Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:126/17.1BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2019
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:CAAD;
NULIDADE;
ILEGALIDADE;
INCONSTITUCIONALIDADE.
Sumário:I - A sindicância pelo Tribunal Central Administrativo das decisões dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do Regime Jurídico da Arbitragem Voluntária tem um objecto legal pré-definido, limitado às nulidades das sentença previstas no artigo 28.º do RJAT, à violação dos princípios consagrados no artigo 16.º (para que somos remetidos por aquele mesmo artigo 28.º) ou, excepcionalmente, em casos justificados, com fundamento em outras nulidades processuais cujo reconhecimento se mostra imposto pela unidade e completude do sistema jurídico para que nos remete o artigo 29.º do mesmo diploma legal ou que, pela sua verificação, determinem a anulação subsequente do processado, incluindo a sentença arbitral que haja sido proferida.
II. Compete ao Tribunal Arbitral conhecer de todas as questões que as partes hajam suscitado nos seus articulados tendo em vista o reconhecimento da sua pretensão, sem prejuízo de lhe ser permitido não conhecer de uma questão nas situações em que a sua apreciação esteja já prejudicada pela decisão dada a outra anteriormente decidida.
III. É uma verdadeira questão, e não um mero argumento, a alegação de que uma determinada disposição legal, interpretada num determinado sentido é inconstitucional.
IV. Tendo a Administração Tributária suscitado no seu articulado a questão enunciada em III, e não tendo o Tribunal Arbitral - que perfilhou na sua decisão a interpretação do normativo no sentido reputado de inconstitucional - apreciado expressamente essa questão, há que concluir que a sentença arbitral impugnada padece de nulidade por omissão de pronúncia.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I – Relatório

A Autoridade Tributária e Aduaneira veio, ao abrigo do preceituado nos artigos 26º e 27º, ambos do Decreto-Lei nº10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Voluntária, doravante apenas designado por RJAT), impugnar a decisão do Tribunal Arbitral proferida no processo arbitral 109/2017-T que, julgando procedente o pedido de apresentado por Banco S... Portugal, S.A., anulou as 83 liquidações de Imposto Único de Circulação identificadas no seu requerimento inicial, referentes aos períodos de 2010 a 2012 e condenou a Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar o Impugnado da quantia que pagou, no valor de €9.317,28, acrescida de juros indemnizatórios.

No articulado inicial, resumindo a sua pretensão, a Impugnante formulou as seguintes conclusões:

«1ª A presente impugnação visa reagir contra a decisão Arbitral proferida a 2017-07-10 pelo Tribunal Arbitral Singular constituído no âmbito do processo n°109/2017-T que correu termos no CAAD;

2.ª A decisão proferida pelo referido Tribunal Arbitral Singular padece de nulidade pelo facto de não ter conhecido de duas questões essenciais sobre as quais se deveria ter pronunciado [artigo 28°/1-c) do RJAT];

3.ª Por via do pedido de pronúncia Arbitral visou a Impugnada colocar em crise 100 atos de liquidação de IUC;

4.ª A Impugnante apresentou oportunamente a sua Resposta, mediante articulado no qual, e em síntese: (i) defendeu que o artigo 3° do Código do IUC não contém qualquer presunção ilidível; (ii) colocou em causa o valor probatório dos documentos juntos pela impugnada, tendo salientado que à data do facto gerador do IUC os respectivos contratos de locação financeira já haviam findado relativamente a vários veículos e que a Impugnada não havia dado cumprimento à obrigação declarativa patente no artigo 19° do CIUC; (iii) suscitou a inconstitucionalidade da interpretação feita pela Impugnada relativamente ao artigo 3º do Código do IUC; (iv) pugnou pela sua não condenação ao pagamento de juros indemnizatórios e custas Arbitrais face à inércia da impugnada;

5.ª Cada uma destas questões foi devidamente desenvolvida pela Impugnante ao longo do seu articulado e era perfeitamente identificável por parte de qualquer leitor;

6.ª O Tribunal Arbitral Singular entendeu que as questões a decidir se limitavam ao seguinte: «- A alegação feita pela Requerente relativa à ilegalidade material dos atas de liquidação e à ilegalidade dos atas de juras acessórios, face aos anos de 2010, 2011 e 2012, referente ao IUC sobre os veículos supra referenciados na PI; - A errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do imposta único de circulação liquidado e cobrado, o que constitui, a questão central a decidir no presente processo, - O valor jurídico do registo dos veiculas automóveis»;

7.ª O Tribunal Arbitral Singular apreciou as questões por si elencadas, as quais correspondem, no essencial, às questões suscitadas pela própria Impugnada;

8.ª Contudo, não só o referido elenco de questões fixado pelo Tribunal Arbitral Singular omitiu por completo (i) a questão de saber se à data do facto gerador do IUC os respectivos contratos de locação financeira já haviam findado relativamente a três veículos e (ii) a questão da inconstitucionalidade da interpretação feita pela Impugnada relativamente ao artigo 3° do CIUC, ambas suscitadas por banda da Impugnante, como, pior, o discurso fundamentador da decisão Arbitral não lhe reservou uma só palavra;

9.ª As questões a decidir não eram exclusivamente as questões suscitadas pela Impugnada, mas, sim, também as questões suscitadas pela Impugnante, pois de outro modo de nada serve o contraditório corporizado na Resposta oportunamente apresentada;

10.ª Todavia, tudo se processou como se, pura e simplesmente, a Impugnante jamais tivesse suscitado (i) a questão de saber se à data do facto gerador do IUC os respectivos contratos de locação financeira já haviam findado relativamente a três veículos e (ii) a questão da inconstitucionalidade da interpretação feita pela Impugnada relativamente ao artigo 3° do CIUC, ou seja, saber se tal interpretação é conforme aos princípios da legalidade e justiça tributárias, da capacidade contributiva, da igualdade e da certeza e segurança jurídicas;

