Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05675/01
Secção:CT - 1º Juízo Liquidatário
Data do Acordão:07/05/2005
Relator:Francisco Rothes
Descritores:DUPLA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL
CONVENÇÃO PARA EVITAR A DUPLA TRIBUTAÇÃO
FALTA DE CERTIFICADO DE RESIDÊNCIA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO EM FASE DE RECURSO
Sumário:I - É lícita a apresentação de documentos com as alegações de recurso (cfr. arts. 743.º, n.º 3, e 706.º, n.ºs 1 e 2, do CPC) se a junção dos mesmos apenas se tornou necessária em virtude do julgamento no tribunal a quo (art. 706.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC).
II - Demonstrado que está que não havia lugar a tributação pelo Estado Português em IRS dos rendimentos pagos em 1994 por uma sociedade portuguesa a um cidadão espanhol a título de "comissões de vendas", por este não ter residência nem estabelecimento estável ou instalação fixa em Portugal ao qual pudessem ser imputáveis os rendimentos em causa (atento o disposto nos arts. 7.º e 14.º da Convenção Para Evitar a Dupla Tributação celebrado entre Portugal e a Espanha, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 49.223, de 4 de Setembro de 1969, em vigor à data), não pode a AT liquidar àquela sociedade o IRS que considerou que esta deixou de reter na fonte, por força do disposto nos arts. 91.º e 94.º do CIRS (na versão em vigor à data).
III - Quando muito, se para que a sociedade deixasse de proceder à retenção do IRS na fonte era necessária a verificação de um requisito formal que não se encontrava verificado à data, qual seja um certificado de residência emitido pelo país do beneficiários dos rendimentos, poderá a AT sancioná-la em sede contra-ordenacional; o que nunca poderá é tal falta dar origem à liquidação do imposto que comprovadamente se não mostra devido.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade denominada “F... - FÁBRICA DE PAPEL DO TOJAL, LDA.” (adiante Contribuinte, Impugnante ou Recorrente) pediu ao Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Lisboa, mediante processo de impugnação judicial, a anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e respectivos juros compensatórios, dos montantes de esc. 955.145$00 e 423.179$00, respectivamente, que lhe foi efectuada com referência ao ano de 1994 por a Administração tributária (AT), nos termos do auto de notícia que lhe levantou, ter considerado que, ao longo daquele ano «o sujeito passivo pagou e ou pôs à disposição do Senhor LUIS VERDU AZNAR, contribuinte de nacionalidade Espanhola, com o CIF 21552444H, e não residente em Portugal, o montante de Esc: 6 367 623$00, correspondente a 5 170 413 pesetas, referente a Comissões de Vendas, conforme se encontra apurado no Mapa 1, com base nos documentos cujas fotocópias se juntam nos Anexos A a L.
De harmonia com o disposto nos artigos 91º e 94º, do CIRS, o sujeito passivo encontra-se obrigado a reter na fonte e a entregar nos Cofres do Estado o imposto devido, correspondente à taxa de 15%, prevista na alínea b) do número 4 do artigo 74º, também do CIRS»(1).
Como fundamentos daquele pedido, a Impugnante alegou, em síntese, o seguinte:
as comissões pagas ao referido cidadão espanhol são de considerar como rendimentos comerciais, categoria C, conforme disposto na alínea l) do art. 4.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS)(2) ou, se assim não se entender, como rendimentos do trabalho independente;
assim, atento o disposto no art. 7.º, n.º 1, da Convenção entre Portugal e a Espanha para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (adiante designada, abreviadamente, por CDT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 49.223, de 4 de Setembro , porque aquele cidadão espanhol não tinha em Portugal qualquer estabelecimento estável ao qual pudessem ser imputados os rendimentos, não havia lugar à tributação dos rendimentos em causa em Portugal e, consequentemente, não recaía sobre a Impugnante qualquer obrigação de retenção de imposto;
igual solução se impõe caso se considerem os rendimentos em causa como resultantes de actividade de carácter independente (comissionista), nesse caso face ao disposto no art. 14.º da referida Convenção, pois o cidadão espanhol é residente em Espanha, como se refere no auto de notícia, e não dispõe no nosso País de qualquer instalação fixa para o exercício das suas actividades.

