Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:152/22.9 BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/20/2022
Relator:LINA COSTA
Descritores:JUSTIÇA DESPORTIVA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
CÂNTICOS NÃO DISCRIMINATÓRIOS
Sumário:I - Para cumprimento do ónus previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 640º do CPC, não basta a referência aos meios de prova juntos aos autos, importando especificar a parte compreendida em cada um desses elementos probatórios que suporta a impugnação efectuada de cada um dos factos provados, não provados ou omissos
II - O disposto no artigo 62º do Regulamento Disciplinar da FPF visa a prevenção e repressão de condutas discriminatórias contra os agentes desportivos;
III - Não resultando da factualidade provada que a Recorrida promoveu, consentiu ou tolerou os cânticos entoados pelos seus adeptos contra os jogadores da equipa adversária, a jogar em casa, nem que aqueles, apesar do termo calão e insultuoso usado [paneleiros], visassem discriminá-los em razão da sua orientação sexual, não há que manter as sanções de multa e de um jogo à porta fechada em que foi condenada.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em sessão do Tribunal Central Administrativo Sul:

Federação Portuguesa de Futebol, devidamente identificada como Demandada na acção arbitral nº 19/2022, instaurada por Futebol Club de Alverca-Futebol Sad., veio interpor recurso jurisdicional do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em 22.7.2022, que julgou (i) improcedente o recurso interposto no que respeita às invocadas nulidade da falta de notificação do processo disciplinar à Demandante e ausência de fundamentação quanto á atribuição do carácter urgente do mesmo processo disciplinar; (ii) procedente o recurso interposto no que respeita à condenação da Demandante pela prática da infracção prevista e sancionada pelo artigo 62º, nº 1, do RDFPF, anulando-se nessa parte a decisão do Conselho de Disciplina, Secção Não Profissional, da Federação Portuguesa de Futebol.
Nas respectivas alegações, a Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem: «
1. A Recorrente vem apresentar recurso da decisão proferida pelo Colégio Arbitral no âmbito do processo de ação arbitral necessária n.º 19/2022, que declarou procedente a ação interposta pela ora Recorrida e determinou a revogação do acórdão de 25.03.2022, proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Não Profissional, através do qual decidiu aplicar à Recorrida as sanções de multa e de realização de 1 (um) jogo à porta fechada.
2. A decisão que ora se impugna é passível de censura, porquanto existem erros graves de julgamento na fixação da matéria de facto, bem como na interpretação e aplicação do Direito, conforme se passa a demonstrar.
3. O Acórdão recorrido expurgou da factualidade considerada provada, mas também da não provada, os factos infra transcritos - e considerados provados pelo Conselho de Disciplina da Recorrente:
"11) As palavras referidas no artigo anterior [atual 15] foram percetíveis para todos os agentes desportivos presentes no estádio, visto que foram proferidas em coro, em tom alto e ocorreram por diversas vezes no decorrer do jogo.(...)
13) Os adeptos do clube visitante encontravam-se na bancada que estava localizada atrás do banco de suplentes da Alverca SAD e do mesmo lado do terreno de jogo, pelo que, pelo menos os elementos do clube que se encontravam no banco de suplentes aperceberam-se do comportamento dos seus adeptos.
14) Assim sendo, os agentes desportivos da Alverca SAD apesar de terem sido conhecedores do comportamento dos seus adeptos descrito no ponto 10) [atual 15], não tomaram qualquer atitude durante o jogo para fazer cessar ou sequer para repudiar tais condutas. (...)
18) Ao adotarem a conduta descrita no ponto 10) [atual 15] do presente libelo, no mínimo, socialmente incorreta, podendo mesmo ser considerada atentatória da dignidade humana, honra e consideração, os adeptos da Alverca SAD agiram com o propósito de ofender a dignidade dos jogadores do clube visitado, em função da sua orientação sexual, bem como de insultar a sua prestação enquanto jogadores, o que efetivamente lograram, em violação da lei e dos regulamentos da FPF.
19. A arguida, Alverca SAD, enquanto sociedade desportiva qualificada para disputar competição oficial organizada pela FPF, bem sabia que era sua obrigação evitar ou prevenir comportamentos antidesportivos, como os supra descritos, atuar em conformidade com os princípios da ética e da verdade desportiva e, nomeadamente, que era seu especial dever o de não consentir ou tolerar qualquer tipo de conduta discriminatória.
20. Nessa medida, a Alverca SAD agiu deforma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento (omissivo), porque tolerante e/ou complacente para com as condutas discriminatórias - em função da orientação sexual - dos seus adeptos verificadas ao minuto 34 do jogo, consubstanciava comportamento previsto e sancionado pelo ordenamento jus-disciplinar desportivo e, ainda assim, pretendeu efetivamente adotá-lo.".
4. Entendeu o Tribunal a quo, parece-nos, que, para além de tal factualidade não ser relevante para os presentes autos (pasme-se!), nenhuma prova existe nos autos que permita dar como provado os factos n.ºs 11,13,14,18,19 e 20 acima transcritos.
5. Desde logo, não temos qualquer dúvida que os factos n.ºs 11, 13, 14, 18, 19 e 20 são (bastante!) relevantes para a decisão dos presentes autos. E, neste particular, recorde-se que na fixação da matéria de facto provada e não provada, o Colégio Arbitral tem de atender a todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e não apenas aos factos que suportam a solução da questão de direito que considera aplicável.
6. Atenta a prova produzida nos Autos (Relatório de Ocorrências do Delegado da FPF presente no jogo em causa, a fls. 18 a 20, respetivos esclarecimentos, a fls. 44 a 47, vídeo do jogo oficial dos autos, a fls. 53, todos do processo administrativo junto aos presentes autos, conjugados com as regras da experiência comum e da lógica), melhor identificada em sede de Alegações, devem ser dados como provados os seguintes factos:
"A) As palavras referidas no artigo anterior [atual 15 do Acórdão recorrido] foram percetíveis para todos os agentes desportivos presentes no estádio, visto que foram proferidas em coro, em tom alto e ocorreram por diversas vezes no decorrer do jogo.(...)
B) Os adeptos do clube visitante encontravam-se na bancada que estava localizada atrás do banco de suplentes da Alverca SAD e do mesmo lado do terreno de jogo, pelo que, pelo menos os elementos do clube que se encontravam no banco de suplentes aperceberam-se do comportamento dos seus adeptos.
C) Assim sendo, os agentes desportivos da Alverca SAD apesar de terem sido conhecedores do comportamento dos seus adeptos descrito no ponto 10) [atual 15 do Acórdão recorrido], não tomaram qualquer atitude durante o jogo para fazer cessar ou sequer para repudiar tais condutas. (...)
D) Ao adotarem a conduta descrita no ponto 10) [atual 15 do Acórdão recorrido] do presente libelo, no mínimo, socialmente incorreta, podendo mesmo ser considerada atentatória da dignidade humana, honra e consideração, os adeptos da Alverca SAD agiram com o propósito de ofender a dignidade dos jogadores do clube visitado, em função da sua orientação sexual, bem como de insultar a sua prestação enquanto jogadores, o que efetivamente lograram, em violação da lei e dos regulamentos da FPF.
E) A Recorrida, Alverca SAD, enquanto sociedade desportiva qualificada para disputar competição oficial organizada pela FPF, bem sabia que era sua obrigação evitar ou prevenir comportamentos antidesportivos, como os supra descritos, atuar em conformidade com os princípios da ética e da verdade desportiva e, nomeadamente, que era seu especial dever o de não consentir ou tolerar qualquer tipo de conduta discriminatória.
F) Nessa medida, a Alverca SAD agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento (omissivo), porque tolerante e/ou complacente para com as condutas discriminatórias - em função da orientação sexual - dos seus adeptos verificadas ao minuto 34 do jogo, consubstanciava comportamento previsto e sancionado pelo ordenamento jus-disciplinar desportivo e, ainda assim, pretendeu efetivamente adotá-lo.'
7. No que diz respeito ao comportamento discriminatório, o Acórdão proferido pelo Conselho de Disciplina faz uma análise profunda, refletida e muito séria desta temática.
8. Aliás, é de referir que os factos sub judice não podem ter lugar num recinto desportivo nem qualquer tipo de amparo no desporto nacional, nem por parte de adeptos, nem de clubes, nem de dirigentes.
9. Minorar o efeito – negativo – que cânticos repetitivos, sonoros e intensos chamando “paneleiro” a um jogador ou a um conjunto de jogadores, tem no desporto é, salvo o devido respeito, desconhecer por completo quais os valores que estão por detrás do movimento.
10. O artigo 62.º do RD da FPF surge como guarda avançada na concretização e tutela jurídica do combate à discriminação, conferindo a necessária proteção em face da reprodução de estereótipos, atos de discriminação e violência motivadas, entre outras situações aí previstas, em razão da orientação sexual, em linha com os comandos constitucionais dos valores tutelados pelo princípio da igualdade, presente no artigo 13.º, n.º 2, da CRP e de proteção contra todas as formas de discriminação, plasmado no artigo 26.º, nº 1, do texto constitucional, bem como com o respeito pelo princípio da ética desportiva, enquanto desiderato transversal a todo o ordenamento jurídico desportivo.
11. Atenta a factualidade que dada como provada, bem como aquela que deve ser dada como provada, é inequívoco que os adeptos afetos à Alverca SAD, ora Recorrida, ao minuto 34 do jogo, entoaram em coro na direção dos jogadores visitados o seguinte cântico: «Joguem à bola paneleiros joguem à bola».
12. O recorte normativo à volta da prevenção e repressão das condutas discriminatórias no desporto, em particular no domínio da orientação sexual, visa precisamente erradicar um conjunto de expressões que conduzem à perpetuação de estereótipos.
13. Pelo que, nunca as mesmas podem ser vistas como socialmente aceites, ou próprias da linguagem do futebol e, nessa medida, desculpáveis, como bem evidencia o sancionamento levado a cabo neste domínio pela FIFA e pela UEFA.
14. O que se mostra em causa não são os concretos atletas alvo dos cânticos, nem a sua orientação sexual, nem ainda o seu particular sentir quanto à expressão «paneleiro» mas sim, o uso de expressões em si mesmo discriminatórias em razão da orientação sexual (de estereótipos que se pretendem extirpar do desporto), violadoras do princípio da ética desportiva, em relação às quais o clube consentiu e tolerou.
15. Como acima se demonstrou, os adeptos afetos à Alverca SAD, ora Demandante, ao minuto 34 do jogo, entoaram em coro na direção dos jogadores visitados o seguinte cântico: «Joguem à bola paneleiros joguem à bola».
16. As palavras referidas foram percetíveis para todos os agentes desportivos presentes no estádio, visto que foram proferidas em coro, em tom alto e ocorreram por diversas vezes no decorrer do jogo.
17. No final do jogo, o delegado da FPF, M…, informou o delegado ao jogo da Alverca SAD sobre o comportamento dos seus adeptos, tendo aquele lamentado o sucedido e referido que não podia controlar aquele tipo de condutas por parte dos seus adeptos.
18. Os adeptos do clube visitante encontravam-se na bancada que estava localizada atrás do banco de suplentes da Alverca SAD e do mesmo lado do terreno de jogo, pelo que, pelo menos os elementos do clube que se encontravam no banco de suplentes aperceberam-se do comportamento dos seus adeptos.
19. Assim sendo, os agentes desportivos da Alverca SAD apesar de terem sido conhecedores do comportamento dos seus adeptos, não tomaram qualquer atitude durante o jogo para fazer cessar ou sequer para repudiar tais condutas, ao contrário do que entendeu o Colégio Arbitral.
20. Pelo que, por todo acima exposto, andou bem o Conselho de Disciplina da FPF ao entender que se encontram preenchidos todos os elementos objetivo e subjetivo do ilícito disciplinar em causa - artigos 62.º, n.º 1 do RDFPF.
21. Assim, o Acórdão recorrido merece a maior censura e deve ser revogado, sendo substituído por outro que reconheça a legalidade e acerto da decisão proferida pelo Conselho de Disciplina, mantendo, pois, as sanções aplicadas à Recorrida.»

A Recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso, interposto pela Recorrente tem por objeto o Acórdão proferido pelo Colégio Arbitral constituindo junto do Tribunal Arbitral do Desporto, proferido e notificado no dia 22 de julho de 2022, no âmbito do processo de arbitragem necessária n.º 19/2022 (doravante, Acórdão Recorrido),
2. Em particular, o presente recurso incide sobre a decisão do Colégio Arbitral em dar provimento à ação arbitral intentada pela Recorrida e, consequentemente, anular a decisão do Conselho de Disciplina -Secção Não Profissional da Federação Portuguesa de Futebol, de 25 de março de 2022 proferida no âmbito do Processo Disciplinar n.º 50 - 2021/2022, na parte em que sancionou a Recorrida na sanção de 1 (um) jogo à porta fechada e, cumulativamente, na sanção de multa no montante de € 1.020,00 (mil e vinte Euros) pela alegada prática da infração disciplinar prevista e punida pelo artigo 62.º, n.9 1 do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (doravante, RDFPF).
3. A Recorrente entende que o Acórdão Recorrido é passível de passível de censura, porquanto existem erros graves de julgamento na fixação da matéria de facto, bem como na interpretação e aplicação do Direito, contudo não lhe assiste qualquer razão, motivo pelo qual deverá ser confirmado o Acórdão Recorrido.
4. A Recorrente requer que o Tribunal ad quem dê como provado que:
"A) As palavras referidas no artigo anterior [atual 15 do Acórdão recorrido] foram percetíveis para todos os agentes desportivos presentes no estádio, visto que foram proferidas em coro, em tom alto e ocorreram por diversas vezes no decorrer do jogo.(...)
B) Os adeptos do clube visitante encontravam-se na bancada que estava localizada atrás do banco de suplentes da Alverca SAD e do mesmo lado do terreno de jogo, pelo que, pelo menos os elementos do clube que se encontravam no banco de suplentes aperceberam-se do comportamento dos seus adeptos.
C) Assim sendo, os agentes desportivos da Alverca SAD apesar de terem sido conhecedores do comportamento dos seus adeptos descrito no ponto 10) [atual 15 do Acórdão recorrido], não tomaram qualquer atitude durante o jogo para fazer cessar ou sequer para repudiar tais condutas. (...)
D) Ao adotarem a conduta descrita no ponto 10) [atual 15 do Acórdão recorrido] do presente libelo, no mínimo, socialmente incorreta, podendo mesmo ser considerada atentatória da dignidade humana, honra e consideração, os adeptos da Alverca SAD agiram com o propósito de ofender a dignidade dos jogadores do clube visitado, em função da sua orientação sexual, bem como de insultar a sua prestação enquanto jogadores, o que efetivamente lograram, em violação da lei e dos regulamentos da FPF.
E) A Recorrida, Alverca SAD, enquanto sociedade desportiva qualificada para disputar competição oficial organizada pela FPF, bem sabia que era sua obrigação evitar ou prevenir comportamentos antidesportivos, como os supra descritos, atuar em conformidade com os princípios da ética e da verdade desportiva e, nomeadamente, que era seu especial dever o de não consentir ou tolerar qualquer tipo de conduta discriminatória.
F) Nessa medida, a Alverca SAD agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento (omissivo), porque tolerante e/ou complacente para com as condutas discriminatórias - em função da orientação sexual - dos seus adeptos verificadas ao minuto 34 do jogo, consubstanciava comportamento previsto e sancionado pelo ordenamento jus-disciplinar desportivo e, ainda assim, pretendeu efetivamente adotá-lo.".
5. É, desde logo, notório que a Recorrida incumpriu o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, em virtude de se ter limitado a transcrever para as suas Conclusões o elenco factual que deseja ver provado indicando genericamente os meios de prova nos quais se sustenta, motivo pelo qual deverá ser, desde logo, rejeitado o recurso nesta parte.
6. Caso assim não se entenda, o que não se concebe e se alega por mero dever de patrocínio, sempre deverá o Tribunal ad quem rejeitar a alteração da factualidade dada como provada no Acórdão Recorrido, mantendo-se o mesmo nos precisos termos em que foi proferido, uma vez que a "factualidade" que a Recorrente pretender ver provada se trata de matéria puramente conclusiva ou de direito.
7. Pelo que, andou bem o Tribunal a quo ao expurgar tais proposições do elenco da matéria factual relevante para o apuramento da solução plausível de direito.
8. Não obstante o disposto supra, sempre deverão ser considerados insuficientes os meios de prova com base nos quais a Recorrida sustenta o seu requerimento de alteração da matéria factual dada como provada no Acórdão Recorrido.
