Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2220/16.7BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:12/07/2021
Relator:ANA CRISTINA CARVALHO
Descritores:AUTOLIQUIDAÇÃO
RECLAMAÇÃO GRACIOSA PRÉVIA NECESSÁRIA
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
Sumário:I – A reclamação graciosa constitui pressuposto da impugnação judicial em caso de erro na autoliquidação, excepto quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária.
II – A falta de reclamação graciosa prévia necessária, contra a autoliquidação, determina a inimpugnabilidade do acto tributário de liquidação, que constitui excepção dilatória que impede o conhecimento do mérito da acção independentemente da qualificação do vício que o afecte.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1ª Sub-Secção da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I – Relatório

J. R. C., inconformado com a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgando verificada a excepção de inimpugnabilidade do acto impugnado absolveu a Fazenda Pública da instância, dela veio interpor o presente recurso formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:

« A) A douta sentença que aqui se recorre considerou erradamente que “Em face do exposto e nos termos conjugados dos preceitos supra mencionados, conclui-se pela cerificação da exceção dilatória de inimpugnabilidade dos atos impugnados, por falta da prévia reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração, cfr. imposto pelo art.131º, nº 1 do CPPT, o que constitui uma exceção dilatória insuprível e tem como consequência a absolvição de Exma. Representação da Fazenda Pública da instância – Cfr. art. 89º nº 2 e 4 al. i) do CPTA e arts. 278º, al. e), 577º e 578º do CPC aplicável ex vi art.2º als. c) e e) do CPPT”.

B) Considerando, erradamente, o Tribunal a quo que “Com efeito, não resultando evidenciado nos autos que as autoliquidações tenham sido efetuadas de acordo com orientações genéricas da AT, nem que em causa está exclusivamente matéria de direito, uma vez que a composição do litígio impõe a apreciação e qualificação dos factos em que assentaram as autoliquidações, cumpre concluir que não se mostram preenchidos, in casu, os pressupostos de aplicação do disposto no nº 3 do artigo 131º do CPPT, pelo que o Impugnante apenas poderia ter recorrido à via contenciosa, uma vez, esgotada a via administrativa, mais, concretamente, após utilização da reclamação graciosa.”

C) Decidindo desta forma, erradamente, o Tribunal a quo “Concluindo-se pela ocorrência da suscitada exceção dilatória de inimpugnabilidade, considera-se prejudicado o conhecimento das demais questões.”

D) Salvo o devido respeito, o entendimento preconizado pelo Tribunal a quo é de todo inconcebível e não pode o mesmo prevalecer.

E) O aqui Recorrente, nos anos de 2004 a 2007, foi gerente da sociedade SC.. II, Lda., pessoa coletiva número 506 .., com sede na Rua R. F., 8.. R/C E.., 1..-1.. L..

F) E por esse facto, nos termos da alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, foi notificado para pagar as importâncias, nomeadamente, as resultantes das liquidações adicionais acima referidas, e ainda os respetivos juros e o valor da coima aplicável, conforme documentos já junto aos presentes autos, aquando da submissão da petição inicial.

G) E, por conta destes factos, foi constituído arguido no âmbito do processo de inquérito nº 9492/05.0TDLSB.

H) As liquidações adicionais de IVA com os números 06188579, 0688571, 06188567 e a Declaração Periódica com a certidão de Dívida (PF DC) nº 06188584, se encontram feridas de nulidade.

I) As liquidações supra identificadas tiveram origem nas seguintes faturas: (i) Fatura nº 1/2005, de 31/01/2005, no montante de €278.312,12, a que corresponde o montante de IVA a liquidar no valor de €44.436,39; (ii)Fatura nº 2/2005, de 28/02/2005, no valor de €275.859,72, a que corresponde o montante de IVA a liquidar de €43.565,84;(iii) Fatura nº 3/2005, de 31/03/2005, no valor de €285.964,31, a que corresponde de IVA a liquidar de €45.658,17;

(iv) Fatura nº 4/2005, de 30/04/2005, no valor de €333.623,14, a que corresponde o valor de IVA a liquidar de €31.648,80; (v) Fatura nº 5/2005, de 31/05/2005, no valor de €198.221,80, a que corresponde o valor de IVA a liquidar de €31.648,80; (vi) Fatura nº 6/2005, de 30/06/2005, no montante de €235.491,85, a que corresponde o valor de IVA a liquidar de €37.599,54; (vii) Fatura nº 7/2005, de 31/07/2005, no montante de €214.127,72, a que corresponde o valor de IVA a liquidar de €37.162,66; (viii) Fatura nº 8/2005, de 31/08/2005, no montante de €200.131,86, a que corresponde o valor de IVA a liquidar de €34.733,63.

