Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1920/20.1BELSB-S1
Secção:CA
Data do Acordão:10/07/2021
Relator:LINA COSTA
Descritores:INCIDENTE,
LEVANTAMENTO EFEITO SUSPENSIVO;
PREJUÍZOS,
FACTOS NOTÓRIOS E SUPERVENIENTES.
Sumário:I. O efeito suspensivo automático, previsto no nº 1 do artigo 103º-A do CPTA, resultante da transposição para o ordenamento jurídico nacional da Directiva nº 2007/66/CE, de 11/12/2007 (Directiva Recursos), opera ope legis, sem necessidade de intervenção judicial, verificadas as condições aí enunciadas;

II. O legislador, nacional e comunitário, pretendeu com o mesmo garantir a efectividade do recurso à via judicial, paralisando os efeitos da adjudicação até ser decidida da sua legalidade, evitando situações de facto consumado;

III. O levantamento do efeito suspensivo automático, incidente processual regulado nos nºs 2 a 4 do referido artigo 103º-A, caracteriza-se pela sua excepcionalidade e é efectuado por decisão do juiz, titular do processo de impugnação do acto de adjudicação cuja eficácia se encontra deferida, suportada na gravidade dos prejuízos decorrentes desse deferimento para o interesse público ou na sua desproporcionalidade para outros interesses (na redacção dada pela Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro);

IV. Constitui ónus da Entidade demandada e dos contra-interessados alegar e provar do grave prejuízo para o interesse público ou das consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos (v. nº 1 do artigo 342º do CC e nºs 2 e 4 do artigo 103º-A do CPTA);

V. De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 412º do CPC os factos notórios não carecem de alegação ou de prova, por serem do conhecimento geral, incluindo do juiz a quo, quando colocado na posição do cidadão comum, devidamente informado;

VI. A alegação de factos supervenientes será admissível em sede de recurso, em situações restritas, desde que estes tenham a ver com a causa de pedir invocada no pedido formulado perante o tribunal recorrido e sejam absolutamente determinantes para levar o tribunal de recurso a confirmar ou infirmar a decisão recorrida.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, IP devidamente identificada como Entidade demandada nos autos de acção de contencioso pré-contratual instaurados por M..., SA , e também contra A..., LDA. , na qualidade de contra-interessada, inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da decisão proferida em 15.2.2021, pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que decidiu julgar improcedente o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático suscitado.

