Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:203/17.9BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:02/04/2021
Relator:CATARINA VASCONCELOS
Descritores:CONTRAORDENAÇÃO EM MATÉRIA DE URBANISMO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário:Compete aos tribunais administrativos julgar as impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo nos casos em que a data de apresentação em juízo, pelo Ministério Público, dos autos de contraordenação ocorreu no dia 1 de setembro de 2016 ou em data posterior.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul

I – Relatório:

A....., Lda impugnou judicialmente a decisão do Presidente da Câmara Municipal de Sintra que lhe aplicou a coima de €1500,00, por violação do disposto no n.º 2 do art.º 4º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, nos termos previstos no art.º 59º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.

Tal recurso foi apresentado na Câmara Municipal de Sintra que o remeteu ao Ministério Público junto do Juízo Local Criminal de Sintra.

Por decisão de 23 de janeiro de 2017, esse Juízo Local Criminal julgou-se incompetente em razão da matéria tendo determinado a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

Por decisão de 4 de dezembro de 2017, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou-se também incompetente em razão da matéria.

O Ministério Público, inconformado, recorreu de tal decisão formulando as seguintes conclusões:

I. O Ministério Público vem interpor recurso da decisão proferida nos presentes autos de recurso de contra-ordenação, por o tribunal a quo ter julgado verificada a exceção de incompetência absoluta do tribunal e, em consequência, ter ordenado que após o trânsito em julgado da decisão se remetessem os autos para o Tribunal de Conflitos.

II. O Tribunal de Conflitos, já decidiu, pelo menos por duas vezes, situações jurídicas similares, fixando que o momento a ter em conta para a fixação da competência, era o da introdução em Juízo pelo M.P., do recurso jurisdicional, interposto pelo arguido, valendo tal acto como acusação.

III. Sendo este momento o do início da instância jurisdicional e como tal o facto relevante para aferir qual o tribunal materialmente competente.

IV. Tudo exposto, deverá a presente sentença ser revogada por a interpretação dada na presente sentença violar o disposto nas disposições combinadas nos arts. art.° 4 º , n.° 1, al. I) e 5 o , n° Ido ETAF, na redação decorrente do Decreto-Lei n.° Judiciário ( Lei n° 62/2013, de 26.8), e art.259° n°1, do CPC, e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos neste TAF de Sintra.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público, junto deste Tribunal, “acompanhou os fundamentos da motivação de recurso que interpôs em sede de primeira instância.”

O processo vai, com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à conferência, para julgamento.

II – Objeto do recurso:

Em face das conclusões formuladas, cumpre decidir se o Tribunal a quo errou ao julgar-se materialmente incompetente.

III – Fundamentação De Facto:
Foi julgada provada a seguinte factualidade:

1. Por decisão do Presidente da Câmara Municipal de Sintra de 5 de abril de 2016, a Recorrente foi condenada no pagamento de uma coima no valor de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º 2, alínea c), e 98.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação introduzida pela Lei n.º 26/2010, de 30 de março – cfr. documento de fls. 35 a 37 do processo físico, que se dá por reproduzido;

2. Por correio eletrónico de 31 de Maio de 2016, a Recorrente apresentou junto da Câmara Municipal de Sintra o recurso de impugnação judicial da decisão de aplicação da coima identificada no parágrafo anterior, dirigido ao Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste – Secção Criminal da Instância Local de Sintra – cfr. documento de fls. 39 a 45 do processo físico, que se dá por reproduzido;

3. Por ofício de 14 de julho de 2016, que deu entrada nos serviços do Ministério Público de Sintra em 20 de julho de 2016, a Câmara Municipal de Sintra enviou ao Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra o recurso de impugnação judicial identificado no parágrafo anterior e o respetivo processo de contra-ordenação – cfr. documento de fls. 4 do processo físico, que se dá por reproduzido;

4. Em 16 de Setembro de 2016, a Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste determinou a remessa dos autos à distribuição na Instância Local da Comarca de Lisboa Oeste – Média Criminalidades, para aí tramitarem como recurso de contra-ordenação, dando como integralmente reproduzida a decisão administrativa impugnada, fazendo-a valer como acusação para estes efeitos – cfr. documento de fls. 3 do processo físico, que se dá por reproduzido.

Resulta ainda da tramitação dos autos o seguinte:

5. Os autos foram remetidos à distribuição (e distribuídos) no dia 20 de setembro de 2016.

6. Por decisão de 23 de janeiro de 2017 foi declarada a incompetência material do Tribunal, tendo sido julgado competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, para onde foi ordenada a remessa dos autos.

