Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:134/08.3BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:02/20/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:PRINCÍPIO DA IRREPETIBILIDADE DO PROCEDIMENTO INSPETIVO
Sumário:
I. Por referência a 2006 e 2007, o princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspeção externa restringia a realização de mais do que um procedimento externo de fiscalização ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, sem qualquer limitação no tocante à classificação do procedimento quanto aos seus fins, ao contrário do que sucede atualmente, salvo se fundamentada em factos novos.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 25.01.2013, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por J..... – Produtos Congelados e Alimentares, Lda (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto as liquidações de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e respetivos juros compensatórios, atinentes ao ano de 2005.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“A. Ao invés do proclamado na sentença recorrida, o procedimento inspectivo de que resultou a liquidação de IVA impugnada não teve duração superior a um ano, como decorre da prova documental que atesta ter-se o mesmo iniciado em 2007-08-09, com a assinatura pelo contribuinte da respectiva ordem de serviço (n.º OI 2007.....), finalizando a 2007-10-15, com a notificação postal do relatório final de Inspecção Tributária.

B. Também não está escorada por elementos probatórios suficientes a conclusão de que teria a inspeccionada suportado quatro procedimentos de fiscalização externa ao mesmo exercício de 2005, todos susceptíveis de afectar a definição da sua situação tributária.

C. Resulta sim dos documentos juntos aos autos que as três acções credenciadas por despacho, destinadas a consulta, recolha ou cruzamento de elementos, tiveram, todas elas, âmbito, extensão, duração e funcionários credenciados diferentes, não permitindo configurar qualquer identidade entre elas.

D. Identidade que, por maioria de razão, também não se verifica relativamente ao procedimento inspectivo externo, credenciado por ordem de serviço e destinado à confirmação e indagação da situação tributária da impugnante e do qual resultaram as correcções à matéria tributável, prévias à emissão do acto tributário em crise.

E. Circunstâncias que não permitem concluir estarmos perante uma única acção inspectiva com duração superior a seis meses, sem prorrogação expressa e devidamente fundamentada, ou terem ocorrido várias acções inspectivas, com idênticos fins e motivações, incidentes sobre o mesmo inspeccionado.

F. Por conter erros substanciais quanto à apreciação e valoração da prova documental carreada para os autos e também por carecerem do adequado suporte probatório as conclusões alcançadas no aresto recorrido, enferma este de erro na apreciação da matéria de facto e de insuficiência de fundamentação de facto.

G. As leis tributárias legitimam que ao mesmo sujeito passivo, e quanto a idêntico período de tributação, se façam vários procedimentos inspectivos de consulta, recolha e cruzamento de elementos, quando os mesmos se destinem apenas a reunir dados sobre o próprio ou sobre terceiros com quem tenha relações económicas.

H. Nos termos dos artigos 2º e 46º do RCPIT, os procedimentos inspectivos realizados ao abrigo de ordem de serviço dirigem-se à análise da actividade do sujeito passivo inspeccionado, implicando uma tomada de posição expressa da Administração Tributária, concretizada através da elaboração do relatório preconizado no art.º 62º do diploma.

I. Já não assim quando a credenciação para o procedimento é efectuada por meio de despacho, conforme os nos. 2, 4 e 5 do RCPIT (consulta, recolha e cruzamento de elementos; controlo de bens em circulação; controlo de sujeitos passivos não registados), de que não resultarão a confirmação ou definição da situação tributária dos inspeccionados.

J. Ao não se ter verificado, não sendo demonstrado na sentença recorrida, o preenchimento dos requisitos cumulativos da identidade do inspeccionado, do âmbito das inspecções efectuadas e da sua extensão, inexiste aqui a violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspectivo externo, consagrado no art.º 63º, n.º 4 da LGT.

K. A ratio da norma procura garantir a proporcionalidade e a adequação entre os incómodos gerados ao contribuinte pela realização dos procedimentos inspectivos e os fins visados por tais procedimentos, com a necessidade daquele ver a sua situação definida pela tomada de posição da Administração Tributária.

L. De igual modo, resultando dos elementos dos autos que o procedimento inspectivo externo destinado à confirmação e indagação da situação tributária da inspeccionada teve duração inferior a seis meses, não ocorre a violação do prazo de duração geral do procedimento que vem estipulado no art.º 36º, nº. 2 do RCPIT.