Nas respectivas alegações, a Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem:
«A – Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida pelo TAC de Lisboa que julgou improcedente o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático previsto no art.º 103.º-A do CPTA, requerido pela ora Recorrente com referência ao procedimento de concurso público para a aquisição de “Serviços de Estudos e Projeto do Hospital de Proximidade do Seixal, Acessibilidades e Infraestruturas”, no âmbito do qual foi proferido ato de adjudicação da proposta da concorrente A..., LDA. , contrainteressada nos autos, cuja anulação é peticionada pela Recorrida nos autos de contencioso pré-contratual a que respeita o referido incidente.
B - A Recorrente não se conforma com esta decisão por entender que a mesma enferma de erro de julgamento, por interpretação e aplicação erróneas do disposto no art.º 103.º-A nºs. 2 e 4 do CPTA, determinante da respetiva revogação, conforme se passa a demonstrar.
C – No pedido de levantamento do efeito suspensivo automático a Recorrente identificou o interesse público subjacente à decisão de contratar – a necessidade de construir e colocar em funcionamento o Hospital de Proximidade do Seixal, com a finalidade de aumentar a capacidade de resposta do Hospital Garcia de Orta, que se encontra em situação de rotura, e, assim, assegurar o reforço de cuidados de saúde naquela região, que se encontra especialmente carenciada.
D – Ou seja, está em causa o direito constitucionalmente consagrado à proteção da saúde, cuja execução compete ao Estado Português (representado pela Recorrente no procedimento em causa nos autos), constituindo a instalação do referido equipamento hospitalar uma firme prioridade estratégica do atual Governo, cujo programa estabelece como prioridade a defesa do SNS (cfr. Portaria n.º 62/2018), e, bem assim um projeto de relevante interesse público municipal, conforme deliberação da Câmara Municipal do Seixal (Doc. n.º 6 do pedido).
E – Para além de ter demonstrado que estamos perante serviços públicos de carater estrutural, essenciais ao bem estar e à saúde pública da referida população, a Recorrente demonstrou que não tem forma de superar a suspensão automática da execução do contrato através de uma contratação alternativa e que a manutenção dessa suspensão causará graves prejuízos aos interesses públicos em presença, pois postergará para um momento futuro ainda mais longínquo (e incerto) a concretização do referido equipamento.
F – A Recorrente demonstrou também que os interesses públicos subjacentes à decisão de contratar são manifestamente superiores aos interesses privados salvaguardados com a manutenção do referido efeito suspensivo, e que os danos resultantes da manutenção deste efeito mostram-se igualmente superiores aos que poderiam resultar do seu levantamento para a Recorrida.
F - Não obstante a demonstração do preenchimento dos requisitos para o deferimento do pedido de levantamento do efeito suspensivo automático, o Tribunal a quo indeferiu-o, revelando ligeireza na análise das implicações da manutenção deste efeito e decidindo de forma conclusiva sem suporte fático e sem ter em conta os factos públicos e notórios que demonstram o oposto.
G – Efetivamente, atenta a fundamentação da douta decisão recorrida, para o Tribunal a quo, o retardamento da execução do projeto do Hospital do Seixal apenas implicará uma perturbação no interesse público subjacente à decisão de contratar - e não um grave prejuízo para o interesse público ou gerador de consequências claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos - porque a necessidade pública de assegurar melhores cuidados de saúde às populações não será imediatamente satisfeita com a execução do contrato.
H – Ou seja, para o Tribunal a quo, sempre que a necessidade que ditou a decisão de contratar não seja imediatamente satisfeita nunca se verificará grave prejuízo para o interesse público. E isto, independentemente dos concretos prejuízos da manutenção do efeito suspensivo automático para os interesses da Recorrida (e do próprio Estado) e da ponderação dos interesses em causa que, de resto, nem sequer foi feita. Pois o Tribunal a quo nem sequer referiu – por não existir – um qualquer prejuízo para a Recorrida decorrente do levantamento do efeito suspensivo automático, o que não é admissível.
I – Efetivamente, e pergunta-se, quais são os prejuízos decorrentes para a Recorrida? São superiores a quê e em que medida?
J - Fica, pois, por saber em nome de que interesse é que a recusa do levantamento do efeito suspensivo foi declarada, já que, a Recorrida defende apenas o legítimo, mas vulgar, interesse particular de qualquer concorrente com expetativa de vir a ser o escolhido e das vantagens/benefícios que poderá retirar da futura adjudicação, em contraponto com a Recorrente, que visa prosseguir um interesse público de incomensurável relevância, consistente na satisfação de necessidades fundamentais da população da península de Setúbal, nomeadamente, em matéria de saúde, desenvolvimento e bem estar.
K – Interesse público esse que, reitera-se, ficará gravemente prejudicado com a manutenção do efeito suspensivo automático do contrato na medida em que implicará um retardamento na execução do contrato – cujo prazo é, já por si, longo (238 dias) – fazendo acrescer mais uma dilação temporal (a da perduração do processo), por natureza de duração incerta, ao prazo de fornecimentos dos serviços de projeto do referido Hospital. Lançando, por conseguinte, para um momento futuro ainda mais longínquo (e incerto) a aquisição dos serviços de estudos e projeto do Hospital e, em consequência, a concretização efetiva deste equipamento público hospitalar, e, nessa medida, a satisfação das necessidades de saúde da população que irá ser servida pelo referido equipamento.
L – Acresce que, também é facto público e notório a crise de saúde pública que actualmente atravessamos, decorrente do novo coronavírus SARS-CoV-2, responsável pela doença Covid-19, e em sua decorrência, o elevado grau de exigência ao nível das necessidades na saúde e de sobrecarga dos hospitais, centros de saúde e dos próprios profissionais, tornando ainda mais premente a necessidade de tomar medidas para evitar a rotura do Serviço Nacional de Saúde.
M – Sendo ainda imprevisível o desfecho desta epidemia, pois embora tenham sido desenvolvidas vacinas que já começaram a ser administradas, não é certo que garantam uma imunidade completa e duradoura, atentas as mutações do vírus que têm vindo a surgir, factos que tornam ainda mais premente a necessidade de dotar o SNS de infraestruturas hospitalares capazes de fazer face à crescente procura dos cuidados de saúde, de que o Hospital de Proximidade do Seixal é exemplo.
N – Pelo que, e contrariamente ao decidido, a manutenção do efeito suspensivo automático fará perigar de modo gravoso a satisfação do direito à saúde da população da referida região, pondo em causa o funcionamento do SNS, pois terá o efeito de retardar a concretização e colocação em funcionamento do referido equipamento hospitalar.
O – Faz-se notar que, não sendo este efeito suspensivo levantado, o mesmo perdurará enquanto se mantiver pendente a ação de contencioso pré-contratual, sendo certo que, embora estejamos perante um processo urgente, a sua tramitação não é tão célere quanto desejável. O que desde logo resulta do hiato temporal de mais de 2 (dois) meses verificado entre a data da apresentação do pedido de levantamento do efeito suspensivo automático (03.12.2020) e a data da prolação de decisão sobre este incidente (15.02.2021), sendo que, apesar de a ação ter dado entrada em Tribunal em 21.10.2020, a única diligência realizada nos autos até à presente data foi a decisão deste incidente.
P – Acresce que, cabendo recurso de apelação para o TCA da decisão a proferir pelo Tribunal a quo nos autos, e tendo tal recurso efeito suspensivo, nos termos do art.º 143.º, n.º 1 do CPTA, mesmo que a sentença negue procedência ao pedido impugnatório do ato de adjudicação, mantendo-o, só com o trânsito em jugado dessa sentença cessará o efeito suspensivo automático previsto no art.º 103.º-A do CPTA, e não no momento da prolação daquela sentença.
Q – Acresce ainda que, ao referir na decisão recorrida que, “o tempo de delonga do processo judicial é um risco inerente a este tipo de procedimentos/concursos”, o Tribunal a quo olvida ainda que, na decorrência da situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, foram aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, medidas excecionais, incluindo em matéria de contratação pública e realização de despesa pública (cfr. art.º 2.º e 3.º), com o intuito de garantir às entidades prestadoras de cuidados de saúde do SNS a possibilidade de aquisição, com a máxima celeridade, dos equipamentos, bens e serviços necessários prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção epidemiológica por COVID-19, bem como à reposição da normalidade em sequência da mesma.
