Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05750/09
Secção:CA
Data do Acordão:04/07/2016
Relator:NUNO COUTINHO
Descritores:OMISSÃO DE DEVER DE LEGISLAR
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário:Sendo indiscutível que a circulação, nas vias onde a mesma é permitida, de velocípedes sem motor acresce um factor de risco à circulação rodoviária, não se detecta omissão do dever de legislar no sentido de obrigar que os velocípedes sem motor que circulem na via pública possuam seguro que cubra o alegado risco de circulação, dado não existirem razões normativas decorrentes quer da Constituição da República Portuguesa, quer de qualquer instrumento normativo internacional reconhecido pelo Estado Português como vinculante na ordem jurídica nacional, que imponha ao Estado Português tal dever.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:R., intentou no T.A.C. de Castelo Branco acção administrativa comum na forma ordinária contra:
- M.;
- Fundo de Garantia Automóvel;
- Estado Português;
tendo formulado os seguintes pedidos:
fosse declarado que o 1º R. foi o único e exclusivo culpado do acidente ocorrido entre ele e o Autor no dia 28 de Maio de 1999, e, em consequência disso:
a) condenar os três RR., solidariamente a pagar ao Autor a quantia de 734.607,20 €, repartidos por 484.607,20 € a titulo de danos patrimoniais e 250.000,00 € a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros à taxa legal, a contar da citação até integral e efectivo pagamento.

Por sentença proferida pelo T.A.F. de Castelo Branco, em 20 de Julho de 2009, foi decidido:
a) declarar o Tribunal incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido do Autor no sentido de ser condenado o Réu M., como único e exclusivo responsável do sinistro descrito pelo Autor nos presentes autos, assim como ao pagamento da indemnização por este pretendida;
b) Absolver da instância, o Fundo de Garantia Automóvel, quanto aos pedidos contra este formulados pelo Autor;
c) Declarar improcedente o pedido do Autor de condenação do Réu Português ao pagamento das indemnizações que o Autor contra aquele aqui peticiona


Da aludida decisão interpôs recurso o A. tendo formulado as seguintes conclusões:

“1ª A circulação rodoviária, quer seja feita através de veículos com motor ou sem motor, incluindo animais domésticos e peões comporta riscos;
2ª Incumbe ao Estado legislar em matéria de segurança rodoviária;
3ª O Estado Português ao não criar mecanismos legislativos que permitam ao cidadão lesado ressarcir-se no caso de sofrer danos provocados por veículos sem motor, animais e peões que circulem na via pública, tem comportamento omissivo;
4ª O comportamento omisso da obrigação de legislar gera responsabilidade civil imputável ao autor dessa omissão.
5ª Face ao exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a douta sentença ser substituída por outra que decida que o Estado Português venha a ressarcir o recorrente em verba que se entenda ser justa e equilibrada face aos danos que reclama.

Contra-alegou o Recorrido, formulando as seguintes conclusões:

“- Não decorre da Constituição da República, de convenção, tratado ou normativo internacional que vincule o Estado Português, o dever de legislar no sentido de obrigar que os velocípedes sem motor que circulem na via pública estejam a coberto de contrato de seguro que abranja o risco da circulação.
- Pelo que não é aceitável a responsabilização do Estado por omissão legislativa relativamente a tal matéria, por não se verificar actuação ilícita ou culposa.
- Tratando-se antes de opção do legislador, também vinculado aos princípios constitucionais da necessidade, proporcionalidade e adequação ao impor obrigações e restrições aos cidadãos (como seria o caso da imposição de seguro obrigatório para os velocípedes sem motor) - artigo 18°, da CRP.
- O lesado por actuação de condutor de velocípede sem motor na via pública sempre pode responsabilizar este nos termos gerais, pois que, tal como o reflecte a douta sentença recorrida, os danos invocados pelo recorrente não decorrem da alegada omissão legislativa, mas antes dos alegados factos na origem do sinistro, imputados ao condutor do velocípede sem motor.
- Deve o recurso ser julgado improcedente, e ser mantida a douta decisão recorrida.”
II) Na decisão recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:

1. O Autor interpôs junto do Tribunal da Comarca de Portalegre, uma acção demandando os aqui Réus e a C., S.A., que deu entrada naquele Tribunal em 24.05.2004, tendo-lhe sido atribuída o n.º …/04.7TBPTG (cfr. doc. a fls. 306 a 348 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais como integralmente reproduzido).
2. Os Réus M. e Fundo de Garantia Automóvel na acção referida no n.º anterior foram citados em 26.05.2004, tendo o Réu Estado Português sido citado em 25.05.2004 (cfr. doc. a fls. 178 a 197 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais como integralmente reproduzido).
3. Por decisão proferida no processo referido no n.º anterior, datada de 14.02.2005, foi decidido:
“a) Declarar a incompetência absoluta em razão da matéria, para conhecer dos pedidos formulado contra o Estado Português, o Fundo de Garantia Automóvel e M. e, consequentemente, absolvo-os da instância (artigos 101º, n.º 1, 105º, al. a) do nº 1, 288º e al. a) do nº 1 e 494º todos do CPC).
b) Declarar ilegal a coligação de pedidos, porque a acumulação ofende as regras de competência em razão da matéria, determinando que os autos prosseguiam para a apreciação do pedido apresentado contra a “C., SA”.
c) Declarar a situação de prejudicialidade do objecto da acção quanto à questão que vier a ser tomada pelo tribunal administrativo e, em função disso, decido sobrestar a decisão até que a justiça administrativa tome posição quanto aos pedidos fundados na responsabilidade civil extracontratual dos Réus Estado Português, Fundo de Garantia Automóvel e M. […]” (cfr. doc. a fls. 306 a 348 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais como integralmente reproduzido).
4. A decisão referida no n.º anterior transitou em julgado em 24.02.2005 (cfr. doc. a fls. 306 a 348 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais como integralmente reproduzido).
5. O Advogado do Autor remeteu por correio electrónico a petição inicial dos presentes autos em 18.03.2005 (cfr. doc. a fls. 1 a 15 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais como integralmente reproduzido).
6. O original da petição inicial dos presentes autos deu entrada neste Tribunal em 22.03.2005 (cfr. doc. a fls. 16 a 79 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais como integralmente reproduzido).

III) Fundamentação jurídica

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações importa entrar no conhecimento do mesmo e que se prende com a invocada responsabilidade civil extracontratual do Estado por omissão do dever de legislar.

Vigorava à data em que ocorreu o acidente de que resultaram os danos alegados pelo recorrente, em matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado, o D.L. n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, diploma revogado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, diploma aquele que não previa, ao contrário do que sucede com este último, a responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função legislativa – cfr. artº 15º da Lei 67/2007 – o que contudo não constitui obstáculo à pretensão formulada pelo recorrente, face ao disposto no artigo 22º da C.R.P., nos termos do qual “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.” preceito que deve ser entendido como contendo norma atributiva do direito fundamental à indemnização, constituindo “…título bastante do direito do particular a obter reparação por prejuízos causados por acções ou omissões do poder público estadual, ou seja, o direito a ser indemnizado mesmo na ausência de lei concretizadora.” (1)

De todo o modo para que se possa falar em responsabilidade civil extracontratual do Estado, por danos decorrentes do exercício da função legislativa é preciso que se verifique um facto (ou uma omissão), que tal facto ou omissão sejam ilícitos; a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