9. Compulsada a prova produzida afigura-se-nos que a Recorrente funda a responsabilização disciplinar pela prática da infração prevista no artigo 62.º do RDFPF no Relatório de Ocorrência do seu Delegado M…, bem como nos seus esclarecimentos e no vídeo do jogo, prova que, salvo melhor entendimento, se mostra insuficiente a atingir o desiderato que a Recorrente se propôs alcançar, particularmente quando contrapostos tais meios de prova aos demais carreados para os autos.
10. Além dos responsáveis da Recorrida, também a Equipa de Arbitragem, o Observador da Equipa de Arbitragem, os elementos da força policial presente, bem como o capitão da Real Sport Clube não se aperceberam do comportamento dos adeptos da Recorrida.
11. Em especial, cumpre clarificar que os relatórios das forças policiais gozam de um valor probatório reforçado, o qual só pode ser afastado com base na sua falsidade, fazendo prova plena dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade que os documenta. Assim, também o julgador disciplinar desportivo se encontra, na apreciação da prova, vinculado à especial força probatória que é, legalmente, reconhecida ao documento autêntico que são os relatórios das forças policiais.
12. Não se tendo os elementos força policial presente apercebido dos cânticos entoados pelos adeptos da Recorrida ou de qualquer outra ocorrência digna de registo no respetivo relatório, está encontrada prova bastante para colocar fundadamente em causa ou justificadamente pôr em dúvida a veracidade daquilo que pelo Delegado da Recorrente M… foi escrito no seu Relatório de Ocorrências, bem como nos seus ulteriores esclarecimentos.
13. Resultando assim, inevitavelmente, provado que a Recorrida certamente não promoveu, nem tolerou ou consentiu o comportamento dos seus adeptos, em face de não se ter apercebido dos mesmos aquando do seu proferimento, bem como pelo facto de tal incidente só lhe ter sido reportado após o fim do jogo, o que a impediu de tomar quaisquer medidas que tivesse por necessárias.
14. A Recorrida, como não podia deixar de ser, não nega que os seus adeptos entoaram o cântico "joguem à bola paneleiros, jogam à bola", tal seria refutar o irrefutável atenta a prova carreada para os autos, antes pelo contrário, condena veemente aquele tipo de comportamentos.
15. O que a Recorrida não pode aceitar é que se afirme que adotou uma conduta de tolerância e/ou consentimento relativamente ao comportamento dos seus adeptos, ainda que não tenha tido, atempadamente, conhecimento do mesmo.
16. A Recorrente insiste em amparar-se no valor probatório reforçado de que gozam os relatórios dos seus delegados para assacar à Recorrida responsabilidade pela alega prática da infração disciplinar prevista e punida pelo artigo 62.º do RDFPF, olvidando a demais prova carreada para os autos, nomeadamente a referente ao relatório de policiamento das forças policiais.
17. O julgador desportivo encontra-se vinculado, na apreciação da prova à especial força probatória inerente aos relatórios exarados pelas forças policiais, não os podendo ignorar quando o seu teor não lhes é favorável.
18. Porém, tanto o Conselho de Disciplina da Recorrente como a própria Recorrente aparentam olvidar a existência de tal meio probatório que seria suficiente para colocar fundadamente em causa ou justificadamente pôr em dúvida a veracidade daquilo que pelo Delegado da Federação Portuguesa de Futebol M… foi escrito no seu Relatório de Ocorrências, bem como nos seus ulteriores esclarecimentos, não obstante a existência da demais prova em sentido convergente.
19. Desta forma, não tendo a Recorrida, nem os demais agentes desportivos presentes no recinto, tido conhecimento do comportamento dos seus adeptos durante a prática dos mesmos, como cabalmente se demonstrou amplamente, bem como não tendo, como não poderia ter, desta forma, a Recorrente demonstrado que a Recorrida incumpriu dolosamente os deveres a que estava adstrita, dessa forma permitindo, facilitando, tolerando ou consentindo as condutas discriminatórias em crise, é mister concluir que não se pode ter por verificado o pressuposto subjetivo do tipo disciplinar em causa, concretamente, do comportamento previsto e punido pelo Art. 62.º, n.º 1, do RDFPF.
20. Pelo que, andou bem o Tribunal a quo ao concluir pela inexistência de prova que demonstrasse que os responsáveis da Recorrida se tivessem apercebido dos comportamentos e nenhuma medida tivessem tomado.
21. Assim, é forçoso concluir que o Acórdão Recorrido não padece de qualquer erro de julgamento na fixação da matéria de facto, nem na interpretação e aplicação do Direito, tendo subsumido corretamente os factos alegados ao direito aplicável, devendo, por isso, ser mantido.».