1.2 O Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Lisboa julgou a impugnação totalmente improcedente.
Para tanto, começou por definir a questão como sendo a de «saber se é necessária a apresentação do Certificado de residência fiscal do residente em Espanha para efeitos de aplicação da Convenção celebrada entre Portugal e Espanha».
Depois, e em síntese, considerou que
«o cidadão espanhol acima referido, não residente em Portugal, tendo obtido rendimentos em Portugal, estava sujeito a IRS e, sendo assim, de harmonia com o disposto nos artigos 91º e 94º do CIRS, a impugnante encontrava-se obrigada a reter na fonte e a entregar nos cofres do Estado o imposto devido correspondente à aplicação da taxa de 15% prevista na al. b), do n.º 4, do artigo 74º, também do CIRS»;
no entanto, face ao disposto na CDT, porque o mesmo cidadão espanhol tinha domicílio fiscal em Espanha, não tendo residência nem estabelecimento estável em Portugal, «os seus rendimentos só poderiam, em princípio, ser tributados em Espanha»;
assim, para conciliar estes regimes legais, e porque «não se pode obrigar qualquer administração Fiscal, seja de que país for, incluindo Portugal ou Espanha, a adivinhar que determinados rendimentos [...] estão abrangidos por uma das Convenções sobre dupla tributação celebradas por Portugal com outros países», «parece óbvio que se a empresa pretender não efectuar a retenção na fonte, a título definitivo, terá que [...] ter em seu poder “algo” que a desvincule da retenção na fonte» e «como também parece lógico, face ao teor da própria CDT, que exige que o credor dos rendimentos seja residente no outro Estado Contratante, esse “algo” não pode deixar de ser um documento oficial do Estado da residência do credor dos rendimentos onde se certifique a residência do mesmo credor»;
no caso de Portugal e Espanha esse documento é o «Certificado de Residência do credor dos rendimentos, emitido pelo País de residência para o que existe, inclusivamente, modelo oficial próprio que tanto pode ser obtido junto da Administração Tributária Portuguesa, como junto da Administração Tributária Espanhola, cujo modelo, no caso concreto, é o n.º 4 -RFI»;
«a obrigação de apresentar o “Certificado de Residência” não tem que estar expressamente prevista na Convenção, nomeadamente nos art. 4º ou 5º, na medida em que, quem invoca um facto do qual decorre um direito, tem que provar esse facto»;
«porque a impugnante não obteve, atempadamente, junto do credor dos rendimentos o referido Certificado de Residência, [...] a impugnação não pode deixar de improceder».

1.3 A Impugnante interpôs recurso da sentença para este Tribunal Central Administrativo, o qual foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

1.4 O Recorrente apresentou as alegações de recurso, que sintetizou nas seguintes conclusões:

«1 – No ano de 1994, a sociedade recorrente pagou comissões de vendas ao cidadão espanhol, Senhor Luís Verdu Aznar, no montante global de 6.367.623$00 (seis milhões trezentos e sessenta e sete mil seiscentos e vinte e três escudos), relativamente às quais a Administração Fiscal considerou haver lugar a retenção na fonte à taxa de 15%, por imposição dos artigos 74º, n.º 4, alínea b), 91º e 94º, todos do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção ao tempo em vigor.

2 – Trata-se de rendimentos comerciais incluídos na categoria C do IRS.

3 – A Convenção Para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e Espanha é aplicável ao caso concreto, e dispõe no seu artigo 7º, na redacção em vigor à data, que tais rendimentos são apenas tributados em Espanha, a não ser que o seu beneficiário disponha de um estabelecimento estável em Portugal, para exercício da sua actividade, o que não sucede no caso concreto, uma vez que o cidadão espanhol em causa não tem qualquer estabelecimento estável em Portugal, tal como ficou provado na sentença sob recurso.

4 – O Meritíssimo Juiz da 1a Instância considerou tais rendimentos incluídos na categoria B do IRS, tese com a qual a recorrente discorda frontalmente.

5 – Contudo, ainda assim, de acordo com o artigo 14º da mesma Convenção, tais rendimentos também não seriam tributados em Portugal, mas somente em Espanha, uma vez que o cidadão beneficiário dos mesmos não dispõe, de forma habitual, de uma instalação fixa em Portugal, para o exercício das suas actividades, tal como foi também dado como provado na sentença da 1ª instância.