A sentença recorrida, para afastar a existência de qualquer dever de legislar, omitido pelo Estado, estribou-se na seguinte fundamentação:
(…)
“Em primeiro lugar há que tecer algumas considerações quanto ao que caberá no conceito de ilicitude quando estamos a tratar a alegada omissão legislativa do Estado.
Assim, a ideia de omissão de normatividade, tem como contraponto o conceito de dever de legislar. Ora, esta dita omissão tem que ser configurada como jurídico normativamente relevante, não se podendo alicerçar apenas nesta ou naquela concreta e subjectiva visão de que o Estado deveria legislar sobre esta ou aquela matéria. Por isso a obrigação de legislar assenta, essencialmente, em ditames que resultem da própria Constituição ou de outros instrumentos normativos que a mesma reconheça como susceptíveis de terem efeitos directos ou indirectos sobre a ordem jurídica portuguesa (nomeadamente os deveres que resultem de instrumentos de direito internacional, nomeadamente os que resultam do chamado direito comunitário originário e derivado).
Assim, podemos dizer que, por um lado, há um direito à lei em termos objectivos e abstractos (é nesse contexto que deve ser enquadrada a inconstitucionalidade por omissão prevista no artigo 283.º da CRP), por outro lado há situações em que o direito à lei assenta no facto da inércia legislativa inviabilizar o concreto exercício de um direito, liberdade ou garantia. Ora, na Constituição não se consagrou um direito subjectivo à lei que permita ao Juiz preencher tal falta, devendo a questão ser analisada à luz de uma eventual agressão a um direito fundamental pelo não cumprimento dos deveres de protecção necessários, adequados e proporcionais à salvaguarda de bens ou direitos constitucionalmente protegidos (atenta a aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais em matéria de direitos fundamentais, tal como resulta do n.º 1 do art.º 18.º da CRP).
Nos presentes autos, não vislumbramos razões normativas decorrentes quer da Constituição da República Portuguesa, quer de qualquer instrumento normativo internacional reconhecido pelo Estado Português como vinculante na ordem jurídica nacional, que imponha ao Estado Português o dever de legislar no sentido de obrigar que os velocípedes sem motor que circulem em via pública sejam obrigados a possuir seguro que cubra o alegado risco de circulação. Assim, tal alegação sustenta-se apenas numa visão particular do Autor sobre o referido risco, sendo que a mesma traduz apenas uma visão social (e não normativa) da cada vez maior necessidade de dar resposta aos eventuais danos de uma sociedade hodierna cuja vivência massificada e massificadora pressupõe a omnipresença do risco, mas que mal suporta com os danos que daí possam advir.”

Desde já importa referir que o entendimento expendido pelo T.A.C. de Castelo Branco é acolhido por este Tribunal.

Com efeito, e conforme foi referido pelo recorrido na contestação – entendimento reiterado nas respectivas contra alegações – o legislador está vinculado, também, aos princípios constitucionais da necessidade, proporcionalidade e adequação ao impor obrigações e restrições aos cidadãos (como seria o caso da imposição do seguro obrigatório para os velocípedes sem motor), cabendo-lhe fazer opções por legislar – impondo uma obrigação – ou não, revelando-se no caso uma clara opção por não impor aos utentes de velocípedes sem motor a obrigatoriedade de seguro, por se considerar a mesma desadequada.

É indiscutível que a circulação, nas vias onde a mesma é permitida, de velocípedes sem motor acresce um factor de risco à circulação rodoviária, assim como a circulação de peões, nomeadamente quando estes efectuam atravessamento das mesmas, contudo o que está em causa nos autos consiste tão só em saber se se verifica uma omissão – ilícita e culposa – de um dever de legislar, omissão esta que não se detecta, não existindo, como bem se refere na decisão recorrida “…razões normativas decorrentes quer da Constituição da República Portuguesa, quer de qualquer instrumento normativo internacional reconhecido pelo Estado Português como vinculante na ordem jurídica nacional, que imponha ao Estado Português o dever de legislar no sentido de obrigar que os velocípedes sem motor que circulem em via pública sejam obrigados a possuir seguro que cubra o alegado risco de circulação.”

No caso em apreço, não se detecta uma omissão de uma obrigação de agir pressuposto que decorre do princípio consagrado no artigo 486º do Código Civil (2), não existindo qualquer omissão do dever de legislar no sentido sustentado pelo recorrente, pelo que a pretensão recursiva está votada ao insucesso.

III) Decisão

Assim, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 7 de Abril de 2016


Nuno Coutinho


Carlos Araújo


Rui Belfo Pereira

(1)Cfr. Acórdão deste Tribunal proferido em 12-09-2013, no âmbito do Proc. 03228/07.
(2)Cfr. neste sentido Carlos Alberto Fernandes Cadilha “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado”, pág. 279.,