11.ª Ao ignorar estas duas questões fundamentais o Tribunal Arbitral Singular não incorreu em qualquer erro de apreciação da prova, mas, sim, numa inequívoca omissão de pronúncia;

12.ª Nenhuma relação de dependência jurídica existe entre a interpretação da lei em torno do artigo 3,° do CIUC feita pelo Tribunal Arbitral Singular e as inconstitucionalidades suscitadas pela Impugnante que justificasse a omissão em que incorreu aquele areópago, conforme, aliás doutamente, se decidiu no acórdão proferido a 2015-04-23 pela 2ª Secção do 2° Juízo do Tribunal Central Administrativo Sul no âmbito do processo n°08224/14;

13.ª A decisão Arbitral não padece de uma "mera" fundamentação lacónica ou deficiente, antes configura uma "decisão surpresa";

14.ª Acresce que, ao não cumprir um dos requisitos essenciais inerentes a uma decisão (i.e., a de convencer os seus destinatários) o Tribunal Arbitral Singular coartou irremediável e incompreensivelmente um dos poucos mecanismos de controlo que assistem à Impugnante: o recurso para o Tribunal Constitucional;

15.ª Motivos pelos quais não deve ser mantida na ordem jurídica a decisão Arbitral ora colocada em crise, devendo antes ser aquela declarada nula.

Termos em que, por todo o exposto supra e sempre com o douto suprimento de V.Exas., deve a presente impugnação ser julgada procedente e, consequentemente, ser declarada nula a decisão Arbitral, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»


Admitida a Impugnação e notificado o Banco S... Portugal, S.A, não foi apresentada resposta.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Tribunal, notificada nos termos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA ex vi artigo 27.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, nada disse.


Colhidos os «Vistos» dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

II – Objecto da Impugnação das decisões arbitrais

Como é sabido, o âmbito de intervenção do tribunal ad quem encontra-se delimitado pelas conclusões do recurso jurisdicional.

Nas situações em que a apreciação pelo Tribunal Central Administrativo tem por objecto decisões dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do Regime Jurídico da Arbitragem Voluntária (doravante apenas designado por RJAT), e não obstante a opção do legislador pela qualificação do meio processual previsto para provocar essa sindicância como de “Impugnação de Decisão Arbitral”, do que se trata é, do ponto de vista substantivo, de um verdadeiro recurso com um objecto pré-definido e limitado às nulidades das sentença previstas no artigo 28.º do RJAT, à violação dos princípios consagrados no artigo 16.º (para que somos remetidos por aquele mesmo artigo 28.º) ou, excepcionalmente, em casos justificados, com fundamento em outras nulidades processuais cujo reconhecimento se mostra imposto pela unidade e completude do sistema jurídico para que nos remete o artigo 29.º do mesmo diploma legal ou que, pela sua verificação, determinam, subsequentemente, a anulação do processado, incluindo a sentença arbitral que haja sido proferida.

Posto isto, e revertendo ao caso concreto, não existem dúvidas quanto aos fundamentos da presente Impugnação Judicial se subsumirem aos que legalmente estão previstos, uma vez que, como nos é revelado pela petição, se reconduzem ao vício de omissão de pronúncia de que padecerá a sentença arbitral por, no entender da Impugnante, não terem sido apreciadas duas das questões por si suscitadas no seu articulado, a saber: a questão relativa ao facto gerador do IUC (assente na alegação de que alguns contratos de locação financeira já teriam findado relativamente a vários veículos) e a questão da inconstitucionalidade do artigo 3.º do CIUC na interpretação perfilhada pela Impugnante.

São, pois, estas as questões que esgotam o objecto desta Impugnação Judicial e que a este Tribunal Central Administrativo Sul cumpre conhecer.


III - Fundamentação de facto

3.1. A decisão arbitral possui, na parte relevante para a apreciação do objecto da presente Impugnação, o seguinte teor:

«2 QUESTÕES DECIDENDAS

2.1 Face ao exposto nos números anteriores, relativamente à exposição das partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são as seguintes:

- A alegação feita pela Requerente relativa à ilegalidade material dos atos de liquidação e à ilegalidade dos atos de juros acessórios, face aos anos de 2010, 2011 e 2012, referente ao IUC sobre os veículos supra referenciados na PI;

- A errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjetiva do imposto único de circulação liquidado e cobrado, o que constitui, a questão central a decidir no presente processo.

- O valor jurídico do registo dos veículos automóveis.

3 FUNDAMENTOS DE FACTO

3.1 Em matéria de facto, relevante para a decisão a proferir, dá o presente Tribunal por assente, face aos elementos existentes nos autos, os seguintes factos:

- A Requerente apresentou elementos probatórios constantes dos documentos nºs; 1 a 76, 77 a 152, constantes das tabelas D e M, do Anexo A, junto aos autos, que se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;

- Considerando-se, também a doutrina e Jurisprudência, apresentada pela mesma, excluindo-se o Requerimento da Requerente, apresentado a este Tribunal, em 2017-07-04, por não se considerar necessário, para a apreciação do mérito da presente causa.

- A Requerida na sua Resposta, assentou a sua defesa em: descrições, legais, doutrinas e jurisprudências, que foram devidamente analisadas. Ressalvando-se, no entanto, os Requerimentos apresentados a este Tribunal, respectivamente, em 22-06-2017 e 07-07-2017, como prova documental, que não foi junto aos autos, por este Tribunal, nos termos, do nº 1 do art. 6º do CPC, ex vi artigo 29 do RJAT, entender, após análise, que os mesmos não traziam factos novos para a boa decisão da presente causa.

