Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:262/12.0BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:05/22/2019
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:PENHORA;
VEÍCULO AUTOMÓVEL;
TERCEIRO PARA EFEITOS DE REGISTO
Sumário:I - O contrato de compra e venda de um veículo automóvel possui caracter consensual (não formal), pelo que, tendo ficado provado no âmbito do processo de Embargos de Terceiro uma efectiva aquisição por terceiro em data anterior à realização da penhora, aquela aquisição produz os seus efeitos substanciais quanto à propriedade desse veículo;
II – No contexto de facto e de direito referidos em I, a penhora do veículo posterior à aquisição por terceiro, ainda que formalmente registado em nome da Executada, consubstancia-se na penhora de um bem não pertencente ao Executado;
III - Através da penhora a Fazenda Pública apenas adquire um direito real de garantia, que se materializa através do valor obtido com a venda do bem penhorado, gerando-se, paralelamente, uma indisponibilidade relativa referida a actos dispositivos subsequentes à penhora que venham a incidir sobre esse bem;
IV - Porque o registo da penhora do veículo não desencadeia qualquer aquisição tabular do bem, nos termos do artigo 5º, nº 1 do Código de Registo Predial, a Fazenda Pública não deve ser qualificada como terceiro nos termos do nº 4 do artigo 5º do mesmo diploma citado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I – Relatório

A Fazenda Pública instaurou contra a S... – Administração de Propriedades, S.A. execução fiscal para pagamento de dívida relativa a Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) e Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), tendo, no decorrer desse processo de execução fiscal, sido penhorado o veículo automóvel da marca Mercedes Benz, modelo E300 Turbo Diesel, matrícula 2..., registado em nome da executada em 4-08-2011.

Após ter tomado conhecimento da referida penhora, R... (doravante Recorrido), deduziu oposição à penhora, por meio de Embargos de Terceiro, invocando, nuclearmente, ser ele, e não a sociedade executada, o proprietário do veículo penhorado, alegando tê-lo adquirido em Fevereiro de 2010 a A..., que nessa mesma data lho entregou, bem como a respectiva documentação.

A Fazenda Pública (de ora em diante Recorrente) contestou os Embargos, que, em julgamento, foram julgados procedentes - decisão que constitui objecto do presente recurso - aí se tendo determinado o levantamento da penhora.

Inconformada, interpôs recurso jurisdicional concluindo a sua motivação nos seguintes termos:

«i. Visa o presente recurso reagir contra a decisão proferida nos presentes autos que julga procedente os embargos de terceiro deduzidos por R..., na sequência da penhora do veículo automóvel, com a matrícula 2..., de marca Mercedes E300, efectuada em 04/08/2011, no âmbito do processo de execução fiscal com nº15622008..., para cobrança coerciva de dívidas referente a IRC e IVA, no montante de €566.086,40, instauradas a S...-Administração de Propriedades, SA, com o contribuinte 5....

ii. Entende a Fazenda Pública que, face à prova produzida, a Embargante não detinha, no passado, se não a posse precária (mera detenção) do veiculo embargado, e, actualmente, não está sequer demonstrada a sua detenção.
Vejamos,

iii. Veio o Embargante alegar que é o legítimo proprietário e possuidor da viatura, desde Fevereiro de 2010, em virtude de a ter adquirido a A….. Defende que é o único proprietário da viatura e requer que seja levantada a penhora que incide sobre o veículo automóvel.

iv. Entendeu a douta sentença "que a aquisição da propriedade do veículo por parte do Embargante é anterior à penhora da AT."

v. Ou seja, a questão a dirimir é saber se um terceiro que tenha adquirido um bem sujeito a registo antes da constituição da penhora, mas que não tenha registado a sua aquisição, poderá fazer valer o seu direito contra as partes primitivas em sede de embargos de terceiro. Ora face à prova produzida, entendemos que não.

vi. Para haver aquisição da propriedade, é necessário que o embargante esteja na posse do bem penhorado porque, tal como dispõe o artigo 1251º do CC, posse é "o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real."

vii. O Embargante baseia a sua posse alegando ter adquirido a viatura em Fevereiro de 2010 e ter realizado a sua contra prestação na data da entrega do veículo, ou seja, que desde dessa data passou a ter a posse do veículo.

