Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:102/20.7BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/06/2021
Relator:ANA PAULA MARTINS
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO;
DISCIPLINA DESPORTIVA;
RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR;
CLUBES DESPORTIVOS;
PRESUNÇÕES.
Sumário:I - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do Regulamento Disciplinar da LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorrectos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objectiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
II - A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjectiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
Votação:Com voto de vencida
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

A Federação Portuguesa de Futebol, demandada no processo nº 26/2019, no qual é demandante a F... – Futebol SAD, vem recorrer do acórdão proferido, no âmbito do referido processo, em 28.09.2020, pelo Tribunal Arbitral do Desporto, que, julgando procedente o pedido de arbitragem apresentado pela Demandante, revogou a decisão proferida no processo disciplinar nº 59-18/19, pela qual a ora Recorrida fora condenada a pagar o valor total de € 7.460,00 (sete mil quatrocentos e sessenta euros), pelas infrações disciplinares previstas e punidas nos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º, n.º 1, als. a) e b) do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (2018/2019).

*

Nas alegações de recurso, a recorrente Federação Portuguesa de Futebol formulou as seguintes conclusões:

1. A Recorrente vem interpor recurso do Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 29 de setembro de 2020, que julgou procedente o recurso apresentado pela ora Recorrida, que correu termos sob o nº 26/2019, que revogou a deliberação que condenou a ora Recorrida a pagar, a título de sanção disciplinar, o valor de € 7.460,00 (sete mil quatrocentos e sessenta euros), pelas infrações disciplinares p. e p. pelos artigos 127.º, n.º 1, n.º 2 e 187.º, n.º 1, als. a) e b) do RD da LPFP;

2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogo de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;

3. A questão essencial trazida ao crivo deste TCA - responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;

4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol - seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;

5. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos relacionados com o arremesso de objetos para o terreno de jogo, designadamente o arremesso de artefactos pirotécnicos, entrada e deflagração de artigos pirotécnicos no recinto desportivo, bem como outros comportamentos sociais e desportivamente incorretos, tais como o proferimento de expressões insultuosas, entre outros, tudo por ocasião de jogos de futebol;

6. São deveres dos clubes assegurar que os seus adeptos não têm comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da Lei e da Constituição;

7. O Colégio Arbitral, admitindo que os clubes devem ser responsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos - na linha do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão - entendeu ainda assim que o Conselho de Disciplina não coligiu nem carreou para os autos prova suficiente que sustente a condenação da Recorrida nos presentes autos, não cumprindo assim com o que prevê o artigo 115º do Código de Procedimento Administrativo;

8. Mais entendeu o Colégio Arbitral que não se pode subsumir os factos sub judice na previsão do artigo 187º do RD da LPFP, porquanto o mesmo não prevê deveres concretos impostos aos clubes, não sendo possível sancionar com base na referida norma, porquanto, entende o Colégio de Árbitros, não se logrou provar o incumprimento de deveres por parte da Recorrida.

9. Diga-se, antes de mais que, desresponsabilizar os clubes por comportamentos incorretos dos seus adeptos, é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;

10. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em mais de trinta e sete processos arbitrais a questão foi decidida de forma contrária à que fez o Tribunal a quo no acórdão de que ora se recorre, contra apenas cinco em sentido coincidente;

11. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 70 processos relativos a sanções aplicadas a clubes por comportamento incorreto dos seus adeptos;

12. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo Conselho de Disciplina, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo;

13. O Colégio de Árbitros não colocou, em momento algum, em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, a suficiência da prova coligida pelo Conselho de Disciplina e os deveres incumpridos nos termos da previsão do artigo 187º do RD da LPFP;

14. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra junto aos autos do processo arbitral, os Árbitros e os Delegados da LPFP, bem como as forças de segurança, são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do F..., sem deixar qualquer margem para dúvidas;

15. Com base nesta factualidade, e atendendo à gravidade dos factos perpetrados, o Conselho de Disciplina instaurou o competente processo disciplinar à Recorrida;

16. Aos mencionados processos disciplinares foram juntos, como não poderia deixar de ser, entre outros documentos, o relatório elaborado pelos árbitros e pelos delegados da LPFP. Estes relatórios gozam, consabidamente, da presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13º, al. f) do RD da LPFP;

17. Os Árbitros e os Delegados da FPF são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;

18. Assim, quando os Árbitros e os Delegados da LPFP colocam nos seus relatórios que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso coloquem nos seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;