3.1.1 FUNDAMENTAÇÃO DOS ATOS PROVADOS

- Os factos dados como provados estão baseados nos documentos anexos ao pedido de pronúncia arbitrai da supra referida PI e, na Resposta da Requerida, todos, anexos aos autos que se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.

3.1.2 FACTOS NÃO PROVADOS

- Não existem factos dados como não provados, dado que todos os factos tidos como relevantes para a apreciação do mérito da causa foram provados.

4 FUNDAMENTOS DE DIREITO

4.1 O Tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2º nº 1, alínea a), 5.º nº 2, alínea a), 6º nº 1, 10º nº1, alínea a) e nº 2 do RJAT:

- As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, ex vi, artigos 4º e 10º, nº 2, do RJAT e artigo nº 1 da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março;

- O processo não enferme de nulidades.

4.2 O pedido, objeto do presente processo consiste na declaração de anulação dos atos de liquidação do IUC, correspondente aos veículos automóveis melhor identificados nos autos;

4.2.1 Condenação da AT ao reembolso do montante do imposto relativo a tais liquidações no valor global de € 9.317,28;

4.2.2 Condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios sobre o mesmo montante.

4.3 Segundo o entendimento da AT, basta que no registo, o veículo conste como propriedade de uma determinada pessoa, para que essa pessoa seja o sujeito passivo da obrigação tributária.

4.4 A matéria de facto está fixada, tal como consta do nº 3.1 supra, importando, agora, determinar o Direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões decidendas, identificadas no nº 2.1 supra, sendo certo, que a questão central, em causa, nos presentes autos, relativamente à qual existem entendimentos absolutamente opostos entre a Requerente e a AT, consiste em saber se o nº 1 e 2 do artigo 3º do CIUC relativo à incidência subjetiva do imposto único de circulação consagra ou não uma presunção ilidível.

4.5 Tudo analisado e, tendo em conta, por um lado, as posições das partes em confronto, mencionadas nos pontos 1.3 e 1.4 supra e, considerando, por outro lado que a questão central a decidir é a de saber se o nº 1 e 2 do artigo 3º do CIUC consagra ou não uma presunção legal de incidência tributária, cumpre, neste contexto, apreciar e proferir decisão.

5 QUESTÃO DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA NORMA DE INCIDÊNCIA SUBJETIVA DO IUC

5.1 Considerando ser pacífico o entendimento, na doutrina, de que na interpretação das leis fiscais valem plenamente os princípios gerais de interpretação os quais serão, apenas e naturalmente, limitados pelas exceções e particularidades ditadas pela própria lei objeto de interpretação. Trata-se de um entendimento que tem vindo a merecer acolhimento nas Leis Gerais Tributárias de outros países e que veio também a ter assento no artigo 11º da nossa Lei Geral Tributária, o que vem, aliás, sendo frequentemente sublinhado pela jurisprudência.

É consensualmente aceite que tendo em vista a apreensão do sentido da lei, a interpretação socorre-se, a priori, em reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei, o que significa, procurar o seu sentido literal, valorando-o e aferindo-o à luz de outros critérios, intervindo, os designados elementos de natureza lógica, racional ou teleológicos e de ordem sistemática:

- A propósito da interpretação da lei fiscal, há a considerar a jurisprudência, nomeadamente, os Acórdãos do STA de 05-09-2012, processo nº 0314/12, de 06-02-2013, processo 01000/12, disponíveis em www.dgsi.pt. a importância do disposto no artigo 9º do Código Civil (CC), enquanto elemento fundamental da hermenêutica jurídica;

- Dispõe o nº 1 do artigo 3º do CIUC que " São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados";

- A formulação usada no referido, artigo, socorre-se da expressão "considerando-se" o que suscita a questão de saber se, a tal expressão, pode ser atribuído um sentido presuntivo, equiparando-se à expressão "presumindo-se", tratando-se de expressões frequentemente utilizadas, com sentidos equivalentes;

- Como ensina Jorge Lopes de Sousa, in Código do Procedimento e do Processo Tributário, Anotado e Comentado, volume I , 6ª Edição, Área Editora, SA, Lisboa 2011, p. 589, que em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão "presume-se" ou por expressão semelhante, aí se mencionando diversos exemplos dessas presunções, referindo-se a constante no artigo 40º, nº 1 do CIRS, em que se usa a expressão " presume-se" e a constante no artigo 46º nº 2, do mesmo Código, em que se faz uso da expressão "considera-se", enquanto expressão com um efeito semelhante àquela e, consubstanciando, igualmente, uma presunção;

- Na formulação legal exarada no nº 1 do artigo 3º do CIUC, em que se consagrou uma presunção, revelada pela expressão " considerando-se", de significado semelhante e de valor equivalente à expressão "presumindo-se", em uso desde a criação do imposto em questão;

- O uso da expressão "considerando-se" mais não visou do que o estabelecimento de uma aproximação mais vincada e nítida entre o sujeito passivo do IUC e o efetivo proprietário do veículo, o que está em sintonia com o reforço conferido 'a propriedade do veículo, que passou a constituir o facto gerador do imposto, nos termos do artigo 6º do CIUC;

- A relevância e o interesse da presunção, em causa, que historicamente foi revelado por intermédio da expressão "presumindo-se" e que agora, se serve da expressão "considerando-se", reside na verdade e na justiça que, por essa via, se confere às relações fiscais e, que corporizam valores fiscais fundamentais, permitindo tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário. Se o caso, assim não fosse considerado, não se admitindo e relevando a apresentação de elementos probatórios destinados à demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo e, que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário, aqueles valores seriam objetivamente postergados.