6 – A questão essencial prende-se com o facto de saber se para efeitos de aplicação da referida Convenção, e portanto para que os rendimentos em causa não fossem sujeitos a tributação em Portugal, seria ou não necessária a apresentação de um certificado emitido pelas autoridades fiscais espanholas, que atestasse que o beneficiário dos rendimentos tinha no ano em causa a qualidade de sujeito passivo residente em Espanha.

7 – A recorrente considera que, ao tempo, tal prova não era obrigatória, uma vez que não existia qualquer dispositivo legal ou sequer instrução administrativa que impusesse tal obrigação, sendo que também não havia modelo próprio aprovado para esse efeito.

8 – Todavia, ainda assim, a recorrente juntou às presentes alegações um documento emitido recentemente pelas autoridades fiscais espanholas, que atesta que o cidadão beneficiário dos rendimentos em causa era um sujeito passivo residente em Espanha no ano em causa (1994).

9 – A junção do documento em causa às presentes alegações é legalmente consentida pelo n.º 1 do artigo 706º do Código de Processo Civil, que prevê a hipótese da respectiva junção se tornar necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância - são as chamadas decisões-surpresa.

10 – E foi precisamente o que sucedeu no caso concreto, uma vez que a fundamentação do acto de liquidação impugnado pela ora recorrente não fazia qualquer referência à falta de apresentação do referido certificado de residência, ou sequer à Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e Espanha, limitando-se a apelar aos dispositivos legais do ordenamento jurídico interno português que, no entender da técnica de fiscalização tributária, impunham a obrigação de efectuar a retenção na fonte em Portugal.

11 – Por outro lado, e repita-se, uma vez que não existia ao tempo qualquer preceito de direito interno ou mesmo internacional que impusesse tal obrigação, nem tão pouco alguma instrução administrativa nesse sentido, não havendo sequer modelo próprio oficialmente aprovado para o efeito, a recorrente não fez tal prova no âmbito do processo de impugnação judicial apresentado, sendo legítimo e razoável que tal prova não fosse considerada necessária, antes de proferida a sentença sob recurso.

12 – Assim, ficou provado que bem andou a recorrente ao não ter efectuado retenção na fonte sobre tais rendimentos em Portugal, uma vez que os mesmos devem apenas ser tributados em Espanha, de acordo com a Convenção Para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre estes dois países.

13 – A não ser devido imposto, também não serão devidos juros compensatórios, não só por essa razão, mas sobretudo por ausência total de culpa da recorrente e por inexistência de qualquer prejuízo efectivo para a Fazenda Pública.

Nestes termos, deverão V. Exas. conceder provimento ao presente recurso, devendo a sentença do Tribunal Tributário de 1a Instância ser revogada, por ilegalidade, seguindo-se os ulteriores termos do processo até final.

Só desta forma, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!».

1.5 Com as alegações de recurso o Recorrente juntou o documento a que alude em 8 das conclusões acima transcritas e, mediante solicitação deste Tribunal, a tradução do mesmo.

1.6 A Fazenda Pública não contra alegou.

1.7 Dada vista ao Representante do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, a Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso. Isso, com a seguinte fundamentação:

«As comissões auferidas por não residentes, por intermediação, na celebração de contratos, estão sujeitas a retenção a titulo definitivo com tributação de 15% de acordo com o nº 4 b) do artigo 74 do CIRS.
No caso vertente de Luís Verdu Aznar, cidadão espanhol, não residente em Portugal, existia o requisito de fundo (Beneficiário residente de um estado contratante diferente do da proveniência dos rendimentos) mas não se verifica o requisito formal (solicitação da aplicação da Convenção de Dupla Tributação através de certificado de residência fiscal emitido e autenticado pelas respectivas autoridades tributárias).
Luís Verdu Aznar tinha residência em Espanha.
Existe convenção entre Portugal e Espanha para evitar dupla tributação a qual foi aprovada pelo DL 49223 de 04.09.1969.
Terão de ser tidos em conta os artigos 2º, 4º, e 16º da referida CDT.
A obrigação de apresentar o "certificado de residência" não tem sequer que estar expressamente previsto na Convenção dado que quem alega um facto do qual decorre um direito, tem de provar esse facto.
No caso dos autos a ora recorrente não obteve junto do credor dos referidos rendimentos o aludido certificado de residência.
A retenção na fonte seria legítima».