M. Esta patente insuficiência da sentença recorrida em alcançar, de modo cogente e pleno, a adequada subsunção dos factos relevantes às normas jurídicas que nela se invocam reputa-se constituir vício gerador de erro na interpretação e aplicação do Direito, o que para todos os efeitos se invoca.

N. Por último, ainda que efectivamente se tivesse verificado uma violação ao princípio da irrepetibilidade dos procedimentos de inspecção ou ao prazo geral de duração da acção inspectiva, não se especifica na decisão ora impugnada qual a concreta norma jurídica que dita a anulação do acto tributário sequente.

O. Incorrendo assim a sentença recorrida em vício de omissão de fundamentação legal, ao cominar com anulabilidade, sem precisar o preceito sancionatório que determinaria, de modo necessário, a remoção da ordem jurídica da liquidação adicional de IVA contendida.

P. Tudo razões que se afiguram bastantes para conduzir à prolação de um juízo que determine a revogação da decisão aqui recorrida e, do mesmo passo, venha confirmar a valia do acto tributário impugnado, menos avisadamente anulado pelo Tribunal a quo”.

A Recorrida não contra-alegou.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:
a) Há erro de julgamento, de facto e de direito, não tendo sido violado o princípio da irrepetibilidade do procedimento inspetivo?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1. Até ao 23/7/2007 a impugnante tinha a denominação “J..... – Produtos Congelados e Alimentares, Lda”; de 23 de Julho de 2007 a 10 de Agosto de 2007 a denominação passou a ser “C..... – Importação e Exportação, Lda”. Em 10 de Agosto de 2007 a denominação voltou a ser “J..... – Produtos Congelados e Alimentares, Lda” (fls. 5 do relatório cujo conteúdo se dá por reproduzido)

2. No dia 7/3/2006 foi a impugnante notificada, na pessoa do sócio gerente, do procedimento de inspecção n.º DI2006.....26 para consulta, recolha e cruzamento de elementos relativa aos períodos de 2002, 2003, 2004 e 2005 (fls. 40 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. O procedimento iniciado em 7/3/2006 foi concluído em 9/8/2007 (fls. 32 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

b. No dia 7/3/206 foram recolhidas as bases de dados do software relativas ao período anterior a 30/6/2005 (Fls. 12 do relatório cujo conteúdo se dá por reproduzido).

c. No mesmo dia os serviços da AT efectuaram o termo de entrega junto a fls. 32 cujo conteúdo se dá por reproduzido.

d. Consta do termo terem sido efectuadas duas cópias em CD não regravável identificado com o n.°s .....23 e .....10 (fls. 32 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

e. Com data e 10/3/2006 foi lavrada informação referente aos elementos recolhidos nesta acção (fls. 39 dos autos cujo conteúdo se dá por reproduzido)

3. Em 9/6/2006 foi emitido o despacho DI2006.....94 para procedimento de inspeção nos termos dos n.ºs 4 e 5 do art.º 46º RCPIT, «para consulta, recolha e cruzamento de elementos» (fls. 37 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. Este procedimento teve início em 12/6/2006 (fls. 37 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

b. E foi concluído em 9/8/2007 (fls. 38 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

4. Em 5 de Junho de 2007 foi emitido novo despacho DI2007.....40 também para «consulta, recolha e cruzamento de elementos» dos exercícios de 2004 e 2005 (fls. 48 dos autos cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. Este procedimento teve início em 23/7/2007, antes de estarem concluídos os procedimentos iniciados pelo despacho DI2006.....26 de 6 de Março de 2006 e DI2006.....94 de 12 de Junho de 2006

b. No âmbito desta DI2007.....40, em 18/10/2007 foi o sócio gerente da impugnante notificado para prestar esclarecimentos relativamente às aquisições de pescado registadas na conta …..77 (fls. 49 cujo conteúdo se dá por reproduzido)

c. Até à data da apresentação da petição inicial não foi a impugnante notificada da conclusão do procedimento iniciado com a DI2007.....40.

5. Em cumprimento da OS OI2007.....74, de 27/7/2007, foi a impugnante notificada na pessoa do seu gerente da carta aviso mencionando que «a muito curto prazo se deslocará à morada acima referenciada, técnico dos Serviços de Inspecção Tributária» (fls. 30 e 31 cujo conteúdo se dá por reproduzido),

a. A carta aviso foi emitida com data de 31/3/2007 (fls. 31 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido)

b. O procedimento de inspecção foi iniciado em 9/8/2007 (fls. 34 cujo conteúdo se dá por reproduzido) e concluído em 16/8/2007 (fls. 53 dos autos cujo conteúdo se dá por reproduzido).

c. O relatório é constituído por 27 páginas e vários anexos.