5.2 Há a considerar, também, o princípio da equivalência, inscrito no artigo 1º do CIUC, que tem subjacente o princípio do poluidor-pagador e, concretiza a ideia nele inscrita de que quem polui deve, por isso, pagar (v. Fernanda Alves e Nuno Vitorino, "O Balanço da Reforma da Fiscalidade Automóvel" p. 42 e sgs; Sérgio Vasques, in " O princípio da equivalência como critério de igualdade Tributária", Almedina, 2008, p. 312 sgs, e, também, o do mesmo autor "Reforma da Tributação Automóvel: problemas e perspectivas", Fiscalidade, ns 10, 2002, p. 79 e sgs). O referido principio tem assento constitucional, na medida em que representa um corolário do disposto na alínea h) do nº 2 do artigo 66º da constituição, tendo, também, assento no direito comunitário, seja ao nível do direito originário, artigo 130º-R, do Tratado de Maastrich (Tratado da União Europeia, de 07-02-1992), onde o aludido principio passou a constar como suporte da Política Comunitária, no domínio ambiental e que visa responsabilizar quem contribui com os prejuízos que advêm para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários-utilizadores, como custos que só eles devem suportar.

5.3 Atentos os factos supra descritos, importa salientar que os já referidos elementos de interpretação, sejam os relacionados com a interpretação literal, apoiada nas palavras legalmente utilizadas, sejam as respeitantes aos elementos lógicos de interpretação, de natureza histórica ou de ordem racional, apontam, todos eles, no sentido de que a expressão "considerando-se" tem um sentido equivalente à expressão "presumindo-se", devendo, assim entender-se que o disposto no nº 1 do artigo 3º do CIUC consagra uma presunção legal que, face ao artigo 73º da LGT, onde se estabelece que "As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário", será necessariamente ilidível, o que significa que os sujeitos passivos são, em princípio, as pessoas em nome de quem tais veículos estejam registados. Serão, pois, essas pessoas, identificadas nessas condições a quem a AT se deve, necessariamente, dirigir;

- Mas será, em princípio, dado que no quadro de audição prévia, de carácter obrigatório, face ao disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 60º da LGT, a relação tributária poderá ser reconfigurada, validando-se o sujeito passivo inicialmente identificado ou redirecionando-se o procedimento no sentido daquele que for, afinal, o verdadeiro e efetivo, sujeito passivo do imposto em causa.

- O contribuinte tem o direito de ser ouvido, mediante audição prévia (José Manuel Santos Botelho, Américo Pires Esteves e José Cândido de Pinho, in Código do Procedimento Administrativo, Anotado e Comentado, 4ª edição, Almedina, 2000, anotação 8 do artigo 100º).

- A audição prévia que, naturalmente, se há-de concretizar em momento imediatamente anterior ao procedimento da liquidação, corresponde à sede e altura própria para, com certeza e segurança se identificar o sujeito passivo do IUC.

6 SOBRE O VALOR JURÍDICO DO REGISTO

6.1 Relativamente ao valor jurídico do registo, importa notar o que estabelece o nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro (diversas vezes alterado, sendo a última por via da Lei nº 39/2008, de 11 de Agosto), quando estatui que " o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico":

- O artigo 7º do Código do Registo Predial (CRP), aplicável, supletivamente, ao registo de automóveis, por força do artigo 29º do CRA, dispõe que

- " O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define";

- O registo definitivo não constitui mais do que uma presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova, como decorre da lei e a jurisprudência vem assinalando, podendo ver-se, entre outros os Acórdãos do STJ nº 03B4369 de 19-02-2004 e nº 07B4528, de 2008-01-29, disponíveis em: www.dgsi.pt:

- Portanto, a função legalmente reservada ao registo é por um lado a de publicitar a situação jurídica dos bens, no caso em apreço, dos veículos e, por outro lado, permite-nos presumir que existe o direito sobre esses veículos e que o mesmo pertence ao titular, como tal inscrito no registo, não tem uma natureza constitutiva do direito de propriedade, mas apenas declarativa, daí que o registo não constitua condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador;

- Os adquirentes dos veículos tornam-se proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, com registo ou sem ele;

- Neste contexto cabe lembrar que, face ao disposto no nº 1 do artigo 408º do CC, a transferência de direitos reais sobre as coisas, no caso sub judice, veículos automóveis, é determinado por mero efeito do contrato, sendo que nos termos do disposto na alínea a) do artigo 879º do CC, entre os efeitos essenciais do contrato de compra e venda, avulta a transmissão da coisa;

- Face ao exposto, torna-se claro que o pensamento legislativo aponta no sentido de que o disposto no nº 1 do artigo 3º do CIUC, consagra uma presunção "juris tantum, consequentemente ilidível, permitindo, assim, que a pessoa, que, no registo, está inscrita como proprietária do veículo, possa apresentar elementos de prova destinados a demonstrar que tal propriedade está inserida na esfera jurídica de outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida;

- O que no referente aos factos controvertidos, existem, junto aos autos documentos, que foram provados pela Requerente, tanto em sede de audição prévia, como no pedido de pronúncia arbitral, configurando, por isso a certeza de que pertence aos respetivos proprietários/utilizadores, dos veículos, a responsabilidade subjetiva dos lUCs, nos termos do nº 1 e 2 do artigo 3º do CIUC.

7 A PRESUNÇÃO DO ARTIGO 3º DO CIUC E A DATA EM QUE O IUC É EXIGÍVEL

7.1 DATA EM QUE O IUC É EXIGÍVEL

- O IUC é um imposto de tributação periódica, cuja periodicidade corresponde ao ano que se inicia no ato da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, conforme o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 4º do CIUC;

- É exigível nos termos do nº 3 do artigo 6º do referido Código;

- Sendo de referir que, quanto à liquidação do IUC tributado à Requerente sobre os veículos supra referenciados, nos anos de 2010, 2011 e 2013, há que considerar, que ao momento dos factos tributários, as viaturas em causa estavam na esfera jurídica dos proprietários/utilizadores dos referidos automóveis, porque estes detêm o uso e o gozo dos referidos veículos, pelo que nos termos do nº 1 e 2 do art. 3º do CIUC, têm que ser responsabilizados, pelo pagamento da obrigação do referido imposto, cfr. docºs nºs 77 a 156, constantes das colunas D e M, in Anexo A, junto aos autos.