7. O processo deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra no dia 14 de fevereiro de 2017.

8. Por decisão de 4 de dezembro de 2017 esse Tribunal julgou-se materialmente incompetente (decisão recorrida).


IV – Fundamentação De Direito:

Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, “ETAF”), na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo»;
Esta norma entrou em vigor no dia 1 de setembro de 2016 (cfr. artigo 15.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro) sendo que até então, a competência para decidir as impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que aplicassem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo pertencia aos tribunais judiciais (cfr. artigo 130.º, n.º 2, alínea d), e n.º 4, alínea b), da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, na redação introduzida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro).
Considerando que a competência se fixa no momento da propositura da causa (nos termos do art.º 5º, n.º 1 do ETAF), o Tribunal a quo julgou que esta se deve considerar proposta “no momento de interposição de recurso”. Tendo tal interposição ocorrido em data anterior a 1 de setembro de 2016 (fazendo corresponder a esse momento o momento da apresentação do recurso perante a autoridade administrativa) julgou competentes os tribunais judiciais.
Mas não julgou acertadamente já que, como bem entende o Recorrente, o elemento de conexão relevante para se determinar, no tempo, essa competência «ratione materiae» consiste na data da apresentação em juízo, pelo Ministério Público dos autos de contra-ordenação e do respetivo recurso.
Assim tem reiteradamente decidido o Tribunal dos Conflitos, entre outros, em acórdãos de 01.06.2017 (processo 05/17), 28-09.2017 (processo 024/17), 09.11.2017 (processos 033/17, 034/17, 012/17, 035/17, 039/17, 042/17 e 022/17), 23.11.2017 (processo 037/17), 20.12.2017 (processo 028/17), 11.01.2018 (processo 027/17), 08.02.2018 (processo 066/17) e 25.10.2018 (processo 025/17), todos publicados em www.dgsi.pt.
Por se concordar com o decidido nestes arestos remete-se, por economia, para a fundamentação neles acolhida destacando-se, por suficiente, os seguintes trechos do acórdão de 28.09.2017 (processo 024/17):
“O presente assunto respeita à impugnação judicial de um acto camarário aplicador, em Abril de 2016, de uma coima por contra-ordenações cometidas em 2010 e advindas da ofensa de normas jurídico-administrativas sobre urbanismo. A competência material para julgar tais recursos localizava-se na jurisdição comum. Contudo, a última redação do art. 4º, n.º 1, al. l) do ETAF veio inovadoramente atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar «as impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo». E o art. 15º, n.º 5, do DL n.º 214-G/2015, de 2/10, estabeleceu que essa alínea l) entraria em vigor no dia 1 de Setembro de 2016.
Temos, portanto, que a competência para julgar os recursos dos actos aplicadores de coimas «em matéria de urbanismo» coube aos tribunais judiciais até 31/8/2016 e transitou para os tribunais administrativos a partir de 1/9/2016, inclusive. Todavia, o legislador do DL n.º 2014-G/2015 nada disse quanto ao elemento de conexão operatório na fixação da competência material. Esse silêncio propicia um desencontro de opiniões – e os subsequentes conflitos – de modo que não surpreenderá que aquela data de 1/9/2016 surja futuramente reportada às datas de acontecimentos diversos e, «maxime», às seguintes: à da infracção, à do acto sancionatório, à do recurso de impugnação, à da entrada do recurso nos serviços do MºPº (art. 62º do DL n.º 433/82) ou, por último, à da apresentação, pelo MºPº, do processo de contra-ordenação (e do respetivo recurso) no tribunal que o julgará. E, «in casu», reparamos que os tribunais donde emana o conflito adoptaram duas dessas cinco possibilidades, pois o TAF perfilhou a terceira e o tribunal judicial a quinta.
Busquemos, pois, o elemento decisivo para, face à sucessão da competência no tempo, se activar o art. 4º, n.º 1, al. l), do ETAF.
«Ante omnia», é de assinalar a irrelevância da data da infracção. Esta importa quando se visa determinar a competência dos tribunais em matéria penal (art. 32º, n.º 9, da CRP). Mas isso corresponde a uma das «garantias do processo criminal» («vide» a epígrafe desse art. 32º), não se justificando que essa específica cautela se estenda aos processos de contra-ordenação – cujos arguidos recebem, no n.º 10 do mesmo artigo, uma tutela mais ténue.
Também não se vê por que motivo a competência material «in judicio» – para julgar os recursos interpostos nos processos de contra-ordenação – haveria de se reportar à data do acto punitivo ou à da interposição do recurso que o atacasse. Com efeito, a emissão da pronúncia sancionatória e o oferecimento do recurso ocorrem no âmbito da Administração; e não existe qualquer norma ou princípio jurídico donde flua uma vinculação da competência do tribunal a esses acontecimentos prévios. Assim, as considerações de ordem prática que o Sr. Juiz do TAF emitiu em abono da sua tese, embora equilibradas, não corporizam um critério que, por si só, resolva o assunto.