1.8 Colhidos os vistos dos Juízes adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

1.9 A questão de que cumpre conhecer neste recurso jurisdicional é a de saber se a decisão recorrida fez errado julgamento quando entendeu que a liquidação impugnada não enferma de invalidade alguma porque a Recorrente, para se dispensar da retenção de IRS sobre as “comissões de vendas” pagas a um cidadão espanhol não residente em Portugal, carecia de se ter munido de um certificado emitido pelas autoridades tributárias espanholas, que atestasse que o beneficiário dos rendimentos tinha, no ano em causa, a qualidade de sujeito passivo residente em Espanha.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

2.1.1 Na sentença recorrida, o julgamento da matéria de facto foi efectuado nos seguintes termos:

«Compulsados os autos e vista a prova produzida nos mesmos, podem-se dar como provados os seguintes factos;

A) - No dia 10 de Janeiro de 1997 a AF levantou um Auto de Notícia contra a aqui impugnante entre outros motivos porque “Durante o exercício em análise, 1994, o sujeito passivo pagou e/ou colocou à disposição do Senhor LUÍS VERDU AZNAR, contribuinte de nacionalidade Espanhola, com o CIF 21552444H, e não residente em Portugal, o montante de Esc. 6.367.623$00, correspondente a 5 170 413 pesetas, referente a Comissões de Vendas, conforme se encontra apurado no Mapa 1, com base nos documentos cujas fotocópias se juntam nos Anexos A a L. ........................
De harmonia com o disposto nos artigos 91º e 94º do CIRS, o sujeito passivo encontra-se obrigado a reter na fonte e a entregar nos Corres do Estado o imposto devido correspondente à aplicação da taxa de 15% prevista na ai. b), do n.º 4, do artigo 74º, também do CIRS.
............
Contudo não o fez, nem nas datas previstas nas supra citadas disposições legais, nem até à presente data. ....................
O valor global do imposto apurado em falta, no já referido Mapa 1, ascende a Esc. 955.145$00, repartido pelos seguintes períodos de imposto...............
(.........................)”, conforme documento de fls. 8 a 12, que se dá por reproduzido;
B) - Em consequência, foi liquidado IRS no montante de 955.145$00, com data limite de pagamento em 06.08.1997, conforme documento de fls. 7, que se dá por reproduzido,
C) - A impugnante não pediu a Luís Verdu Aznar, credor dos rendimentos/comissões pagas, documento oficial de que o mesmo era residente em Espanha.
D) - A presente Impugnação foi deduzida no dia 4 de Setembro de 1997, conforme carimbo aposto na primeira folha da douta P.I. e o qual se dá por reproduzido».

2.1.2 Porque não vem posto em causa o julgamento da matéria de facto efectuado pela 1.ª instância, consideramos fixada a factualidade acima referida.
Com interesse para a decisão da causa, julgamos ainda provados outros dois factos, o primeiro(3), com base no acordo entre as partes, o segundo, com base no documento de fls. 72, com tradução a fls. 82, documento cuja apresentação foi efectuada pela Recorrente com as alegações de recurso (e sobre a admissibilidade dessa apresentação nos pronunciaremos adiante):

e) O referido Luís Verdu Aznar não tinha em 1994 estabelecimento ou quaisquer instalações em Portugal;
f) Conforme certificado pelas autoridades tributárias espanholas, emitido em 19 de Outubro de 2001, no ano de 1994 o referido Luís Verdu Aznar, «esteve de alta, durante o exercício de 1994, no imposto de actividades económicas, actividade número 511, relativa aos agentes comerciais», estando-lhe atribuído o NIF 21552444H.


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR

A AT, tendo verificado no âmbito de uma fiscalização à sociedade denominada “F... – Fábrica de Papel do Tojal, Lda.” que esta, no ano de 1994, pagou a um cidadão espanhol “comissões de vendas”, do montante de esc. 6.367.623$00, e que não procedeu à retenção do IRS, do montante de esc. 955.145$00, como lho impunham os arts. 74.º, n.º 4, alínea b), 91.º e 94.º do CIRS(4), procedeu à liquidação do imposto, por aquele montante, e respectivos juros compensatórios, do montante de esc. 423.179$00.