7.1.1 Em relevância sobre o ónus da prova, estipula o artigo 342º nº 1 do CC "àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado";

7.1.2 Também o artigo 346º do CC (contra prova) determina, que "à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contra prova a respeito dos mesmos factos, destinados a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova." (Como afirma Anselmo de Castro, A., 1982, ED. Almedina Coimbra, "Direito Processual Civil Declaratório", III, p. 163, "recaindo sobre uma das partes ónus probatório, à parte contrária basta opor contra prova, sendo esta uma prova destinada a tornar duvidosa os factos alegados pela primeira".

Assim, no caso dos autos, o que a Requerente tem que provar, a fim de ilidir a presunção que decorre quer do artigo 39 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela Requerente não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas, Propõe provar, segundo resulta dos autos, é que a propriedade dos veículos, não lhe pertenciam nos períodos a que as liquidações dizem respeito. Apresentando, assim, as faturas de venda e os contratos de locação dos veículos constantes dos documentos, 77 a 152, identificados nas, colunas D e M, constante do Anexo A, junta aos autos, que se dão por integralmente reproduzidas, para todos os efeitos legais.

7.2 ILISÃO DA PRESUNÇÃO

- A Requerente, como se refere em 3.1., relativamente aos factos provados, alegou, com o propósito de afastar a presunção, não ser sujeito passivo do imposto, aquando da ocorrência dos factos tributários, oferecendo para o efeito os seguintes documentos;

- Faturas de venda aos respectivos locatários e a terceiros e, contratos de locação (cfr, documentos junto aos autos com os nºs, 77 a 152, identificados nas D e M, constante do ANEXO A, junto aos autos);

- Ora, esses documentos, gozam, da presunção da veracidade prevista no nº 1 do artigo 75º da LGT. Decorrendo daqui, que à data em que o IUC era exigível quem detinha a propriedade dos veículos automóvel eram os legítimos proprietários e utilizadores e não a Requerente, devido à tipologia do contrato de locação financeira (leasing) e respectivas vendas.

8 OUTRAS QUESTÕES RELATIVAS À LEGALIDADE DOS ATOS DE LIQUIDAÇÃO

- Relativamente à existência de outras questões atinentes à legalidade dos atos de liquidação, tendo em conta que está ínsito no estabelecimento de uma ordem de conhecimentos dos vícios, tal como o previsto no artigo 124º do CPPT, que procedendo o pedido de pronúncia arbitrai baseado em vícios que impedem a renovação das liquidações impugnadas, fica prejudicado, porque inútil, o conhecimento de outros vícios, pelo que não se afigura necessário conhecer das demais questões suscitadas. 

9. REEMBOLSO DO MONTANTE TOTAL PAGO

(…)».

10. DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS

(…)

Face ao exposto, este Tribunal Arbitral decide:

- Julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação do IUC, respeitante aos anos de: 2010, 2011 e 2012, relativamente aos veículos automóveis identificados no presente processo, anulando-se, consequentemente, os correspondentes atos tributários;

- Julgar procedente o pedido de condenação da Administração Tributária no reembolso da quantia indevidamente paga, no montante de €9.317,28 ( nove mil, trezentos e dezassete euros e vinte e oito cêntimos), condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira a efetuar estes pagamentos;

- Deve, também, a AT efetuar o pagamento correspondente ao montante devido aos juros indemnizatórios, sobre o imposto pago referente às liquidações anuladas, nos termos do nº 1 do artigo 43º da LGT, ex vi, do nº 2 do artigo 61º, do CPPT (Redação da Lei nº 55-A/2010, de 31-12, entrada em vigor, em 2011-01-01.»

IV – Fundamentação de direito
Deixámos já identificado no ponto II supra, que o fundamento da presente Impugnação Judicial se reconduz à alegada omissão de pronúncia, ou seja, ao fundamento previsto no artigo 28.º, n.º 1 al. c) do RJAT, que, como é sabido, se reconduz ao vício da sentença previsto no artigo 615.º al. d) do Código de Processo Civil: é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

Considerando que a jurisprudência há longas décadas se vem pacificamente pronunciando sobre o vício fundamento desta Impugnação, limitar-nos-emos a referir, como enquadramento jurídico, o seguinte: recaindo sobre o juiz o dever de resolver todas as questões que as partes hajam submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja ou fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. art. 608.º, n.º 2 do CPC), impõe-se-lhe que aprecie toda a matéria de facto que as partes aleguem e analise todos os pedidos que , em consequência dessa alegação, lhe formulem, excepto se tais alegações ou pedidos forem entendidos como irrelevantes ou a sua apreciação e/ou decisão se tenha tornado inútil por força do enquadramento jurídico escolhido ou na sequência de resposta dada previamente a outras questões.

Em suma, o dever de pronúncia impõe que o juiz aprecie «todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que exigem decisão do julgador, bem como, ainda, os pressupostos processuais [gerais e específicos] debatidos nos autos, sendo que não podem confundir-se aquilo que são as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com o que são as questões de facto ou de direito, os argumentos, ou os pressupostos em que cada parte funda a sua posição nas questões objecto de litígio.». (1)

Do que vimos expondo conclui-se, assim, que não padecerá do vício de nulidade por omissão de pronúncia a sentença em que o juiz apreciando na decisão todos os problemas ou questões fundamentais objecto de litígio, não se pronunciou, todavia, sobre a bondade de todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, por aquela nulidade pressupor, necessariamente, uma omissão absoluta da questão (ões) fundamental (ais) colocada (as). Ou seja, só há omissão de pronúncia e, consequentemente, nulidade da sentença, se no processo tiver sido suscitada por qualquer uma das partes uma questão e esta não seja apreciada pelo Tribunal nem, por este, seja expressamente declarada prejudicada.

