Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:04840/09
Secção:Contencioso Administrativo - 2º Juízo
Data do Acordão:03/18/2009
Relator:Rui Pereira
Descritores:ACÇÃO PARA DISSOLUÇÃO DE ÓRGÃO AUTÁRQUICO
LEGITIMIDADE PASSIVA
ACTO ELEITORAL SUBSEQUENTE
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário:I – Se a utilidade derivada da procedência da acção é a que melhor se ajusta aos interesses do réu – no caso o Município de ... –, ou seja, dito de outro modo, se o interesse que o mesmo visava prosseguir se identifica muito mais com o interesse prosseguido pelo autor do que com o da co-ré Assembleia Municipal, aquele réu não tem interesse directo em contradizer.
II – O artigo 10º do CPTA que genericamente regula a legitimidade passiva, contém uma norma – o nº 6 –, de natureza excepcional, que encontra a sua justificação na circunstância do litígio eclodir entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública e não ser viável demandar a própria pessoa colectiva pública a que ambos os órgãos se encontram adstritos.
III – É esse nº 6 do artigo 10º do CPTA – que dispõe que nos processos respeitantes a litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva, a acção é proposta contra o órgão cuja conduta deu origem ao litígio – a norma que melhor se adequa ao caso dos presentes autos, evitando deste modo colocar na posição de demandado quem tem manifestamente tanto interesse quanto o autor em ver a acção ser julgada procedente, sem que contra isso constitua obstáculo a “intermediação” do Ministério Público na propositura da acção, posto que tal posição processual resulta “ope legis” do artigo 11º, nº 2 da Lei nº 27/96, de 1/8.
IV – A dissolução é o acto que põe termo às funções dos membros de um órgão político ou administrativo colegial de base electiva, antes de esgotada a duração normal do respectivo mandato.
V – A dissolução não atinge o órgão em si, na sua existência constitucional ou legal, uma vez que se lhe segue obrigatoriamente, dentro de um prazo máximo que em geral é fixado pela Constituição ou pela lei, o processo previsto para a reconstituição do órgão em questão. Trata-se, pois, dum mecanismo institucional destinado a permitir a antecipada recomposição de um órgão colegial de base electiva ou a antecipada substituição dos respectivos membros.
VI – Consistindo o fim da presente acção de dissolução a obtenção duma sentença que ponha termo às funções dos membros da Assembleia Municipal de ..., antes de esgotada a duração normal do respectivo mandato, se este ocorreu naturalmente pelo decurso do respectivo prazo e na sequência de novo acto eleitoral, parece óbvio que o fim visado com a propositura da presente acção se tornou objectivamente impossível, uma vez que não é possível pôr termo àquilo que já terminou.
VII – Deste modo, ao declarar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, pelo facto da Assembleia Municipal de ... “ter logrado emendar caminho, funcionando agora regularmente”, e não a extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, pelo facto de entretanto terem ocorrido novas eleições para os órgãos autárquicos, que determinaram o fim do mandato do órgão cuja dissolução era pedida, tornando a lide impossível, a sentença recorrida fez incorrecta aplicação do artigo 287º, alínea e) do CPCivil.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO
A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja interpôs naquele Tribunal, ao abrigo do disposto nos artigos 9º, alíneas e) e i) e 11º, nºs 1 e 2, ambos da Lei nº 27/96, de 1 de Agosto, e artigo 191º do CPTA, uma Acção Administrativa para Dissolução da Assembleia Municipal de ..., contra a Assembleia Municipal De ... [A ...] e contra o Município de ..., pedindo a final, a dissolução da Assembleia Municipal de ..., cujos membros foram eleitos por sufrágio directo e universal nas eleições autárquicas de 16-12-2001.
Por sentença do TAF de Beja, de 17-12-2008, foi julgada procedente a excepção da ilegitimidade passiva do Município de ... e, no mais, julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide [cfr. fls. 855/865 dos autos].