J) Ora, da breve análise das supra mencionadas faturas, constata-se que as mesmas se referem única e exclusivamente a cedência de pessoal, apesar de constar em cada uma das faturas a menção – Prestação de Serviços ao abrigo do contrato nº 1 de 01/01/2005 para os meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto, respetivamente, de 2005.

K) A verdade é que se trata de uma cedência de pessoal, pois que, o contrato mencionado, mais não é do que um Contrato de Cedência de Pessoal.

L) E como tal a entidade cedente, in casu, SC.. II, Lda., apenas e somente pretende (com as referidas faturas) ser reembolsada dos montantes despendidos relativos ao pessoal cedido.

M) Nestes casos, a cedência de pessoal não é considerada para efeitos de tributação em IVA, como prestação de serviços, desde que o montante, debitado à entidade a quem foi cedido o pessoal, corresponda comprovadamente, ao reembolso exato das despesas com ordenados ou vencimentos, os respetivos encargos com a segurança social, e quaisquer outras importâncias, obrigatoriamente suportadas pela entidade a quem pertencem os trabalhadores, por força de contrato de trabalho ou outra legislação aplicável.

N) É este, efetivamente, o caso dos presentes autos.

O) É aliás, este o entendimento na doutrina expressa pela administração fiscal, que na sequência do despacho nº 384/99-XII, de sua Exa. o Ministro das Finanças de 13/10/1999, foi elaborado o Ofício – Circulado nº 30019 de 04/05/2000, da Direção de Serviços do IVA, que, tendo em vista uniformizar procedimentos, divulga a não sujeição a imposto das operações de cedência de pessoal em todas as situações em que o montante debitado comprovadamente corresponda ao reembolso extado de despesas com ordenados ou vencimentos, quotizações para a segurança social e quaisquer outras importâncias obrigatoriamente suportadas pela empresa a que pertence o trabalhador, por força de contrato de trabalho ou previstas na legislação aplicável (v.g. prémios de seguros de vida, complementos de pensões, contribuições para fundos de pensões, etc).

P) Sendo este o entendimento e a obrigatoriedade desde o ano de 2000, aquando da emissão das faturas aqui em causa, no ano de 2005, e que originaram as Liquidações Adicionais aqui Impugnadas, a SC.. II, Lda., não deveria, nem poderia liquidar IVA.

Q) E, isto porque como acima descrito as operações pela mesma efetuadas “Cedência de Pessoal”, não estão sujeitas a IVA.

R) Contudo, e erradamente a mesma emitiu as faturas e liquidou o IVA correspondente. E isto, a pedido da equipa de inspeção tributária, que aí se encontrava a efetuar fiscalização. E que deram origem a correções meramente aritméticas.

S) Ou seja, o Recorrente, bem como a sociedade que administrava, limitaram-se a seguir as orientações dos Inspetores Tributários que se encontravam a elaborar o procedimento inspetivo na sociedade.

T) Consequentemente, tais faturas originaram os montantes de IVA constantes das Liquidações Adicionais, criando desta forma um imposto que não é devido.

U) Criando desta forma, uma dívida indevida de IVA para a sociedade, e inclusive imputando ao administrador da sociedade, a prática de ilícito criminal.

V) Assim, os atos de liquidação adicional encontram-se feridos de nulidade nos termos do disposto no artigo 161º nº 2 alínea k) do Código de Procedimento Administrativo (CPA).