Posto isto, e revertendo ao caso concreto, temos que, na sentença recorrida, o Tribunal Arbitral começou por enunciar as três questões que de forma nuclear o processo suscitava e que agora recuperamos:

(…)

2 QUESTÕES DECIDENDAS

2.1 Face ao exposto nos números anteriores, relativamente à exposição das partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são as seguintes:

- A alegação feita pela Requerente relativa à ilegalidade material dos atos de liquidação e à ilegalidade dos atos de juros acessórios, face aos anos de 2010, 2011 e 2012, referente ao IUC sobre os veículos supra referenciados na PI;

- A errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjetiva do imposto único de circulação liquidado e cobrado, o que constitui, a questão central a decidir no presente processo.

- O valor jurídico do registo dos veículos automóveis (negrito de nossa autoria)

Desta enunciação, bem como do confronto e apreciação crítica dos dois articulados principais do processo arbitral, resulta, desde logo, uma primeira conclusão: não corresponde à realidade que na delimitação do objecto de pronúncia que lhe estava imposto o Tribunal Arbitral se tenha cingido exclusivamente às alegações do então Requerente e/ou às questões e argumentos aduzidos por esta última (aliás, do ponto «1.RELATÓRIO”, em que o Tribunal Arbitral efectuou uma exposição dos pontos de facto e de direito apresentados nos articulados, já resultava igualmente indiciado que o Tribunal Arbitral tinha presente a posição da ora Impugnante).

Acresce que, quer da mesma enunciação quer da apreciação realizada na parte do julgamento de direito também resulta inquestionável que o Tribunal Arbitral apreciou a primeira “questão” que a Impugnante alega não ter sido apreciada e que se prende com o alegado terminus dos contratos de locação financeira à data do facto gerador do IUC.

Efectivamente, como se vê do teor dos articulados de ambas as partes e da sentença arbitral, a questão central, e que ab initio se colocava, era a de saber se o artigo 3.º do CIUC consagrava ou não uma presunção ilidível.

Para o ora Impugnado a resposta a esta questão devia ser afirmativa, tendo junto ao processo arbitral, tendo em vista a mencionada ilisão, um conjunto de documentos.

Para a Impugnante a resposta do Tribunal arbitral à mesma questão só podia ser negativa, tendo, em ordem a sustentar a sua tese, adiantado desde logo uma posição jurídico-interpretativa de princípio: a interpretação do artigo 3.º do CIUC defendida pelo Impugnado no seu requerimento de pronúncia arbitral no sentido de que aí está consagrada uma presunção ilidível carece de fundamento legal por não respeitar a incidência subjectiva do imposto legalmente imposta e desprezar, designadamente, os elementos sistemático e teleológico que devem presidir à interpretação das normas jurídicas. Esta posição de princípio é sustentada ao longo de toda a resposta apresentada no processo arbitral, em especial nos pontos “II. 1. B Da incidência subjectiva do IUC”, “ II. 1.C Da interpretação que não atende ao elemento sistemático violando a unidade do regime” e no ponto “II.1.D Da interpretação que ignora o elemento teleológico de interpretação da lei”.

Porém, como se concluiu da leitura atenta do mesmo articulado, a Impugnante não se quedou por aquela posição de princípio, avançando, ainda no que respeita a esta mesma questão, para a hipótese “remota” de o Tribunal acolher a mesma interpretação do artigo 3.º do CIUC defendida pelo ora Impugnado, que, de todo o modo, o pedido devia ser julgado improcedente uma vez que o Impugnado não lograra ilidir a “alegada presunção” uma vez que aos documentos juntos aos autos não devia ser reconhecida força probatória bastante para esse efeito.

É, claramente, o que resulta do ponto II da resposta apresentada, onde, sob o título de “II.2 Quanto aos documentos juntos com vista à ilisão da presunção”, e em especial dos artigos 73.º a 79.º se colhe o seguinte: “Todavia, ainda que assim se não entenda (…) e aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência que vem sendo firmada neste centro de arbitragem, importa mesmo assim apreciar os documentos juntos pela Requerente e o seu valor probatório com vista a tal ilisão” (74.º), “ Apreciação esta que consubstancia a análise de uma questão, questão essa de facto” (75.º) “ Tendo em vista tal ilisão veio a Requerente instruir o seu pedido de pronúncia arbitral com a junção cópias de contratos de locação financeira (Cfr. amálgamas documentais denominadas de “Documentos 77 a 108”, “Documentos 109 a 140” e “Documentos 141 a 152” juntos à p.i.” (artigo 76.º) “Dito de outra forma: demonstrarão tais contratos que, à data do facto gerador do IUC, os veículos em causa eram (ainda) objecto de locações financeiras celebradas pela Requerente?” (artigo 78.º), “ A resposta não pode deixar de ser negativa pelas razões que passar-se-ão a elencar, pelo que desde já se impugnam para todos os efeitos legais os documentos 77 a 152 juntos à p.i. (artigo 79.º).

Todavia, contrariamente ao que a Impugnante afirma, do que ficou transcrito não se pode concluir que foi suscitada uma questão não apreciada pelo Tribunal Arbitral. Efectivamente, traduzindo aquela alegação uma ostensiva impugnação dos meios de prova apresentados pelo Impugnado para fazer valer a sua pretensão anulatória, impunha-se, naturalmente, que o Tribunal Arbitral resolvesse a questão daí resultante, isto é, que apreciasse e decidisse se os documentos em questão, independentemente da impugnação de que tinham sido alvo, permitiam dar como provados os factos necessários a que o Tribunal concluísse pela ilisão da presunção consagrada no artigo 3.º do CIUC.

