Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1807/23.6 BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/08/2024
Relator:LINA COSTA
Descritores:IDLG
ARI
IDONEIDADE DO MEIO
Sumário:I- Para se dar por verificada a idoneidade da acção de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, impunha-se que o Recorrente na petição tivesse alegado factos, por referência ao seu caso concreto, que permitissem concluir que o uso de uma acção administrativa de condenação à prática do acto devido, associado a uma providência cautelar, não seria suficiente a assegurar o exercício do direito fundamental, alegadamente ameaçado, em tempo útil. Ou dito de outro modo, o respectivo exercício seria frustrado antes de poder obter decisão judicial não urgente. O que não fez.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em sessão da Subsecção de Administrativo Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:

K………., devidamente identificado como requerente nos autos da acção intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias instaurada contra o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e o Ministério da Administração Interna, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da sentença, proferida em 31.5.2023, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que decidiu rejeitar liminarmente o requerimento inicial apresentado.
Nas respectivas alegações, o Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem:
«A. A 30 de maio de 2023, o Recorrente, instaurou junto do Tribunal a quo, uma Intimação para a Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 109.º e ss., do CPTA, peticionando, a final: (i) Serem as Entidades Requeridas, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 3.º, no n.º 1 do artigo 109.º, e no n.º 2 do artigo 111.º, todos do CPTA, intimadas a, num prazo máximo de 15 (quinze) dias, sob o cumprimento dos prazos legais, este seja tramitado, instruído e decidido, de modo a poder ser praticado o ato administrativo de concessão de autorização de residência para atividade de investimento, a que se seguirá a disponibilização à Requerente do título de residência que há meses devia já estar emitido e, para o qual, não existe nenhuma razão plausível para que não tenha sido ainda emitido e remitido à Requerente, assim garantindo o direito à boa administração decorrente do artigo 41.º, n.º 1 da CDFUE ex vi artigo 16.º, n.º 1 da CRP, e artigo 5.º do CPA ex vi artigo 266.º, n.º 1 da CRP; (ii) Complementarmente, ser o Diretor Nacional do SEF, Dr. F……………, e o Ministro da Administração Interna, Dr. J………….., titulares dos órgãos a quem cabe a execução da decisão, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 3.º, no n.º 4 do artigo 110.º, e n.ºs 1 e 2 do artigo 169.º, todos do CPTA, condenados no pagamento de uma Sanção Pecuniária Compulsória num montante de € 75,00 (setenta e cinco euros), por cada dia de incumprimento do prazo; e (iii) Serem as Entidades Requeridas condenadas em custas e demais encargos com o processo.
Senão, vejamos,
B. O Recorrente é um cidadão de nacionalidade cambojana, que registou e submeteu em 20 de fevereiro de 2019 a candidatura à concessão de uma autorização de residência para o investimento nos termos do disposto no artigo 90.º-A da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, sendo certo que, a 7 de março de 2019, liquidou a taxa de análise à submissão da candidatura.
C. A 16 de dezembro de 2019, submeteu o pedido de reagrupamento familiar da esposa C……….., dos seus filhos V……….e J…………, tendo liquidado as respetivas taxas de análise a 3 de janeiro de 2020.
Sendo certo que,
D. Desde então, o Recorrente, foi vetado a um rotundo silêncio que que[sic] em muito tem perturbado a sua vida, dado que a candidatura se encontra sem que nenhum ato administrativo tenha sido praticado, referindo apenas que se encontra no estado de “candidatura aceite”, desde a sua submissão, o que equivale à inexistência de qualquer tipo de desenvolvimento, o que num período superior a quatro anos, não foi sequer notificado de qualquer desenvolvimento procedimental para a candidatura efetuada, decorrendo um lapso temporal manifestamente excessivo.
Ora,
E. Não pode, por isso deixar de considerar o Recorrente que reúne os requisitos previstos na Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, para que lhe seja concedida uma autorização de residência para o exercício de uma atividade de investimento, sendo certo que apresentou em 27 de dezembro de 2021, o pedido e que nos termos do disposto no artigo 82.º, n.º 1 da Lei 23/2007, de 4 de julho, ser decidido num prazo de 90 dias que, há muito foi ultrapassado.
Sucede que,
F. A 2 de junho de 2023, e para absoluta surpresa do aqui Recorrente, foi notificado da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo em 31 de maio de 2023, nos termos da qual “rejeita-se liminarmente o requerimento inicial”.
G. É sobre esta Douta Sentença do Tribunal a quo que vem o Recorrente colocar em crise, uma vez que para concluir da forma que concluiu, ignorou toda a argumentação expedida na Petição Inicial, bem como desconsiderou a Jurisprudência mais recente decorrente dos Acórdãos de 23 de março de 2023, nos Processos n.º 2878/22.8 BELSB (LINA COSTA) e 2849/22.4 BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO), bem como o de 29 de novembro de 2022, no Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO), todos do Tribunal Central Administrativo Sul.
H. Incompreensivelmente, a Douta Sentença do Tribunal a quo, ainda promoveu um erro de julgamento relativo ao indeferimento liminar da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pela não verificação do requisito de urgência e a indispensabilidade do meio processual adequado ao caso do Recorrente.
I. A Douta Sentença, relativamente ao recurso ao meio processual de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, refere que “os autos encontram-se em fase liminar e o requerimento inicial deverá ser rejeitado por não se verificar o requisito da indispensabilidade consagrado no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, de acordo com o qual a intimação para proteção de direitos liberdades e garantias será o meio adequado caso seja possível concluir que, em concreto e atendendo ao alegado no requerimento inicial, a requerente carece de uma decisão definitiva para tutelar o direito fundamental que invoca”, acrescentando, ainda, que “a intimação para protecção de direitos de direitos liberdades e garantias será o meio próprio caso o tribunal logre concluir que a tutela dos direitos invocados pela requerente não se compadece com a delonga da normal tramitação de um processo principal”.
J. A Douta Sentença do Tribunal a quo prossegue a sua argumentação, referindo que, “a urgência pressuposta no artigo 109.º do CPTA está, assim, relacionada com a subsidiariedade deste meio processual em relação aos processos não urgentes”, apostando, ainda, o Tribunal a quo no entendimento segundo o qual “Para aferir da propriedade do presente meio processual o tribunal abstrai-se do mérito da pretensão e indaga se, na hipótese de a requerente ter razão, a tutela dos seus direitos pode ser assegurada através de uma ação principal”.