R – Uma das referidas medidas consiste precisamente na possibilidade de adotar o procedimento de ajuste direto consagrado na al. c) do n.º 1 do art.º 24.º do CCP (por critérios materiais) para a celebração de contratos de empreitada de obras públicas, de contratos de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços, independentemente da natureza da entidade adjudicante, na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa (art.º 2.º, n.º 1 do DL 10- A/2020).
S – O que apenas vem confirmar a essencialidade destes bens e serviços e a importância que os mesmos assumem no atual contexto epidemiológico, pelo que, e contrariamente ao decidido, a suspensão do procedimento e da execução do contrato não representa uma mera perturbação da prossecução do interesse público subjacente à decisão de contratar, mas sim graves prejuízos para interesses públicos fundamentais, os quais assumem ainda maior relevância face ao atual contexto epidemiológico e à incerteza do futuro da saúde pública em decorrência do mesmo.
T – Sendo evidente que os danos com a manutenção do efeito suspensivo serão muitíssimo superiores aos danos com o levantamento deste último, pois, os prejuízos que se poderão produzir na esfera da Recorrida nunca serão irreversíveis, uma vez que se tratará de prejuízos económicos, materiais, suscetíveis de serem indemnizados.
U – Ao invés os interesses e prejuízos atingidos com a não concessão do levantamento do efeito suspensivo serão incomensuravelmente maiores, pois está em causa o acesso e a prestação de cuidados para a promoção da saúde e prevenção da doença à população dos concelhos de Almada e Seixal, cuja ausência poderá determinar danos irreversíveis para a integridade física dos cidadãos daquelas regiões que deles necessitam.
V - Assim, e em suma, o Tribunal a quo decidiu de forma conclusiva e sem suporte fático ou com base em factos que demonstram o oposto, e com total ausência de fundamentação ou suporte nos factos carreados para os autos, como a total falta de demonstração da gravidade dos prejuízos para a Recorrida, decorrentes do levantamento do efeito suspensivo.
X – Violando, assim, o disposto no art.º 103.º-A do CPTA, motivo pelo qual a decisão proferida pelo Tribunal a quo deverá ser revogada e substituída por outra que declare o levantamento do efeito suspensivo, o que desde já se requer.
Sem prescindir,
Y – Posteriormente à prolação da decisão recorrida ocorreram factos que deverão ser tomados em consideração no presente recurso, ao abrigo do disposto nos arts.º 611.º e 663.º do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no art.º 140.º, n.º 3 do CPTA, e, bem assim da doutrina e jurisprudência citadas nas presentes alegações de recurso.
W –Tais factos prendem-se com o Plano de Recuperação e Resiliência de Portugal, submetido a consulta pública entre 15.02.2021 e 01.03.2021, consultável em https://www.consultalex.gov.pt/ConsultaPublica_Detail.aspx?Consulta_Id=183, um amplo documento estratégico, onde estão plasmadas reformas estruturais fundamentais para assegurar a saída da crise pandémica e garantir um futuro resiliente para Portugal.
Z – Este Plano prevê um investimento total de 1.383 milhões de euros em diversas vertentes para reforçar a capacidade do SNS, destinando 196 milhões de euros para aquisição de Equipamento dos Hospitais Seixal, Sintra e Lisboa, referindo na pág. 46: «Este investimento do PRR permite alavancar um conjunto de investimentos previstos de reforço da rede hospitalar numa região altamente pressionada, principalmente nas áreas suburbanas, altamente povoadas e na sua maioria mais constrangidas social e economicamente, e que tradicionalmente dispõem de menos apoios financeiros. Trata-se da aquisição de equipamentos para o Hospital de Lisboa Oriental e para os hospitais de proximidade de Seixal de Sintra.”
AA – Sucede que, de acordo com a Resolução Legislativa do Parlamento Europeu, de 10.02.2021, sobre a proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que cria um Mecanismo de Recuperação e Resiliência (COM(2020)0408 – C9-0150/2020 – 2020/0104(COD)), consultável em https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2021-0038_PT.pdf, a data limite para a conclusão dos marcos e metas definitivas para projetos de investimento e reformas é 31 de agosto de 2026 – arts. 18.º, n.º 4 e 20.º, n.º 5, al. d) da referida Resolução.
AB - Ora, a manutenção do efeito suspensivo nos presentes autos terá por efeito inviabilizar o cumprimento do referido projeto de investimento na aquisição de equipamento para o Hospital de Proximidade do Seixal, pois, a concretização do referido investimento obriga a que o Hospital de Proximidade do Seixal se encontre construído por forma a que o Estado possa iniciar os processos de aquisição e instalação dos equipamentos necessários ao respetivo funcionamento.
AC – Efetivamente, a construção deste equipamento terá de ser precedida da prática de diversos atos e da condução de vários procedimentos, assim como da execução de diversos serviços e de obras públicas, os quais requerem um período de execução significativo, desde logo:
a) A realização do Estudo Prévio do projeto do Hospital de Proximidade do Seixal;
b) A posterior obtenção do Reconhecimento de Relevante Interesse público (duração incerta) para a construção deste equipamento em área abrangida pela REN, mediante processo a desenvolver junto da CCDR-LVT;
c) A conclusão dos restantes serviços de projeto do Hospital do Seixal;
d) O lançamento e tramitação de procedimento para a aquisição de serviços de revisão do projeto do Hospital de Proximidade do Seixal;
e) A posterior revisão do projeto do Hospital do Seixal;
f) O posterior lançamento e tramitação do concurso público internacional de empreitada de construção do Hospital do Seixal;
g) A construção do Hospital do Seixal (2 anos, no mínimo);
AD – Ora, estimando um prazo de execução mínimo de 4 (quatro) anos para os referidos atos, procedimentos, serviços e obras, ao qual, inevitavelmente, acrescerão outros períodos de tempo decorrentes de eventuais derrapagens nos procedimentos ou na execução dos serviços e obras inerentes à instalação deste equipamento, é inegável que a manutenção do efeito suspensivo terá por efeito irremediável a postergação da construção deste equipamento para data posterior a 2026, e, assim, a impossibilidade de concluir a meta definida pelo Governo no Plano de Recuperação e Resiliência para Portugal relativa à aquisição de equipamento para o referido Hospital.
AE – Inviabilizando a exequibilidade, e como tal a obtenção, do referido investimento de milhões de euros.
AF – E se é certo que, a Resolução supramencionada permite, em caso de impossibilidade objetiva de executar o referido investimento, a apresentação de um novo Plano de Recuperação e Resiliência alterado, ou mesmo um novo plano, não é certo que o Governo Português consiga alcançar uma meta de investimento alternativa e elegível para a referida verba de milhões (art.º 21.º da Resolução).
AG – Pelo que, a não execução do contrato, nos termos normais, implica para Portugal o perigo real de perder o financiamento comunitário em causa, sem que o possa recuperar de qualquer outra forma, e a realidade económica e financeira do País não se compadece com o desperdício das ajudas que lhe chegam da União Europeia.
AH – Na verdade, tendo em atenção o período de tempo necessário para construir o Hospital de Proximidade do Seixal, a manutenção do efeito suspensivo automático durante a pendência da ação, e de eventuais recursos da decisão a proferir na 1.ª instância, tornará impossível a concretização do referido investimento, acarretando prejuízos financeiros muito gravosos para o Estado Português, os quais deverão ser evitados a todo o custo face ao contexto económico-social em que Portugal se encontra presentemente em decorrência da pandemia.
AI – Questões que sempre são significativamente superiores aos prejuízos que a Recorrida poderá sofrer com o levantamento do efeito suspensivo automático, que, como já se referiu, não têm expressão, já que, caso obtenha ganho na causa principal, sempre pode ser ressarcida dos eventuais prejuízos que vier a sofrer por não ter ganho o concurso, sendo estes meramente económicos e mensuráveis.
AJ – Ao passo que, os prejuízos que se irão produzir na esfera do Estado Português e nos interesses prosseguidos pela Recorrente, em representação do primeiro, são extraordinariamente gravosos, não só porque obstam à concretização do direito á saúde, inviabilizando a satisfação das necessidades de saúde mais elementares da população da área geográfica que o referido Hospital irá servir, como também são aptos a inviabilizar o recebimento de investimentos comunitários muito elevados destinados à aquisição do equipamento para esta infraestrutura hospitalar.
AK – Factos que não poderão deixar de ser atendidos em sede do presente recurso e que determinam a revogação da douta decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine o levantamento do efeito suspensivo automático, com o que se fará JUSTIÇA.».