6. Foram efectuadas correcções técnicas nos termos que constam do relatório, apurando-se IVA a pagar no montante de € 40.684,16”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Factos não provados:

Com interesse para a decisão da causa nada mais se provou”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos, referidos nos «factos provados» com remissão para as folhas do processo onde se encontram”.

II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda­‑se em aditar a seguinte matéria de facto provada:

7. O relatório de inspeção tributária mencionado em 5.c. data de 10.10.2007 (cfr. fls. 44 a 69 do processo administrativo).

8. O relatório de inspeção tributária mencionado em 5.c. foi comunicado à Impugnante, conforme ofício, remetido via correio postal registado a 12.10.2007 (cfr. fls. 43 do processo administrativo).

II.E. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda­‑se em alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II.A., em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração[1].

Nesse seguimento, é alterada a redação do facto 5.b. transcrito supra, que passará a ser a seguinte:

5.b. O procedimento de inspeção foi iniciado em 9/8/2007 (fls. 34 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

II.F. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Considera a Recorrente que o Tribunal recorrido errou o seu julgamento de facto, apontando, acima de tudo, errada subsunção dos factos ao direito (questão a apreciar em sede de análise do alegado erro de julgamento, não configurando impugnação da matéria de facto).

No entanto, e de concreto, aponta um erro na decisão proferida sobre a matéria de facto, atinente à data da sua conclusão que, em seu entender, ocorreu a 15.10.2007.

Considerando o disposto no art.º 685.º-B do CPC/1961 (a atentar para efeitos de análise das alegações de recurso, considerando a data de apresentação das mesmas, correspondendo, em grande medida, ao disposto no art.º 640.º do CPC/2013), a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão[2].

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 685.º-B, n.º 1, al. a), do CPC/1961, equivalente ao art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC/2013];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 685.º-B, n.º 1, al. b), do CPC/1961, equivalente ao art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC/2013], sendo de atentar nas exigências constantes dos n.ºs 2 e 4 do mesmo art.º 685.º-B, do CPC/1961.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­‑se-lhe os ónus já mencionados[3].

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que a Recorrente, apesar de identificar de forma percetível o facto que pretende ver alterado, não cumpre, não obstante, os demais ónus a seu cargo, designadamente no tocante à identificação dos concretos meios de prova em que funda a sua pretensão.

Como tal, cumpre rejeitar o recurso nesta parte.

Sempre se diga que este Tribunal, no uso dos poderes que lhe advêm do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, fez aditamentos e correções à decisão proferida sobre a matéria de facto, que permitem cabalmente concluir pela data da conclusão da ação inspetiva.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento de facto e de direito

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que, na sua perspetiva, não resulta da prova produzida que a Recorrida tenha suportado quatro procedimentos de fiscalização externa ao exercício de 2005, todos suscetíveis de afetar a definição da sua situação tributária. Considera ainda que não se pode concluir tratar-se de uma única ação inspetiva de duração superior a seis meses, não tendo sido violado o disposto no art.º 36.º, n.º 2, do RCPIT. Defende, por outro lado, que o enquadramento normativo permite que, ao mesmo sujeito passivo e quanto a idêntico período de tributação, se façam vários procedimentos inspetivos de consulta, recolha e cruzamento de elementos, quando os mesmos se destinem apenas a reunir dados sobre o próprio ou sobre terceiros com quem tenha relações económicas, não tendo sido violado o princípio da irrepetibilidade do procedimento inspetivo externo. Entende ainda que padece a decisão recorrida de vício de omissão de fundamentação legal, por não especificar qual a concreta norma jurídica que dita a anulação do ato tributário.

Vejamos então.

O apuramento da situação tributária dos contribuintes pode ser feito através de atos de inspeção levados a cabo pela administração tributária (AT).

O procedimento inspetivo é, pois, um procedimento tributário, como decorre, desde logo, do art.º 54.º da Lei Geral Tributária (LGT). O então n.º 5 (atual n.º 6) desta mesma disposição legal remete para diploma próprio a regulamentação do “exercício do direito de inspeção tributária” [o então Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT)[4], a que nos referiremos infra].