K. A Douta Sentença do Tribunal a quo, considera estranhamente que “(…) não basta que seja alegada a violação de direitos com respaldo na Constituição nem que o pedido careça de provisoriedade para se admitir o recurso ao meio processual do artigo 109.º, pertence aa requerente o ónus de alegar os factos que, a provarem-se, permitem concluir que carece de uma decisão urgente definitiva para prevenir ou reprimir uma ameaça iminente dos seus direitos”, concluindo que “no caso concreto a requerente não cumpre este ónus, uma vez que das alegações vertidas na petição inicial não é possível concluir que caso o pedido fosse concedido em sede de ação administrativa a requerente o requerente não retiraria utilidade na tutela. Efetivamente, nada é alegado sobre os concretos motivos pelos quais não pode aguardar o desfecho de uma ação principal”, acrescentando a essa conclusão que “(…) as alegações são insuficientes para concluir pela indispensabilidade do recurso a uma ação administrativa, uma vez que são insuficientes para explicar porque a requerente não pode aguardar pelo desfecho de uma ação administrativa”.
L. Este é um entendimento que se encontra ferido de morte, uma vez que se trata de uma construção ancorada, num determinado aresto do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no Processo n.º 036/22.0BALSB, em 07-04-2022 (CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO) que, salvo melhor entendimento, não tem o mais pequeno apego factual àquele que aqui se estriba, uma vez que versa sobre as restrições pandémicas.
M. O artigo 109.º, n.º 1 do CPTA, ao referir-se aos pressupostos do pedido de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, estabelece que “(…)
N. Ora, como pressupostos, devem atender-se: (i) a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para a proteção de um direito, liberdade ou garantia; e, (ii) não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar no âmbito de uma ação administrativa normal. Assim, a intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias visa a obtenção de uma proteção rápida e contundente ao exercício de um direito, liberdade ou garantia pessoal, frente a qualquer tipo de ameaças, restrições, lesões ou violações.
O. Recorrendo à lição de VIEIRA DE ANDRADE, a “(…)”.
P. Assim, o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é instituído como um meio subsidiário de tutela, vocacionado para intervir como uma válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas, nas situações – e apenas nessas – em que as outras formas de processo do contencioso administrativo não se revelem aptas a assegurar a proteção efetiva de direitos, liberdades e garantias, sendo certo que se afigura urgente a obtenção de uma pronúncia definitiva relativa ao mérito da pretensão.
Q. Como nota, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA,(…)”.
R. Ou, na mesma linha argumentativa, CATARINA SANTOS BOTELHO,(…)”.
S. Sendo, por isso, um meio processual vocacionado para os casos em que é necessário obter, em tempo útil e, por isso, com carácter de urgência, uma decisão definitiva sobre a questão de fundo: a questão tem de ser definitivamente decidida de imediato, não se compadecendo com uma definição cautelar, visando por isso suprir as insuficiências próprias da tutela cautelar, que resultam do facto de ela ser isso mesmo, cautelar.
T. Deste modo, a intimação será absolutamente necessária quando não puder ser dispensada, ou seja, quando, para proteger direitos fundamentais, a intensidade da necessidade de proteção imediata impeça, por não ser possível em tempo útil, o recurso a um outro meio processual (por exemplo a ação administrativa) que seria o meio adequado ou o meio próprio para resolver definitivamente a questão existente.
U. Sendo certo que, é sempre no caso concreto, através de um juízo de prognose, que estas situações se identificam: i) são de natureza improrrogável, que reivindica uma composição jurisdicional inadiável; ii) têm uma natureza que não se compadece com a provisoriedade jurisdicional e que obriga o juiz a pronunciar-se de modo definitivo.
V. Definitivo, no sentido de solução fatal, já que ela matará a utilidade posterior de qualquer sentença de mérito que venha a ser emitida no âmbito de um processo principal que conheça sobre essa situação, de modo mais profundo, verificável, nomeadamente, nos casos que, pela sua urgência, se afigurem propícias a exigir uma decisão de fundo, v.g. por corporizarem situações que sejam decorrentes da limitação de exercício de direitos por parte do particular.
W. Como não pode deixar de ser, não pode colher o entendimento do Tribunal a quo segundo o qual, “(…) a requerente não cumpre este ónus, uma vez que das alegações vertidas na petição inicial não é possível concluir que caso o pedido fosse concedido em sede de ação administrativa a requerente o requerente não retiraria utilidade na tutela. Efetivamente, nada é alegado sobre os concretos motivos pelos quais não pode aguardar o desfecho de uma ação principal”, a que acresce a ainda mais incompreensível conclusão, segundo a qual: “(…) as alegações são insuficientes para concluir pela indispensabilidade do recurso a uma ação administrativa, uma vez que são insuficientes para explicar porque a requerente não pode aguardar pelo desfecho de uma ação administrativa”.
X. Ao contrário daquilo que o Douto Tribunal a quo parece pretender fazer crer, o Recorrente fez todo um enquadramento factual que especifica a necessidade urgente de uma decisão de mérito, nomeadamente, nos artigos 29.º a 84.º da Petição Inicial.
Y. Ao afiançar, a Douta Sentença do Tribunal a quo que o Recorrente não alega factos concretos que demonstrem a sua urgência – como se uma espera superior a quatro anos sem qualquer avanço para o exercício dos mais elementares direitos garantidos por uma autorização de residência não fosse já sacrifício suficiente para quem se limitou a cumprir tudo o que lhe era exigido – e, como tal, a situação de urgência se meça perante determinados factos da vida real que reclamem uma decisão imediata do pedido, conduzindo ao indeferimento liminar da pretensão.
Ora,
Z. O pressuposto de urgência, não pode ser mensurado sem uma consideração dos efeitos do decurso do tempo, basta para tal pensar-se na proteção do direito fundamental à água que, na mesma circunstância do direito fundamental a uma boa administração, também não decorre diretamente do texto constitucional. O tempo que o serviço público de água demorar a ligar um contador à rede distribuidora é o que fundamenta a urgência na sua ligação constituindo a restrição à fruição do referido direito fundamental.
AA. É que, a urgência na obtenção da autorização de residência, que não existia ao momento da submissão da candidatura, passou a existir com o decurso do tempo decorrente da inação da Entidade Demandada SEF.
BB. Vejamos, ainda, que o decurso do tempo, para além de violação do elementar princípio administrativo da decisão estatuído no artigo 13.º do CPA, também se demonstrou apto a bulir com o direito fundamental a uma boa administração que para além de ser um direito fundamental, é também, um princípio jurídico ao qual a Entidade Demandada SEF se encontra vinculada, em função do disposto no artigo 5.º do CPA.
CC. Como nota RUI MESQUITA GUIMARÃES: “(…)”,
DD. Ora, os pressupostos de admissibilidade da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, deve partir da consideração da absoluta necessidade de emissão de uma decisão de mérito pelo facto de uma medida cautelar se revelar, num certo sentido, como impossível ou insuficiente, o que recorrendo ao clarividente ensino de CATARINA SANTOS BOTELHO a impossibilidade de recurso à tutela cautelar poderá resultar do facto de o juiz, “para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. (…)”.