A Contra-interessada apresentou contra-alegações, aderindo às alegações de recurso apresentadas.

A Recorrida, nas respectivas alegações, formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem:

«I - INCUMPRIMENTO DO ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
A) Ou seja, a Recorrente fundou o pedido do levantamento do efeito suspensivo no prejuízo decorrente do mero retardamento da execução do contrato.
B) Contudo, não alegou qualquer facto concreto objetivo relativo ao diferimento da execução do contrato ser gravemente prejudicial para o interesse público.
C) Não tendo, assim cumprido o ónus probatório que sobre si impendia;
D) Pelo que, o incidente de levantamento do efeito suspensivo automático teria sempre de ser julgado improcedente, não merecendo, assim, a sentença recorrida qualquer crítica.
E) Pelo que deve ser negado provimento ao recurso sob oposição, confirmando-se a sentença recorrida.
II - COVID 19 e PLANO DE RESILIÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE PORTUGAL
F) Estes dois eventos, como é público e notório, são factos do domínio público com largos meses, em especial, sendo que a Recorrente não lhes dispensou uma única palavra na sua contestação, quando o poderia ter feito e optou por não fazer!
G) Pelo que, como é bom de ver, não podem os mesmos ser agora invocados como supervenientes para fundamentar o seu recurso, pelo que devem ser desatendidos.
H) Acresce que a Recorrente vem invocar essas alegadas novas circunstâncias, mas em termos meramente genéricos e conclusivos e sem qualquer substrato factual concreto que a habilite a concluir como, erradamente, o faz, não cumprindo minimamente o ónus probatório de alegação e prova, pelo que necessariamente falece a sua pretensão;
I) Sem transigir, sempre se dirá que:
a) com os conhecimentos existentes à data, especialmente a vacinação em massa a nível mundial e as indicações dos especialistas em como a imunidade de grupo será atingida em Portugal ainda durante o ano de 2021, não se vê como pode a Recorrente, em boa fé, pode vir alegar que um Hospital que demorará, pelo menos, mais 4 a 5 anos a entrar em funcionamento, poderá ainda vir a ser essencial na luta contra a pandemia relativa ao Covid 19. Trata-se de argumento exclusivamente especulativo, mas também destituído de qualquer base fatual concreta, assim como de qualquer suporte probatório;
b) Tal como também é especulativa qualquer menção ao PRRP porquanto simplesmente inexiste qualquer nexo causal entre, por um lado, a pendência da presente ação e o efeito suspensivo automático e, por outro, uma qualquer hipotética perda de fundos eurpeus específicos, se é que isso alguma vez estará em risco e em que circunstâncias concretas que também se desconhecem.
J) Ou seja, a alegação da Recorrente prima pela especulação e pela ausência de quaisquer factos e provas concretas que permitam concluir, ainda que remotamente, que a pendência da presente ação de impugnação da deliberação de adjudicação à contra-interessada e a manutenção do efeito suspensivo sejam gravemente prejudiciais para o interesse público.
III - DO REGIME CONTIDO NO ART. 103.º-A DO CPTA
K) Directiva Recursos (Directiva 2007/66/CE) que está na origem da atual redação do art. 103.º-A do CPTA é aplicável a todos os setores de atividade, ou seja, o setor da saúde não beneficia de qualquer regime especial ou diferenciado;
L) Para que seja possível o levantamento do efeito suspensivo, é necessário que a entidade demandada alegue e prova factualidade que permita demonstrar, de forma concreta e sustentada, o carácter excecional do prejuízo decorrente da manutenção do efeito suspensivo. Não basta, assim, o prejuízo normal resultante da suspensão da adjudicação (retardamento dos serviços), sendo necessário que se verifique um outro prejuízo e superior ao que resulta da mera impugnação e diferimento da execução dos serviços.
M) Com esta solução legal, não se posterga o interesse público porquanto é em cumprimento deste interesse público e em seu favor e defesa que se pretende evitar adjudicar em termos ilegais, pois que para o legislador nacional e comunitário é preferível o prejuízo decorrente do diferimento da execução dos serviços adjudicados ao cometimento de uma ilegalidade no processo adjudicatório, sendo que o risco associado a essa decorrência cabe na esfera da entidade adjudicante que tem de o assumir.
N) In casu, a manutenção da situação atual (suspensão da adjudicação) não representa uma situação diversa da que é vivida há largos anos e que, por si só, não justifica o levantamento do efeito suspensivo;
O) E percebe-se que assim seja para garantir o efeito útil do processo de impugnação em estrito respeito do principio constitucional da tutela jurisdicional efetiva e do critério da reconstituição da situação atual hipotética de modo a colocar o lesado (a ora Recorrida) na situação em que se encontraria não fosse o ato lesivo (adjudicação ilegal).
P) Não tendo a Recorrente cumprido o ónus probatório que lhe competia, não pode a mesma, por força do disposto no n.º 1 do art. 103.º-A do CPTA, obter o levantamento do efeito suspensivo automático decorrente da pendência da presente ação de impugnação da referida adjudicação.
IV - CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS - OUTROS INTERESSES ENVOLVIDOS
Q) Sem prejuízo do exposto, não pode ser desvalorizado o facto da própria Recorrente ter dado azo a vários atrasos no procedimento concursal;
R) A natureza urgente da presente ação também contrasta e muito com o fato da própria Recorrente confessadamente nada ter feito quanto ao processo de reconhecimento de relevante interesse público (“RRIP”) de modo a poder ocupar uma área REN, processo esse que era, é e continua a ser crítico e prévio à possibilidade e legalidade da prestação de serviços, sob pena de violação do regime RJEN cuja consequência é a nulidade, conforme melhor se detalhou na petição inicial.
S) Ou seja, a Recorrente vem invocar o grave prejuízo para o interesse público decorrente da suspensão dos efeitos do ato de adjudicação e da celebração do contrato de prestação de serviços, quando ela própria nada fez de forma a possibilitar a efetiva legalidade desses serviços que prevêem a ocupação ilegal de uma área REN; sendo que a presente ação visa declarar nulo ou anular o ato de adjudicação por violação de norma expressa, a saber o disposto no n.º 1 do art. 27º do RJREN: São nulos os atos administrativos praticados em violação do disposto no presente capítulo ou que permitam a realização de ações em desconformidade com os fins que determinaram a exclusão de áreas da REN.
T) Não se podendo deixar de salientar que a Reserva Ecológica Nacional (REN) é uma estrutura biofísica que integra o conjunto das áreas que, pela sensibilidade, função e valor ecológicos ou pela exposição e suscetibilidade perante riscos naturais, são objeto de proteção especial!
U) Sendo certo que a Recorrente também não demonstrou, minimamente, tal como exige o art. 21º. n.º 1, do RJREN, que o referido edifício “não se possa realizar de forma adequada em áreas não integradas na REN”.
V) OU seja, não se consegue discernir qual o interesse público que a entidade adjudicante poderá estar a pretender prosseguir com adjudicação de um projeto de conceção de um edifício de Hospital numa zona REN proibida, sem qualquer expectativa de o poder vir a fazer legalmente. O que, em termos práticos, redundará num projeto de conceção ilegal de uma infraestrutura pública a situar-se numa zona ilegal, isto é, clandestino, insuscetível de ser aprovado. O que conduzirá, necessariamente, à anulação de todo o processado e aí, sim, com manifesto prejuízo para o interesse público e para o erário público.
Sem que se possa dizer que existia uma qualquer longínqua vantagem mínima ou benefício mínimo para o interesse público em todo este processo
W) Pelo que:
a) Inexistindo prejuízo grave;
b) Ponderado o interesse público e
c) Ponderados todos os interesses suscetíveis de serem lesados;
Inexiste simplesmente qualquer motivo que possa justificar o levantamento do efeito suspensivo resultante da instauração da ação de impugnação!».

