Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1805/18.1 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:12/19/2023
Relator:VITAL LOPES
Descritores:CESE
CONTRIBUIÇÃO FINANCEIRA
Sumário:Em face da jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo quanto à natureza jurídica de contribuição financeira da CESE e da não inconstitucionalidade do seu regime impõe-se decidir em conformidade com tal jurisprudência.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais: Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SUBSECÇÃO COMUM DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO

REN – REDE ELÉCTRICA NACIONAL, S.A., recorre da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o acto tributário de autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), referente a 2017, no montante de EUR. 18.362.411,36, alegando para tanto e, conclusivamente, o seguinte:
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.

A Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer concluindo no sentido da improcedência do recurso, devendo manter-se o julgado por a decisão proferida não padecer dos vícios que lhe vêm imputados.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, analisadas as conclusões da alegação do recurso, a questão a decidir reconduz-se, em suma, a aferir da compaginação constitucional do regime jurídico da CESE quanto à incidência subjectiva (artigo 2.º), objectiva (artigo 3.º), estatuto de isenções (artigo 4.º), alocação de receita ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE) (artigo 11.º, n.º 1), natureza e regras relativas ao seu funcionamento e articulação com outras entidades públicas (artigo 11.º, n.ºs 2 a 5), com os princípios da capacidade contributiva e da tributação segundo o lucro real (artigos 13.º e 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), bem como da equivalência, da proporcionalidade (artigos 13.º, 18.º, n.º 2 e 266.º da CRP) e da não consignação de receitas.

II. FUNDAMENTAÇÃO

A) DE FACTO

Na sentença recorrida deixou-se consignado em sede factual:
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B) DE DIREITO

Conforme se apreende dos autos, a Mmª Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa julgou improcedente a impugnação judicial visando a anulação da (auto)liquidação de “Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético” (CESE), relativa ao ano de 2017, dos juros compensatórios liquidados, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida daqueles actos tributários, com fundamento na adesão ao entendimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional vertido no Acórdão n.º 7/2019, de 08/01/2019, no Processo n.º 141/16, e do Supremo Tribunal Administrativo, já vertido em vários arestos, nomeadamente, no Acórdão de 16/09/2020, exarado no Processo n.º 0387/17.6BEMDL, que concluíram não se tratar a CESE de um imposto mas antes de uma verdadeira contribuição financeira e, assumindo o tributo esta qualificação, não violar qualquer dos apontados princípios e normas constitucionais.

Inconformada com o julgado, a impugnante recorreu para esta instância.

Já acima deixamos enunciadas as questões que importa resolver, delimitadas pelas conclusões da alegação da Recorrente.

O juízo de não inconstitucionalidade da CESE devida por concessionárias das actividades de transporte de electricidade é, como decidido na sentença recorrida, aquele que corresponde à jurisprudência reiterada e mais recentemente consolidada quer do Tribunal Constitucional, quer do Supremo Tribunal Administrativo.

Como se deixou consignado no recentíssimo ac. do Supremo Tribunal Administrativo, de 10/11/2023, tirado no proc.º 01074/22.9BEPRT, transponível para os autos por ali também estar em causa decisão recorrida de improcedência da impugnação do tributo com idênticos fundamentos, «A sentença recorrida julgou improcedente a impugnação judicial deduzida (…) do indeferimento da reclamação graciosa tendo por objecto a autoliquidação de Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) referente ao ano 2021, no montante de € …., no entendimento de que, contrariamente ao alegado, a CESE tem natureza jurídica de “contribuição financeira” e não de imposto e o seu regime jurídico não ofende os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real, da proporcionalidade, da igualdade, da segurança jurídica, proteção da confiança e não retroatividade da lei fiscal e da discriminação orçamental.

Fundamentou-se o decidido em jurisprudência deste STA e do Tribunal Constitucional – Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 7/2019, de 8 de janeiro de 2019 e Acórdãos do STA de 16 de setembro de 2020, proc. n.º 0387/17.6BEMDL e de 8 de janeiro de 2020, proc. n.º 0386/17.8BEMDL - bem como, quanto à alegada não discriminação orçamental, em sentença do Tribunal de 29 de dezembro de 2020, confirmada pelo STA por Acórdão de 8 de setembro de 2021, proc. n.º 0545/19.9BEPRT.