EE. Acresce que, com apoio em RUI MESQUITA GUIMARÃES, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, fica “reservada apenas para as situações em que aquela via normal não é possível ou suficiente para assegurar o exercício em tempo útil e a título principal do direito, liberdade ou garantia que esteja em causa e cuja defesa reclame uma intervenção jurisdicional. (…)”.
FF. Ora, imagine-se, por absurdo de raciocínio, que o Recorrente recorria à providência cautelar e requeria que o Tribunal, provisoriamente instasse a Entidade Demandada SEF a iniciar a análise do seu caso? Ou, alternativamente, poderia requerer que deferisse temporariamente o seu pedido até decisão final que iniciasse a tramitação do processo? Ou, ainda, que decidisse provisoriamente a concessão da autorização de residência por um período compreendido entre o deferimento da providência e a prolação da decisão final? E, ao Tribunal, seria admissível uma decisão a instar a Administração, in casu a Entidade Demandada SEF, a uma destas condutas, tendo em consideração o princípio da separação de poderes? Como parece resultar de forma absolutamente clara, para que o juiz da causa se possa pronunciar sobre esta gama de casos, a providência cautelar não é o meio adequado, desde logo, porque se evidencia a necessidade de uma decisão de fundo, i.e. de mérito neste tipo de situações, o que se afigura incompatível com o tipo de avaliação realizado em sede de procedimentos cautelares.
GG. De igual modo, é desprovido de toda a razoabilidade considerar que uma eventual de[sic] primeira instância numa ação administrativa ocorreria em tempo útil para a[sic] Recorrente, tendo em consideração o atraso que se verifica na jurisdição administrativa, podendo suceder que aos quatros[sic] que leva a aguardar uma decisão da Administração se acrescentem mais quatro até que consiga alcançar uma decisão relativa ao mérito da causa.
HH. Ora, o Tribunal a quo viu-se colocado na posição de decidir se, a Administração incumpriu com algum dos seus deveres relativamente à obrigação legal de decidir uma determinada pretensão administrativa; e, se mediante essa ausência de decisão, violou ou não algum direito fundamental, quer diretamente, quer por efeito dessa ausência de decisão.
II. Sendo certo que, decorrentemente, da estrutura da concessão de uma autorização de residência para o investimento, o ato administrativo final a praticar é um ato vinculado, uma vez que, cumpridos os requisitos pelo candidato, não restará alternativa à Administração que não seja a concessão da autorização de residência, sendo, precisamente por isso, que não se afigura minimamente admissível a demora da Administração que, com a sua inação, acaba a não ter, ainda, concedido a requerida e justa autorização de residência ao Recorrente.
JJ. Ora, esta é uma conduta que se encontra eivada de ilegalidade, uma vez que o prazo para decisão da concessão de autorização de residência para o investimento se encontra plasmado na Lei e há muito que foi ultrapassado.
KK. Assim, resultará da análise caso a caso saber quando é que as pronúncias de mérito são necessárias, por contraste com as insuficientes pronúncias cautelares, visto que estas são sempre, na sua globalidade, provisórias, quer sejam emitidas com especial urgência no início do processo cautelar ou não.
LL. De forma impressiva a Douta Sentença do Tribunal a quo acabou a considerar que parte da jurisprudência citada, não se aplica ao caso em apreço o que, no afã de justificar esta ideia estabelece que: “a indispensabilidade do recurso ao meio processual do artigo 109.º assenta nas regras da experiência, as quais são convocadas numa situação com um substrato fatual substancialmente diverso do presente caso”, avançando com a ideia, segundo a qual: “inexiste identidade entre os contornos do presente litígio e o subjacente ao acórdão do TCAS invocado pelo requerente, motivo pelo qual a fundamentação nele vertida não pode ser aplicável”, considerando que: “o requerente do processo n.º 661/22.0BELSB encontrava-se a residir em território nacional, aqui tinha organizado a sua vida, porém a segurança jurídica e o grau de estabilidade da sua permanência em Portugal eram, segundo a argumentação do acórdão, colocados em causa pela inércia do SEF em decidir o pedido formulado ao abrigo do artigo 88.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2006, de 4 de julho, na redação então vigente” e, concluindo que: “a argumentação do acórdão do TCAS tirado no processo n.º 661/22.0BELSB não é transponível para o presente caso”.
Sucede que,
MM. Ambas as situações se prendem com pedidos específicos apresentados no SEF sem que este se tenha dignado a decidir como, aliás, sua obrigação, sendo que essa ausência de decisão, em ambos os casos, prejudica a vida dos Requerentes.
NN. Ora, a não ser que se considere que não se verifica a violação de algum direito fundamental, e nesse caso pecará por omissão de fundamentação sendo, por isso mesmo, nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA, esta argumentação não pode proceder.
OO. Ora, ao ignorar estoicamente o aresto do Tribunal Central Administrativo Sul, ignorou que este considera a verificação do requisito de urgência naqueles casos em que “o Autor apresentou o seu pedido no SEF há mais de 2 anos (30/3/2020), entidade que teria 90 dias para se pronunciar face à manifestação de interesse com vista à obtenção de autorização de residência ao abrigo do regime do art.º 88.º/2 da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, não tendo a Administração, até ao momento, emitido qualquer tipo de decisão, o que determina que aquele esteja indocumentado e a residir no nosso país ilegalmente, por não ser titular nem de uma autorização de permanência, nem de uma autorização de residência, embora se mantenha a trabalhar” (cfr. Acórdão do TCAS, de 29-11-2022, Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO)).
PP. Sendo certo que, “a urgência da situação é evidente e trata-se de uma urgência atual”, uma vez que, enquanto o título de residência não for emitido, ou a autorização de residência não lhe for concedida, “padecerá de todos os males que decorrem de estar ilegal no nosso país”, concluindo-se, por isso, que se considera “existir uma necessidade imediata do Recorrido em deter um título ou uma autorização para se poder manter a residir legalmente em Portugal e aqui continuar a viver e a trabalhar na qualidade de estrangeiro com título legal de permanência(cfr. Acórdão do TCAS, de 29-11-2022, Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO)).
QQ. Sendo certo que conseguiu, o Douto Tribunal a quo, ignorar ainda um outro aresto, também ele recente do Tribunal Central Administrativo Sul, em que o Tribunal assenta na ideia segundo a qual a ação de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, se afigura “o meio processual idóneo à defesa dos direitos fundamentais que a Recorrente invoca, por poder ser o único a permitir-lhe, em tempo útil, obter a satisfação da sua pretensão” (cfr. Acórdão do TCAS de 23-03-2023, Processo n.º 2878/22.8 BELSB (LINA COSTA)).
RR. Sendo verificável que o Recorrente deu início ao processo de autorização de residência para o investimento em 20 de fevereiro de 2019, ou seja há mais de quatro anos.
SS. Acresce que, a cada minuto, a cada hora, a cada dia, a cada semana ou, ainda, a cada mês – no limite, a cada ano – que passa mais urgente se torna a concessão de autorização de residência para o investimento ao aqui Recorrente.
TT. Mais, o protelar de uma simples avaliação ou instrução do processo, para além de ilegal, fundamenta e aumenta a urgência existente, sendo certo que, como bem se compreenderá, facilmente se demonstra como cumprida a verificação do requisito de existência de uma situação de urgência, ao contrário do decidido pela Douta Sentença do Tribunal a quo.