Atentando no n.º 1 do art.º 2.º do RCPIT, “[o] procedimento de inspeção tributária visa a observação das realidades tributária, a verificação do cumprimento das obrigações tributária e a prevenção das infrações tributárias”.

Sendo levado a cabo pela AT um procedimento inspetivo, o mesmo tem os seus termos e limites legalmente estabelecidos, por forma a que, desde logo, sejam respeitados os princípios da adequação e da proporcionalidade (cfr. art.º 63.º, n.º 3, da LGT), princípios esses, aliás, cujo respeito pela administração pública, na sua atuação, encontra assento na nossa lei fundamental (cfr. art.º 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

Sobre os termos em que a inspeção tributária deve ser levada a efeito, há que apelar, então, ao já referido RCPIT (aprovado pelo DL n.º 413/98, de 31 de dezembro, constituindo o seu anexo).

Como resulta do preâmbulo deste diploma:

“[T]endo em conta a natureza da actividade inspectiva, a Administração não poderá estar subordinada a uma sucessão imperativa e rígida de actos. Porém, esta circunstância não prejudica a consagração de regras gerais de actuação visando essencialmente a organização do sistema, e consequentemente a garantia da proporcionalidade aos fins a atingir, da segurança dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários e a própria participação destes na formação das decisões, evitando a proliferação de litígios inúteis.

No respeito por estes princípios, a Lei Geral Tributária acolheu uma concepção da inspecção tributária harmónica com o moderno procedimento administrativo e as garantias dos cidadãos.

Assim, a natureza do presente diploma é essencialmente regulamentadora não se pretendendo alterar os actuais poderes e faculdades da inspecção tributária nem os deveres dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários que se mantêm integralmente em vigor.

No entanto, a melhor sistematização da acção fiscalizadora incrementará a sua eficiência e eficácia, bem como a segurança do procedimento de inspecção, tendo sido diminuída a margem de discricionaridade” (sublinhados nossos).

O RCPIT define, pois, os termos em que deve ser levado a cabo o procedimento inspetivo, consagrando, designadamente, desde os princípios globais em termos de atuação (cfr. art.ºs 5.º a 10.º), à classificação dos procedimentos (cfr. art.ºs 12.º a 15.º), à competência para os mesmos (cfr. art.ºs 16.º a 19.º), ao planeamento e seleção (cfr. art.ºs 23.º a 27.º) e aos termos do procedimento propriamente dito (cfr. art.ºs 28.º e ss.).

Especificamente quanto à classificação dos procedimentos de inspeção tributária, o RCPIT prevê várias classificações, sob diversos prismas.

Concretizando:
a) Quanto aos fins, o procedimento de inspeção pode ser (cfr. art.º 12.º, n.º 1, do RCPIT):

a.1. De comprovação e verificação;

a.2. De informação;
b) Quanto ao lugar do procedimento, o mesmo pode ser (cfr. art.º 13.º do RCPIT):

b.1. Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da AT através da análise formal e de coerência dos documentos;

b.2. Externo, quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependência dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso;
c) Quanto ao âmbito, o mesmo pode ser (cfr. art.º 14.º do RCPIT):

c.1. Geral ou polivalente, quando tiver por objeto a situação tributária global ou conjunto dos deveres tributários dos sujeitos passivos ou dos demais obrigados tributários;

c.2. Parcial ou univalente, quando abranja apenas algum ou alguns tributos ou algum ou alguns deveres dos sujeitos passivos ou dos demais obrigados tributários ou se limite à consulta, recolha de documentos ou elementos determinados e à verificação de sistemas informáticos dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários, ou ao controlo de bens em circulação.

Nos termos do art.º 36.º do RCPIT, atinente ao prazo do procedimento de inspeção, este é contínuo e o procedimento deve ser concluído no prazo máximo de seis meses, contados da notificação do seu início (cfr. n.º 2 do art.º 36.º), podendo tal prazo ser ampliado até duas vezes, por períodos de três meses (cfr. n.ºs 3 e 4 do mesmo art.º 36.º).

É ainda pertinente, in casu, atentar no disposto no então art.º 63.º, n.º 3, da LGT, nos termos do qual:

“3 - O procedimento da inspeção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objetivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas”.