A (…) não se conforma com o decidido, desde logo quanto à natureza jurídica da imposição em causa, mas também quanto ao juízo de não desconformidade constitucional, alegando, inter allia, que o Acórdão do Tribunal Constitucional, proferido no processo n.º 7/2019, de 8 de janeiro, parte de uma premissa que não encontra aderência na realidade em causa nos autos, já que não são as empresas do sector energético que beneficiarão, caso haja necessidade de acionar uma garantia da sustentabilidade do sector energético, mas todos os cidadãos, que não procede ao exercício de aferir como é que, em termos concretos, as alegadas vantagens preconizadas pelo desenvolvimento de políticas de cariz social e ambiental se traduzem num benefício para os sujeitos passivos de CESE, limitando-se a identificá-los como seus beneficiários, bem como que o referido Acórdão está limitado, temporalmente, ao ano de 2014, razão pela qual não aprecia, nem podia, fundamentos de inconstitucionalidade e ilegalidade apontados pela Impugnante ao ato objeto dos presentes autos, que não foram levados à cognição do Tribunal Constitucional no âmbito daquele processo e, por outro, que não se reveste de carácter obrigatório e geral.

Sucede, contudo, que a jurisprudência constitucional, apreciando CESE de períodos posteriores ao analisado no primo acórdão do TC sobre a matéria, sempre reiterou a natureza jurídica de contribuição financeira, e não de imposto, da imposição em causa – cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 436/21, 437/21, 438/21, 513/21, 532/21, 736/21, 756/21, 204/22, 214/22, 231/22, 232/22, 305/22, 411/22, 580/22, 581/22, 597/22, 658/22 e 782/22 -, posição esta também acolhida por este Supremo Tribunal, não havendo razão que justifique o afastamento deste rumo jurisprudencial uniforme (pois a posição sufragada no Acórdão do TC n.º 101/2023, de 16 de março, não parece ter vingado na jurisprudência constitucional – cf. os Acórdão do TC n.º 296/23 de 25 de maio e n.º 372/23, de 7 de junho).

Reitera-se, pois, quanto à natureza jurídica da imposição e sua não desconformidade constitucional o rumo jurisprudencial já fixado, remetendo-se em especial para a fundamentação do Acórdão deste STA de 5 de julho de 2023, proc. n.º 0765/22, por recente e relativo ao ano de 2019, cuja cópia se dispensa porquanto disponível no sítio da internet dgsi.
Concluindo: Em face da jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional e deste Supremo Tribunal Administrativo quanto à natureza jurídica de contribuição financeira da CESE e da não inconstitucionalidade do seu regime impõe-se decidir em conformidade com tal jurisprudência.» (fim de cit.).

No que em particular respeita ao invocado vício de constitucionalidade do acto impugnado por violação do princípio da não consignação de receita, subscrevemos o que a propósito e acolhendo jurisprudência constitucional, se deixou vertido no ac. deste TCAS, de 01/14/2021, tirado no proc.º 1034/18.4BELRA:
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Nos termos do art.º 105.º, n.º 3, da CRP:

“3. O Orçamento é unitário e especifica as despesas segundo a respetiva classificação orgânica e funcional, de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos, podendo ainda ser estruturado por programas.”.

Cumpre chamar ainda à colação a Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro (Lei de Enquadramento Orçamental – LEO), concretamente o seu art.º 16.º, relativo ao principio da não consignação, nos termos do qual:

“1 - Não pode afetar-se o produto de quaisquer receitas à cobertura de determinadas despesas.

2 - Excetuam-se do disposto no número anterior:

a) As receitas das reprivatizações;

b) As receitas relativas aos recursos próprios comunitários tradicionais;

c) As receitas afetas ao financiamento da segurança social e dos seus diferentes sistemas e subsistemas, nos termos legais;

d) As receitas que correspondam a transferências provenientes da União Europeia e de organizações internacionais;

e) As receitas provenientes de subsídios, donativos e legados de particulares, que, por vontade destes, devam ser afetados à cobertura de determinadas despesas;

f) As receitas que sejam, por razão especial, afetas a determinadas despesas por expressa estatuição legal ou contratual.

3 - As normas que, nos termos da alínea f) do número anterior, consignem receitas a determinadas despesas têm caráter excecional e temporário”.

Antes de mais, refira-se, na esteira do entendimento defendido pelo TC, que o princípio da não consignação de receitas não tem assento na nossa lei fundamental, mas sim na lei ordinária.

A este propósito, chama-se à colação o Acórdão do TC n.º 414/2011, de 28.09.2011, onde se refere:

“A consignação de receitas consiste, segundo a doutrina corrente e como se disse no acórdão n.º 452/87, www.tribunalconstitucional.pt “na afectação de determinada receita a uma determinada despesa, por tal forma que esta apenas poderá ser satisfeita se e na medida em que o montante (cobrado) dessa receita o possibilite (duplo cabimento). E, por outro lado, aquela receita não pode ser destinada a outras despesas, a menos que se verifique um excesso dela sobre a despesa a que foi afectada (cf. J. J. Teixeira Ribeiro, Lições..., cit., pp. 49 e segs., Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, 1987, p. 324, e Sabino Teixeira, «Consignação de Receita», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, II, Coimbra, 1972, p. 659)”. A razão desta regra é não só a de “evitar a existência de uma Administração Pública fragmentária, desprovida de uma gestão de conjunto, coerente e racional” (Guilherme D’Oliveira Martins, Constituição Financeira, 2.º Vol. 2.º, ed. AFDL, p. 289), mas também, como causa próxima, a de que, correspondendo a fixação das despesas ao montante dos gastos que se prevê necessário suportar, é conveniente que as receitas se destinem indistintamente à cobertura de todas as despesas porque, se assim não for e se a realização da receita previsionalmente afecta a determinada despesa vier a revelar-se inferior ao previsto, a despesa ficaria na contingência de ter de ser menor do que o necessário à satisfação da necessidade pública que a justifica.

