, com a indicação do sentido provável da decisão, para, no prazo de quinze dias, vir dizer, por escrito, o que tiver por conveniente.

Acrescente-se ainda, com especial relevo na boa aplicação do artigo 9º do CC, que o artigo 11.º do RCPAS referia que serão obrigatoriamente reinscritos na Caixa os antigos beneficiários que voltem a encontrar -se na situação prevista no artigo 5.º do diploma, mais prevendo que, no caso de reinscrição, o tempo das inscrições anteriores será adicionado ao da reinscrição, desde que não tenha sido exercido o direito de resgate das contribuições.

C)

Como quase sempre, os litígios que chegam a este tribunal prendem-se com a correta aplicação dos artigos 8º a 11º do CC.

Ora, o Direito objetivo [Direito, ordem ou ordenamento jurídico vigente, “law”], seja público, seja privado, assenta em textos oriundos de uma autoridade numa dada comunidade humana. Isto corresponde à essencial natureza institucional do Direito. Este vive através de comandos, que podem ou não ser deduzidos da ordem jurídica pela “ciência” jurídica em sentido amplo, para a sistematização daquela por esta; tudo a concretizar pelos tribunais no exercício da sua específica função.

Isso faz-se através do método jurídico da jurisprudência dos tribunais, tendo hoje por referência a separação de poderes e a hierarquia formal das fontes de direito objetivo; tudo muito diferente de Roma e dos tempos de Savigny, quando não havia Estado constitucional democrático.

Hoje, o essencial é, sempre, o caráter normativo dos artigos 1º a 11º do nosso CC[2], coadjuvados pelos princípios fundamentais e máximas metódicas decorrentes dos atuais artigos 1º, 2º, 13º, 18º-2-3 e 112º da CRP, de modo a não se sair da moldura significante dada pelo legislador democrático, mas onde o elemento teleológico-objetivo da interpretação jurídica [interpretação expositiva da “opinio iuris”; e interpretação prescritiva dos tribunais] não se sobrepõe - por razões assentes num realismo e positivismo metodológicos essenciais inegáveis hodiernamente, na divisão dos poderes do Estado democrático e na cientificidade e objetividade possível do ordenamento jurídico - ao elemento lógico-sistemático e ao elemento linguístico-gramatical da interpretação. Estamos, assim, num positivismo jurídico metodológico.

Por isso, não basta ao tribunal administrativo de um Estado democrático (1) aplicar efetivamente as máximas decorrentes das normas resultantes dos artigos 9º, 10º e 335º do CC [onde avultam a letra dos preceitos jurídicos e a unidade do sistema jurídico encimado pela Constituição], sendo ainda necessário (2) atender à metodologia interpretativa imposta pelos enunciados linguísticos das constituições, de onde resulta a atendibilidade (3) do elemento interpretativo sistemático intraconstitucional, (4) do elemento interpretativo da identidade da Constituição, (5) do elemento interpretativo teleológico-objetivo adequante à Constituição e (6) do elemento de interpretação da máxima efetividade possível dos preceitos constitucionais de direitos fundamentais. Mas, logicamente, sem confundirmos uma interpretação orientada pela Constituição, ou pelo direito objetivo europeu, com uma inconstitucional interpretação corretiva ou à luz de comandos extrajurídicos.

A metodologia jurídica, em sentido próprio, como instrumento da tecnologia jurídica, objetivo e rigoroso, ou “científico”, corresponde às diretrizes (i) para a correta apreensão ou conhecimento objetivo do material jurídico [a essência dos positivismo de Kelsen: v., simplesmente, os prefácios de Kelsen às duas edições alemães da “Teoria Pura do Direito”, na 7ª edição da tradução portuguesa, Almedina, 2019] e (ii) para a aplicação prática do direito objetivo [cf. parcialmente assim José Lamego, Elementos…, 2016, pp. 7-10 e 237 ss; e Miguel Nogueira De Brito, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL Ed., Lisboa, Capítulo I, nºs 2.6, 3 e 4].

Assim, tendo como seu motor de arranque o caso ou problema a resolver [lembremo-nos de T. Viehweg], a Metodologia Jurídica procede (i) à identificação-interpretação do direito objetivo [“law”] e dos factos jurídicos, bem como (ii) à fixação dos critérios normativos da resolução judicial de litígios [cf. o artigo 1º, 2º, 3º/3, 18º e 112º da CRP e os artigos 9º a 11º e 335º do CC, bem como as regras de lógica e de argumentação jurídica: se a lei permite o mais, também permite o menos; se a lei proíbe o menos, também proíbe o mais; etc.].