Inconformada, interpôs aquela Digna Magistrada do Ministério Público recurso jurisdicional da sentença, tendo concluído a sua alegação nos seguintes termos:
1º - Entendemos que não decorre da douta decisão fundamentação suficiente que alicerce a procedência da excepção de ilegitimidade passiva e, por outro lado, a fundamentação que consta da mesma nunca poderia conduzir à procedência da referida excepção;
2º - O Réu Município de ... tem legitimidade passiva para estar como Réu na presente Acção uma vez que a A ... pertence à pessoa colectiva pública, dado que quando a acção tem por objecto a acção de uma entidade pública, parte demandada é a pessoa colectiva de direito público e não o órgão que praticou o acto, no caso, a pessoa colectiva de direito público é o Município de ...;
3º - E têm também legitimidade para o efeito as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor, como é o caso da A ..., que não sendo parte na relação material subjacente, sai directamente prejudicada com a procedência da demanda e terá um interesse legítimo na manutenção do status quo, advindo-lhe a legitimidade passiva pelo interesse que desse modo poderá ter em contradizer;
4º - Ao ter sido decidido procedente a suscitada excepção de ilegitimidade passiva do Réu Município de ... ocorreu a violação dos artigos 10º, nºs 1 e 2 e 191º, ambos do CPTA, padecendo a douta sentença de nulidade, nesta parte, razão pela qual deve ser revogada e mandada substituir por outra julgue improcedente a invocada excepção;
5º - Por outro lado, o tribunal a quo julgou a presente acção inútil e declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide tão só porque a Ré A ... [na composição posterior ao acto eleitoral de 9-10-2005] logrou emendar caminho, e ainda à luz dos princípios da autonomia local e da proporcionalidade, nas suas diversas vertentes;
6º - Limitou-se a uma simples adesão genérica aos argumentos invocados pela Ré A ... nas suas alegações orais produzidas em julgamento;
7º - A douta sentença não se mostra minimamente fundamentada, não sendo compreensíveis as razões que levaram o tribunal a julgar verificada a inutilidade da lide;
8º - Não estamos perante um caso de fundamentação deficiente ou errónea, mas de absoluta falta de motivação;
9º - Desconhece-se de que forma o tribunal interpretou as normas dos artigos 287º, alínea e) do CPCivil, e do artigo 9º, alíneas e) e i) da Lei nº 27/96, 1/8, assim como em que factos se traduzem os invocados princípios da autonomia local e da proporcionalidade, nas suas diversas vertentes, e ainda que factos foram introduzidos na lide que tenham a virtualidade de fazer extinguir a pretensão do Autor acarretando a inutilidade da lide;
10º - Violando os dispositivos dos artigos 668º, nº 1, alínea b) e 158º do CPCivil, e 94º, nº 2 do CPTA, e também do artigo 9º, alíneas e) e i) da Lei nº 27/96, 1/8, a douta sentença padece de nulidade, razão pela qual deve ser revogada e mandada substituir por outra que observe todos os requisitos legais e aplique o direito aos factos, julgando a presente acção procedente por provada;
11º - Caso assim não se entenda, a douta sentença padece do vício de omissão de pronúncia no que diz respeito a factos que não constam da matéria dada como assente e que dizem respeito aos factos constantes dos artigos 50º a 56º da PI, bem como a diversas outras questões não apreciadas, como sejam as relativas à composição da anterior e actual A ..., à identificação e ao modo de votações nas diversas deliberações desse órgão, bem como a relevância dos factos ocorridos durante a anterior A ... se repercutirem na A ... seguinte;
12º - Ao não terem sido conhecidas e apreciadas todas as questões submetidas à apreciação da Mmª Juiz a quo, a douta sentença está ferida de nulidade, por violação do disposto nos artigos 659º, nºs 1 a 3, 660º e 668º, nº 1, alínea d) do CPCivil, e 94º, nºs 1 e 2 do CPTA, e ainda do artigo 9º, alíneas e) e i) da Lei nº 27/96, de 1/8, razão pela qual deve ser revogada e substituída por outra que dê como provada a matéria atinente a tais factos e, em consequência, ser julgada procedente a presente acção, por provada;
13º - Ainda que tal não venha a ser entendido, sempre a douta sentença procedeu a uma deficiente e, em consequência, errada apreciação da prova, bem como uma errada interpretação e aplicação do direito aos factos;
14º - Pois que os factos e os fundamentos invocados não poderiam conduzir à procedência da excepção de inutilidade superveniente da lide;
15º - Os Réus não lograram provar a verificação de qualquer causa que justificassem os factos ou excluíssem a culpa dos agentes, ate porque se tratam de "acções e omissões ilegais graves", razão porque são sancionadas com a dissolução do órgão autárquico; 16º - Ao não ter sido assim entendido e ter sido antes decidido pela procedência da referida excepção, a qual se mostra improcedente por não provada, consideramos ter ocorrido a violação das normas constantes dos artigos 9º, alíneas e) e i) e 10º da Lei nº 27/96, de 1 de Agosto, 53º, nº 2, alíneas b) e c), 82º e 88º, nº 1 da Lei nº 169/99, 18/9, na redacção dada pela Lei nº 5-A/2002, de 11/1, e 287º, alínea e) do CPCivil.