Já perante este Tribunal, a Recorrente veio informar que em 19.7.2021 foi proferida sentença que julgou a acção de contencioso pré-contratual totalmente improcedente, absolvendo-a do pedido, e requerer que tal decisão seja considerada na apreciação do presente recurso no âmbito da ponderação dos interesses em presença, atendendo a que a mesma ainda não transitou em julgado.

Notificada do requerimento que antecede, a Recorrida veio dizer que interpôs recurso da sentença referida, pelo que, podendo a mesma vir a ser revogada, nada mudou em termos processuais, inexistem assim circunstâncias especiais que possam justificar o levantamento do efeito suspensivo

O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, não emitiu parecer.

Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. o nº 2 do artigo 36º do CPTA), o processo vem à Conferência para julgamento.

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 635º e nos nºs 1 a 3 do artigo 639º, do CPC ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA, consistem, no essencial, em saber se:
i) A sentença recorrida enferma de erro de julgamento, por interpretação e aplicação erróneas do disposto nos nºs 2 e 4 do artigo 103º-A do CPTA;
ii) Devem ser tomados em consideração factos notórios e que ocorreram após a prolação da sentença recorrida, ao abrigo do disposto nos artigos 611º e 663º do CPC;
iii) A prolação de sentença de improcedência na acção de contencioso pré-contratual deve ser considerada na ponderação dos interesses em presença.

A matéria de facto pertinente, que não foi impugnada pela Recorrente, é a constante da decisão recorrida e que se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 6 do artigo 663º do CPC ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA.

i) Dos erros de julgamento:

Alega a Recorrente que: não se conforma com o decidido na sentença recorrida; a mesma revela ligeireza na análise das implicações da manutenção deste efeito, decidindo de forma conclusiva sem suporte fáctico e sem ter em conta os factos públicos e notórios que demonstram o oposto; para o tribunal a quo sempre que a necessidade que ditou a decisão de contratar não seja imediata nunca se verificará grave prejuízo para o interesse público, independentemente dos concretos prejuízos invocados e da ponderação dos interesses em presença que nem sequer foi feita, por não existir prejuízo para si, o que é inadmissível; ficando-se sem saber em nome de que interesse é que a recusa do levantamento do efeito suspensivo foi declarada.
Nas conclusões C a F, J, K, N a P, T e U reitera os fundamentos que invocou no requerimento do incidente para suportar o pedido de levantamento do efeito suspensivo do acto impugnado na acção de contencioso pré-contratual - sinteticamente reproduzidas no relatório da sentença objecto de recurso.

Da fundamentação de direito da sentença recorrida extrai-se o seguinte:
“(…)
De acordo com a nova redação introduzida ao artº 103º-A, nº 1, do CPTA [com a Lei nº 118/2019, de 17/09], “1 - As ações de contencioso pré-contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos a procedimentos aos quais é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 95.º ou na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos, desde que propostas no prazo de 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes, fazem suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado.”.
A atribuição de efeito suspensivo está, pois, associada à impugnação do acto de adjudicação [só deste].
(…)
Assim sendo, operou a proibição da R. em prosseguir com o procedimento, de acordo com o regime do artº 103º-A, nº 1, do CPTA, visto que a ação deu entrada dentro do prazo dos 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes.
Porém, no nº 4 do artigo 103º-A do CPTA o legislador estabeleceu a possibilidade de ser levantado o efeito suspensivo automático, por decisão judicial, a requerimento das partes interessadas, “quando, ponderados todos os interesses suscetíveis de serem lesados, o diferimento da execução do ato seja gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos.”.
O critério de decisão fixado pela Lei nº 118/2019 impõe, assim, ao juiz “o dever da “ponderação de interesses” (de todos os interesses, públicos e privados, em presença), mas não decide apenas em função dessa ponderação (a favor dos interesses que se mostrem superiores). O levantamento do efeito suspensivo depende de limites absolutos: de haver “prejuízo grave para o interesse público” ou “consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses.”. – cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Lições, 2019-17ª edição, Almedina, p. 248.
Do que vem de referir-se resulta, então, que, para obter o levantamento do efeito suspensivo automático [sobre o ato de adjudicação ou sobre o contrato, se já celebrado] os interessados [a entidade adjudicante ou os contrainteressados concorrentes] têm o ónus de alegar [e provar] que o diferimento da execução é gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos [cfr. artº 103º-A, nº 4, do CPTA, conjugado com o artº 342º, n.º 1, do CC, 292º e 293º, nº 1, ambos do CPC].
Regressando ao caso dos autos, está em causa a adjudicação à Contrainteressada A…, LDA. do contrato para a “PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE ESTUDOS E PROJETO DO HOSPITAL DE PROXIMIDADE DO SEIXAL, ACESSIBILIDADES E INFRAESTRUTURAS”.
O projeto deve ser desenvolvido de acordo com as seguintes fases: a) Estudo prévio; b) Anteprojeto; c) Projeto de execução; e d) Assistência técnica.
O prazo global para a realização dos serviços objeto do contrato é de 238 dias.
Está, assim, em causa, um contrato que tem por objeto a execução do projeto do Hospital de Proximidade do Seixal, Acessibilidades e Infraestruturas.
Tal projeto, concernente à construção de uma Unidade Hospitalar Pública no Seixal, “constitui uma reivindicação, com quase duas décadas”, cuja concretização permitirá à população dos concelhos do Seixal, Almada e Sesimbra aceder a melhores cuidados de saúde (cfr. al. T), dos factos provados).
Do que vem de referir-se, admite-se que o retardamento do início da execução do projeto do Hospital de Proximidade do Seixal, Acessibilidades e Infraestruturas, consubstanciará uma perturbação da prossecução do interesse público subjacente à decisão de contratar, mas daí não se pode concluir que advenha um prejuízo anormal ou extraordinário, “gravemente prejudicial para o interesse público”, e que, como tal, deva ser urgentissimamente acautelado por via do incidente previsto no artº 103º, nº 4, do CPTA.
Tal como se entende, está em causa uma mera perturbação da prossecução do interesse público subjacente à decisão de contratar que não é bastante para assegurar o preenchimento dos requisitos de que o nº 4, do artº 103º-A, do CPTA faz depender o levantamento do efeito suspensivo automático da eficácia do ato de adjudicação. Repare-se que, toda e qualquer atividade administrativa – e, logo, também a atividade contratual da R. – se fundamenta na prossecução do/de um interesse público.
Deste modo, qualquer suspensão de um ato de adjudicação praticado no âmbito de procedimentos de formação de contratos públicos tem o efeito de perturbar a prossecução de políticas públicas.
Mas, esse prejuízo para a prossecução do interesse público foi ponderado pelo legisladornacional e europeuquando decidiu que, por regra, o postergaria e assim definiu o regime de suspensão automática dos efeitos do ato de adjudicação (ou do contrato entretanto celebrado).
Mesmo que se atente na política pública em causa - como aponta a R. - e se destaque a circunstância de estar em causa a elaboração do projeto do Hospital de Proximidade do Seixal, Acessibilidades e Infraestruturas -, a conclusão não se altera.
Faz-se notar, que a necessidade pública de assegurar melhores cuidados de saúde às populações não será imediatamente satisfeita com a execução do contrato aqui em causa.
Tem, pois, de concluir-se que nada nos autos aponta para uma efetiva urgência na aquisição dos serviços sub judice, que imponha que esta deva fazer-se desde já e não possa esperar pelo desfecho do contencioso pré-contratual que a opõe ao A..
Aliás, as entidades adjudicantes bem sabem que é expectável que os concorrentes preteridos recorram aos Tribunais para impugnar os atos procedimentais como seja de adjudicação a outro concorrente, pelo que o tempo de delonga do processo judicial é um risco inerente a este tipo de procedimentos/concursos. Sendo o regime regra o que decorre do citado artº 103º-A, do CPTA, ou seja, a suspensão imediata dos efeitos do ato de adjudicação ou mesmo a execução do contrato se este tiver sido celebrado.
Deste modo, analisados todos os aspetos relevantes, não pode concluir-se que razões imperiosas de interesse público impõem a manutenção dos efeitos da decisão de adjudicação. (…).» [sublinhados nossos].