W) “A nulidade constitui a forma mais grave de invalidade, torna o acto totalmente ineficaz, é insuscétivel de sanação, é impugnável a todo o tempo perante os tribunais, sendo que este conhecimento judicial concorre com o conhecimento administrativo”, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, Processo 00007/09.2BEMDL, de 09/06/2010.

X) Desta forma, os atos de liquidação adicional de IVA, objeto nos presentes autos, são nulos, em virtude de criarem obrigações pecuniárias não previstas na lei, porque as operações que as originaram, são operações não sujeitas a IVA.

Y) Pelo que, tais atos não podem ser mantidos na ordem jurídica, tendo de ser declarados nulos, com todas as cominações legais.

Z) Acresce, que andou mal o tribunal a quo ao considerar que nos presentes autos se verifica a exceção da condição de impugnabilidade, em virtude, da presente impugnação judicial, não ter sido precedida da reclamação graciosa, nos termos do estatuído no artigo 131º nº 1 do CPPT.

AA) Salvo o devido respeito, tal entendimento não pode merecer acolhimento.

BB) Pois que, como já supra mencionado, a sociedade em causa, sujeito passivo originária, emitiu a fatura e liquidou o IVA por indicação da equipa de inspeção tributária, que aí se encontrava a efetuar procedimento inspetivo.

CC) Aliás, tal facto terá de ser considerado como provado, em virtude de o mesmo não ter sido impugnado pela Administração Tributária.

DD) Efetivamente, no caso de erro na autoliquidação a lei exige a reclamação graciosa prévia como forma de abrir via contenciosa, a menos que (1º) o fundamento da impugnação seja exclusivamente de direito e (2º) a autoliquidação tenha sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela Autoridade Tributária (artigo 131º nº 1 e nº 3 do CPPT).

EE) Isto, porque, a autoliquidação é efetuada pelo contribuinte, não constitui um ato administrativo e, por isso, não é impugnável diretamente, exigindo-se antes da impugnação uma atuação da Autoridade Tributária no sentido de “administrativizar” o ato.

FF) O segundo dos dois requisitos cumulativos exigidos pelo nº 3 do artigo 131º do CPPT para dispensar a reclamação prévia enquanto condição para abrir a via contenciosa em caso de autoliquidação – a «autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» - justifica-se porque, nesta hipótese, a Autoridade Tributária já se pronunciou previamente sobre a questão suscitada e encontra-se vinculada pelas orientações (cfr. artigo 68º nº 4 da LGT), motivo porque seria inútil suscitar a sua intervenção através de reclamação graciosa que teria de ser indeferida.

GG) Assim, no caso vertido nos presentes autos, é indubitável que a autoliquidação foi efetuada segundo as orientações da equipa do procedimento inspetivo, titulado pela Ordem de Serviço OI200505747.

HH) Até é a própria Autoridade Tributária que o reconhece na sua douta contestação, mencionando no articulado 10º que “Em sede de IVA, o sujeito passivo regularizou as várias irregularidades detetadas, entregando declarações de substituição dos vários períodos (…).”

II) Acrescentando ainda, no artigo 11º da contestação aos presentes autos que “Nos termo do mencionado Relatório no “Cap. X Conclusões”, refere-se o seguinte “Não foram efetuadas outras correcções além das voluntariamente efetuadas pelo sujeito passivo e descritas no capitulo VI a páginas 11 a 12 do relatório.”

JJ) Assim, e nos termos do supra transcrito, é inequívoco que as correções efetuadas pelo sujeito passivo, o foram, de acordo com as orientações emitidas pela administração tributária, nas pessoas dos inspetores tributários encarregues do procedimento inspetivo. Pelo que, tendo a Autoridade Tributária já se pronunciado previamente sobre a questão suscitada seria totalmente inútil suscitar a sua intervenção através da reclamação graciosa.

KK) Acresce que, por tudo supra explanado também dúvidas não restam, de que a questão em escrutínio é inteiramente de direito, pelo que se encontram reunidos os pressupostos para a dispensa da reclamação prévia, previstos no nº 3 do artigo 131º do CPPT.

LL) Desta forma, andou mal o Tribunal ao quo, ao julgar procedente a exceção inominada decorrente da falta de reclamação prévia. Pois, a situação descrita nos presentes autos tem pleno enquadramento no estatuído no nº 3 do artigo 131º do CPPT.