Neste contexto e no dos artigos 1º, 2º, 112º, 203º e 204º da atual CRP, a prevalência normativa, hoje, depende da hierarquia formal das fontes de Direito [o grande legado do positivismo jurídico, a par do alerta permanente contra a confusão indesejável entre direito objetivo, política, moral, afetos e interesses dos juristas profissionais] e do princípio estruturante da separação de poderes, sendo por isso inaceitável e ilegal a chamada interpretação corretiva ou um Direito judicial superador da lei de base democrática; assim e por esta ordem, (i) significado do texto da disposição normativa, (ii) unidade do sistema jurídico, (iii) teleologia subjetiva ou critério genético-histórico, (iv) teleologia objetiva [o aspeto menos importante, por causa da segurança jurídica e da separação dos poderes], (v) lógica jurídica e seus argumentos, e (vi) vinculação do juiz à lei, entre outros argumentos e ferramentas, andam de mãos dadas: só no caso das lacunas e das antinomias se poderá admitir que o juiz – ou a doutrina jurídica - surja como “legislador intersticial” [cf. artigo 203º da CRP e artigo 10º do CC].

E, neste contexto, a noção de pirâmide normativa [cf. o austríaco Adolf Julius Merkel e o austro-checo Hans Kelsen: “doutrina da construção do direito objetivo em níveis” ou “doutrina da estrutura escalonada do direito objetivo”[3]] e a noção de sistema jurídico [unidade e coerência], pontos de partida da Teoria do Direito, quadram bem com a dogmática jurídica quasi-científica atual, nascida no século XIX, e com os nucleares preceitos normativos dos artigos 8º a 11º do nosso CC [cf., quanto à interpretação dos enunciados normativos infraconstitucionais, o elemento filológico ou gramatical, o elemento lógico-sistemático, o elemento genético-histórico e, no fim, o elemento pragmático-teleológico-objetivo]. Só assim se diminui a insegurança jurídica dos cidadãos. E se defende a democracia.

D)

Feito o enquadramento metódico-dogmático e a apresentação dos enunciados normativos imediatamente pertinentes (sem prejuízo, claro, do artigo 266º da CRP), apreciemos.

Diz a recorrente que não ficou adquirido ou provado no processo que:

-a suspensão da inscrição da autora na O.A. se deveu ao exercício de atividade incompatível com a advocacia;

-a O.A. tenha suspendido a inscrição da autora com base em tal exercício;

-tenha havido cancelamento da inscrição da autora como beneficiária ordinária com aquele fundamento;

-apenas se provou o que está nos factos sob K) e T).

Nada mais inexato e até pouco relevante, como se vê (i) do probatório, todo ele, e (ii) do que infra se dirá.

Vista a p.i. e seu petitório, vistas as normas jurídicas acima referidas e vistos os factos provados, o que interessa é o cancelamento da inscrição como beneficiário ordinário da CPAS, posterior ou concomitante com a suspensão da inscrição na O.A.; com a consequência – possível - prevista no cit. artigo 10º-3. Sem baralharmos os conceitos de “cancelamento na CPAS” e de “cancelamento-suspensão na O.A.”.

Como referido pelo TAC, nos termos do cit. artigo 7º do RCPAS, para que os beneficiários que suspendem a sua inscrição na Ordem dos Advogados tenham os mesmos direitos que decorrem da inscrição ordinária, é forçoso que passem durante esse tempo de suspensão na Ordem à categoria de beneficiários extraordinários e paguem as respetivas contribuições – cfr. os artigos 72º e 73º-2 do RCPAS.

Assim e face ao enquadramento legal em vigor à data dos factos, verifica-se que a CPAS detém dois universos distintos de beneficiários - os ordinários e os extraordinários -, sendo certo que os ordinários são aqueles que estejam “inscritos na Ordem dos Advogados” (cfr. n.º1 do artigo 5.º do RCPAS) e os extraordinários os que, designadamente, “tenham a sua inscrição suspensa no respetivo organismo profissional, desde que requeiram a manutenção da sua inscrição na Caixa ” (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do RCPAS).