Apreciando.

Da factualidade assente resulta que: a construção do Hospital do Seixal é uma reivindicação do correspondente Município de quase duas décadas, remontando a 2002; em 2009 foi celebrado entre o Estado Português e o Município do Seixal “Acordo Estratégico de Colaboração para o Lançamento do Novo Hospital Localizado no Seixal”, para racionalizar e reorganizar os cuidados de saúde na península de Setúbal; em 2018 o Governo assumiu a prioridade estratégica de instalar um Hospital de Proximidade no Seixal, autorizando, através da Portaria nº 62/2018, de 22 de Janeiro, a ARSLVT a assumir o encargo plurianual (de €1 000 000,00) de lançar concurso público de concepção e projecto do referido Hospital; em Junho de 2018 a ARSLVT autorizou a decisão de contratar e a realização da despesa; o anúncio do procedimento foi publicado em DR e no JOUE em Julho de 2018; o prazo global para a realização dos serviços, que compreende as fases de a) estudo prévio, b) anteprojecto, c) projecto de execução e d) assistência técnica, é, de acordo com o caderno de encargos, de 238 dias; na sequência de pedidos de esclarecimentos pelos candidatos, foram rectificados erros e omissões às peças do procedimento e prorrogado o prazo de apresentação de candidaturas, que terminou em 2.11.2018; em Janeiro de 2018 foi elaborado o Relatório Final da Fase de Qualificação das candidaturas e dirigido convite aos candidatos qualificados para apresentarem propostas; pedidos de esclarecimentos motivaram a prorrogação do prazo para apresentação das propostas, que terminou a 22.5.2019; em Julho de 2020 foi elaborado o Relatório Preliminar das Fases de Apresentação, Análise e Adjudicação das Propostas, propondo a adjudicação à Contra-interessada; em Agosto de 2020 foi elaborado o Relatório Final, mantendo a adjudicação; em 2.10.2020 o Conselho Directivo da aqui Recorrente deliberou aprovar o Relatório Final e adjudicar à Contra-interessada os “Serviços de Estudos e Projecto do Hospital de Proximidade do Seixal, Acessibilidades e Infraestruturas", tendo os concorrentes sido notificados em 7.10.2020; a presente acção foi instaurada em 21.10.2020 e a aqui Recorrente citada a 27.10.2020; em 27.10.2020 foi celebrado contrato com a Contra-interessada; a proposta da Contra-interessada prevê a ocupação de 980m2 de área REN; em Novembro de 2020 a Câmara Municipal do Seixal deliberou reconhecer o relevante interesse público municipal do projecto de concepção e construção do Hospital do Seixal.