viii. No entanto, não juntou qualquer documento ou fez prova dessa qualidade e como sabemos, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.

ix. Dos factos provados não é feita referência a qualquer pagamento, ou seja, a douta sentença conclui apenas que "Em data que não é possível precisar, mas situada entre os meses de Janeiro e Fevereiro de 2010, o A… vendeu a viatura referida em b) ao ora embargante R..., tendo-lhe entregue a documentação referida em c) - Cfr. Idem;"

x. E que existem divergências nos documentos ao concluir que "A assinatura do representante legal da S... constante da declaração de venda da viatura de marca Mercedes com a matrícula 2… apresenta diferenças com a constante da cópia do respectivo bilhete de identidade constante dos autos - Cfr. Documentos 2 e 3 juntos com a p.i.; "

xi. As próprias testemunhas arroladas pelo Embargante entraram em contradição nas datas referidas como sendo de aquisição do veículo, ou seja, não consegui provar a sua alegada posse e quando ocorreu.

xii. E como refere o Professor Antunes Varela, o conceito de terceiro decorre da função do registo, "do fim tido em vista pela lei ao sujeitar o acto a registo, e, pretendendo a lei assegurar a terceiros que o mesmo autor não dispôs da coisa ou não a onerou senão nos termos que constarem do registo, esta intenção legal é aplicável também ao caso da penhora, já que o credor que fez penhorar a coisa carece de saber se esta se encontra, ou não, livre e na propriedade do executado."

xiii. Ora, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, como é caso do contrato de compra e venda.

xiv. E, tanto quanto resulta dos autos, até ao momento em que foi efectuada a penhora do bem não havia sido celebrada qualquer contrato de compra e venda nem qualquer registo do bem em nome do Embargante.

xv. É o registo o instrumento jurídico que, pela sua natureza, tem a virtude de transmitir, a título definitivo, o direito real de propriedade sobre o veículo automóvel.

xvi. Acontece que o Embargante não detinha, no passado, senão a posse precária (mera detenção) do veículo automóvel embargado, e, actualmente, não ficou demonstrada a sua detenção.

xvii. Como é possível deterá posse precária de um veículo, desde 2010, como alega o Embargante e ainda não ter procedido ao seu registo, tanto mais que, estamos perante um bem sujeito a um desgaste constante com o seu uso e uma desvalorização rápida.

xviii. Pelo que, se um terceiro que tenha adquirido um bem sujeito a registo antes da constituição da penhora, mas que não tenha registado a sua aquisição, não poderá fazer valer o seu direito contra as partes primitivas em sede de embargos de terceiro, ou seja, entendemos que, a penhora sobre o veículo é legítima, não tendo sido demonstrado que a aquisição do referido bem se efectivou em momento anterior ao da penhora.

xix. Atento o exposto, mostra-se a douta sentença proferida em erro de julgamento de facto e de direito, fazendo uma errónea apreciação dos factos trazidos a juízo, e em violação do disposto nos artigos 237º do CPPT, do nº1 do artigo 342º do Código do Processo Civil (CPC) e 1285º do Código Civil (CC).

Termos em que, concedendo-se provi mento ao recurso deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue os embargos de terceiro totalmente improcedentes com as devidas consequências legais. SENDO QUE EXAS. DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA.»


O recurso foi admitido por despacho de 26 de Maio de 2017 e, após o decurso do prazo para apresentação de contra-alegações, foi ordenada a sua subida a este Tribunal Central Administrativo Sul.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Por requerimento proveniente do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, datado de 2 de Outubro de 2017, recepcionado no correio oficial deste Tribunal Central Administrativo Sul a 7 de Novembro de 2017, foram juntas aos autos as contra-alegações do Recorrido

A Recorrente, notificada da junção, quedou-se pelo silêncio,

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal, a quem foi dado igualmente conhecimento da integração nos autos das contra-alegações, declarou nada ter a requerer, “por ora. “.

Colhidos os «Vistos» dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

II – Objecto do recurso

Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.

Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (artigo 635.°, n°2 do Código de Processo Civil) esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.°3 do mesmo artigo 635.°). Pelo que, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.

Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Atento o exposto, e tendo presentes as conclusões de recurso apresentadas, importa, assim, decidir previamente, da admissibilidade de junção aos autos das contra-alegações apresentadas pelo Recorrido no tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a 2 de Novembro de 2017.

Independentemente da resposta que seja dada à questão primeiramente enunciada importará sempre decidir:

- Se o ora Recorrido logrou provar que adquiriu a propriedade do veículo penhorado, e a correspondente posse, em data anterior à da penhora;

- Se a inexistência de registo de um bem que a ele esteja sujeito, como é o caso de um veículo automóvel, obsta a que o proprietário possa fazer valer esse direito em sede de Embargos de Terceiro.
Da delimitação que ora efectuamos do objecto do recurso jurisdicional que nos cumpre apreciar, resulta de forma clara que neste não incluímos qualquer questão relativa a uma eventual impugnação da matéria de facto dada como provada.

Efectivamente, pese embora seja perceptível da leitura das conclusões de recurso que a Recorrente pretende questionar - além da subsunção jurídica realizada na sentença recorrida, a decisão aí contida quanto ao preenchimento dos pressupostos jurídicos do direito que o Embargante se arroga e a a irrelevância implícita a que o julgado votou a inexistência do registo de propriedade do veículo automóvel em nome do Embargante – os próprios factos apurados, o recurso nesta parte tem que ser rejeitado.

Na verdade, mesmo compulsadas as alegações, a conclusão a que chegámos é a de que a Recorrente não cumpriu, minimamente, as exigências impostas no artigo 640.º do Código de Processo Civil, que determina a rejeição do recurso que tenha por objecto a impugnação da matéria de facto resultante do julgamento em 1ª instância se a Recorrente não indicar especificadamente que factos devem ser dados como provados ou como não provados, os concretos meios de prova que sustentam essa nova definição factual, designadamente, resultando do depoimento das testemunhas, os excertos do depoimento de cada uma delas que demonstram ou sustentam que os factos devem ser apurados em sentido oposto ao que ficou fixado.

Em suma, ao remeter globalmente para o depoimento das testemunhas e para a inexistência de documentos como forma de sustentar uma eventual alteração do probatório, cuja enunciação ou sentido nem chega a exteriorizar especificadamente, a Recorrente demitiu-se de observar o que a Lei, nesta sede, lhe impõe, o que determina, como dissemos já, a rejeição, nesta parte, do recurso jurisdicional.

Tudo, pois, para concluirmos que será perante a factualidade apurada – que por via desta rejeição se tem que ter por assente (aceite) – que serão apreciadas as questões já enunciadas, sem prejuízo da sindicância, que realizaremos, da valoração dos factos como suficientes, ou não, para sustentar o julgamento de direito ou como capazes de suportar a tese da Recorrente de que a inexistência de registo da venda anterior à penhora só por si deve prevalecer sobre a materialidade substantiva de uma venda anterior e, consequentemente, per se, sustenta a validade da penhora.

III - Fundamentação de facto

3.1. A sentença recorrida deu como assente a factualidade que infra se reproduz:

a) Corre termos, no Serviço de Finanças de Sintra 1, o processo de execução fiscal n°1….2008/… e apensos, contra S... - Administração de Propriedades, S.A., com o NIPC 5… - Cfr. PEF;

b) Em data que não é possível precisar, mas no 4° trimestre de 2009, A... adquiriu à C… Car a viatura de marca Mercedes com a matrícula 2… - Cfr. Depoimento da testemunha A..., que se revelou coerente, com conhecimento directo dos factos sobre os quais foi inquirido;

c) Aquando da aquisição referida na alínea anterior a C... Car entregou ao A… o livrete da viatura e a declaração de venda, assinada apenas pelo vendedor, representante legal da S... - Cfr. Idem;

d) Em data que não é possível precisar, mas situada entre os meses de Janeiro e Fevereiro de 2010, o A… vendeu a viatura referida em b) ao ora embargante R..., tendo-lhe entregue a documentação referida em c) - Cfr. Idem;