O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à sessão para julgamento.

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, consistem, no essencial, em saber se o acórdão recorrido incorreu em erros de julgamento na fixação da matéria de facto, devendo ser aditados à mesma os factos que indica, e na interpretação e aplicação do Direito, mormente o disposto no artigo 62º, nº 2 do RDFPP.

O colectivo de árbitros do TAD com interesse para a decisão considerou provados os seguintes factos:

«1. A Demandante tomou conhecimento da instauração do Processo Disciplinar através do Comunicado Oficial da FPF numero 251 (Mapa de Sumários), publicado em 12 de Novembro de 2021 - fls. 3 e 4 do Processo Disciplinar que constitui o Doc.2;

2. Confrontada com o conteúdo do referido Mapa de Sumários, a Demandante remeteu um requerimento ao Conselho de Disciplina da FPF, a peticionar que os autos do mesmo fossem remetidos através de correio electrónico - fls. 22 a 25 do Processo Disciplinar que constitui o Doc.2;

3. Em 16 de Novembro de 2021, em resposta ao mencionado requerimento, a Demandante foi informada pela Instrutora da Comissão de Instrução Disciplinar da FPF que o processo disciplinar tinha como objecto os factos ocorridos no encontro oficial n.° 210.02.046, disputado entre a Real Sport Clube - Futebol, SDUQ e a equipa da Demandante, acrescentando ainda a Sra. Instrutora que o processo se encontrava em fase de inquérito - fls. 26 do Processo Disciplinar, que constitui o Doc.2)

4. Inconformada com tal resposta, a Demandante remeteu, em 22 de Novembro de 2022, um requerimento ao processo, endereçado a Presidente do Conselho de Disciplina da FPF onde, nomeadamente, referia os motivos pelo qual o entendimento explanado pela Instrutora da CID não se mostrava conforme com o escopo regulamentar e normativo aplicável e peticionava, novamente, que fosse notificada dos factos que em concreto constituem o objecto do processo - Doc.3.

5. Este requerimento foi objecto de despacho do CDSNP, datado de 26 de Novembro de 2021 sendo o mesmo indeferido e remetida a fundamentação da decisão de indeferimento para a resposta da Sra. Instrutora da CID - DOC. 4;

6. A Demandante foi notificada do acórdão do Plenário do Conselho de Disciplina Secção Não Profissional da Federação Portuguesa de Futebol, proferido a 25.03.2022, no âmbito do processo disciplinar n° 50 - 2021/2022 (urgente), que decidiu: condenar a Demandante pela pratica da infracção prevista e sancionada pelo artigo 62°, n° 1, do RDFPF, na sanção de 1 jogo a porta fechada, e, cumulativamente, na sanção de 10 UC de multa, ou seja, €1 .020,00 (mil e vinte euros) e ainda pela pratica da infracção prevista e sancionada pelo artigo 209° do RDFPF, na sanção de 8 UC de multa, ou seja, € 816,00 (oitocentos e dezasseis euros), sanções essas que, cumuladas materialmente nos termos do disposto no artigo 46.°, n° 4 do RDFPF, perfazem a sanção de 1 jogo à porta fechada e a sanção de 18 UC de multa, ou seja 61.836,00 [sic] (mil oitocentos e trinta e seis euros).