Dispõe o artigo 103º-A do CPTA, na redacção dada pela Lei nº 118/2019, de 17 de Setembro, que:
«1- As ações de contencioso pré-contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos a procedimentos aos quais é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 95.º ou na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos, desde que propostas no prazo de 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes, fazem suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado.
2- Durante a pendência da ação, a entidade demandada e os contrainteressados podem requerer ao juiz o levantamento do efeito suspensivo previsto no número anterior.
3 - O autor dispõe de sete dias para responder, seguindo-se, sem mais articulados e no prazo máximo de 10 dias, a decisão do incidente pelo juiz.
4- O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados todos os interesses suscetíveis de serem lesados, o diferimento da execução do ato seja gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos.».
O efeito suspensivo automático, previsto no reproduzido nº 1, resulta da transposição para o ordenamento jurídico nacional da Directiva nº 2007/66/CE, de 11/12/2007 (Directiva Recursos), que, nos respectivos considerandos 21, 22 e 24, estipula:
«(21) O objectivo a atingir com o estabelecimento, pelos Estados-Membros, de regras que assegurem que um contrato seja considerado desprovido de efeitos é o de fazer com que os direitos e as obrigações das partes definidos no contrato deixem de ser exercidos e executados. As consequências decorrentes do facto de um contrato ser considerado desprovido de efeitos deverão ser estabelecidas pelo direito interno.(...)
(22) No entanto, para assegurar a proporcionalidade das sanções aplicadas, os Estados-Membros podem permitir que a instância responsável pela decisão do recurso não ponha em causa o contrato ou lhe reconheça determinados efeitos, ou todos eles, caso as circunstâncias excepcionais do caso em apreço exijam o respeito de certas razões imperiosas de interesse geral. Nesses casos deverão, em vez disso, ser aplicadas sanções alternativas. A instância de recurso independente da entidade adjudicante deverá analisar todos os aspectos relevantes a fim de estabelecer se existem razões imperiosas de interesse geral que exijam a manutenção dos efeitos do contrato. (…)
(24) O interesse económico na manutenção dos efeitos do contrato só pode ser considerado razão imperiosa se, em circunstâncias excepcionais, a privação de efeitos acarretar consequências desproporcionadas. No entanto, não deverá constituir razão imperiosa o interesse económico directamente relacionado com o contrato em causa”.
Assim, o efeito suspensivo automático opera ope legis, sem necessidade de intervenção judicial, verificadas as condições previstas na norma para o efeito.
E visa garantir a efectividade do recurso à via judicial, pois paralisando os efeitos da adjudicação até ser decidida da sua legalidade, evitam-se situações de facto consumado, em que uma sentença de procedência não confere ao impugnante o direito a executar o objecto do contrato, porque, entretanto, o mesmo já foi executado pela contra-interessada que beneficiou da adjudicação inválida.
Por sua vez, o levantamento do efeito suspensivo automático caracteriza-se pela sua excepcionalidade e é efectuado por decisão do juiz, titular do processo de impugnação do acto de adjudicação cuja eficácia se encontra deferida, suportada na gravidade dos prejuízos decorrentes desse deferimento para o interesse público ou na sua desproporcionalidade para outros interesses.
Significando que, no requerimento em que é formulado o pedido de levantamento suspensivo automático, a entidade demandada e os contra-interessados devem, têm o ónus de alegar e provar (cfr. o nº 1 do artigo 342º do Código Civil) do grave prejuízo para o interesse público ou das consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos. O autor responderá, contrapondo os prejuízos que lhe serão causados pelo levantamento do efeito suspensivo. Após o que, o juiz, ponderando os interesses susceptíveis de serem lesados, segundo um critério de proporcionalidade, decidirá.
Na situação em apreciação o interesse público a prosseguir prende-se com a construção de um Hospital no Seixal que se arrasta há décadas e, especificamente, com o procedimento concursal iniciado em Julho de 2018 (que até à deliberação de adjudicação demorou mais de dois anos) para prestação de serviços de estudos e projecto desse hospital, cujo prazo de execução será de 238 dias a contar da data do inicio da vigência do contrato, celebrado após a instauração da acção de contencioso-pré-contratual, no dia da citação da Recorrente, que se encontra suspenso por força do disposto no nº 1 do artigo 103º-A do CPTA.
Assim, os fundamentos invocados pela Recorrente para suportar o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático do acto impugnado e para alterar a sentença recorrida que o julgou improcedente, constituindo, sem dúvida, prejuízos para o interesse público decorrentes do deferimento da execução do contrato, em referência nos autos, carecem da gravidade legalmente exigida porque a elaboração dos estudos e do projecto, sendo um passo importante, não significa a concretização imediata desse interesse público que, mesmo após o trânsito em julgado da decisão recorrida e da proferida na acção, irá levar anos a verificar-se.
Entendimento que resulta também evidenciado pelo facto de a necessidade de prestação de cuidados de saúde à população que irá ser abrangida pelo novo hospital se verificar há quase duas décadas sem que a Recorrente [ou o Estado] tenha sentido a premência em promover mais cedo o concurso em referência nos autos, indispensável para iniciar o processo de instalação do referido hospital.
Donde, o retardamento do início da vigência do contrato, celebrado na sequência do acto de adjudicação impugnado, não configura mais do que um transtorno, um atraso (mais um), expectável por a situação em apreciação se enquadrar na previsão legal do nº 1 do referido artigo 103º-A [considerado aceitável pelo o legislador, nacional e comunitário], sem a necessária relevância, gravidade, urgência que imponha decisão diversa da aqui recorrida [no mesmo sentido v. o acórdão deste Tribunal de 5.4.2018, no proc. 1595/17.5BERLA-S1, consultável em www.dgsi.pt.].
Não tendo a Recorrente logrado provar os graves prejuízos para o interesse público ou das consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, não tinha o tribunal recorrido que ou como ponderar os interesses lesados em presença.
Em face do que não pode proceder este fundamento do recurso.

ii) Dos factos notórios e supervenientes à prolação da sentença recorrida:

Nas conclusões L, M, Q a S a Recorrente invoca, como facto público e notório, a situação de crise de saúde pública decorrente do novo coronavírus SARS-CoV-2 e das suas repercussões no SNS, na sobrecarga dos hospitais e nos profissionais de saúde, que tornam mais premente evitar a sua ruptura, dotando-o de infra-estruturas hospitalares capazes, como é exemplo o do Hospital em causa nos autos, que contribui para o agravamento dos prejuízos já alegados e decorrentes do efeito suspensivo automático.
O juiz a quo não levou tais factos à decisão da matéria de facto.
De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 412º do CPC os factos notórios não carecem de alegação ou de prova, por serem do conhecimento geral.
A situação de crise pandémica em que temos vivido, noticiada, desde o seu início, a toda a hora, todos os dias, por todos os meios de comunicação social, nacional e internacional, não pode deixar de ser do conhecimento de todos, incluindo do juiz a quo e dos que constituem colectivo que aprecia o presente recurso, quando colocados na posição do cidadão comum, devidamente informados.
Mas a sua apreciação no contexto da decisão proferida e objecto do recurso em nada iria alterar o entendimento já expendido – esta seria mais uma finalidade a que o Hospital do Seixal poderia ser afecto se não se encontrasse apenas na fase de estudo e projecto, pelo que a alegação de que se está a atrasar [agora, provavelmente, em meses, por já ter sido proferida decisão na acção de contencioso pré-contratual] a sua não utilização no combate à presente pandemia, não pode configurar um prejuízo do interesse público prosseguido suficientemente grave para fundamentar o pedido de levantamento do efeito suspensivo do acto de adjudicação impugnado.