UU. Como bem nota o Tribunal Administrativo Sul, “as regras da experiência, que aqui valem como presunção judicial, nos termos do art.º 607.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 1.º do CPTA, indicam-nos que a falta de um título que permita a permanência, em termos de legalidade, do Recorrido no território nacional, podem pôr em causa o reduto básico, que se liga ao principio da dignidade da pessoa humana (cf. art.º 1.º da CRP) dos indicados direitos à liberdade, à livre deslocação no território nacional, à segurança (cf. art.ºs. 27.º e 44.º da CRP), à identidade pessoal (art.º 26.º, n.º 1, da CRP), a trabalhar e à estabilidade no trabalho (cf. art.ºs. 53.º, 58.º e 59.º da CRP) ou à saúde (cf. art.º 64.º da CRP)(cfr. Acórdão do TCAS, de 29-11-2022, Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO)).
VV. Prosseguindo o aresto, corretamente ainda que espantosamente não tenha sido valorado pelo Tribunal a quo, que o Recorrente se encontra limitado “na vida quotidiana, com receio de uma possível expulsão, de invocar um apoio policial, caso necessite, de se deslocar livremente, ou de se apresentar e celebrar de negócios civis básicos, ou de deslocar-se a um hospital, ou de tentar alcançar trabalho, ou, ainda, de reclamar as devidas condições para o trabalho que consiga angariar nessa situação”, concluindo-se, por isso, que “a falta de tal título contende quer com um feixe alargado de direitos de índole pessoal, que serão reconduzíveis à tipologia de direitos, liberdades e garantias, quer com direitos económicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho ou à saúde, que são direitos fundamentais não integrados pela Constituição naquela primeira categoria, mas que quando coartados na sua dimensão mais essencial, ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana e à própria liberdade individual, terão de ficar abrangidos pelo regime aplicável àqueles direitos, liberdades e garantias e logicamente pelo âmbito desta intimação(cfr. Acórdão do TCAS, de 29-11-2022, Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO)).
WW. Acresce ainda que, o Recorrente chegou mesmo a indicar os direitos que se encontram violados com a conduta omissiva da Administração.
XX. É que, basta recorrer ao texto decorrente do n.º 1 do artigo 41.º da CDFUE, que estabelece que todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável” (sublinhados nossos), sendo certo que a explanação do que se deve entender pela consagração deste Direito, quer jurisprudencialmente aceite pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, quer pela inquestionável aplicação ao nosso Direito pátrio, foi amplamente realizada pelo aqui Recorrente, então Autor, na Petição Inicial nomeadamente, nos artigos 113.º a 164.º.
YY. Acresce ainda, a alegação do Recorrente que, evidentemente, a violação do direito a uma boa administração nos termos consagrados, era o direito violado que conduziria a uma restrição, ainda que eventual, de outros direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados, o que nos termos do aresto já citado do Tribunal Central Administrativo Sul, se afigura suficiente para desencadear um processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
ZZ. Acresce que, se afigura apenas relevante sob pena de violação do disposto no artigo 20.º, n.º 5 da CRP, que “(…)”.
AAA. Com apoio na lição de JORGE REIS NOVAIS, arrumada que se encontra a verificação do único pressuposto segundo o qual, cremos, encontrar-se o erro de julgamento do Douto Tribunal a quo – i.e. a verificação do requisito de urgência –, “(…)”.
BBB. Ora, como se demonstrou, é evidente a violação do direito a uma boa administração e, por isso, facilmente se compreenderá, que essa violação se materializa na ausência de uma decisão por parte da Administração, sendo certo que a decisão é um dos componentes do direito fundamental a uma boa decisão, e consta ela própria do disposto no artigo 13.º do CPA.
CCC. Nos termos do disposto no artigo 13.º, n.º 1 do CPA, o princípio da decisão, impõe que “(…)”, sendo certo que, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “(…)”.
DDD. Assim, et pour cause, existe uma obrigação de pronúncia da Administração relativamente à pretensão apresentada, como ensina SÉRVULO CORREIA, uma vez que “(…)”.
Acresce que,
EEE. O Tribunal a quo com a Douta Sentença, corporiza uma sucessão inqualificável de erros, uma vez que erra quando considera que não se verifica nenhuma situação de indispensabilidade, erra quando considera que não se verifica nenhuma situação de urgência, erra também quando se afigura incapaz de a[sic] aplicabilidade ao caso em apreço do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 29-11-2022, proferido no Processo n.º 661/22.0BELSB (FREDERICO MACEDO BRANCO).
FFF. Ora, assim, e conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa”, prosseguindo o aresto estabelecendo que “o erro consiste num desvio da realidade factual ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma” (cfr. Acórdão do STJ, de 30-09-2010, Processo n.º 341/08.9TCGMR.G1.S2 (ÁLVARO RODRIGUES)).
GGG. Recentemente, também o Supremo Tribunal de Justiça, estabeleceu que, “enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma(cfr. Acórdão do STJ, de 03-03-2021, Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1 (LEONOR CRUZ RODRIGUES)).
HHH. Não pode, por isso, deixar de se alegar que, andou mal o Tribunal a quo a decidir da forma que decidiu, desprotegendo a tutela devida ao Recorrente, perigando ainda mais a sua situação jurídica, desde já precária, em face da inação da Entidade Demandada SEF e sua proverbial incapacidade decisória.
III. Ora, decidindo como decidiu na Douta Sentença, o Tribunal a quo incorreu em um evidente erro de julgamento por parte do Tribunal a quo na Douta Sentença que ora se coloca em crise, uma vez que se verifica, dentro dos limites apresentados na mais recente jurisprudência do Venerando Tribunal Central Administrativo, uma evidente situação de urgência de alguém que para vir para o nosso país, se encontra a aguardar a emissão de uma autorização de residência para investimento num período superior a um ano, desde a submissão do pedido de concessão da autorização de residência e o momento presente, com evidentes limitações nos seus mais elementares direitos ou, ainda, numa clara e evidente violação do princípio da dignidade da pessoa humana decorrente do artigo 1.º da CRP.».
Requerendo,
«Nestes termos, nos mais de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve:
− Ser revogada a Douta Sentença, e substituída por uma em que as as[sic] Entidades Requeridas, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 3.º, no n.º 1 do artigo 109.º, e no n.º 2 do artigo 111.º, todos do CPTA, intimadas a, num prazo máximo de 15 (quinze) dias, sob o cumprimento dos prazos legais, este seja tramitado, instruído e decidido, de modo a poder ser praticado o ato administrativo de concessão de autorização de residência para atividade de investimento, a que se seguirá a disponibilização à Requerente do título de residência que há meses devia já estar emitido e, para o qual, não existe nenhuma razão plausível para que não tenha sido ainda emitido e remitido à Requerente, assim garantindo o direito à boa administração decorrente do artigo 41.º, n.º 1 da CDFUE ex vi artigo 16.º, n.º 1 da CRP, e artigo 5.º do CPA ex vi artigo 266.º, n.º 1 da CRP.».