Aquela sociedade insurgiu-se contra a liquidação e pediu judicialmente que a mesma fosse anulada com o fundamento que o cidadão espanhol a quem pagou aquelas comissões nunca poderia ser tributado em IRS por aqueles rendimentos no nosso País, atento o disposto na Convenção entre Portugal e a Espanha para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (adiante designada, abreviadamente, por CDT), aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 49.223, de 4 de Setembro de 19 e ratificada conforme Aviso publicado no Diário da República em 23 de Março de 1970(5), motivo por que não tinha que proceder à retenção do imposto na fonte. Isto porque, qualquer que seja a qualificação que se faça daqueles rendimentos – quer se considere que constituem rendimentos comerciais quer se considere que constituem rendimentos de uma actividade de carácter independente, com a natureza de profissão liberal – nunca o Estado português poderia tributar aqueles rendimentos, atento o disposto nos arts. 7.º, n.º 1, e 14.º da CDT(6), pois aquele cidadão, residente em Espanha, como a AT reconheceu, não tem estabelecimento estável nem qualquer instalação fixa em Portugal para o exercício da sua actividade.

O Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Lisboa não acolheu a pretensão da Impugnante. Isto, em síntese, porque, apesar de dar como assente que o referido cidadão espanhol beneficiário dos rendimentos em causa não tinha residência em Portugal e também não dispunha de estabelecimento estável no nosso País, o que significa que esses rendimentos, nos termos da CDT, só poderiam ser tributados pelo Estado Espanhol, considerou que a Impugnante só poderia deixar de fazer a retenção do imposto na fonte se tivesse em seu poder «um documento oficial do Estado da residência do credor dos rendimentos onde se certifique a residência do mesmo credor», sendo que «no caso de Portugal e Espanha trata-se do Certificado de Residência do credor dos rendimentos, emitido pelo País de residência para o que existe, inclusivamente, modelo oficial próprio que tanto pode ser obtido junto da Administração Tributária Portuguesa, como junto da Administração Tributária Espanhola, cujo modelo, no caso concreto, é o n.º 4 - RFI»; mais considerou que «a obrigação de apresentar o “Certificado de Residência” não tem que estar expressamente prevista na Convenção [...], na medida em que quem invoca um facto do qual decorre um direito, tem de provar esse facto», sendo que, no caso, o facto a provar é a residência do credor dos rendimentos no outro Estado Contratante e «e, aqui, como em toda a parte, a “residência” prova-se por certificados de residência só que, no caso sub judice, até existe modelo oficial do respectivo impresso».

A Impugnante não se conformou com o decidido e recorreu da sentença para este Tribunal Central Administrativo. Sustenta que a CDT não impõe para a sua aplicação que o beneficiário dos rendimentos obtenha junto do Estado da sua residência a certificação desta e que não havia à data qualquer circular ou outra instrução administrativa que o impusesse ou sequer «qualquer modelo próprio aprovado para esse efeito».
No entanto, para a eventualidade de se entender, como na sentença recorrida, que a residência do beneficiário dos rendimentos se trata de um facto que lhe incumbe provar e através de certificado, e porque nunca antes da sentença recorrida lhe fora feita qualquer menção a essa exigência, vem agora, ao abrigo do disposto no art. 706.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), apresentar esse documento, emitido pelas autoridades tributárias espanholas.

Assim, antes do mais, cumpre averiguar da admissibilidade da junção aos autos do documento.

Depois, a questão que cumpre apreciar e decidir, como ficou já dito em 1.9, é a de saber se a decisão recorrida fez errado julgamento quando entendeu que a liquidação impugnada não enferma de invalidade alguma porque a Recorrente, para se dispensar da retenção de IRS sobre as “comissões de vendas” pagas a um cidadão espanhol não residente em Portugal, carecia de se ter munido de um certificado emitido pelas autoridades tributárias espanholas, que atestasse que o beneficiário dos rendimentos tinha, no ano em causa, a qualidade de sujeito passivo residente em Espanha.