Nas conclusões Y e seguintes, a Recorrente alega, por fim, factos posteriores à prolação da sentença recorrida que se prendem com o Plano de Recuperação e Resiliência de Portugal, submetido a consulta pública e que contém as reformas estruturais fundamentais para assegurar a saída da crise pandémica, prevendo um investimento de 196 milhões de euros para reforçar a capacidade do SNS, e a data limite de 31.8.2026, imposta para conclusão daqueles projectos de investimento e reformas, pela Resolução Legislativa do Parlamento Europeu, de 10.02.2021, sobre a proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que criou um Mecanismo de Recuperação e Resiliência (COM(2020)0408 – C9-0150/2020 – 2020/0104(COD)) e que, entende, devem ser tomados em consideração no presente recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 611º e 663º do CPC, dado que a manutenção do efeito suspensivo nos presentes autos terá por efeito inviabilizar o cumprimento do referido projecto de investimento na aquisição de equipamento para o Hospital de Proximidade do Seixal, pois, a concretização do referido investimento obriga a que o Hospital de Proximidade do Seixal se encontre construído - o que estima que levará cerca de 4 anos, mais eventuais derrapagens - por forma a que o Estado possa iniciar os processos de aquisição e instalação dos equipamentos necessários ao respectivo funcionamento.

A Recorrida, nas respectivas contra-alegações, começa por os considerar igualmente como factos notórios, defendendo, no entanto, que a alegação de Recorrente é genérica e conclusiva, sem qualquer substrato factual concreto que a habilite a concluir como faz, sendo que inexiste qualquer nexo causal entre a pendência da acção e o efeito suspensivo automático, por um lado, e uma qualquer hipotética perda de fundos europeus específicos, por outro, se é que isso alguma vez estará em risco e em que circunstâncias concretas que também se desconhecem.

O referido artigo 611º refere-se a factos supervenientes em relação à instauração da acção que devem ser tomados em conta na sentença a proferir pelo tribunal da 1ª instância. E o artigo 663º estipula como deve ser elaborado um acórdão pelo tribunal de recurso, remetendo o seu nº 2, na parte aplicável, designadamente, para o artigo 611º.
A alegação de factos supervenientes será admissível em sede de recurso, em situações restritas, desde que estes tenham a ver com a causa de pedir invocada no pedido formulado perante o tribunal recorrido e sejam absolutamente determinantes para levar o tribunal de recurso a confirmar ou infirmar a decisão recorrida [no mesmo sentido v. sumário do acórdão deste Tribunal de 17.6.2021, proc. 101/18.9BECTB, idem].
O fundamento do pedido de levantamento do efeito suspensivo automático consiste, conforme sintetizou a Recorrente na conclusão C das alegações de recurso no interesse público subjacente à decisão de contratar – a necessidade de construir e colocar em funcionamento o Hospital de Proximidade do Seixal, com a finalidade de aumentar a capacidade de resposta do Hospital Garcia de Orta, que se encontra em situação de rotura, e, assim, assegurar o reforço de cuidados de saúde naquela região, que se encontra especialmente carenciada.
Os factos agora alegados extravasam a referida causa de pedir, visando o reforço de todo o SNS.
Faltam mais de cinco anos para a data limite referida para a realização dos investimentos, abrangidos pelo referido Plano.
E mais uma vez a Recorrente estima o tempo provável de construção do Hospital do Seixal e avança cenários previsíveis em que lhe vai faltar tempo para aproveitar do planeado investimento para dotar o mesmo hospital de equipamentos, mas não suporta a sua alegação em factos concretos que permitam ao tribunal conferir que assim vai ser, o que obsta a considerar demonstrada a alegada gravidade dos prejuízos causados ao interesse público prosseguido.
Donde, para além se tratar de uma questão nova, não apreciada pela sentença recorrida, não logrou a Recorrente demonstrar, na respectiva alegação, o preenchimento das condições exigidas para o pretendido levantamento do efeito suspensivo automático, previstas no nº 4 do artigo 103º-A do CPTA.

iii) Da prolação de sentença na acção de contencioso pré-contratual:

Alega a Recorrente que, tendo sido proferida sentença de total improcedência, não transitada em julgado, na acção a que respeita o incidente, deve a mesma ser considerada na ponderação dos interesses em presença, dado que, embora o fumus boni iuri não constitua, neste âmbito, um requisito autónomo e cumulativo, é um factor a considerar na ponderação dos interesses envolvidos, em termos que se for possível configurar como possível o fracasso da pretensão formulada na acção de contencioso pré-contratual, pode, ponderados ainda os prejuízos para o interesse público e para a adjudicatária, conduzir ao levantamento do efeito suspensivo automático do acto de adjudicação e respectivo contrato (Acórdão do TCA Sul de 04.10.2017, Proc. n.º 1329/16.1BELSB).

A Recorrida veio responder que interpôs recurso daquela sentença e que a jurisprudência constante do acórdão indicado pela Recorrente não se aplica na situação em apreciação, bastando atentar na sentença recorrida proferida na acção principal e nas alegações de recurso que apresentou para se concluir que se está longe de um caso de forte e clara improbabilidade de tal acção.

O incidente de levantamento do efeito suspensivo automático, ainda que tramite nos autos da acção de contencioso pré-contratual, é destes autónomo e a sua decisão depende da verificação de pressupostos distintos dos que presidem à da acção.
Visando o mecanismo do efeito suspensivo automático assegurar a paralisação da eficácia do acto de adjudicação impugnado, mantêm-se os efeitos da sentença que julgou improcedente o incidente de levantamento, ainda que seja proferida sentença na acção, até há data em que esta transitar em julgado.
O acórdão invocado pela Recorrente decidiu um recurso em que foram atacadas quer a decisão do incidente (deferimento) quer a proferida na acção de contencioso pré-contratual (de improcedência), podendo o Tribunal verificar do fundamento da decisão de improcedência da acção que, aliado à verificação dos pressupostos para o levantamento do efeito suspensivo automático, o determinou a negar provimento ao recurso, mantendo as decisões proferidas.
Não tendo a Recorrente logrado demonstrar que a sentença recorrida errou ao não considerar graves prejuízos para o interesse público que invocou, não é a mera alegação genérica, sem mais, de que a o tribunal recorrido julgou a acção improcedente que influirá ou alterará o entendimento já expendido.

Em face do que não pode proceder o recurso.

Por tudo quanto vem exposto acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente.

Registe e Notifique.

Lisboa, 7 de Outubro de 2021.


(Lina Costa – relatora)

(Ana Paula Martins)

(Carlos Araújo)