MM) Concomitantemente, no caso em escrutínio, verifica-se a dispensa da reclamação prévia, enquanto condição para abrir a via contenciosa. Pelo que o acórdão recorrido tem impreterivelmente de ser substituído por outro que considere improcedente a exceção de inimpugnabilidade e a final conheça do objeto dos autos.

Nestes termos e nos mais de Direito sempre com o mui douto suprimento de V/ Exa. deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e consequentemente, ser revogado o acórdão recorrido, e substituído por outro, que a final determine serem os atos de liquidação nulos com todas as cominações legais.»


A recorrida não apresentou contra-alegações.


O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal Central, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta primeira Subsecção da Secção de Contencioso Tributário para decisão.

II – Delimitação do objecto do recurso

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir se a sentença recorrida efectuou errada apreciação dos factos e se incorreu em erro de julgamento de direito ao absolver a Fazenda Pública da instância, por julgar verificada a excepção de inimpugnabilidade do acto impugnado.



*

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1 – Fundamentação de facto


Para a apreciação da matéria de exceção a sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

«1. Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI200505747, de 22.08.2005, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, iniciaram, em 20.06.2006, o procedimento de inspeção externa à sociedade F. M. T. – A., L.da, NIPC 506.., atual SC.. II, L.da – Em liquidação, de âmbito geral para o exercício de 2004 e parcial – IVA e retenções na fonte IRS, para o exercício de 2005 – cfr. ponto II. do Relatório de Inspeção Tributária (R.I.T.) junto a fls. 20 e ss do Processo Administrativo Tributário (P.A.T.) apenso aos autos;

2. A ação de inspeção mencionada no ponto antecedente foi desencadeada, nomeadamente, pelo facto da referida sociedade ter iniciado atividade em março de 2004, entregando as declarações periódicas de IVA a zero – cfr. ponto II. do Relatório de Inspeção Tributária (R.I.T.) junto a fls. 20 e ss do Processo Administrativo Tributário (P.A.T.) apenso aos autos;

3. O Impugnante, J. R. C., à data dos factos, era sócio gerente da sociedade inspecionada – cfr. ponto 3.1.4 do Relatório de Inspeção Tributária (R.I.T.) junto a fls. 20 e ss do Processo Administrativo Tributário (P.A.T.) apenso aos autos;

4. No decurso da ação inspetiva, a sociedade procedeu à regularização voluntária das irregularidades detetadas pelos SIT, em sede de IVA, entregando declarações de substituição dos vários períodos, das quais resultou o montante total corrigido de €494.500,38, que se discrimina da seguinte forma (cfr. ponto VI, 3., do R.I.T., junto a fls. 20 e ss do PAT apenso aos autos):

i. Declaração n.º 103911372377, referente ao período 0503T, datada de 10.08.2006, no valor de €135.497,07;

ii. Declaração n.º 103911035699, referente ao período 0506T, datada de 30.06.2006, no valor de €122.469,43;

iii. Declaração n.º 103911035818, referente ao período 0509T, datada de 30.06.2006, no valor de €102.529,04;

iv. Declaração n.º 103911035940, referente ao período 0512T, datada de 30.06.2006, no valor de €136.004,84;

5. A sociedade não procedeu ao pagamento voluntário dos montantes em dívida, nem prestou garantia, pelo que foram extraídas as respetivas certidões de dívida, com base nas quais vieram a ser instaurados, em 20.11.2006 e em 08.08.2006, os correspondentes Processos de Execução Fiscal n.ºs 32982006010554830 e 3298200601037838, respetivamente – cfr. fls. 13 do P.A.T.

6. Em 23.03.2011, o Impugnante foi citado, na qualidade de responsável subsidiário – acordo e cfr. fls. 37 e 41 do P.A.T. apenso aos autos;

7. O Impugnante não deduziu reclamação graciosa – facto não contestado;

8. Em 23.06.2016, o Impugnante deduziu a presente Impugnação Judicial – cfr. carimbo aposto a fls. 1 dos autos em papel;»


*


Consta ainda da sentença o seguinte: «Inexistem factos não provados com relevância para a decisão da exceção suscitada.