O Recorrido não contra-alegou.

O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos (mas com envio prévio a estes do projecto de acórdão), por se tratar de processo urgente (cfr. o nº 2 do artigo 36º do CPTA), vem o mesmo à sessão para julgamento.

A questão suscitada pelo Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 635º e nos nºs 1 a 3 do artigo 639º, do CPC ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA, consiste, no essencial, em saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter decidido rejeitar a petição de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias [doravante apenas IDLG] por inidoneidade do meio processual.

A sentença recorrida não fixou factos provados.

Por relevantes à decisão a proferir, dão-se por assentes os seguintes factos, por referência ao teor da petição e aos documentos juntos à mesma:

1. K………, aqui requerente, “é um cidadão de nacionalidade cambojana, residente em ………….., Camboja” - cfr. confessado no artigo 1º da petição;

2. Em 11.6.2018 o Requerente celebrou Contrato de Compra e Venda, com outros comproprietários, referente à fracção autónoma designada pela letra “D” que corresponde ao rés-do-chão direito destinado a habitação, - seis assoalhadas, cozinha, duas casas de banho, despensa e logradouro com área de oitenta metros quadrados, sito em ………………, Lisboa, tendo pago o montante de €230 000,00 - cfr. doc. 1;

3. Em 30.8.2018 celebrou contrato de empreitada com vista à realização de remodelações no imóvel referido, tendo pago o montante de €2 500,00 - cfr. doc. 3;

4. Em 11.1.2019 celebrou Contrato de Compra e Venda com um dos comproprietários, com vista à aquisição da sua parte na referida fracção autónoma “D”, tendo pago o montante de €120 000,00 - cfr. doc. 2;

5. Em 20.2.2019, o Requerente submeteu, através do Portal ARI, registo “ARI – Candidatura de autorização de residência para actividade de investimento”, a que foi atribuído o nº de processo …………./ARI/094/19 – cfr. doc. 4;

6. Em 7.3.2019, procedeu ao pagamento da taxa relativa à submissão da candidatura que antecede – cfr. doc. 5;

7. Em 16.12.2019, o Requerente submeteu, através do Portal ARI, registo “ARI – Agregado familiar” para Reagrupamento familiar da sua esposa C………..e dos seus filhos V……….e J…………– cfr. doc.s 6, 7 e 8;