Ora, é exatamente desta alteração de status de beneficiário ordinário para extraordinário, conjugada com a circunstância da suspensão da inscrição no respetivo organismo profissional motivada por situação fáctico-jurídica geradora de incompatibilidade com o exercício da advocacia, que emergem os âmbitos de aplicação objetivo e subjetivo previstos no cit. n.º 1 do artigo 10.º do RCPAS, com o consequente direito potestativo ao resgate das contribuições que o beneficiário tenha efetuado durante a sua carreira contributiva (a que se reporta o n.º 3 do mesmo artigo 10.º).

Não obstante a norma regulamentar prevista no n.º 1 do artigo 10.º do RCPAS invocar o conceito de cancelamento, ao referir “será cancelada a inscrição”, tal cancelamento não se confunde, logico-normativamente, com o cancelamento da inscrição (suspensão) no respetivo organismo profissional a que se reporta o artigo 56.º do Regulamento n.º 232/2007 - Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários.

É que o cancelamento a que se refere o cit. n.º 1 artigo 10.º do RCPAS é, só pode ser, o cancelamento da inscrição do beneficiário, enquanto beneficiário ordinário da CPAS, conclusão esta que se retira pelo segmento final da norma, ao referir “sem prejuízo dos artigos […] e 7.º”, ou seja, da possibilidade de continuarem na Caixa, mas como beneficiários extraordinários. E é “continuarem”, porque são advogados com inscrição suspensa, mas advogados ainda.

Quer dizer, como diz a sentença, solicitada a suspensão na respetiva ordem profissional e sendo a mesma motivada por verificação de incompatibilidade ao abrigo do artigo 77.º do EOA, como é claramente o caso presente, tem-se automaticamente por verificado o pressuposto previsto no cit. n.º 1 do artigo 10.º do RCPAS, sem necessidade de qualquer controlo e verificação por parte da CPAS.

Assim, a advogada ora autora comunica a situação factual de incompatibilidade e logo deve cessar a sua situação de advogada no ativo (na O.A.) e a sua situação de beneficiária ordinária da CPAS. A não ser que a O.A. e ou a CPAS entendam, decidam, que não existe a incompatibilidade.

É que o dito cancelamento na CPAS tem sempre na sua génese um prévio ou concomitante pedido de suspensão de inscrição efetuado junto da O.A. ao abrigo do cit. artigo 51.º, ou a oficiosa verificação de suspensão por incompatibilidade a que se reporta o artigo 52.º, ambos do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados estagiários.

Ora, como consta do probatório, a autora, a 23/03/2012, por despacho do Ministro da Economia e do Emprego, foi designada técnica especialista, para realizar estudos e trabalhos técnicos no âmbito das respetivas habilitações e qualificações profissionais em gabinete ministerial.

Na sequência de tal designação, incompatível com o exercício da advocacia (como já vimos – artigo 77º-1-a) do E.O.A.), a autora requereu – bem - a sua suspensão na Ordem dos Advogados, o que foi deferido a 30/03/2012 (cfr. as alíneas k), l) e t) do probatório).

De onde resulta também o que já dissemos. Deixa(rá) de ser beneficiária ordinária da CPAS.

Depois, porque quis, a autora, a 31/12/2013, requereu o resgate das contribuições efetivamente pagas ao longo da sua carreira contributiva, nos termos do cit. n.º 3 do artigo 10.º, tendo ainda informado a CPAS, a 14/01/2014, que a suspensão na Ordem dos Advogados tinha como fundamento o exercício de atividade legalmente incompatível com os estatutos desta associação, conforme se atesta com cópia do seu pedido (cfr. as alíneas m) e o) do probatório).

De facto,

(1º) considerando que a função para a qual a autora foi designada é, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 77.º do EOA, incompatível com o exercício da advocacia, e

(2º) tendo a suspensão da inscrição na Ordem sido solicitada pela autora em virtude dessa mesma incompatibilidade, estão preenchidos os pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 10.º do RCPAS (cancelamento da situação de beneficiária ordinária da CPAS), em vigor à data dos factos (a não ser que a O.A. conclua pela compatibilidade).

(3º) Isso fez surgir na esfera jurídica da autora o direito potestativo ao resgaste das contribuições que efetuou, conforme lhe proporciona o cit. n.º 3 do mesmo artigo 10.º.