e) A assinatura do representante legal da S... constante da declaração de venda da viatura de marca Mercedes com a matrícula 2... apresenta diferenças com a constante da cópia do respectivo bilhete de identidade constante dos autos - Cfr. Documentos 2 e 3 juntos com a p.i.;

f) Em 4 de Agosto de 2011 a AT procedeu à penhora do veículo de marca Mercedes com a matrícula 2..., no âmbito do processo de execução fiscal n°1….2008/… e apensos - Cfr. certidão a fls. 11, a qual se dá, aqui, por integralmente reproduzida e fls. 165 do PEF, apenso;

g) A penhora a favor da Fazenda Nacional referida na alínea antecedente foi registada, na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, em 4 de Agosto de 2011 - Cfr. idem;


3.2. Consta da mesma sentença que «Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados.» e que «A convicção do Tribunal quanto aos factos considerados provados resultou do depoimento das testemunhas inquiridas, do exame dos documentos, não impugnados, e das informações oficiais constantes dos autos, conforme referido no probatório. Foi fundamental para a formação da convicção do tribunal o depoimento da testemunha A…, que revelou um conhecimento directo da matéria factual em causa, tendo esclarecido o tribunal quanto à prática comercial no ramo do comércio de automóveis usados, nomeadamente quanto à circunstância de não ser hábito efectuar registos automóveis por cada transacção realizada entre comerciantes com o intuito de não desvalorizar as viaturas. Foi por outro lado, credível a sua resposta quanto à venda que realizou ao embargante, não sendo de relevar o facto de não se recordar, com precisão, da data em que a mesma terá tido lugar, dado o lapso de tempo, entretanto, decorrido.»

3.3. Ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do código de Processo Civil, altera-se a redacção vertida na alínea e), a qual passará a deter a seguinte redacção:

e) Na declaração de fls. 12 e 13 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, consta, designadamente, o seguinte:

4. Sujeito passivo (vendedor/transmitente/requerido/executado)

Nome/Firma/Denominação – S... – Administração de propriedades, SA

(…)

Veículo

Matrícula 2...”

(…)

8. Assinaturas

Sujeito passivo (vendedor/transmitente/requerente/exequente)

J…

3.4. Nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do código de Processo Civil, por se mostrarem comprovados e serem relevantes para a apreciação do mérito da causa, aditam-se ao probatório os seguintes factos:

h) Na data referida em d), A... entregou ao embargante a viatura identificada em b) - acordo das partes.

i) Na data referida em f) o veículo automóvel aí identificado encontrava-se registado na Conservatória do Registo Automóvel em nome de “S... – Administração de Propriedades S.A.” (cfr. certidão de fls. 186-187 do processo de execução fiscal apenso cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

j) Consta da Certidão Permanente junta aos autos a fls. 15 e 16, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que J… é o “Administrador Único” da executada S... – Administração de Propriedades S.A.

k) A assinatura referida em e) foi aposta sobre um carimbo co os seguintes dizeres “S... -Administração de Propriedades S.A.”

IV – Fundamentação de direito

A decisão de procedência dos presentes Embargos de Terceiro, como resulta da sentença e como a Recorrente bem recortou, encontra-se sinteticamente suportada no seguinte discurso jurídico: tendo ficado provado que a penhora se realizou a 4 de Agosto de 2011 e que o Embargante adquiriu a propriedade e posse do bem móvel penhorado no início do ano de 2010, ou seja, em momento anterior àquela, estão verificados os pressupostos do artigo 237.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e, consequentemente, há que julgar procedente o incidente e ordenar o levantamento da penhora

4.1. Antes, porém, de enfrentarmos as questões nucleares de mérito do recurso, impõe-se que decidamos a questão prévia que identificamos no ponto II, por desta estar dependente a relevância que este Tribunal de recurso deve ou não dar ao teor das contra-alegações apresentadas: é de admitir nos autos as contra-alegaçõe apresentadas pelo recorrido? Ou, dito de outro modo, deve este Tribunal Central, face ao preceituado no artigo 282.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e tendo por referência a factualidade que se apura dos autos, admitir a junção das contra-alegações?

Entendemos que não.

Vejamos, então, porque assim concluímos.