8. Em 3.1.2020, procedeu ao pagamento das respectivas taxas – cfr. doc.s 9, 10 e 11;

9. Foi agendada a data de 14.5.2020 para recolha de dados biométricos de toda a família – desmarcada por causa das restrições em vigor relativas à COVID-19 – cfr. doc.s 12 e 15 e artigo 55º da petição;

10. Foi agendada a data de 17.2.2021 para recolha de dados biométricos de toda a família – não compareceram, “não conseguiram viajar para Portugal, em virtude das restrições existentes um pouco por toda a parte decorrentes das variantes do vírus SARS-COV2 que origina a doença da COVID-19– cfr. doc.s 12 e 15 e artigo 56º da p.i.;

11. Em 30.5.2023 foi instaurada a presente acção de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, para intimação do SEF e do MAI: a) a, num prazo máximo de 15 (quinze) dias, sob o cumprimento dos prazos legais, este seja tramitado, instruído e decidido, de modo a poder ser praticado o ato administrativo de concessão de autorização de residência para atividade de investimento, a que se seguirá a disponibilização à Requerente do título de residência que há meses devia já estar emitido e, para o qual, não existe nenhuma razão plausível para que não tenha sido ainda emitido e remitido à Requerente, assim garantindo o direito à boa administração decorrente do artigo 41.º, n.º 1 da CDFUE ex vi artigo 16.º, n.º 1 da CRP, e artigo 5.º do CPA ex vi artigo 266.º, n.º 1 da CRP.

Das conclusões formuladas pelo Recorrente resulta, em síntese, que: a decisão recorrida constituiu para si uma absoluta surpresa; a rejeição liminar resulta de ter sido ignorada estoicamente toda a argumentação expendida na petição bem como a jurisprudência recente deste TCAS, decorrente dos acórdãos de 23.3.2023, proc. nº 2878/22.8BELSB e 2849/22.4BELSB e de 29.11.2022, proc. 661/22.0BELSB; errando ao julgar, de forma estranha e inqualificável, não verificado o requisito da urgência e a indispensabilidade do meio processual adequado ao seu caso, suportada no acórdão do STA de 7.4.2022, proc. 036/22.0BALSB que não tem a ver com a factualidade em análise; ao contrário do decidido sobre o não cumprimento do ónus de alegação, fez todo o enquadramento factual que especifica a necessidade urgente de uma decisão de mérito nos artigos 29º a 84º da petição; o pressuposto da urgência não pode ser mensurado sem uma consideração dos efeitos do decurso do tempo; a urgência na obtenção da autorização de residência, que não existia no momento da submissão da candidatura, passou a existir com o decurso do tempo decorrente da inércia do Recorrido; decurso do tempo que, para além da violação do princípio da decisão, previsto no artigo 13º, também se mostrou apto a bulir com o direito fundamental a uma boa administração que também é um princípio a que o Recorrido se encontra vinculado, nos termos do artigo 5º, ambos do CPA; a providência cautelar não é o meio adequado porque se evidencia a necessidade de uma decisão de mérito neste tipo de situações; e é desrazoável considerar que poderia obter uma decisão em tempo útil numa acção administrativa não urgente, considerando o atraso que se verifica na jurisdição administrativa; o tribunal a quo viu-se colocado na posição de decidir se o Recorrido incumpriu o seu dever de decidir e se a ausência de decisão, que no caso implica um acto vinculado por ter cumprido todos os requisitos legais para que lhe seja concedida ARI, violou ou não um direito fundamental; o prazo legal para decidir há muito que se encontra ultrapassado, impondo uma célere decisão de mérito, à semelhança do decidido nos acórdãos do TCAS que indicou; quanto mais tempo decorre desde a submissão da sua candidatura, mais urgente se torna a concessão de ARI; alegou que a violação a uma boa administração era o direito violado que conduziria a uma restrição, ainda que eventual, de outros direitos fundamentais, consagrados na CRP, o que é suficiente para de acordo com o acórdão 661/22.0BELSB desencadear um processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias; sob pena de violação do disposto no artigo 20º, nº 5 da CRP; andou mal o tribunal recorrido ao decidir como decidiu, desprotegendo a tutela que lhe é devida, perigando ainda mais a sua situação, desde já precária, pela inacção do Recorrido e a sua proverbial incapacidade decisória.

Apreciando.