2.2.2 DA ADMISSIBILIDADE DA JUNÇÃO AOS AUTOS DO DOCUMENTO APRESENTADO EM SEDE DE RECURSO

Antes do mais, cumpre apreciar se pode ou não aceitar-se, para ser junto aos autos, o documento de fls. 72 apresentado pela Recorrente com as alegações de recurso. Vejamos:
Nos termos do disposto no art. 523.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes; podem ainda ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, mas a parte apresentante será condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
O art. 524.º, n.º 1, do CPC, permite ainda a apresentação de documentos, no caso de recurso, após o encerramento da discussão, mas faz depender a sua admissão do facto de a respectiva apresentação não ter sido possível até àquele momento.
No n.º 2 do mesmo artigo autoriza-se a apresentação de documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, em qualquer estado do processo.
No art. 706.º, n.º 1, do CPC, admite-se a junção de documentos apresentados com as alegações, no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Dos referidos preceitos legais, bem como dos n.º 3 do art. 743.º, do CPC, resulta que se admite que os recorrentes juntem documentos com as alegações, mas apenas nos seguintes casos: impossibilidade de apresentação anterior (arts. 524.º, n.º 1, e 706.º, n.º 2, do CPC); os documentos destinarem-se à prova de factos posteriores à petição e à resposta ou a respectiva apresentação só se ter tornado necessária por virtude de ocorrência posterior à apresentação daquelas peças processuais (art. 524.º, n.º 2, do CPC); a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância (art. 706.º, n.º 1, do CPC)(7).
No caso sub judice está afastada a possibilidade da junção do documento ao abrigo do disposto no art. 524.º, do CPC, pois a Recorrente nada alegou quanto à impossibilidade de apresentar os documentos em momento anterior, o que afasta a possibilidade de a junção ser admitida ao abrigo da primeira parte do n.º 1 do art. 706.º do CPC (8-9).
No caso, a Recorrente, alegando no sentido de justificar a apresentação do documento com as alegações de recurso, referiu que nunca antes da sentença foi suscitada a questão da falta de apresentação do certificado de residência, sendo que no auto de notícia que serve de fundamentação à liquidação impugnada nada foi referido quanto a esse documento e na própria CDT não há qualquer referência ao documento, bem como à data não existia sequer qualquer instrução administrativa que se lhe referisse. Pretende, pois, a Recorrente justificar a apresentação do documento ao abrigo do art. 706.º, n.º 1, segunda parte, do CPC, que expressamente invocou.
Será que a junção poderá encontrar apoio legal nessa disposição legal, isto é, que a junção apenas se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância? Como dizem ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, referindo-se a este segmento da norma legal, «é evidente que, na sua última parte, a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância.
O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não pode razoavelmente contar antes da decisão ser proferida»(10).
Pensamos que a junção do documento nesta fase processual encontra justificação no referido artigo legal. Na verdade, tendo a AT no auto de notícia que deu origem e serviu de fundamento ao acto impugnado dado como assente que o beneficiário dos rendimentos tinha residência em Espanha, não era razoável que a Impugnante previsse como necessária a prova desse facto e a efectuar por esse documento. Ademais, nunca a AT tinha referido à Impugnante a necessidade desse documento, que, tal como afirma a Recorrente, não é previsto na CDT nem, tanto quanto pudemos apurar(11), em orientação administrativa alguma em vigor à data (1994).
Assim, pode afirmar-se que a necessidade do documento ora apresentado pela Recorrente era imprevisível antes de proferida a decisão na 1.ª instância. A Recorrente não podia, razoavelmente, contar com essa decisão(12).
Nada obsta, pois, à possibilidade de junção aos autos do documento de fls. 72, com tradução a fls. 82.