17º - Devendo, por isso, ser a mesma revogada e substituída por outra que determine a procedência da presente Acção.
18º - Por todo o exposto, sempre a douta sentença final deverá ser revogada e substituída por outra na qual constem os factos relevantes para a decisão da causa e seja efectuada a devida apreciação dos elementos probatórios constantes dos autos e relevantes para a boa decisão da mesma, observando todos os requisitos legais e aplicação do direito aos factos, julgando a presente acção procedente por provada”.
Os réus não apresentaram contra-alegações.
A Senhora Juíza “a quo” sustentou o decidido [cfr. fls. 896].
Com dispensa de vistos, atento o carácter urgente do processo, vêm os autos à conferência para julgamento.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença recorrida deu como assente a seguinte factualidade:
i. Em 20-9-2005, deu entrada neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja a presente acção para dissolução da A ...;
ii. Em 9-10-2005, realizaram-se eleições autárquicas, para o mandato de 2006/2010;
iii. Na sequência das eleições acima referenciadas, procedeu-se à instalação da A ..., que é composta por 23 [vinte e três] membros, sendo que 11 [onze] deputados municipais transitaram da anterior A ... [com mandato de 2002 a 2006], e destes 11 [onze], foram 4 [quatro], a saber: António ...; Pedro ...; Francisco ...e José ..., os que votaram favoravelmente as deliberações que determinaram a propositura da presente acção, tendo os restantes 7 [sete] elementos reeleitos votado antes favoravelmente a aprovação dos orçamentos e planos de actividades ou, se ausentado, na matéria de suspensão de funções do órgão deliberativo;
iv. A A ..., já instalada em novo edifício, tem, no actual mandato, funcionado regularmente;
v. Diferentemente do que sucedeu com a anterior A ..., que desde a sessão ordinária de 30-4-2003 que não aprecia e aprova as Prestações de Contas referentes aos anos 2002 a 2004, bem como às Grandes Opções do Plano [GOP's] e Orçamento para o ano 2002/2004;
vi. Situação que motivou o envio, por parte da CMA, dos referidos documentos, sem deliberação, para o Tribunal de Contas e demais entidades;
vii. Por outro lado, face à conduta da A ..., sucintamente descrita no ponto v. supra, a CMA viu-se assim impossibilitada de elaborar uma nova proposta e deste modo, as GOP's e Orçamento do Município de ... para 2004 não entraram em vigor no dia 1-1-2004;
viii. Igualmente, e após vicissitudes e propostas várias, as GOP's e Orçamento para 2005 não entraram em vigor no dia 1-1-2005;
ix. Mais acresce que, no seguimento de deliberação da CMA tomada na reunião ordinária de 12-1-2005, foram participados à Inspecção-Geral Administração do Território [IGAT] todos os factos anteriormente referidos;
x. Nas sessões de 21-1-2005 e de 25-2-2005, a A ... deliberou suspender a sua actividade, enquanto não lhe fossem concedidas as condições de funcionamento consignadas no artigo 52º-A da Lei nº 5-A/2000, de 11/1, e que após a votação, e se aprovada essa deliberação, fosse endereçada a diversas entidades, tal como a IGAT, seguindo-se a intervenção de diversos membros da A ... que culminou com a saída da sala dos Deputados Municipais eleitos pelo Grupo Municipal do PSD, tendo a votação ocorrido por escrutínio secreto, foi aprovada a proposta por unanimidade dos presentes [com 13 votos a favor];
xi. A deliberação de suspensão da actividade da A ... foi efectivamente concretizada, não tendo havido até à constituição da nova A ... [após a realização do acto eleitoral de 9-10-2005, melhor identificado no ponto ii. supra], qualquer outra sessão da A ....