A sentença recorrida rejeitou a petição do Recorrente por não se verificar o requisito da indispensabilidade, previsto no artigo 109º do CPTA, de acordo com o qual a IDLG será o meio adequado caso seja possível concluir que, em concreto e atendendo ao alegado no requerimento inicial, o requerente carece de uma decisão definitiva para tutelar o direito fundamental que invoca, o que não ficou demonstrado por o Requerente/recorrente não ter cumprido o ónus de alegação de factos concretos para o efeito.
Discorda o Recorrente, argumentando que nos artigos 29º a 84º da petição efectuou o enquadramento factual que especifica a necessidade urgente de uma decisão de mérito no seu caso.
Ora, da leitura dos referidos artigos constatamos que para além dos factos relativos a dados estatísticos sobre os cidadãos estrangeiros que aqui querem residir, ao investimento que efectuou em território nacional, à submissão do pedido de ARI, aos benefícios que espera obter para a sua família, constituída por cônjuge e filhos, que, contudo, não são parte na acção, o Requerente alega, em suma, que pretende fixar residência em Portugal para melhorar as suas condições de vida, o tempo decorrido desde que apresentou candidatura a ARI sem decisão causa-lhe grande frustração, angústia, ansiedade, a sua vida pessoal e profissional encontra-se suspensa, num limbo indefinido e num futuro incerto, não pode residir legalmente em Portugal por períodos superiores a 90 dias, não pode deslocar-se no país ou viajar para outros países europeus, como necessita, com frequência, no âmbito da sua actividade profissional, está-lhe vedada a fruição dos direitos fundamentais, constitucionalmente protegidos que se encontram ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana e com a residência, como sejam a saúde e a educação, preenche todos os requisitos legais para que lhe seja concedida ARI, a actuação do Recorrido para além de eticamente reprovável é ilegal, por violadora do dever de decisão no prazo legalmente previsto, e dos princípios gerais que a norteiam, como o da boa administração.
A saber, a alegação efectuada é genérica e insuficiente para se poder concluir que a instauração de uma acção administrativa de condenação à prática dos actos devidos de instrução e de decisão do procedimento de ARI, associada à providência cautelar necessária a assegurar a utilidade da decisão de procedência que viesse a ser proferida naquela, não seria o meio adequado para salvaguardar os seus direitos em tempo útil.
Dito de outro modo, o Recorrente limitou-se a alegar incómodos, sentimentos de frustração e angústia que normalmente os particulares sentem quando não são observados os prazos de tramitação e de decisão de um procedimento administrativo despoletado por requerimento que dirigiram à Administração.
O que é exigido no artigo 109º do CPTA para que seja admissível o uso do meio processual principal, urgente e excepcional que é a IDLG, é que o interessado/requerente alegue factos relativos à sua situação concreta que permitam concluir que necessita efectivamente de uma decisão judicial célere e de mérito que intime a Administração a actuar, positiva ou negativamente, por forma a assegurar o exercício em tempo útil do direito fundamental que considera ameaçado.
Um exemplo fácil de entender, é o do direito à greve, com uma data próxima marcada para o seu exercício num só dia, ameaçado pela fixação de serviços mínimos, nos termos da lei. Um trabalhador que, ainda assim, pretenda fazer greve naquela data só o conseguirá se, antes, obtiver uma decisão judicial de mérito que intime a entidade pública empregadora a, por exemplo, não lhe impor qualquer serviço mínimo. Nesta situação a instauração de uma acção impugnatória não urgente seria manifestamente inadequada e inútil pois, atenta a normal demora na sua tramitação, uma eventual decisão de procedência, proferida depois de a greve ter decorrido, não poderia permitir o exercício daquele direito fundamental, frustrado de forma irreversível no dia da greve. Também não poderia ser requerida providência cautelar pois se a mesma fosse decretada antes da data marcada para a greve, permitindo ao requerente exercer o seu direito à greve no dia previsto, ocorreria uma antecipação a título definitivo da pretensão deduzida na acção principal, esgotando, consumindo o objecto desta, o que não é processualmente admissível em sede de tutela cautelar.
No caso em apreciação vem alegada a violação continuada dos direitos do Recorrente, elegendo este o tempo que passou desde que submeteu a sua candidatura [quatro anos] como evidência da urgência que tem em resolver a sua situação, defendendo que quanto mais tempo passa maior é a urgência e que não pode esperar mais, tem de ter uma decisão judicial célere que intime o Recorrido a conceder-lhe a ARI já, o que não pode obter se tiver de instaurar acção não urgente.
Ora, são as alegadas circunstâncias específicas de cada caso, conjugadas com o decurso do tempo, que densificam, dão corpo ao juízo a efectuar sobre a especial urgência em obter uma célere decisão de mérito. Exemplificando com o caso referido pelo Recorrente do contador de água, a sua instalação ou reparação numa casa habitada será mais necessária e urgente há medida que os dias vão passando e os respectivos moradores vêem avolumar os efeitos de não poderem usufruir de água canalizada. Já numa casa em obras de beneficiação, cujo morador se encontra noutra habitação a aguardar o seu termo, o decurso do tempo, desde o momento em que foi formulado o pedido de instalação ou reparação até àquele em que o serviço é prestado, não parece assumir qualquer relevância na urgência ou no aumento desta, que aquele morador possa ter.
Assim, a mera alegação que decorreram quatro anos sem decisão do seu pedido de ARI não é suficiente, por si só, para evidenciar a urgência exigida no artigo 109º.
Pelo contrário, não havendo informação nos autos que o Recorrente tenha reagido contenciosa e atempadamente contra a inércia do Recorrido, é possível entender esta falta de reacção aliada ao decurso do tempo, como indícios de que o direito a salvaguardar não se encontra em perigo, ou seja, não justifica a urgência necessária para o uso desta acção de intimação – v. o acórdão do STA, de 16.11.2023, no proc. nº 0455/23.5BELSB, consultável in www.dgsi.pt.
Sendo, no entanto, de admitir que possam ocorrer factos supervenientes ao termo do prazo para exercer o direito de acção não urgente, que exijam a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção da conduta tida por indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito fundamental ameaçado. Factos que têm de ser alegados para o efeito, o que não se verifica na situação em análise.
Do mais que vem alegado resulta que o Recorrente tem a sua vida pessoal, familiar e profissional organizada no Camboja, onde continua a residir, quer vir para Portugal por achar que aqui vai ter uma vida melhor [apesar de a vida que tem no Camboja lhe ter permitido efectuar um investimento em território nacional de mais de €350 000,00], precisa da ARI para aqui poder residir legalmente, deslocar-se no território nacional e viajar para outros países europeus, como necessita, com frequência, no âmbito da sua actividade profissional, e considera que lhe está vedada a fruição dos direitos fundamentais, constitucionalmente protegidos, que se encontram ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana e com a residência, como sejam a saúde e a educação.