O Recorrido, por requerimento apresentado no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a 8 de Novembro de 2017, requereu a junção aos autos das suas contra-alegações de recurso, o qual foi remetido a este Tribunal Central Administrativo Sul a 2 de Outubro de 2017, para onde os autos haviam subido a 28 de Setembro de 2017.

Ora, como se constata dos autos:

- a sentença recorrida foi proferida a 26 de Abril de 2017;

- a notificação às partes da referida sentença, incluindo o Recorrido, foi realizada na sequência de ofício, enviado ao Ilustre Representante da Fazenda Pública e ao Mandatário do Embargante, a 28 de Abril de 2017;

- a Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional por requerimento apresentado em juízo a 11 de Maio de 2017, admitido por despacho de 26 de Maio do mesmo ano,

- a notificação do referido despacho foi realizada por ofício de 30 de Maio de 2017;

- A 19 de Junho de 2017, a Fazenda Pública apresentou as alegações de recurso jurisdicional;

- A 26 de Setembro de 2017 foi determinada a subida dos autos a este Tribunal Central Administrativo Sul.

Nos termos do artigo 282.º do CPPT, é de 10 dias o prazo de interposição de recurso jurisdicional, devendo, sob pena de deserção do mesmo, as alegações serem apresentadas no prazo de 15 dias contados da notificação da sua admissão e as contra-alegações no prazo de 15 dias contados do termo do prazo legalmente imposto para a apresentação das já mencionadas alegações.

Ora, tendo Recorrido sido notificado da sentença proferida a 27 de Abril de 2017, do despacho de admissão do recurso jurisdicional proferido a 26 de Maio de 2017 - através do ofício enviado a 30 de Maio do mesmo ano (do qual constava a advertência do prazo limite para a apresentação das contra-alegações e os termos da sua contagem por referência expressa ao artigo 282.º do CPPT) e tendo as alegações sido apresentadas a 19 de Junho de 2017, é a contar desta última data que se hão-de contar os 15 dias para apresentação das contra-alegações.

Donde, neste contexto temporal, é indiscutível que a 2 de Novembro de 2017 já há muito o prazo de 15 dias havia decorrido, havendo, pois, sem mais, que julgar as contra-alegações extemporaneamente apresentadas e que determinar o seu desentranhamento.

O que, a final, se decidirá.

4.2. Posto isto, e recuperando o que acima deixámos já definido, a decisão de procedência dos presentes Embargos de Terceiro, como resulta da sentença e como a Recorrente bem recortou, encontra-se sinteticamente suportada no seguinte discurso jurídico: tendo ficado provado que a penhora se realizou a 4 de Agosto de 2011 e que o Embargante adquiriu a propriedade e posse do bem móvel penhorado no início do ano de 2010, ou seja, em momento anterior àquela, estão verificados os pressupostos do artigo 237.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e, consequentemente, há que julgar procedente o incidente e ordenar o levantamento da penhora
Para a Recorrente este julgamento deve ser censurado por este Tribunal de recurso por duas ordens de razões. Por um lado, porque os factos apurados não permitem sustentar a conclusão do preenchimento dos pressupostos consagrados no artigo 237.º do CPPT, designadamente que houve uma efectiva venda ao Embargante do veículo objecto de penhora, já que não foi apresentado qualquer documento que o comprove e muito menos ficou demonstrado que o preço tenha sido pago, sendo que é através do contrato de compra e venda que a transferência do direito de propriedade opera. Por outro, porque a não existência de registo de propriedade do veículo automóvel objecto de penhora em nome do Embargante em data anterior à penhora, obsta, só por si, a que seja dado qualquer relevo na decisão do presente litígio à eventual existência de uma compra e venda, uma vez que os factos que estão sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data deste.

Em suma, resulta de todas as peças processuais apresentadas pela Fazenda pública nos autos, confirmadas especialmente pelo teor da contestação e pelas conclusões de recurso que a Fazenda Pública nunca pôs em causa directamente que o Embargante tenha adquirido a viatura objecto de penhora. Antes, sim, e neste aspecto sempre centrou no essencial a sua postura perante a reacção do Embargante, alicerçada na sua qualidade de proprietário e legitimo possuidor - que o Embargante é mero detentor precário, porque nunca procedeu ao registo do seu direito de propriedade sobre o veículo, a validade da alegada venda por não estar comprovada por documento escrito e, por fim, a irrelevância dessa venda por apenas o registo posterior à penhora ser obstáculo á validade e integral produção dos legais efeitos desta.