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
São duas as críticas apontadas à sentença recorrida, a saber:
- Erro de julgamento, por ter sido julgada procedente a excepção de ilegitimidade passiva do réu Município de ..., por violação dos artigos 10º, nºs 1 e 2 e 191º, ambos do CPTA, padecendo ainda a sentença de nulidade, nesta parte, por não conter fundamentação suficiente que alicerce a procedência da excepção de ilegitimidade passiva e, por outro lado, a fundamentação que consta da mesma nunca poderia conduzir à procedência da referida excepção [conclusões 1ª a 4ª]; e,
- Nulidade da sentença, por ter sido declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, sem que a mesma se mostre minimamente fundamentada, não sendo compreensíveis as razões que levaram o tribunal a julgar verificada a inutilidade da lide, desconhecendo-se de que forma o tribunal interpretou as normas dos artigos 287º, alínea e) do CPCivil, e do artigo 9º, alíneas e) e i) da Lei nº 27/96, 1/8, assim como em que factos se traduzem os invocados princípios da autonomia local e da proporcionalidade, nas suas diversas vertentes, e ainda que factos foram introduzidos na lide que tenham a virtualidade de fazer extinguir a pretensão do autor acarretando a inutilidade da lide, mostrando-se assim violados os artigos 668º, nº 1, alínea b) e 158º do CPCivil, e 94º, nº 2 do CPTA, e também do artigo 9º, alíneas e) e i) da Lei nº 27/96, 1/8 [conclusões 5ª a 18ª].
Comecemos por apreciar se a decisão recorrida, na parte em que julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva do Município de ..., é nula, por violação do disposto no artigo 668º, nº 1, alínea b) do CPCivil ou, não o sendo, se incorreu em erro de julgamento, nomeadamente por violação dos artigos 10º, nºs 1 e 2 e 191º do CPTA.
Para concluir pela procedência da excepção em causa, que havia sido suscitada pelo réu Município de ..., a sentença recorrida argumentou do seguinte modo:
Dos autos, e à luz do disposto no artigo 10º, nº 1, nº 2, e sobretudo, nº 6, e artigo 191º, todos do CPTA, claramente decorre que o Réu Município de ..., não tem, na presente acção, interesse em contradizer.
Tal é admitido pelo próprio, e decorre da matéria assente infra e, portanto, da prova documental junta, bem como da prova testemunhal entretanto produzida, porquanto, e como o mesmo sublinha, foi o Município, na pessoa do Presidente da Câmara Municipal de ... – CMA, o responsável pela denúncia às mais diferentes entidades [designadamente IGAT, TC, etc.] dos factos que nesta acção se encontram articulados, factos esses, sublinhe-se, praticados pela ré A ..., que pese embora se trate de órgão da mesma pessoa colectiva, é o órgão cuja conduta deu, efectivamente, origem ao presente litígio.
Deste modo, procede a suscitada excepção de ilegitimidade passiva do réu Município de ..., prosseguindo a presente acção contra a ré A ...: cfr. artigo 10º, nº 6 do CPTA”.
Vejamos.
Como decorre da sentença – cuja factualidade relevante foi fixada cronologicamente em momento posterior ao do conhecimento da excepção, mas que, ainda assim, foi considerada na decisão de a julgar procedente –, a decisão de julgar procedente a excepção de ilegitimidade passiva do Município de ... foi colher a sua fundamentação de facto na matéria assente sob as alíneas E) a I) do probatório [pontos v. a ix. no presente acórdão], dos quais resulta que a Assembleia Municipal de ..., desde a sessão ordinária de 30-4-2003, deixou de apreciar e aprovar as Prestações de Contas referentes aos anos 2002 a 2004, bem como às Grandes Opções do Plano [GOP's] e Orçamento para o ano 2002/2004, o que motivou que a Câmara Municipal de ... procedesse ao envio dos referidos documentos, sem deliberação, para o Tribunal de Contas e demais entidades, o que a deixou impossibilitada de elaborar uma nova proposta, pelo que as GOP's e Orçamento do Município de ... para 2004 e para 2005 não entraram em vigor no dia 1-1-2004 e 1-1-2005, como era suposto, situação que veio a culminar na deliberação da Câmara Municipal de ..., tomada na reunião ordinária de 12-1-2005, na qual se decidiu participar à Inspecção-Geral Administração do Território [IGAT] todos os factos anteriormente referidos.