2.2.3 DO ERRO DE JULGAMENTO

Será que, como considerou a sentença recorrida, a Impugnante não podia deixar de proceder à retenção na fonte do IRS respeitante aos rendimentos que pagou ao referido cidadão espanhol sem que tivesse em seu poder um documento emitido pelas autoridades tributárias espanholas a certificar a residência deste em Espanha?
Qualquer que seja a resposta que se dê a esta questão, afigura-se-nos que sempre haverá de concluir-se pela ilegalidade da liquidação impugnada. Vejamos:
Atenta a factualidade provada, designadamente a que se refere à residência do cidadão espanhol beneficiário dos rendimentos em causa e à inexistência de estabelecimento ou instalações fixas no nosso País, é inquestionável que, qualquer que seja a qualificação que se faça dos rendimentos em causa pagos ao referido cidadão espanhol pela ora Recorrente, o Estado português, no âmbito da CDT acima referida, reconhece ao Estado espanhol o poder exclusivo de tributar aqueles rendimentos (cfr. os arts. 7.º e 14.º da CDT, citados na nota de rodapé com o n.º 6). Ora, como é sabido, as CDT´s, como diplomas de direito internacional que são, quando devidamente ratificados e publicados, sobrepõem-se à legislação ordinária interna (v.g. CIRS), atento o disposto no art. 8.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. De tudo isto deu conta o Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Lisboa, nessa parte em sintonia (apenas quebrada no que respeita à qualificação dos rendimentos) com a Impugnante.
Assim, não tendo o Estado português o poder de tributar os rendimentos em causa, não tinha também a Impugnante que proceder à retenção de percentagem alguma desses rendimentos a título de retenção do IRS na fonte.
O facto de a Impugnante, à data em que deixou de efectuar a retenção do imposto na fonte, não estar munida de qualquer documento comprovativo de que o referido cidadão espanhol era residente em Espanha, sendo certo que, em momento ulterior, a AT espanhola certificou que aquele cidadão «esteve de alta, durante o exercício de 1994, no imposto de actividades económicas, actividade número 511, relativa aos agentes comerciais», estando-lhe atribuído o NIF 21552444H, não significa que o Estado português possa, com base na falta de oportuno cumprimento desse requisito formal, tributar os rendimentos em causa.
Quando muito, se para que a Impugnante deixasse de proceder à retenção do IRS na fonte era necessária a verificação de um requisito formal (dando de barato que assim seja) que não se encontrava verificado à data, qual seja a um certificado de residência emitido pelas autoridades tributárias espanholas, poderá a AT sancioná-la em sede contra-ordenacional; o que nunca poderá é tal falta dar origem à liquidação do imposto que comprovadamente se não mostra devido.
Neste sentido, embora com fundamentação algo diversa, decidiu já, por remissão para a sentença da 1.ª instância, o acórdão deste Tribunal Central Administrativo de 3 de Novembro de 2004, proferido no processo com o n.º 151/04, e com texto integral disponível em htpp://www.dgsi.pt/.
Assim, a liquidação impugnada não pode manter-se, por ilegal, uma vez que viola a CDT.
A sentença recorrida, que decidiu em sentido diverso, será, pois, revogada.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulam-se as seguintes conclusões:

I - É lícita a apresentação de documentos com as alegações de recurso (cfr. arts. 743.º, n.º 3, e 706.º, n.ºs 1 e 2, do CPC) se a junção dos mesmos apenas se tornou necessária em virtude do julgamento no tribunal a quo (art. 706.º, n.º 1, segunda parte, do CPC).
II - Demonstrado que está que não havia lugar a tributação pelo Estado Português em IRS dos rendimentos pagos em 1994 por uma sociedade portuguesa a um cidadão espanhol a título de “comissões de vendas”, por este não ter residência nem estabelecimento estável ou instalação fixa em Portugal ao qual pudessem ser imputáveis os rendimentos em causa (atento o disposto nos arts. 7.º e 14.º da Convenção Para Evitar a Dupla Tributação celebrado entre Portugal e a Espanha, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 49.223, de 4 de Setembro de 1969, em vigor à data), não pode a AT liquidar àquela sociedade o IRS que considerou que esta deixou de reter na fonte, por força do disposto nos arts. 91.º e 94.º do CIRS (na versão em vigor à data).
III - Quando muito, se para que a sociedade deixasse de proceder à retenção do IRS na fonte era necessária a verificação de um requisito formal que não se encontrava verificado à data, qual seja um certificado de residência emitido pelo país do beneficiários dos rendimentos, poderá a AT sancioná-la em sede contra-ordenacional; o que nunca poderá é tal falta dar origem à liquidação do imposto que comprovadamente se não mostra devido.