Vejamos, então, enunciando um breve enquadramento jurídico dos Embargos de Terceiro, começando por salientar que nos termos do preceituado no artigo 1285.º do Código Civil (C.C.), o possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo.

Para o que ora nos importa – uma vez que nem o meio, nem o prazo nem a legitimidade do Embargante estão postos em causa – são actos relevantes de afectação da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens E terceiro, aquele que não tenha intervindo no processo ou no acto jurídico de que emana a diligência judicial [artigo237.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)].

Em suma, um terceiro possuidor de coisa ou titular de um direito incompatível com a realização de um acto que compreenda a apreensão ou a entrega de bens, que veja a sua posse ser ofendida por acto judicial, pode fazer valer o seu direito – manutenção ou restituição da sua posse - por meio da dedução dos Embargos de Terceiro.

Como é comum afirmar-se, os Embargos de Terceiro desempenham a mesma função que as acções possessórias propriamente ditas, assumindo-se como meios de defesa e tutela da posse ameaçada ou violada, com a particularidade expressamente consagrada de a ameaça ou ofensa provir de diligência judicial. (1)

Em termos civilísticos, “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”, comummente densificada pela doutrina e pela jurisprudência por referência a dois elementos fundamentais: o elemento material (“corpus”), isto é, o exercício de poderes correspondentes ao direito sobre a coisa e o elemento psicológico (“animus”), vulgarmente definido como a vontade do possuidor como titular do direito (v.g. dono, usufrutuário ou titular de direito de servidão).

No caso, o Recorrido, como se vê da petição inicial, fundou o seu direito ao levantamento da penhora no facto de ser o legítimo proprietário e possuidor do veículo objecto daquela penhora, que alegou ter adquirido em Fevereiro de 2010 ao seu então proprietário (A…), que logo lha entregou, bem como os respectivos documentos.

A apreciação crítica do probatório permite que concluamos com segurança que essa factualidade resultou demonstrada, uma vez que ficou provado que em data que o Tribunal de 1ª instância não logrou apurar com exactidão mas, seguramente, entre Janeiro e Fevereiro de 2010, o anterior proprietário, A..., “vendeu a viatura (…) ao ora embargante” [factualidade vertida nas alíneas c) e d) do ponto III supra].

Diz a Recorrente, e este Tribunal confirma, que não consta expressamente que o Embargante pagou o preço. Porém, sem deixarmos de admitir que, em rigor, o conceito de venda não devia ter sido utilizado na redacção do facto (quer porque constitui um conceito jurídico quer, especialmente, atendendo a que a relação material era essencial no caso concreto), o certo é que o preço integra ou constitui um elemento essencial do conceito de venda (“Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.” – artigo 874.º do CC), o que significa que o facto inclui ainda a admissão desse elemento.

Acresce que, e esta é a razão da irrelevância do argumento convocado, o que é importante, face ao alegado, é saber se houve efectivamente a transferência do direito de propriedade e a posse, a qual, temos por seguro, pode ocorrer na ausência desse pagamento efectivo, sendo a matéria do cumprimento ou não da obrigação ou entrega da contra-prestação, rectius, preço, uma questão que apenas releva inter partes e não afecta, até acordo entre as partes no sentido de resolverem o contrato ou decisão judicial nesse sentido, a validade daquele.

Donde, importa repetir, o que se apurou como realidade substancial, incontestável é que a Executada não é, por força dos contratos de compra e venda que desde o 4º trimestre de 2009 sucessivamente foram sendo celebrados, proprietária da viatura penhorada, sendo seu dono e legitimo possuidor desde, pelo menos, Fevereiro de 2010, o Embargante, pese embora o registo, à data da realização da penhora, não revele essa realidade substancial.

Foi a não prevalência da penhora sobre a relação objecto da tutela executiva com fundamento na prova de uma venda anterior a terceiro do objecto da penhora que a sentença firmou. E é essa prevalência da penhora e a sua afectação à acção executiva que a Fazenda Pública pretende ver reconhecida neste recurso.