Ora, como transparece da factualidade dada como assente pela sentença, foi exactamente o mau ambiente existente entre a Câmara Municipal e a Assembleia Municipal de ... que estiveram na origem da participação ao IGAT e que constituíram a génese da presente acção administrativa com vista à dissolução do órgão deliberativo do município.
A alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPCivil fulmina com nulidade a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão; com efeito, o normativo citado, ao exigir a especificação dos fundamentos de facto da decisão, refere-se à motivação ou fundamento da mesma, no plano factual, pelo que essa falta constitui nulidade de conhecimento oficioso [cfr. o Acórdão do STA, de 23-6-88, in BMJ nº 378, págs. 771], na exacta medida de que não é pelo facto das partes não terem reclamado dos vícios da sentença que o tribunal superior ficará impedido de apreciar o recurso nos seus restantes aspectos, visto que as nulidades que afectem a apreciação da matéria de facto obstam à apreciação justa do recurso na sua totalidade [Neste sentido, cfr. Alberto dos Reis, Lições de Processo Civil, Vol. III, págs. 237/238].
Para efeitos da mencionada nulidade não interessa saber se os elementos constantes do processo, que o juiz tinha quando decidiu, justificam a decisão, mas antes verificar que esta não contém qualquer fundamentação, na exacta medida em que a exigência de fundamentação tem natureza imperativa, é um princípio geral que a própria Constituição consagra no seu artigo 208º, nº 1, e que tem de ser observado nas decisões judiciais.
Por outro lado, a delimitação do âmbito e alcance do dever de fundamentação das decisões judiciais está directamente relacionado com as funções por elas desempenhados, já que sendo uma das garantias fundamentais dos cidadãos num Estado Social de Direito contra o arbítrio do poder judiciário, a motivação das decisões judiciais desempenha uma dupla função: por um lado, impõe ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, por forma a persuadir os destinatários e a comunidade jurídica em geral; por outro, pela via do recurso, permite o reexame do processo lógico ou racional que lhe está subjacente. A eficácia da sentença e, em última análise, a legitimação do próprio poder jurisdicional dependem, pois, da forma como se mostra cumprido o princípio da motivação das decisões judiciais.
Contudo, conforme constitui jurisprudência uniforme do STA, bem como, aliás, do STJ, essa nulidade só ocorre quando a falta de motivação [seja de facto, seja de direito] for absoluta, ou seja, quando a omissão dos fundamentos for total, mas não já quando a justificação do decidido for insuficiente, medíocre ou quando a veracidade dos factos apontados não esteja provada.
Ora, a Digna Magistrada recorrente imputa a nulidade da sentença ao facto desta não conter fundamentação suficiente que alicerce a procedência da excepção de ilegitimidade passiva e, por outro lado, porque a fundamentação que consta da mesma nunca poderia conduzir à procedência da referida excepção. Porém, essa parcial omissão na fundamentação não gera nulidade mas, quando muito, erro de julgamento, já que não cabe no âmbito de previsão de nenhuma das alíneas do nº 1 do artigo 668º do CPCivil.
Assim, não se verificando a apontada nulidade, improcedem neste particular as conclusões I) a IV) da alegação da Digna Magistrada recorrente.
Adquirido que a decisão de julgar o Município de ... parte ilegítima não é nula, cumpre verificar se a mesma padece do apontado erro de julgamento, consistente na violação dos artigos 10º, nºs 1 e 2 e 191º do CPTA.
No artigo 10º, nº 1 do CPTA estabelece-se o princípio geral para aferir da legitimidade passiva das partes, de acordo com o qual cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida [tal como configurada pelo autor, acrescentam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha, em anotação ao nº 1 do artigo 10º do CPTA, no seu Comentário ao CPTA, Almedina, 2005, a págs. 70]; como corolário desse princípio geral o nº 2 do citado normativo especifica que “quando a acção tenha por objecto a acção ou omissão de uma entidade pública, parte demandada é a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos”.