*


Motivação: O Tribunal fundou a sua convicção com base no adquirido processual e na posição das partes assumida nos articulados, conforme especificado a propósito de cada uma das alíneas do probatório.»

III. 2 – Apreciação do recurso


O Tribunal a quo julgou procedente a exceção peremptória da inimpugnabilidade dos actos impugnados e em consequência absolveu a Fazenda Pública da instância, no entendimento de que a reclamação graciosa necessária, prevista no artigo 131.º, n.º 1 do CPPT constitui um pressuposto processual traduzido numa condição de abertura da via contenciosa, pelo que, a sua omissão determina a procedência da excepção dilatória de inimpugnabilidade, de conhecimento oficioso, cuja verificação obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da Entidade Demandada da instância, nos termos conjugados do artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea i), do CPTA e artigos 278.º alínea e), 577.º e 578.º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 2.º alíneas c) e e) do CPPT.

O recorrente não se conforma com a sentença recorrida, que assim decidiu, sustentando a sua alegação no entendimento de que as liquidações estão feridas de nulidade, por terem subjacentes facturas que se referem a cedência de pessoal e não, como nelas se fez constar, a prestação de serviços, ao abrigo de contrato celebrado em 2005 (cf. conclusões H) a U)). Considera assim que as liquidações em causa são nulas por criarem obrigações pecuniárias não previstas na lei (conclusões V) a MM)) e como tal impugnáveis a todo o tempo.

Vejamos.

Ao tempo em que as autoliquidações tiveram lugar – 30/06/2006 e 10/08/2006 – dispunha o artigo 131.º do CPPT, sob a epígrafe «Impugnação em caso de autoliquidação»:

«1 - Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração.

2 - Em caso de indeferimento expresso ou tácito da reclamação, o contribuinte poderá impugnar, no prazo de 30 dias, a liquidação que efectuou, contados, respectivamente, a partir da notificação do indeferimento ou da formação da presunção do indeferimento tácito.

3 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º.»

Conforme resulta da norma acabada de transcrever, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa.

Ao estabelecer a necessidade de o contribuinte deduzir reclamação graciosa previamente à impugnação judicial, em caso de autoliquidação, o legislador não introduziu nenhum factor de distinção relativa ao tipo de invalidade do acto, pelo que, não cabe ao interprete criar tal distinção.

Como se afirma na sentença recorrida, «[a] ratio de tal preceito prende-se, essencialmente, com o facto de a Administração Fiscal ainda não ter tido a oportunidade de manifestar a sua vontade, inexistindo um qualquer conflito de pretensões entre a Administração Fiscal e o sujeito passivo, não tendo este último sido lesado.

Como refere LOPES DE SOUSA “(…) nos casos de autoliquidação, não se está perante um ato administrativo, por não existir qualquer tomada de posição da administração sobre a sua relação com o contribuinte, na situação concreta gerada por este ao autoliquidar o tributo. // Por outro lado, sendo a função constitucionalmente atribuída aos tribunais administrativos e fiscais a de «dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (art. 212.º, n.º 3, da CRP), terá de reconhecer-se que nas situações de autoliquidação antes de qualquer tomada de posição da administração sobre a situação gerada com o ato do contribuinte, não se estará perante uma situação em que a Constituição imponha a intervenção de um tribunal, pois não é detetável, ainda, qualquer litígio.” (in Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, Vol. II, 6.ª Edição, Almedina 2011, anot. 3 ao Art. 131, págs. 406-408).»

E não se diga, como pretende o Recorrente, que o apuramento de irregularidades detectadas no âmbito do procedimento inspectivo constitui uma pronuncia e/ou, até, uma orientação genérica que o Recorrente se limitou a seguir.