É esta, pois, a questão essencial a ser resolvida pela ponderação entre duas realidades opostas: a penhora e o registo, ou, em bom rigor, a falta deste.

Centrando a nossa atenção sobre estas duas realidades importa atentar desde já em dois aspectos.

O primeiro é o de que, como se infere do preceituado no artigo 103.º da Lei Geral Tributária, o processo de execução fiscal é um processo de natureza judicial, cabendo aos órgãos da Administração Tributária a prática de todos os actos que não sejam subsumíveis à categoria de actos jurisdicionais, integrados pelo legislador na esfera de competências dos Tribunais Tributários.

No ordenamento jurídico procedimental e processual em que nos movemos, a penhora constitui um acto processual praticado pela Fazenda Pública no âmbito do processo de execução fiscal que visa concentrar em certos bens do devedor (objecto da penhora) a actividade subsequente tendente à satisfação, através da sua venda, da dívida tributária exequenda (artigo 10.º, n.º 1, al. f) e 215.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).

É através da penhora que a tutela executiva específica evolui de um plano de alcance geral do património do executado para um alcance já referido (já limitado) a determinados bens. Ou seja – e referenciamos o acto processual da penhora ao que este já envolve como efeito substantivo para os bens alcançados por ela –, “[…] produz [a penhora] a concentração do direito do credor sobre o património do devedor nos bens efectivamente apreendidos pelo tribunal, criando sobre estes bens, a favor do exequente e dos credores cujos créditos venham a ser verificados no processo, um direito real de garantia”. Este direito, “[…] que não dá poder de disfruto da res, mas que incide apenas sobre o valor pecuniário dela e com a finalidade específica de satisfação de um crédito pecuniário”, altera, a referenciação subjectiva do poder de disposição desses bens, passando este a integrar a jurisdição executiva” (2)

E, com efeito, não perdendo o Executado com a penhora, propriamente, o poder de dispor do bem alcançado, gera-se uma indisponibilidade relativa dos actos dispositivos subsequentes que incidam sobre esse bem. Porém, ficam ressalvados – rectius, são válidos – os actos dispositivos anteriores à penhora, desde que intrinsecamente válidos”.

O segundo aspecto que importa salientar - centrando agora a nossa atenção na questão da transmissão da propriedade do veículo e retomando-se a argumentação aduzida em recurso em matéria de validade do contrato de compra e venda de veículos, - é o de que, contrariamente ao que a Recorrente deixou expresso nas suas alegações e verteu nas respectivas conclusões, a validade do contrato de compra e venda celebrado entre o Embargante e o A... não está dependente da sua redução a escrito, sendo hoje absolutamente pacífico que o contrato de compra e venda de veículo automóvel, por não estar especialmente sujeito a uma forma especial, é um contrato consensual, razão pela qual é válido e eficaz mesmo que apenas celebrado verbalmente (artigo 219.º do CC).

É verdade que para além das obrigações específicas do contrato de compra e venda [transmissão da propriedade e entrega da coisa (para o vendedor) e pagamento do preço (para o comprador)], que se extraem dos artigos 874.º e 879.º do C.C., no caso da compra e venda de veículos automóveis os contratantes devam observar outros deveres acessórios que, in casu, se concretizam na entrega de todos os documentos respeitantes ao veículo e na transmissão de todos os elementos de identificação necessários ao cumprimento das obrigações que legalmente estão impostas ao comprador de um veículo automóvel, em nome do princípio da boa-fé consagrado no artigo 762.º do C.C., podendo, inclusive, a sua não observância determinar responsabilidade civil do transmitente da coisa (veículo) que não observe tais deveres.

E é também indiscutível que uma das obrigações do comprador é a do registo da sua aquisição que tem como função essencial a segurança do comércio jurídico, conforme resulta do preceituado, conjugadamente, dos artigos 1.º, n.º 1, 5.º e 27.º, n.º 2, todos do Código de Registo Automóvel (CRA).