Em geral, o art. 38º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26/8) dispõe que a competência dos tribunais se fixa no momento em que a acção se propõe; e o art. 5º do ETAF diz basicamente o mesmo. Ora, nas causas regidas pelo processo civil (que abrangem as previstas no CPTA), o momento da propositura da causa está bem marcado: é o da entrada da petição na secretaria (art. 259º, n.º 1, do CPC) – facto iniciador da instância e que fixa, quase sempre irreversivelmente, a competência do tribunal.
Esta regra – a de que a competência só verdadeiramente se determina, estabelece ou fixa com a entrada do feito em juízo – é corrente entre nós. E corresponde, aliás, à solução tradicional – «ubi acceptum est semel judicium, ibi et finem accipere debet».
Na medida em que estabelece uma fixidez irreversível da competência, a regra tem por primordial função tornar irrelevantes, no processo em curso, quaisquer modificações ulteriores da lei nesse campo. Todavia, e embora voltada para a prevenção dessas hipotéticas alterações futuras, não deixa a regra de acessoriamente dizer algo quanto ao momento relevante para se determinar o «terminus a quo» da competência. Se esta se estabelece ou fixa num momento objectivo – o da propositura da causa «in judicio» – devemos logicamente ligar o início dessa competência, tida pela regra como perdurável no tempo, à mesma ocasião; pois dificilmente se compreenderia que a competência de um tribunal antecedesse o evento escolhido pela lei para a sua fixação.
Portanto, no caso «sub specie» e em todos os similares, o facto jurídico relevante para se aferir se a competência «ratione materiae» incumbe à jurisdição comum ou à administrativa há-de ser a data da entrada do processo impugnatório no tribunal.
Mas há que resolver uma derradeira dúvida: se tal entrada é a ocorrida nos serviços do MºPº ou a que o MºPº subsequentemente promova – valendo esse seu acto «como acusação» – para afectar o processo à titularidade de um juiz.
Ora, esta segunda alternativa é a correcta. Só com aquela iniciativa do MºPº, que vale como acusação, ocorre algo assimilável à propositura da acção ou da causa – e já sabemos que este acontecimento é encarado pelas leis de organização judiciária como o que decisivamente marca a competência do tribunal. Aliás, só então se iniciará a instância do recurso – conceito que, embora sem consagração legal, é usado por comodidade no foro e normalmente com o sentido de que tal instância só deveras se abre com a chegada dos autos ao tribunal «ad quem».
Assim, o facto decisivo na resolução do presente conflito consiste no momento em que o MºPº apresentou ao Sr. Juiz da Instância Local Criminal de Sintra o processo e o recurso de contra-ordenação. E, ao afirmá-lo, mantemo-nos na linha de outro acórdão deste tribunal – que foi proferido em 1/6/2017, no Conflito n.º 5/2017 – em que se tomou um facto análogo como o determinante da competência.
Consequentemente, o despacho emitido pelo Mm.º Juiz da Instância Local de Sintra está correcto. Só em 16/9/2016 o MºPº desse foro tomou a iniciativa de apresentar o processo de contra-ordenação ao Sr. Juiz; só então, portanto, o processo judicial se iniciou. Mas, nessa data, a competência «ratione materiae» para julgar o pleito já fora transferida para a jurisdição administrativa – conforme acima vimos”.
Também no caso vertente, assim sucedeu.
O processo impugnatório entrou no Tribunal (no Juízo Local de Sintra), onde foi distribuído, no dia 20 de setembro de 2016, data em que, como vimos, a competência já se havia transferido para os tribunais administrativos.
Errou, portanto, o tribunal a quo ao julgar-se incompetente, pelo que se impõe a revogação da decisão recorrida e a baixa dos autos que deverão prosseguir os seus termos se a tanto nada mais obstar.

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Não há lugar a condenação em custas nos termos dos art.ºs 93º, n.º 3 e 94º, n.º 3 do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de outubro.
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V – Decisão:
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, em conceder provimento ao presente recurso e consequentemente:
- revogar a decisão recorrida;
- julgar os tribunais administrativos competentes em razão da matéria;
- ordenar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra para o seu normal prosseguimento se nada mais obstar.

Sem custas.

Lisboa, 4 de fevereiro de 2021


Catarina Vasconcelos
Paulo Pereira Gouveia
Catarina Jarmela

Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13.03, a Relatora atesta que os Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos têm voto de conformidade.