Ora, como a leitura da sentença arbitral nos permite concluir, o Tribunal Arbitral apreciou e decidiu essa questão, sobre a qual, de resto, se pronunciou expressamente no “julgamento de facto” e já em sede de julgamento de direito.

No primeiro ao dar como provado3.1Em matéria de facto, relevante para a decisão a proferir, dá o presente Tribunal por assente, face aos elementos existentes nos autos, os seguintes factos:

- A Requerente apresentou elementos probatórios constantes dos documentos nºs; 1 a 76, 77 a 152, constantes das tabelas D e M, do Anexo A, junto aos autos, que se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais; (…)

3.1.1 FUNDAMENTAÇÃO DOS ATOS PROVADOS

- Os factos dados como provados estão baseados nos documentos anexos ao pedido de pronúncia arbitrai da supra referida PI e, na Resposta da Requerida, todos, anexos aos autos que se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.(…)».

No segundo, ao adiantar que:

7.2 ILISÃO DA PRESUNÇÃO

- A Requerente, como se refere em 3.1., relativamente aos factos provados, alegou, com o propósito de afastar a presunção, não ser sujeito passivo do imposto, aquando da ocorrência dos factos tributários, oferecendo para o efeito os seguintes documentos;

- Faturas de venda aos respectivos locatários e a terceiros e, contratos de locação (cfr, documentos junto aos autos com os nºs, 77 a 152, identificados nas D e M, constante do ANEXO A, junto aos autos);

- Ora, esses documentos, gozam, da presunção da veracidade prevista no nº 1 do artigo 75º da LGT. Decorrendo daqui, que à data em que o IUC era exigível quem detinha a propriedade dos veículos automóvel eram os legítimos proprietários e utilizadores e não a Requerente, devido à tipologia do contrato de locação financeira (leasing) e respectivas vendas.».

Pode a Impugnante entender que as extensas e profundas alegações por si tecidas a propósito do valor probatório dos documentos deviam ter merecido uma análise mais profunda do Tribunal Arbitral ou, até, que a forma como estão enunciados “os factos” ou tratada a questão do valor probatório dos documentos e as ilações daí extraídas para efeitos de ilisão da presunção revelam diminuto rigor técnico-jurídico ou não são acertadas. O que não pode é pretender que este Tribunal, com base nessas considerações, reconheça a existência de uma omissão de pronúncia que legitime a verificação de nulidade da sentença arbitral com esse fundamento.

Em síntese, independentemente do rigor técnico ou da qualidade ou valia jurídica da decisão adoptada, no limite, o que existirá, será um “mero” erro de julgamento, insusceptível, como a Impugnante bem sabe, de ser apreciado ou censurado por este Tribunal Central Administrativo Sul.

Aliás, se bem vemos, terá sido também esta a conclusão alcançada, ou, no mínimo, equacionada, pela Impugnante, uma vez que na petição inicial, em especial nos artigos 24.º a 32.º, não deixa, por antecipação, de equacionar esse erro de julgamento (na análise da prova), ainda que para defender que ele não se verifica e que se trata de efectiva omissão de pronúncia, com o que, pelas razões já adiantadas, discordamos.

Com este fundamento não é, pois, de julgar procedente a presente Impugnação

Diametralmente oposta é, no entanto, a nossa decisão quanto à segunda omissão de pronúncia apontada ao julgado arbitral e conexionada com as alegações por si formuladas relativas à inconstitucionalidade do artigo 3.º do CIUC na interpretação preconizada pela Impugnada.

Senão, vejamos.

Em resposta ao pedido de anulação das liquidações – após ter defendido a conformidade legal daquelas face ao preceituado no artigo 3.º do CIUC e o afastamento da interpretação legal veiculada pela ora Impugnada - a Impugnante aduziu, ainda, na sua resposta, sob o título “ III DA INTERPRETAÇÃO DESCONFORME À CONSTITUIÇÃO“, que «“(…) a ser aceite a interpretação veiculada pelo Requerente então a mesma mostra-se contrária à Constituição, na medida em que tal interpretação traduz-se na violação do princípio da confiança, do princípio da segurança jurídica, do princípio da eficiência, do princípio da eficiência do sistema tributário e do princípio da proporcionalidade” (artigo 104.º), “Ou seja, caso este tribunal venha a concluir pela existência de uma presunção ilidível no artigo 3.º do CIUC, desde já se suscita, para todos os efeitos legais, a questão - porque de questão se trata e não de um mero argumento – de aferir se tal interpretação se coaduna, ela própria, com os referidos quatro princípios constitucionais» (artigo 105.º), violações estas que, posteriormente, concretiza, de facto e de direito, nos artigos 106.º a 112.º do mesmo articulado.

Perante o que ficou exposto, é inquestionável que a ora Impugnante suscitou perante o Tribunal Arbitral a questão da inconstitucionalidade do artigo 3.º, do CIUC se interpretado num determinado sentido, isto é, no caso, no sentido preconizado pela ora Impugnada, e que o fez aduzindo os princípios constitucionais que, em seu entender, com a aplicação daquela norma nessa dimensão interpretativa resultariam violados, explicitando claramente as razões de facto e direito do entendimento que defendia e de cuja decisão, indubitavelmente, pretendia que fossem extraídos efeitos para a decisão dos autos.

Estamos, pois, perante uma verdadeira questão - e não perante um mero argumento ou razão aduzido em ordem a sustentar a pretensão inerente à questão - a qual, porque expressamente colocada, fez recair sobre o Tribunal Arbitral o dever de a apreciar, nos termos do preceituado no artigo 608.º, do Código de Processo Civil (aplicável ex vi artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária).