Tudo ocorreu dentro da lei, portanto. Qualquer outra decisão, noutro sentido, seria ilegal.

Pelo que improcedem as conclusões do recurso.

*

III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, os juizes do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 09-05-2019


Paulo H. Pereira Gouveia (Relator)

Pedro Marchão marques

J. Gomes Correia

[vencido por entender que se trata de uma "questão fiscal" nos termos constantes do AC. TCAS de 21/3/19 por mim relatado no processo nº 938/17.6BEALM]





[1] Ao abrigo do disposto nas alíneas g) e h) do n.º 1 do artigo 45.º e no n.º 2 do artigo 180.º, ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro), foi aprovado em sessão plenária do conselho geral da Ordem dos Advogados de 6 de julho de 2007 o Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários. Diário da República. - S.2-E n.170 (4 setembro 2007), p.25601-25611. Alterado pela Deliberação n.º 2170/2010, publicada no Diário da República, 2.ª Série - N.º 227 de 23 de novembro de 2010.
[2] A propósito de um dos elementos ou critérios da interpretação jurídica das leis, parece-nos que a noção de sistema jurídico, ponto de partida da Teoria do Direito [uma área do conhecimento teórico que pretendeu afastar-se da “prudência” aristotélica e da “juris prudentia” romana, buscando um desejado estatuto científico ou sistemático nos séculos XVIII e XIX], foi o essencial para a posterior autodeterminação da novel “ciência” jurídica - nos finais do séc. XIX - e a análise da estrutura lógica das normas jurídicas. Ao contrário do tradicionalmente entendido, sistema como método refere-se apenas à Teoria do Direito e não já à Técnica ou “ciência” do Direito, que, por ser uma técnica, atua, já sabedora da Teoria do Direito, através do verdadeiro método jurídico, que é muito diferente de sistema. A ideia de sistema jurídico, como hoje a entendemos, proporciona a sua adaptação à evolução social. Adequa-se a algo que quase todos negam, mas que praticam atualmente: a um positivismo metodológico, não ideológico, mas construtivo de conceitos [necessariamente, como ensinou Kant]. A ideia de sistema jurídico quadra muito bem com o dia a dia da atual “ciência” jurídica como técnica utilizada nos tribunais e nos primeiros 11 artigos do nosso CC. Com efeito, diminui-se assim o casuísmo decisório, hoje alimentado (i) pelo uso não rigoroso das teleologias subjetivas, pelo Constitucionalismo exacerbado ou pós-positivismo e (iii) pelos neo-principialismos jurídicos, no que ao processo aplicativo do direito objetivo diz respeito. Esses neo-principialismos jurídicos podem ser, na verdade, um perigoso “positivismo” das chamadas normas-princípio ou dos “standards” [?], “positivismo” das chamadas normas-princípio esse importado da era pré-codificação alemã e das ordens jurídicas e teorias de língua inglesa, apesar das profundas diferenças com a atual Europa continental. Basta pensar na “ideologia” do doutrinador [autodenominado “cientista” do Direito] ou do intérprete-aplicador, “ideologia” ou intenção que pode tender, não para o importantíssimo critério sistemático - não teleológico - da interpretação, mas sim, como é comum entre nós, para um perigoso e antidemocrático critério teleológico-subjetivo-valorativo [cf. M. TARUFFO, em 1975, A Motivação da Sentença Civil, tradução, Marcial Pons, São Paulo, 2015, p. 213]. Isso apesar de tal critério teleológico-subjetivo-valorativo não ter autonomia nas regras legais democráticas sobre a interpretação jurídica [vd. os primeiros 11 artigos do nosso CC, tantas vezes menorizados ou mesmo ignorados por alguns juristas que, assim, confundem, voluntária ou involuntariamente, “ciência” jurídica - ciência social cujo objeto é o Direito posto, sistematizado na legislação e na Teoria do Direito, a aplicar a casos concretos segundo o método jurídico - com uma teoria geral do fenómeno jurídico ou com uma filosofia do fenómeno jurídico].
[3] Cf. M. BOROWSKI, N.T. na p. 130, in “A doutrina da estrutura escalonada do Direito”, in J. AGUIAR DE OLIVEIRA/ALEXANDRE TRAVESSONI GOMES TRIVISONNO, Hans Kelsen – Teoria Jurídica e Política, ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2013.