Do acórdão recorrido, a seguinte matéria dada como provada, que nestes autos se dá também como provada:

7. No dia 6 de novembro de 2021, no Campo n° 1 do Real SC, em Monte Abraão, realizou-se o jogo oficial n° 210.02.046, disputado entre a Real SC SDUQ e a Alverca SAD, a contar para a Liga 3, da época desportiva 2021/2022, tendo o resultado do mesmo sido de 1 a 1:

8. A equipa de arbitragem presente no jogo dos autos foi composta pelos seguintes elementos: arbitro principal P…, arbitro assistente n° 1 J…, 4o arbitro H… e arbitro assistente n° 2, J…;

9. A segurança do referido jogo esteve a cargo da Policia de Segurança Pública;

10. O jogo foi acompanhado por parte de delegado da FPF;

11. O jogo contou com a presença do observador da equipa de arbitragem;

12. No jogo supra identificado a Real SC SDUQ foi o clube visitado e a Alverca SAD foi o clube visitante;

13. A Demandante Alverca SAD (0471.1) encontra-se inscrita na época desportiva 2021/2022, entre outras competições, na Liga 3, prova organizada pela FPF;

14. A Demandante Alverca SAD, a data dos factos, na Liga 3, na época desportiva 2021/2022, apresenta averbado no seu cadastro disciplinar a prática de uma infracção disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 209° do RDFPF e uma infracção prevista e sancionada polo artigo 111º do RDFPF. Nas três épocas desportivas anteriores em que esteve inscrita, a Demandante não apresenta a prática de infracções disciplinares na competição em apreço, uma vez que se trata de uma competição que apenas se iniciou na presente época;

15. Os adeptos afectos à Alverca SAD, ao minuto 34 do jogo, entoaram em coro na direcção dos jogadores visitados o seguinte cântico: «joguem a bola paneleiros joguem a bola»;

16. No final do jogo, o delegado da FPF, M…, informou o delegado ao jogo da Averca SAD sobre o comportamento dos seus adeptos supra descrito, tendo aquele lamentado o sucedido e referido que não podia controlar aquele tipo de condutas por parte dos seus adeptos;

17. Os adeptos do clube visitante encontravam-se na bancada que estava localizada atrás do banco de suplentes da Alverca SAD e do mesmo lado do terreno de jogo;

18. Entretanto, ao minuto 60 do jogo, os adeptos da Alverca SAD supra identificados proferiram em coro na direcção dos jogadores da Real SC SDU,Q o cântico: “Palhaços joguem à bola... palhaços joguem a bola”;

19. Dos relatórios disponibilizados na Plataforma Score, consta o Relatório de jogo, lavrado pelo Arbitro Principal e o Relatório do Delegado da FPF, que se dão por integralmente reproduzidos - fls. 5 e seguintes e fls. 18 e seguintes do Processo Disciplinar que constitui o DOC. 2;

20. Quando perguntado: se em algum momento do jogo os agentes desportivos do FC Alverca SAD, presentes no jogo, foram informados ou tomaram conhecimento do comportamento adoptado pelos seus adeptos", o Delegado da FPF referiu que: "relativamente terceira questão afirmo que não, não informei no decurso do jogo e somente o fiz no final do mesmo e não me foi possível verificar qual a atitude que os agentes adotaram perante os cânticos" - página 37 do acórdão;

21. No relatório do jogo da Equipa de Arbitragem não é feita qualquer menção ao comportamento dos adeptos, tendo no mesmo sido deixado em branco o campo destinado as observações - fls. 5 e seguintes do Processo Disciplinar que constitui o DOC. 2.».


Da impugnação da decisão da matéria de facto:

Alega a Recorrente que no acórdão recorrido foram apenas indicados como provados os factos que o TAD teve por relevantes para a decisão a proferir, não constando na matéria provada ou não provada os factos nºs 11, 13, 14, 18, 19 e 20, considerados provados pelo seu Conselho de Disciplina, que, no seu entender, são bastante relevantes e deveriam ter sido indicados segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, até porque foi coligida prova para o efeito, mormente a decorrente do teor do Relatório de Ocorrências do Delegado da FPF, dos esclarecimentos prestado pelo mesmo Delegado à Sra. Instrutora e do vídeo, constantes do processo administrativo junto aos autos, especificamente no que concerne aos factos 11, 13 e 14, de fls. 18 a 20, 44 a 47 e 53, pelo que devem ser dados como provados:
"A) As palavras referidas no artigo anterior [atual 15 do Acórdão recorrido] foram percetíveis para todos os agentes desportivos presentes no estádio, visto que foram proferidas em coro, em tom alto e ocorreram por diversas vezes no decorrer do jogo.(...)
B) Os adeptos do clube visitante encontravam-se na bancada que estava localizada atrás do banco de suplentes da Alverca SAD e do mesmo lado do terreno de jogo, pelo que, pelo menos os elementos do clube que se encontravam no banco de suplentes aperceberam-se do comportamento dos seus adeptos.
C) Assim sendo, os agentes desportivos da Alverca SAD apesar de terem sido conhecedores do comportamento dos seus adeptos descrito no ponto 10) [atual 15 do Acórdão recorrido], não tomaram qualquer atitude durante o jogo para fazer cessar ou sequer para repudiar tais condutas. (...)
D) Ao adotarem a conduta descrita no ponto 10) [atual 15 do Acórdão recorrido] do presente libelo, no mínimo, socialmente incorreta, podendo mesmo ser considerada atentatória da dignidade humana, honra e consideração, os adeptos da Alverca SAD agiram com o propósito de ofender a dignidade dos jogadores do clube visitado, em função da sua orientação sexual, bem como de insultar a sua prestação enquanto jogadores, o que efetivamente lograram, em violação da lei e dos regulamentos da FPF.
E) A Recorrida, Alverca SAD, enquanto sociedade desportiva qualificada para disputar competição oficial organizada pela FPF, bem sabia que era sua obrigação evitar ou prevenir comportamentos antidesportivos, como os supra descritos, atuar em conformidade com os princípios da ética e da verdade desportiva e, nomeadamente, que era seu especial dever o de não consentir ou tolerar qualquer tipo de conduta discriminatória.
F) Nessa medida, a Alverca SAD agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento (omissivo), porque tolerante e/ou complacente para com as condutas discriminatórias - em função da orientação sexual - dos seus adeptos verificadas ao minuto 34 do jogo, consubstanciava comportamento previsto e sancionado pelo ordenamento jus-disciplinar desportivo e, ainda assim, pretendeu efetivamente adotá-lo.'

Apreciando.

De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 640º do CPC, ex vi o nº 3 do artigo 140º do CPTA, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Em face do que a Recorrente observou os claramente os ónus que lhe são impostos nas referidas alíneas a) e c) mas já não o da alínea b).
Explicitando, para cumprimento desta norma não basta a referência aos meios de prova juntos aos autos, importando especificar a parte compreendida em cada um desses elementos probatórios que suporta a impugnação de cada um dos factos provados, não provados ou omissos.
O que a Recorrente não fez porquanto, começando por constituir dois grupos de factos a aditar, remeteu relativamente ao primeiro para folhas específicas do p.a., mas já não para a passagem, com indicação dos correspondentes minutos, do referido vídeo do jogo, sendo quanto ao segundo [grupo de factos] a remissão para os mesmos elementos probatórios totalmente genérica.
Mais, ainda que se entendesse de admitir o cumprimento parcial deste ónus [relativamente aos factos 11, 13 e 14], da leitura do teor das referidas folhas do Relatório de Ocorrências do Delegado da FPF e dos esclarecimentos prestados pelo mesmo Delegado à Sra. Instrutora, apenas resulta evidenciado que as palavras, dadas por provadas no facto 15. do acórdão recorrido, foram proferidas em tom alto e por diversas vezes durante o jogopartes do facto 11 a aditar -, sendo que o terem sido proferidas em coro já resulta do teor do referido facto 15., e a parte de que tais palavras “foram perceptíveis para todos os agentes desportivos presentes no estádio”, não é compatível com o teor do facto provado no ponto 21 –“ No relatório do jogo da Equipa de Arbitragem não é feita qualquer menção ao comportamento dos adeptos, tendo no mesmo sido deixado em branco o campo destinado as observações – (…)” – uma vez que a equipa de arbitragem faz parte de todos os agentes desportivos presentes no estádio e, se não lhe fez menção no seu relatório, é provável que não tenha ouvido o referido cântico.
Mais, é a própria Recorrente, nas suas alegações de recurso, que admite ser verdade que os, também, agentes desportivos Observador N… e o jogador da equipa adversária da Recorrida, P…, declararam/depuseram não terem ouvido o referido cântico.
Quanto ao facto 13, a aditar, a primeira parte - Os adeptos do clube visitante encontravam-se na bancada que estava localizada atrás do banco de suplentes da Alverca SAD e do mesmo lado do terreno de jogo – já se encontra provada no facto 17. Já a segunda – (…) pelo que, pelo menos os elementos do clube que se encontravam no banco de suplentes aperceberam-se do comportamento dos seus adeptos - e o facto 14 a aditar - Assim sendo, os agentes desportivos da Alverca SAD apesar de terem sido conhecedores do comportamento dos seus adeptos descrito no ponto 10) [atual 15], não tomaram qualquer atitude durante o jogo para fazer cessar ou sequer para repudiar tais condutas – são meramente conclusivos e não suportados no teor dos documentos indicados.
Em face do que é de rejeitar esta parte do recurso.