Daqui retira a Digna Magistrada recorrente que sendo o Município de ... a pessoa colectiva de direito público a cujos órgãos seja imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos, obviamente que se impunha demandá-lo, ou seja, indicá-lo como réu; daí que tenha proposto a acção contra a Assembleia Municipal de ... e também contra este Município [cfr. cabeçalho da petição inicial].
Afigura-se-nos, porém, salvo melhor entendimento, que a tese sustentada pela Digna Magistrada recorrente não encontra acolhimento na letra da lei.
Procuremos demonstrá-lo.
Como acima se disse, o litígio surgiu do mau relacionamento institucional existente entre a Câmara Municipal – órgão executivo do município – e a Assembleia Municipal – órgão deliberativo do mesmo –, que depois se veio a consubstanciar na prática de ilegalidades graves, imputáveis à Assembleia Municipal, como acima vimos.
Ora, de acordo com o nº 2 do artigo 11º da Lei nº 27/96, de 1/8, que veio estabelecer o regime jurídico da tutela administrativa, “as acções para perda de mandato ou de dissolução de órgãos autárquicos ou de entidades equiparadas são interpostas pelo Ministério Público, por qualquer membro do órgão de que faz parte aquele contra quem for formulado o pedido, ou por quem tenha interesse directo em demandar, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção”.
Para a economia do preceito, a presente acção tanto podia ter sido intentada pelo Ministério Público – como se viu ter sido o caso –, como por qualquer membro do órgão da Assembleia Municipal, e ainda por quem demonstrasse ter interesse directo em demandar, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção, o que significa que, de acordo com a interpretação que fazemos do citado preceito, a acção podia ter sido intentada pela Câmara Municipal [ou “Município em acção”, na expressão utilizada no Acórdão do STJ, de 28-5-92, publicado no BMJ nº 417, pág. 633, já que quer no seu sentido comum quer no seu sentido legal, “Câmara Municipal” e “Município” são expressões e realidades que se confundem], representada pelo respectivo presidente, já que a procedência da acção era idónea a remover os obstáculos que a Assembleia Municipal vinha causando ao normal exercício das competências da Câmara.
Assim sendo, não tem qualquer sentido colocar a Câmara Municipal [leia-se Município] na posição de entidade demandada, uma vez que a utilidade derivada da procedência da acção é a que melhor se ajusta aos seus interesses, ou seja, dito de outro modo, o interesse que a mesma visa prosseguir identifica-se muito mais com o interesse prosseguido pelo autor do que com o da ré Assembleia Municipal. De resto, não deixaria de causar estranheza o facto do réu, na sua contestação, vir defender de forma a não deixar margem para dúvidas, a procedência da acção!!!
Resulta pois evidente que a indicação do Município de ... como réu constitui um contra-senso, tanto mais que o artigo do CPTA que genericamente regula a legitimidade passiva – o artigo 10º – contém uma norma [o nº 6], de natureza excepcional, que encontra a sua justificação na circunstância do litígio eclodir entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública e não ser viável demandar a própria pessoa colectiva pública a que ambos os órgãos se encontram adstritos [cfr., neste sentido, Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha, em anotação ao nº 6 do artigo 10º do CPTA, no seu Comentário ao CPTA, Almedina, 2005, a págs. 78].
Parece-nos ser esse nº 6 do artigo 10º do CPTA – que dispõe que nos processos respeitantes a litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva, a acção é proposta contra o órgão cuja conduta deu origem ao litígio – a norma que melhor se adequa ao caso dos presentes autos, evitando deste modo colocar na posição de demandado quem tem manifestamente tanto interesse quanto o autor na procedência da acção, sem que contra isso se argumente constituir obstáculo a “intermediação” do Ministério Público na propositura da acção, posto que tal posição processual resulta “ope legis” do artigo 11º, nº 2 da Lei nº 27/96, de 1/8.
Por conseguinte, a decisão de julgar o Município de ... parte ilegítima não violou os artigos 10º, nºs 1 e 2 e 191º do CPTA, não merecendo por isso qualquer reparo, com o que improcedem as conclusões I) a IV) da alegação da Digna Magistrada recorrente.