Consagra-se nesta disposição legal o chamado princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspeção externa, que, à época, restringia a realização de mais do que um procedimento externo de fiscalização ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação (sem qualquer limitação no tocante à classificação do procedimento quanto aos seus fins, ao contrário do que sucede atualmente), salvo se fundamentada em factos novos.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

O Tribunal a quo entendeu que, in casu, atento o conjunto de ações inspetivas ocorridas, foi violado o disposto no n.º 3 do art.º 63.º da LGT. Entendeu ademais que, considerando o teor do RIT, na verdade os elementos tidos em conta em sede de inspeção foram os recolhidos ao abrigo da DI2006.....26, que durou aproximadamente 17 meses, tendo, assim, a ação inspetiva durado na verdade mais de um ano, sem que tenha havido qualquer prorrogação do prazo.

É contra este entendimento que se insurge a Recorrente, nos termos já referidos supra.

Sobre situação em tudo idêntica à ora em apreciação já se pronunciou este TCAS, em Acórdão proferido a 13.12.2019, no âmbito dos autos n.º 132/08.7BELRA, relativa a impugnação judicial atinente à liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) respeitante ao exercício de 2005.

Ali se escreveu:

“A AT defende que as ações de inspeção destinadas a consulta, recolha ou cruzamento de elementos tiveram todas âmbitos, extensão, duração e funcionários diferentes, não permitindo configurar qualquer identidade entre elas. Identidade que por maioria de razão também não se verifica em relação ao procedimento de comprovação e verificação credenciado pela OI2007.....74.

Sem razão, a nosso ver, pois o facto de não haver identidade nos procedimentos não afasta a regra de que o sujeito passivo não pode ser sujeito a mais do que uma inspeção [referente ao mesmo período de tributação e imposto].

A aplicação do disposto no n.º 3 do art. 63.º da LGT não dependia da identidade dos fins, âmbitos e extensões dos procedimentos de fiscalização. Desde logo por tal restrição ao conceito de “procedimento externo” não resultar da previsão normativa, e portanto, considerar a interpretação restritiva pugnada pela Fazenda Pública colocaria em causa o princípio da segurança jurídica que a norma visa tutelar.

Devemos ter presente que a tutela visada por aquela disposição legal é a segurança jurídica e a estabilidade da relação fiscal, e não a protecção pelos “contratempos, embaraços e dificuldades provocados” na rotina comercial dos contribuintes, por uma acção de inspecção externa [nesse sentido, cfr. Gustavo Lopes Courinha, Irrepetibilidade das Inspecções, Um Contributo Jurisprudencial, Revista do IDEFF, Ano 7, N.º 1, p. 181].

Outras classificações do procedimento de fiscalização [fins, âmbitos e extensões] para além da “externa”, não se encontram previstas na hipótese legal, para que se possa ter em consideração como elemento restritivo do âmbito da previsão normativa [2] O actual n.º 4 do art.º 63º LGT já não permite esta interpretação.

A proibição sancionada art. 63.º/3 do LGT encontra-se circunscrita ao procedimento externo de fiscalização [por oposição ao procedimento interno] e diz respeito à classificação do procedimento quanto ao lugar [art. 13.º do RCPIT], independentemente da sua classificação quanto ao fim [art. 12.º do RCPIT], âmbito e extensão [art. 14.º do RCPIT].

(…) Ora, o legislador do art. 63.º/3 LGT apenas se refere ao procedimento externo, cuja classificação, como já referimos, entronca no “Lugar do procedimento de inspecção” [art. 13.º RCPIT]. Não alude a qualquer outra classificação prevista no Capítulo III do RCPIT, nem faz qualquer subclassificação do procedimento externo por forma a restringir a previsão legal.

Assim, não há razões para crer que o legislador pretendesse restringir o âmbito daquele preceito legal às situações em que ocorre identidade de fins, âmbito e extensão do procedimento. Tal interpretação implica necessariamente uma restrição derivada de subclassificações do procedimento externo, sem que se tenha feito referência expressa na norma legal, o que coloca em causa o princípio da segurança jurídica.

Face ao exposto, não procede a tese defendida pela AT segundo a qual as leis tributárias legitimam que ao mesmo sujeito passivo, e quanto a idêntico período de tributação, se façam vários procedimentos inspetivos de consulta, recolha e cruzamento de elementos, quando os mesmos se destinem apenas a reunir dados sobre o próprio ou sobre terceiros com quem tenha relações económicas.