Com efeito, a autoliquidação consubstanciada nas declarações periódicas de IVA, foram apresentadas pela sociedade voluntariamente. Na verdade, como sublinha a sentença recorrida, «não é qualquer indicação dada pela Administração fiscal que preenche o aludido requisito. De acordo com o entendimento jurisprudencial, para efeitos do aludido preceito, constituem «orientações genéricas» os “atos do poder de direção típico da relação de hierarquia administrativa, os quais dão a faculdade de emanar circulares interpretativas, ou seja, instruções gerais, vinculativas, dirigidas aos órgãos da administração tributária, funcionários e agentes subalternos, acerca do sentido em que devem – mediante interpretação ou integração – entender-se as normas e princípios jurídicos que, no âmbito do exercício das suas funções, lhes caiba aplicar.” – cfr. Ac. STA de 31.05.2006, proc. n.º 026622, disponível em www.dgsi.pt.»

E assim é. Na verdade, a actuação subjacente à afirmação produzida pelo Recorrente, no sentido de que seguiu orientações genéricas da AT, mais não foi que a conformação, por antecipação, das obrigações declarativas com o projecto de relatório, procurando voluntariamente evitar as consequências sancionatórias associadas às correcções que poderiam resultar da acção inspectiva. Não podendo afirmar-se, como bem se concluiu na sentença recorrida, que se tratou de seguir orientações genéricas.

Caso o Recorrente não concordasse com a perspectiva da AT consubstanciada no projecto de relatório, e posteriormente no relatório final, poderia ter reclamado e impugnado as liquidações que resultassem do teor do relatório de inspecção.

No que se refere à alegação de que o Tribunal andou mal, ao julgar procedente a excepção inominada decorrente da falta de reclamação graciosa, na medida em que considera a questão apenas de direito, dispensando-se a reclamação prévia, também não lhe assiste razão.

Na verdade, saber se as liquidações de IVA eram devidas, não passa apenas pela determinação da norma aplicável. Passa, em primeiro lugar, pela determinação e apreciação dos factos relevantes para se proceder à qualificação das operações concretas praticadas pela sociedade e, só após essa determinação dos factos, seria possível decidir se as operações estavam ou não sujeitas a imposto, isentas ou não isentas.

Ora, foi neste sentido que a sentença concluiu: «[c]om efeito, não resultando evidenciado nos autos que as autoliquidações tenham sido efetuadas de acordo com orientações genéricas da AT, nem que em causa está exclusivamente matéria de direito, uma vez que a composição do litígio impõe a apreciação e qualificação dos factos em que assentaram as autoliquidações, cumpre concluir que não se mostram preenchidos in casu os pressupostos de aplicação do disposto no n.º 3 do art. 131.º do CPPT, pelo que o Impugnante apenas poderia ter recorrido à via contenciosa, uma vez esgotada a via administrativa, mais concretamente, após utilização da reclamação graciosa

Saber se estava em causa a cedência de mão de obra ou a prestação de serviços constitui questão que faz apelo aos factos concretos, ou seja, ao modo e às circunstâncias concretas em que a prestação contratual em causa se processou, o que exclui, desde logo, a aplicação do n.º 3 do artigo 131º do CPPT, como bem se decidiu em 1ª instância.

Assim se conclui que a sentença não merece a censura que lhe vem dirigida, donde resulta a total improcedência do recurso.

Em matéria de custas o artigo 527.º do CPC consagra o princípio da causalidade, de acordo com o qual custas são pagas pela parte que lhes deu causa. Vencido na acção, considera-se que foi o Recorrente quem deu causa às custas do presente processo (cf. n.º 2), e, portanto, deve ser condenada nas respetivas custas (cf. n.º 1, 1.ª parte).



IV – CONCLUSÕES

I – A reclamação graciosa constitui pressuposto da impugnação judicial em caso de erro na autoliquidação, excepto quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária.

II – A falta de reclamação graciosa prévia necessária, contra a autoliquidação, determina a inimpugnabilidade do acto tributário de liquidação, que constitui excepção dilatória que impede o conhecimento do mérito da acção independentemente da qualificação do vício que o afecte.


V – DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes que integram a 1ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo em negar provimento ao recurso confirmando-se a sentença recorrida.


Custas pelo Recorrente, com dispensa do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7 do RCP, conforme despacho de 04/10/2021.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2021.



A relatora

Ana Cristina Carvalho

Lurdes Toscano

Maria Cardoso