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Resta apenas analisar se a sentença recorrida é nula, por ter sido declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, sem que a mesma se mostre minimamente fundamentada, não sendo compreensíveis as razões que levaram o tribunal a julgar verificada a inutilidade da lide, desconhecendo-se de que forma o tribunal interpretou as normas dos artigos 287º, alínea e) do CPCivil, e do artigo 9º, alíneas e) e i) da Lei nº 27/96, 1/8, assim como em que factos se traduzem os invocados princípios da autonomia local e da proporcionalidade, nas suas diversas vertentes, e ainda que factos foram introduzidos na lide que tenham a virtualidade de fazer extinguir a pretensão do autor acarretando a inutilidade da lide, mostrando-se assim violados os artigos 668º, nº 1, alínea b) e 158º do CPCivil, e 94º, nº 2 do CPTA, e também do artigo 9º, alíneas e) e i) da Lei nº 27/96, 1/8 [cfr. conclusões 5ª a 18ª].
Neste particular, o discurso fundamentador da sentença foi o seguinte:
Uma vez desenhado o quadro fáctico ao qual se aplicará o direito, importa agora saber se, à presente data, se encontram ainda preenchidos os necessários requisitos para decretar a requerida dissolução da A ....
E a resposta é negativa.
Isto não obstante considerar que face ao que os autos demonstram e o probatório elege, a conduta da A ... [na composição anterior ao acto eleitoral de 10-9-2005] é, claramente, reconduzível ao disposto no artigo 9º, alínea e) e alínea i) da Lei nº 27/96, de 1 de Agosto: cfr. alínea A) a K) supra.
Uma vez que, e como bem defende o autor, os autos mostram factos que bem demonstram a falta de capacidade deste órgão relativamente à resolução das matérias colocadas aos seus membros e o mau relacionamento existente entre os elementos dos grupos municipais partidários do PS e PSD, e que conduziu a um mal estar geral entre os eleitos autárquicos e entre órgãos autárquicos, com prejuízo para os cidadãos em geral: cfr. alínea A) a K) supra.
Com efeito, não só não se vislumbra qualquer facto susceptível de permitir julgar como justificada a não aprovação do diversos orçamentos, e propostas de orçamentos, referente aos anos de 2003 a 2005, colocados à apreciação da A ..., de forma que a que os mesmos tenham podido entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de cada ano, como também, e sobretudo, com tal conduta – que culminou na declaração de cessação de actividade –, praticou a Ré A ... [na composição anterior ao acto eleitoral de 9-10-2005], dolosamente, ilegalidade grave, traduzida na consecução de fins alheios ao interesse público: cfr. alínea A) a K) supra.
Porém, da factualidade assente, sobretudo face ao teor da prova produzida, resulta igualmente provado que a Ré A ... [na composição posterior ao acto eleitoral de 9-10-2005], logrou emendar caminho, funcionando agora regularmente: cfr. alínea A) a K) supra.
O que é particularmente relevante, pois se a realização de eleições autárquicas só por si não justificava a verificação de inutilidade superveniente da lide [e não da suscitada impossibilidade, dado que seria sempre possível continuar, como continuou, a presente acção, ainda que outro objecto, sobretudo atenta a invocada existência de membros reeleitos da anterior A ..., e a possibilidade que a Lei nº 27/96, de 1 de Agosto, confere no seu artigo 11º, nº 4] o facto é que a mesma se verifica agora como consequência do resultado do sufrágio directo e universal das eleições autárquicas de 9-10-2005, no que à composição, mas sobretudo no que à subsequente conduta, da actual A ... respeita.
Assim, atento tudo o aduzido e também à luz dos acima invocados princípios da autonomia local e da proporcionalidade, nas suas diversas vertentes, a presente acção mostra-se agora inútil.
O que reclA ..., consequentemente, a extinção da instância, ficando assim prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas: cfr. artigo 287º, alínea e) do Código de Processo Civil – CPC ex vi artigo 1º do CPTA”.