Para além desta ilegalidade, a sentença desenvolve um segundo argumento que consiste na circunstância de a AT ter procedido à consulta, recolha e cruzamento de informação nos termos das DI2006.....26 e DI2006.....94 mas estas acabaram por constituir parte integrante do Relatório da Inspeção realizado ao abrigo da OI2007.....74, como claramente resulta de fls. 12 do RIT

[3] Que diz o seguinte: “Na comparação das prestações de serviços com as existências teve-se em conta os elementos relativos a compras e vendas constantes na base de dados de software de facturação e restantes módulos que foi recolhida na empresa de modo que a seguir se descreve: Com base no despacho n.º DI2006.....26 (...) procedeu à recolha das bases de dados de software de facturação e restantes módulos:-no dia 7-03-2006, as relativas ao período anterior a 30-06-2005; - no dia 17-05-2007, as relativas ao período posterior a 01-07-2005...”.

Sobre esta matéria o Exmo. Representante da Fazenda Pública nada diz. Mas parece claro que não tendo havido qualquer despacho a alterar os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de informação, nos termos do art.º 15º/1 do RCPIT, os elementos recolhidos não poderiam integrar o procedimento de verificação.

Por fim, o Exmo. Representante da Fazenda Pública alega que a sentença padece “de omissão de fundamentação legal” ao cominar com anulabilidade a liquidação, sem precisar o preceito sancionatório de determinaria, de modo necessário, a remoção da ordem jurídica da liquidação adicional de IRC contendida.

A este respeito a sentença recorrida refere que “...a ação inspecctiva de onde emerge a liquidação de IRC impugnada é manifestamente ilegal, pelo que ilegal é também a liquidação impugnada”, concluindo a final, pela anulação da liquidação de IRC impugnada.

 A nosso ver a sentença também não enferma de falta de fundamentação, porquanto a anulação é a sanção regra para o vício de violação de lei. Com efeito, uma vez que no âmbito do procedimento anterior à liquidação foi violado o disposto no art. 63.º/3 da LGT a liquidação enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, e nessa medida, a consequência jurídica dessa violação é a anulação, nos termos do disposto no art. 135.º do CPA [que corresponde ao actual n.º 1 do art. 163.º]: “[s]ão anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção”[5].

Considerando esta fundamentação, à qual se adere, resulta que, in casu, foi violado o princípio da irrepetibilidade dos procedimentos de inspeção, porquanto não é controvertido que foram realizados quatro procedimentos de inspeção de natureza externa (três de informação e um de comprovação e verificação), relativos ao mesmo sujeito passivo, todos abrangendo globalmente o exercício de 2005, fundamento per se suficiente para concluir pela ilegalidade das liquidações decorrentes do procedimento viciado na sua génese, atento o enquadramento legal então vigente. Carece, pois, de pertinência apreciar o alegado quanto à duração do procedimento.

Quanto à alegada falta de fundamentação, por falta de indicação da norma legal ao abrigo da qual foi considerar de anular, a mesma não tem qualquer impacto em termos de validade da decisão recorrida. Com efeito, no nosso ordenamento, a regra inerente à verificação de um vício invalidante de um ato é a sua anulação (cfr. atual art.º 163.º do Código de Procedimento Administrativo – CPA, equivalente ao art.º 135.º do CPA de 1991), sendo, pois, exceção a sua declaração de nulidade (cfr. art.º 161.º do CPA). O facto de o Tribunal a quo não ter em concreto indicado a disposição legal que prevê esta regra geral não afeta a fundamentação da sentença nem afeta a sua validade.

Como tal, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 20 de fevereiro de 2020

(Tânia Meireles da Cunha)

(Anabela Russo)

(Vital Lopes)


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[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
[2] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
[3] V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
[4] Sobre os antecedentes deste diploma, v. Jesuíno Alcântara Martins, Procedimento e Processo Tributário, Instituto de Formação Tributária, Lisboa, 2002, pp. 89 e 90. V. igualmente a Resolução do Conselho de Ministros n.º 119/97, publicada no Diário da República, I Série-B, n.º 160, de 14.07.1997.
[5] Cfr. a este respeito os Acórdãos do TCAS de 23.04.2015 (Processo: 06182/12), de 14.04.2015 (Processo: 05674/12), de 29.06.2016 (Processo: 09297/16).