Do erro de julgamento de direito:

Da fundamentação do acórdão recorrido extrai-se sobre a interpretação e aplicação do disposto no artigo 62º do RDFPF o seguinte:
«Por outro lado, e tal como ficou expresso na menção do objecto do litígio, só a expressão “joguem à bola paneleiros, joguem à bola” se poderia enquadrar nos comportamentos discriminatórios enunciados no número um do artigo 62° do RDFPF, e, entre estes, o comportamento ofensivo da dignidade de agente desportivo em função da sua orientação sexual. Na verdade, em qualquer dicionário da língua portuguesa, paneleiro é um termo calão, depreciativo de homem homossexual, usado muitas vezes em situações que nada tem a ver com orientação sexual do visado pela ofensa.
Acresce que, no caso concreto, a expressão utilizada contra a generalidade dos jogadores, manifestamente que não tem o objetivo de ofender a dignidade de todos e cada um dos jogadores da equipa adversária da Demandante em função da orientação sexual de todos e cada um deles. Trata-se de uma expressão, que tendo-se vulgarizado socialmente, pode ser entendida como insultuosa e, se assim for, verificados os elementos que compõem o tipo disciplinar, enquadrável na previsão do art° 209° do RDFPF, e, como tal, punível.
Entende-se que os tribunais não devem banalizar o conceito de comportamento discriminatório atribuindo essa qualificação a toda e qualquer expressão, sem olhar ao contexto em que foi proferida ou se houve intenção de ofender a pessoa ou as pessoas a quem se dirige em função da sua raça, deficiência, género ou orientação sexual.
A confirmar, em nossa opinião, que a expressão não teve a intenção de ofender a dignidade de todos e cada um dos jogadores em função da sua orientação sexual é o facto de ao minuto 60 do jogo a expressão paneleiros ter sido substituída por palhaços: “palhaços joguem à bola... palhaços joguem à bola”.
E o assim decidido é para manter.
Dispõe o nº 1 do referido artigo 62º, com a epígrafe “Comportamento discriminatório”, do RD da FPF: “O clube que promova, consinta ou tolere qualquer tipo de conduta, escrita ou oral, que ofenda a dignidade de agente desportivo ou espectador em razão da sua ascendência, género ou identidade de género, deficiência, raça, nacionalidade, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, é sancionado com realização de 2 a 5 jogos à porta fechada e cumulativamente com multa entre 10 e 30 UC.
O alegado pela Recorrente é suportado em considerações genéricas sobre o enquadramento jurídico da temática da prevenção e repressão de condutas discriminatórias no desporto, a nível internacional e nacional, e na factualidade a aditar em caso de procedência da impugnação da decisão da matéria de facto nos termos em que foi efectuada [dirigida a comprovar o consentimento e tolerância por parte da Recorrida do teor discriminatório do cântico em referência].
Não tendo observado cumulativamente os ónus que sobre si impendiam, a rejeição dessa parte do recurso, deixa apenas como provado que no decurso do jogo, em causa, os adeptos afectos à Alverca SAD, ao minuto 34 do jogo, entoaram em coro na direcção dos jogadores visitados o seguinte cântico: «joguem a bola paneleiros joguem a bola».
E não que a Recorrida promoveu, consentiu ou tolerou a actuação dos seus autores e/ou a eventual mensagem compreendida no referido cântico [não se encontrando assi, preenchido o elemento subjectivo do tipo de infracção disciplinar].
Na situação em apreciação a expressão utilizada de “paneleiros” configura, sem dúvida, um insulto [e foi penalizada como tal, ao abrigo do artigo 209º do RDFPF], mas não pode nem deve ser entendida como discriminatória da dignidade do agente desportivo em razão da sua orientação sexual, primeiro porque foi dirigida de forma genérica aos jogadores em campo da equipa adversária da Recorrida [não foi proferida a palavra paneleiro, o mesmo é dizer que não foi visado um concreto jogador] e segundo porque foi usada em alternância com cânticos de teor idêntico em que foi substituída por palhaços.
Por outro lado, não resultando evidenciado dos factos provados que os jogadores da equipa adversária em campo fossem/sejam homossexuais, não se pode concluir que a expressão em causa tinha por objectivo a sua efectiva discriminação em função dessa sua orientação sexual.
Diferentemente e atendendo ao contexto em que foi proferido, aquele cântico, ainda que ofensivo, parece querer apenas incentivar os jogadores a jogarem à bola, evitando paragens desnecessárias no jogo.
Em suma, pretendendo o legislador penalizar efectivos, evidentes e comprovados actos discriminatórios em razão das diversas situações especificadas no referido artigo 62º, o uso de uma expressão derivada do calão, como a agora em causa, ainda que reprovável e penalizável [e, no caso, penalizado], não se enquadra na previsão da norma.
Face ao que não pode proceder o recurso também nesta parte.

Por tudo quanto vem exposto acordam em sessão os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e, em consequência, manter o acórdão recorrido na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente.

Registe e Notifique.

Lisboa, 20 de Outubro de 2022.


(Lina Costa – relatora)

(Catarina Vasconcelos)

(Rui Pereira)