Todavia, como bem sabemos, pese embora a já mencionada existência de obrigatoriedade do registo (artigo 5.º, n.º 2 do CRA), este não tem no nosso ordenamento jurídico, excepto no que respeita à hipoteca, efeitos constitutivos do direito, visando-se através da sua previsão ou obrigatoriedade atribuir publicidade à real situação jurídica dos bens e, desta forma, ou por este meio, assegurar que os interessados saibam que o direito, a existir, pertence ao titular inscrito.

Tudo, pois, para que possamos afirmar com segurança que nos autos, face aos factos apurados, para além da posse comprovada desde a aquisição, há um acto dispositivo válido muito anterior à penhora - a venda do veículo automóvel objecto da penhora - carecendo de sentido, como pretende a Recorrente, que um acto de disposição anterior relativo ao bem posteriormente penhorado seja afectado na sua subsistência – traduzida na efectiva transferência da dominialidade desse bem entre o vendedor e o comprador, por uma incidência posterior – a penhora – que foi registada, mas relativamente à qual esse registo apresenta um efeito fundamentalmente enunciativo, que neste caso, como tantas vezes sucede, se frustrou.

Como se afirmou no acórdão que supra já fizemos referência “porque a realização da penhora não corresponde nos seus efeitos substantivos (…)a qualquer tipo de alienação do bem penhorado – esta só decorrerá, e muito peculiarmente, da posterior venda do bem penhorado e não envolverá como sujeito” a ora Recorrente - esta não adquire, portanto, de um autor comum, direitos incompatíveis, carecendo, assim de qualquer sentido, a invocação do próprio conceito de terceiro para efeitos de registo consagrado no artigo 5.º n.º 4 do Código de Registo Predial, que tem como escopo regular (e proteger) o terceiro que confiou na aparência gerada por uma determinada situação registral desconforme à realidade substantiva e que na sequência da confiança por essa aparência gerada vem a celebrar com o titular inscrito um negócio jurídico e regista em seu nome o bem objecto do negócio inválido.

Ora, não sendo a Fazenda Pública um terceiro de boa-fé para efeitos do preceituado no artigo 5.º, n.º 4 do Código de Registo Predial, não há, também por esta via, qualquer fundamento para extrair da circunstância em causa - ausência de registo - a conclusão de prevalência da penhora sobre uma alienação que de forma válida foi concretizada em data anterior àquela.

Em conclusão:

- O contrato de compra e venda de um veículo automóvel não está sujeito a forma especial, assumindo, pois, caracter consensual (não formal), pelo que, sendo apurado no âmbito dos Embargos de Terceiro a efectiva aquisição, esta produz os seus efeitos substanciais quanto à propriedade desse veículo;

- Neste contexto, a posterior penhora desse veículo, ainda que formalmente registado em nome da Executada, consubstancia-se na penhora de um bem não pertencente ao Executado;

– A Fazenda Pública através da penhora, apenas adquire um direito real de garantia que se materializa através do valor obtido com a venda do bem penhorado, gerando-se, paralelamente, uma indisponibilidade relativa referida a actos dispositivos subsequentes à penhora que venham a incidir sobre esse bem;

- Porque o registo da penhora do veículo não desencadeia qualquer aquisição tabular do bem, nos termos do artigo 5º, nº 1 do Código de Registo Predial, a Fazenda Pública não deve ser qualificada como terceiro nos termos do nº 4 do artigo 5º do código citado.

É, pois, de confirmar, com a presente fundamentação, a sentença recorrida.

V – Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em:

- Julgar extemporaneamente apresentadas as contra-alegações do recorrido, cujo desentranhamento se ordena;

- Negando provimento ao recurso jurisdicional, em confirmar integralmente, com a fundamentação exposta no ponto IV, a sentença recorrida.

Custas do incidente do desentranhamento pelo Recorrido, fixando-se no mínimo a taxa de justiça devida.

Custas nesta instância de recurso, por este, pela Fazenda Pública.

Registe e notifique.

Lisboa, 22 de Maio de 2019

(Anabela Russo)

(Vital Lopes)

(Joaquim Condesso)

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(1) Neste sentido, Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. I, pág. 402.

(2) Vide, acórdão da Relação de Coimbra de 12 de Dezembro de 2012, proferido no processo n.º 1625/09.4BCTB-A.C1, integralmente disponível em www.dgsi.pt