Como se viu, não obstante a sentença ter considerado que face à factualidade apurada, a conduta da Assembleia Municipal de ... [na composição anterior ao acto eleitoral de 10-9-2005] era claramente reconduzível ao disposto no artigo 9º, alíneas e) e i) da Lei nº 27/96, de 1/8, acabou por fazer derivar a inutilidade da lide do facto daquela Assembleia Municipal [na composição posterior ao acto eleitoral de 9-10-2005] “ter logrado emendar caminho, funcionando agora regularmente”, e não no facto de entretanto terem ocorrido novas eleições para os órgãos autárquicos, que determinaram o fim do mandato do órgão cuja dissolução era pedida, tornando a lide impossível, e que havia sido o fundamento invocado pela ré na sua contestação.
Aliás, a sentença considerou expressamente que a realização de eleições autárquicas só por si não justificava a verificação de inutilidade superveniente da lide.
Porém, temos para nós que tal conclusão expressa na sentença recorrida não configura qualquer falta de fundamentação, seja de facto, seja de direito, mas sim manifesto erro de julgamento na interpretação e aplicação do artigo 287º, alínea e) do CPCivil à factualidade dada como assente.
Com efeito, a dissolução é o acto que põe termo às funções dos membros de um órgão político ou administrativo colegial de base electiva, antes de esgotada a duração normal do respectivo mandato. Como é óbvio, a dissolução não atinge o órgão em si, na sua existência constitucional ou legal, uma vez que se lhe segue obrigatoriamente, dentro de um prazo máximo que em geral é fixado pela Constituição ou pela lei, o processo previsto para a reconstituição do órgão em questão. Trata-se, pois, dum mecanismo institucional destinado a permitir a antecipada recomposição de um órgão colegial de base electiva ou a antecipada substituição dos respectivos membros.
Ora, consistindo o fim da presente acção de dissolução a obtenção duma sentença que pusesse termo às funções dos membros da Assembleia Municipal de ..., antes de esgotada a duração normal do respectivo mandato, se este ocorreu naturalmente pelo decurso do respectivo prazo e na sequência de novo acto eleitoral, parece óbvio que o fim visado com a propositura da presente acção se tornou objectivamente impossível, uma vez que não é possível pôr termo àquilo que já terminou.
E, de resto, nenhuma das normas da Lei nº 27/96, de 1/8, faz comunicar ao mandato seguinte os efeitos das decisões de perda de mandato e de dissolução, exceptuados os casos previstos no artigo 12º, nº 1 [que determina que os membros de órgão dissolvido ou os que hajam perdido o mandato não podem fazer parte da comissão administrativa a que se refere o nº 1 do artigo 14º], e no artigo 13º [que prevê que a condenação definitiva dos membros dos órgãos autárquicos em qualquer dos crimes de responsabilidade previstos e definidos na Lei nº 34/87, de 16 de Julho, implica a sua inelegibilidade nos actos eleitorais destinados a completar o mandato interrompido e nos subsequentes que venham a ter lugar no período de tempo correspondente a novo mandato completo, em qualquer órgão autárquico].
Impunha-se, pois, que a sentença recorrida tivesse declarado a extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, improcedendo por conseguinte as conclusões V) a XVIII) da alegação da Digna Magistrada recorrente.
Deste modo, ao declarar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, pelo facto da Assembleia Municipal de ... “ter logrado emendar caminho, funcionando agora regularmente”, e não a extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, pelo facto de entretanto terem ocorrido novas eleições para os órgãos autárquicos, que determinaram o fim do mandato do órgão cuja dissolução era pedida, tornando a lide impossível, a sentença recorrida fez incorrecta aplicação do artigo 287º, alínea e) do CPCivil, pelo que não pode manter-se.

IV. DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes do 2º Juízo do TCA Sul em:
a) Confirmar a sentença recorrida, na parte em que julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva do Município de ... e absolveu este da instância;
b) Revogar a sentença na parte em que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide;
c) Declarar extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide.
Sem custas – artigo 4º nº 1, alínea a) do Regulamento das Custas Processuais.
Cumpra oportunamente o disposto no artigo 15º, nº 7 da Lei nº 27/96, de 1/8.
Lisboa, 18 de Março de 2009


[Rui Belfo Pereira – Relator]
[Cristina Santos]
[Teresa de Sousa]