Como se constata da leitura da sentença arbitral, a referida questão - inconstitucionalidade da norma supra identificada quando interpretada no sentido e com o alcance defendido pela Impugnada pelas razões de facto e direito adiantadas - não foi objecto de qualquer apreciação nem no ponto “1. RELATÓRIO”, nem no ponto “2. QUESTÕES DECIDENDAS”, nem, o que importa sobremaneira relevar, no ponto “3. FUNDAMENTOS DE DIREITO”. Ou seja, a questão da inconstitucionalidade suscitada não foi equacionada como relevante e não foi objecto de apreciação de mérito.

E também não foi expressamente declarada prejudicada pelo Tribunal Arbitral, designadamente por a decisão proferia não se encontrar suportada na norma cuja inconstitucionalidade vinha suscitada ou não ter sido aplicada com o sentido invocado como desconforme os princípios constitucionais invocados.

Este é, aliás, um aspecto que assume no presente caso extrema relevância por duas ordens de razões.

A primeira prende-se com a distinção entre nulidade de sentença e erro de julgamento, sendo que, como temos vindo a defender Se o Tribunal equacionou a questão suscitada pela Impugnante, a enunciou como questão a decidir e, posteriormente, decide expressamente não proceder à sua apreciação, por a julgar prejudicada por força de decisão anteriormente tomada em relação a outra questão, não há nulidade por omissão de pronúncia mas, eventualmente, erro de julgamento, independentemente da questão que se julgou prejudicada ser ou não de conhecimento oficioso.”(2)

Ou seja, se o Tribunal Arbitral tivesse julgado expressamente prejudicada a questão de inconstitucionalidade suscitada não estaríamos perante uma questão de nulidade de sentença por omissão de pronúncia mas de (eventual) erro de julgamento, insusceptível de ser sindicado por este Tribunal Central Administrativo Sul atentos os poderes e competências que lhe estão atribuídos pelo RJAT nos termos que deixámos definidos no ponto II deste acórdão.

No caso concreto, importa dizê-lo de forma clara – e esta é já a segunda razão da relevância da distinção que vimos salientando - o Tribunal Arbitral expressou na sentença um juízo de prejudicialidade, fazendo constar da sentença, no seu ponto “8 OUTRAS QUESTÕES RELATIVAS À LEGALIDADE DOS ATOS DE LIQUIDAÇÃO”, que “Relativamente à existência de outras questões atinentes à legalidade dos atos de liquidação, tendo em conta que está ínsito no estabelecimento de uma ordem de conhecimentos dos vícios, tal como o previsto no artigo 124º do CPPT, que procedendo o pedido de pronúncia arbitrai baseado em vícios que impedem a renovação das liquidações impugnadas, fica prejudicado, porque inútil, o conhecimento de outros vícios, pelo que não se afigura necessário conhecer das demais questões suscitadas.

É, porém, para nós evidente, da leitura crítica que realizamos da sentença nesta parte, que este julgamento de prejudicialidade se esgotou nas “questões de ilegalidade do acto tributário” em sentido estrito, isto é, na questão da desconformidade do acto tributário com a lei que directamente o conforma, nos vícios próprios do acto na sua relação com a lei infraconstitucional, como decorre da utilização por parte do julgador arbitral do termo legalidade (“questões atinentes à legalidade”), da utilização do termo “vícios” e, por fim, pela referência expressa ao artigo 124.º do CPPT .

Em suma, a leitura crítica do juízo de prejudicialidade exteriorizado na sentença arbitral impõe que se conclua que esse juízo não inclui, de todo, a questão de inconstitucionalidade, o que não surpreende se atentarmos, como já mencionado, que nem em sede de relatório nem na enunciação das questões (pontos 1 e 2 da sentença arbitral) foi efectuada qualquer referência pelo Tribunal Arbitral à questão da inconstitucionalidade suscitada.

Note-se que a atenção a que votamos esta parte da fundamentação da impugnação teve subjacente, como não podia deixar de ser, a elevada importância que esta matéria das questões relativas a eventuais inconstitucionalidades assume, uma vez que, como é sabido, da invocação de eventuais inconstitucionalidades e da decisão que sobre estas recaia está dependente a utilização de um dos limitados mecanismos de sindicância da decisão arbitral, isto é, o recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 25.º, n.º 1, in fine, do RJAT).

Donde, tendo sido suscitada pela Impugnante no processo arbitral a questão de inconstitucionalidade de uma norma se interpretada no sentido preconizado pela Impugnada (artigo 3.º do CIUC), tendo o Tribunal Arbitral fundado a sua decisão na aplicação dessa concreta norma com aquela interpretação, não tendo essa questão sido objecto de apreciação de mérito nem tendo sobre ela sido proferida decisão julgando-a prejudicada, há que concluir que o Juiz violou o dever de pronúncia e, consequentemente, pela nulidade da sentença arbitral, nos termos do artigo 125.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável ex vi artigo 30.º do RJAT

E, em conformidade, que julgar, com este fundamento, procedente a Impugnação da decisão arbitral, ao que, no dispositivo, se proverá.

V- Decisão
Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, julgando procedente a presente impugnação judicial, em anular, por omissão de pronúncia, a sentença arbitral proferida no processo n.º 109/2017-T, determinando-se, em conformidade, e para apreciação da questão de inconstitucionalidade omitida, a remessa dos autos ao CAAD.

Sem custas.

Registe e notifique.

Lisboa, 30 de Setembro de 2019

(Anabela Russo)

(Vital Lopes)

(Cristina Flora)

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(1) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17-9-2015, processo 637/15, integralmente disponível em www.dgsi.pt

(2) Neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos deste Tribunal Central Administrativo Sul, proferidos a 18-12-2014, 22-10-2015 e 29-6-2017, respectivamente nos processos nos 8070/14, 8101/14 e 8595/15, todos integralmente disponíveis em www.dgsi.pt