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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo acordam, em conferência, conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar procedente a impugnação judicial.

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Sem custas.

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Lisboa, 5 de Julho de 2005

(1) As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, são transcrições.
(2) Todas as referências ao CIRS se reportam à versão anterior à da revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho.
(3) Em bom rigor, este facto foi também dado como assente pela 1.ª instância. Na verdade, na sentença, a fls. 38, ficou dito «tem que se ter assente, porque não contestado por qualquer uma das partes, que o mesmo cidadão não tinha estabelecimento estável em Portugal». Mas, porque este facto não foi expressamente consignado na parte da sentença que tem como epígrafe «OS FACTOS», entendemos por bem, com vista a uma melhor estruturação formal da decisão, ora aditá-lo ao probatório.
(4) Disposições legais que, na redacção aplicável, dispunham:
«art. 74.º
1 - Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, os rendimentos obtidos em território nacional constantes dos números seguintes, às taxas liberatórias neles previstas.
[...]
4 - São tributados à taxa de 15%:
[...]
b) As comissões por intermediação na celebração de quaisquer contratos, auferidos por não residentes em Portugal.
[...]
art. 91.º
1 - Nos casos previstos nos artigo 92º a artigo 94º e noutros estabelecidos na lei, a entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte é obrigada, no acto do pagamento, do vencimento, ainda que presumido, da sua colocação à disposição ou do apuramento do respectivo quantitativo, consoante os casos, ou, tratando-se de comissões devidas pela intermediação na celebração de quaisquer contratos, no acto do seu pagamento ou colocação à disposição, a deduzir-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que esses actos ocorrem.
2 - As quantias retidas deverão ser entregues em qualquer dos locais a que se refere o artigo 98º, nos prazos indicados nos números seguintes.
[...]
art. 94.º
1 - As entidades que, dispondo ou devendo dispor de contabilidade organizada, devam rendimentos das categorias B, E e F ou comissões por intermediação na celebração de quaisquer contratos são obrigadas a reter o imposto mediante aplicação, aos rendimentos ilíquidos, da taxa de 15%, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - Tratando-se de rendimentos sujeitos a tributação pelas taxas previstas no artigo 74º:
a) As entidades devedoras dos rendimentos deduzirão a importância correspondente às taxas nele fixadas;
[...]».

(5) Note-se que era ainda esta a CDT em vigor à data. Actualmente, e desde 1 de Janeiro de 1996, a CDT em vigor entre Portugal e Espanha é a que foi aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia com o n.º 6/1995, de 28 de Janeiro, e ratificada por Decreto do Presidente da República com o n.º 14/95, da mesma data.
(6) Diziam os referidos preceitos da CDT:
«art. 7.º
I. Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que a empresa exerça a sua actividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento estável aí situado. Se a empresa exercer a sua actividade deste modo, os seus lucros podem ser tributados no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem imputáveis a esse estabelecimento estável.
[...]
art. 14.º
Os rendimentos obtidos por um residente de um Estado Contratante pelo exercício de uma profissão liberal ou de outras actividades de carácter independente só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que esse residente disponha, de forma habitual, no outro Estado contratante, de uma instalação fixa para o exercício das suas actividades. Se dispuser de uma instalação fixa, os rendimentos podem ser tributados no outro Estado, mas unicamente na medida em que sejam imputáveis a essa instalação fixa».
(7) Neste sentido, vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado, 4.ª edição, nota 15 ao art. 279.º, págs. 1073 a 1075.
(8) Note-se que este momento, no processo tributário, será o do termo do prazo para a apresentação das alegações escritas.
(9) Neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 16 de Janeiro de 1993, publicado no Boletim do Ministério Justiça n.º 433, págs. 467 a 475, e do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de Outubro de 1998, proferido no recurso com o n.º 22.603, publicado no Apêndice ao Diário da República de 6 de Abril de 2001, pág. 351, ambos citados por JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., nas notas de rodapé com os n.ºs 1745 e 1746, pág. 1074.
(10) Manual de Processo Civil, 2.ª edição, págs. 533/534.
(11) É difícil o conhecimento de todas as orientações administrativas da AT, sobretudo se reportadas a períodos mais remotos.
(12) Cfr. o referido acórdão do STJ