(…) [O] princípio da não consignação de receitas, apesar de ser uma das “regras clássicas” da organização do orçamento (Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 5ª ed., p 59), não tem consagração a nível constitucional. O Tribunal já o reconheceu, designadamente, nos acórdãos n.º 452/87 e n.º 361/91, sendo que as revisões constitucionais posteriores a esses arestos não modificaram a base deste entendimento. Como se disse neste último acórdão “a regra da não-consignação – regra que postula que «todas as receitas devem servir para cobrir todas as despesas» – não tem consagração constitucional, tendo conhecido «múltiplas excepções, que derivam da existência de situações de autonomia financeira, em que as receitas de determinados organismos são afectadas à cobertura das suas despesas no âmbito da sua administração própria, e, também, de expressas determinações da lei, no sentido de que certas despesas só podem ser efectuadas se forem cobradas receitas que as cubram (consignação de receitas, em sentido estrito: exige-se então duplo cabimento da despesa, na verba da despesa e na verba da receita que a financia)» (A. Sousa Franco, ob. cit., p. 325; no sentido de que a regra orçamental da não-consignação não tem consagração constitucional, vejam-se, além deste autor, a pp. 327 e segs., J. J. Teixeira Ribeiro, «Os Poderes Orçamentais da Assembleia da República», in Boletim de Ciências Económicas, Coimbra, vol. xxx, 1987, p. 181, e Lições de Finanças Públicas, 3.ª ed., Coimbra, 1990, p. 83, e, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, embora incidentalmente, o Acórdão n.º 452/87, já atrás citado, que versa uma questão da afectação ou consignação em sentido amplo de receitas municipais a despesas municipais determinada pelo Estado, a qual apenas foi tida por inconstitucional por constar de diploma do Governo, sem dispor de autorização legislativa)”.
Por outro lado, e abstraindo de analisar se a alegada violação de uma norma de disciplina orçamental contende com a legalidade da liquidação de um tributo, sempre se diga que a consignação prevista no caso da CESE está acolhida na LEO, concretamente no citado art.º 16.º, n.º 2, al. f) e n.º 3, dado que tal consignação se encontra expressamente prevista na lei (cfr. art.º 11.º do regime da CESE), estando o caráter excecional subjacente à própria excecionalidade do tributo.

Refere-se a este respeito no (…) Acórdão n.º 7/2019, a 08.01.2019, do TC:

“… [U]ma vez encontrada no caráter sinalagmático da relação entre a sujeição ao tributo e a prestação/benefício presumido para o sujeito passivo, a razão para o lançamento daquele e, tendo em conta o que vem de ser dito sobre o equilíbrio da adoção deste tributo, devendo a bilateralidade identificada ser considerada como argumento suficientemente atendível, então, há que concluir que também a opção pela consignação desta receita, que é por lei, em si mesma, excecional, não merece censura”. (fim de cit.).

Assim, carece de razão a Recorrente também quanto a este apontado vício.

A sentença recorrida, que decidiu no alinhamento da jurisprudência reiterada e mais recentemente consolidada sobre o tema, que também subscrevemos, não padece dos vícios que lhe são assacados, sendo de manter na ordem jurídica e negar provimento ao recurso.
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A norma constante do n.º 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais dá ao juiz a possibilidade de dispensar, no todo ou em parte, o pagamento do remanescente da taxa de justiça devida a final quando o valor da causa exceda o valor de € 275.000, desde que tal dispensa se justifique em função da complexidade da causa, da sua utilidade económica e da conduta processual das partes, sob a ponderação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade. E a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça poderá ser aplicada oficiosamente ou a requerimento da parte interessada.

Ponderados os elementos atendíveis, nomeadamente que o valor da causa é de EUR.18.362.411,36 mas também considerando que as questões colocadas foram decididas por remissão para jurisprudência constitucional, entende-se ajustado e proporcional conceder às partes dispensa total do remanescente de taxa de justiça devida no recurso.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da Subsecção Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo da Recorrida, que não são devidas no recurso por não ter contra-alegado e sem prejuízo da concedida dispensa total de pagamento do remanescente de taxa de justiça devida no recurso.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2023



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Vital Lopes


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Jorge Cortês


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Patrícia Pires