Ora, para além de mais uma vez se limitar a uma alegação genérica de direitos ameaçados, mormente o direito à saúde e educação, sem explicar da sua necessidade pessoal em os exercer, das diligências que efectuou para lhes aceder, se o respectivo exercício lhe foi vedado, etc., a circunstância de não residir em Portugal obsta, desde logo, a que possa beneficiar do princípio da equiparação, previsto no artigo 15º da CRP, que reconhece aos estrangeiros que se encontrem ou residam em Portugal o gozo dos direitos e a sujeição dos deveres do cidadão português, que não excepcionados pelo disposto no nº 2.
A saber, se não reside em Portugal não pode invocar a violação de direitos que resultam ou estão associados à efectiva permanência e residência no território nacional.
Por outro lado, residindo no Camboja, onde tem a sua vida pessoal e profissional organizada, também não convence como justificação da exigida urgência no uso deste meio processual, a alegação genérica de que a sua vida se encontra suspensa, no limbo, na incerteza, em resultado da demora na tramitação do procedimento de concessão de ARI.
Em face do que bem decidiu o juiz a quo ao considerar que o Recorrente não cumpriu com o ónus de alegação e prova, como lhe compete, dos factos, por referência ao seu caso concreto, susceptíveis de evidenciar a urgência em obter decisão de mérito que intimasse o Recorrido a decidir o seu pedido de ARI, o mesmo é dizer que não logrou demonstrar a indispensabilidade de usar este meio processual.
De salientar que tal decisão, proferida em sede liminar, ao abrigo disposto nos artigos 109º e 110º do CPTA, não apreciou do mérito da causa, mas apenas da (não) verificação dos pressupostos adjectivos para a admissão deste meio processual. Assim, não procede a alegação [genérica] de violação do nº 5 do artigo 20º da CRP, porque não foi recusada a tutela dos direitos, liberdades e garantias de que o Recorrente se arroga titular, mas apenas o meio pelo qual pretendia efectivar essa tutela.
Quanto à alegação de que o tribunal recorrido só decidiu como decidiu porque estoicamente ignorou ou recusou seguir a jurisprudência resultante dos acórdãos de 23.3.2023, proc. nºs 2878/22.8BELSB e 2849/22.4BELSB e de 29.11.2022, proc. nº 661/22.0BELSB, é de referir,
- primeiro, nem mesmo os acórdãos do STA de Uniformização de Jurisprudência são vinculativos para os demais tribunais, inexistindo qualquer obrigação para os tribunais de 1ª instância em seguir o entendimento vertido num determinado acórdão de tribunal superior [excluindo a situação de obrigatoriedade de dar cumprimento ao julgado em recurso de decisão proferida nos próprios autos], em especial quando na matéria a jurisprudência não é unânime, pacífica;
- no acórdão proferido no proc. nº 2849/22.4BELSB está em causa o decidido numa providência cautelar e não numa acção de IDLG [não explicando o Recorrente em que termos o tribunal recorrido deveria ter “seguido” o exposto e decidido neste];
- no acórdão prolatado no proc. nº 2878/22.8BELSB [em que a signatária relatora também foi relatora] foi considerada a idoneidade da IDLG em que a Requerente pretendia o registo do seu nascimento no registo civil português, porquanto, do alegado na petição, resultou que, na data da instauração da acção, a mesma tinha 77 anos de idade e pretendia mudar a sua residência para Portugal, só após a integração do seu nascimento pelo registo civil português, perspectivando que tal mudança também demorasse algum tempo, entendeu-se que a conjugação destes factos consubstancia a exigida especial urgência para fazer uso da acção de intimação regulada pelo artigo 109º do CPTA – situação que nada tem a ver com a apreciada nos presentes autos em que o Recorrente, pelas razões supra expendidas, nada alegou para demonstrar existir no seu caso a exigida urgência;
- no acórdão prolatado no proc. nº 661/22.0BELSB a IDLG tinha por objecto a concessão de autorização de residência para trabalho subordinado, encontrando-se o requerente a residir em Portugal, a decisão foi de negar provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida de intimação do recorrido a decidir, com um voto de vencido da signatária relatora nos presentes autos «com fundamento na inidoneidade do meio processual usado pelo Recorrido por não resultar do alegado por este e da factualidade dada por provada na sentença recorrida que se encontra numa situação em que seja necessária a “célere emissão de uma situação de mérito (…) por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar” - cfr. o nº 1 do artigo 109º do CPTA», pelo que não só a situação apreciada não é idêntica à do Recorrente como não era a único entendimento possível na matéria.
Por fim, em relação ao que na sentença recorrida consta reproduzido do acórdão do STA, de 7.4.2023, proc. 036/22.0BALSB, a saber:
«…processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias, só podendo aquele meio ser utilizado quando o mesmo se revele indispensável para prevenir ou reprimir uma ameaça iminente dos referidos direitos. …» - trata-se de excerto da autoria de “Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha” em “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., Coimbra, 2017, pp. 886-887” que se reporta ao uso de IDLG e não especificamente ao caso concreto em apreciação naquele recurso;
«…não resulta uma obrigação de convolação do processo de intimação numa providência cautelar, mas apenas uma possibilidade de o fazer, quando o Tribunal entenda que a tutela requerida se basta com a adoção da mesma providência.», a qual não opera quando os requerentes «… não alegam factos que demonstrem a indispensabilidade, nem tão pouco a urgência da intimação – e por maioria de razão de uma providência cautelar - para prevenir ou reprimir uma ameaça iminente dos seus direitos, liberdades e garantias.» - consiste na interpretação que é feita do disposto no artigo 110º-A do CPTA, adequadamente reproduzida nos presentes autos uma vez que o juiz a quo considerou não verificada a indispensabilidade do meio processual.
No recurso o Recorrente vem defender que a tutela cautelar não seria idónea a salvaguardar os seus direitos.
Considerando que o juiz a quo não determinou, e bem, a substituição da petição por requerimento cautelar, por falta da exigida urgência, é desnecessário tecer mais considerações sobre a matéria. Apesar do que deixamos aqui uma nota de que este TCA tem vindo a entender que a convolação é possível, como resulta, designadamente, dos acórdãos de 25.5.2023, proc. nº 806/22.0BEALM, de 7.6.2023, proc. nº 166/23.1BEALM, de 13.7.2023, proc.s nºs 489/23.0BELSB e 1151/23.9BELSB, de 26.7.2023, proc.s nºs 18/23.5BESNT e 458/23.0BELSB - consultáveis em www.dgsi.pt.
Em suma, não se entende a surpresa manifestada pelo Recorrente perante a decisão de rejeição liminar prolatada, não tendo a mesma incorrido em qualquer dos erros de julgamento que lhe imputa.
Atendendo ao que o presente recurso não pode proceder.

Não são devidas custas por os processos de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias delas estarem isentos, nos termos do disposto na alínea b) do número 2 do artigo 4º Regulamento das Custas Processuais.

Por tudo quanto vem exposto acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, e, em consequência, manter a sentença recorrida na ordem jurídica.

Sem custas.

Registe e notifique.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024.


(Lina Costa – relatora)

(Marta Cavaleira, em substituição de
Ricardo Ferreira Leite)

(Ana Paula Martins)