19. Ainda, para formar uma convicção para além de qualquer dúvida razoável que permitisse chegar à conclusão de que a ora Recorrida devia ser punida pelas infrações prevista nos artigos 127º nº 1 e 187º, nº 1, als. a) e b) do RD da LPFP, o CD coligiu ainda outra prova, que consta dos autos, tal como, por exemplo, o Relatório das Forças Policiais, declarações complementares das autoridades policiais, a ficha Técnica do Estádio, a ficha técnica de ambos os clubes, o Modelo O - Organização do Jogo, o Modelo N, referente ao jogo em apreço, declaração de sectores equipa visitante e visitada e ainda o cadastro disciplinar da Recorrida;

20. Neste particular, os relatórios das forças policiais, por serem exarados por "autoridade pública " ou "oficial público", no exercício público das "respetivas funções" (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (art.º 363º, n.º 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369º e ss. do Código Civil. Com efeito, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora» (cf. art.º 371.º, n.º 1 do Código Civil);

21. Sucede que, não obstante os meios de prova que o CD coligiu, designadamente os relatórios de jogo juntos aos autos serem claríssimos ao afirmar que foram adeptos afetos ao F..., em concreto, afetos aos seus GOAs que, entre outros comportamentos, arremessaram objetos para o terreno de jogo, designadamente arremesso de artefactos pirotécnicos, entraram no recinto de jogo com artigos pirotécnicos e deflagraram os mesmos no interior do referido recinto, bem como outros comportamentos sociais e desportivamente incorretos, tais como o proferimento de expressões insultuosas, o Colégio de Árbitros, ainda que não por unanimidade, alega que a prova é insuficiente e que não é possível imputar à Recorrida o incumprimento de qualquer dever que sobre si impenda, não sendo possível sancionar-se com base no previsto no artigo 187.º do RD da LPFP;

22. Manifestamente, o acórdão recorrido não tomou em consideração a presunção de veracidade legal e regulamentarmente estabelecida para os relatórios de policiamento desportivo, dos árbitros e delegados da LPFP, respetivamente;

23. E é, precisamente, esta presunção de veracidade que, inscrevendo-se nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos árbitros e delegados da LPFP e pelas forças policiais relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.

24. Isto não significa que os Relatórios dos Árbitros e Delegados da FPF e das forças de segurança contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que foram adeptos ou simpatizantes da Recorrida que levaram a cabo os comportamentos sub judice;

25. Tal não significa que quem acusa não tenha o ónus de provar. Trata-se de abalar uma convicção gerada por documentos que beneficiam de uma especial força probatória;

26. E, para abalar essa convicção, cabia ao clube, no lugar de se remeter ao silêncio, apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

27. Acresce que as normas constantes do RD da LPFP, em especial as constantes dos artigos 13., al. f), 127.º e 187.º do RD da LPFP, foram aprovadas pelos clubes participantes em competições profissionais, entre os quais a Recorrente, em sede de autorregulação e na medida em que o direito ao desporto tem uma aceção bastante ampla, que inclui o desporto profissional e o direito a organizar e participar em competições desportivas, a não aplicação - por pronúncia pela inconstitucionalidade ou não - de alguma norma do artigo do RD da LPFP, em especial do artigo 13º al. f), violaria, assim, o conteúdo essencial desse direito, neste segmento, por conseguinte, a concordância/harmonização do direito ao desporto com a garantia de audiência e defesa num momento anterior à prolação do ato punitivo não pode ser outra senão a constante do RJFD e, por conseguinte, no RD da LPFP, até porque esta audiência será sempre garantida quando, em sede de recurso, se passa para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos, sendo este, o único modelo que permite a realização de milhares de competições desportivas federadas, as quais, a sufragar a leitura restrita da Recorrente, pura e simplesmente colapsariam.

28. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259º do RD da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, tais relatórios têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos (cfr. Artigo 13º, al. f) do RD da LPFP).

29. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrida, que aprovou as referida forma de processo com ela se conformando.

30. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrida demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrida nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede, pelo que, não existiu qualquer violação do direito de defesa do arguido conforme constitucionalmente previsto;

31. Quanto à questão de saber se a ora Recorrida pode ser responsabilizada a título de culpa por esses comportamentos, mais uma vez, nenhuma crítica há a fazer às decisões do Conselho de Disciplina;

32. Entende o Colégio Arbitral que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios de Jogo) que o F... violou deveres de formação a que se encontra adstrito, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;

33. Ora, o Relatório dos Árbitros e dos Delegados da LPFP, bem como o Relatório de Policiamento Desportivo, e bem assim os restantes meios de prova carreados para os autos, atento os respetivos conteúdos, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição do F... no caso concreto.

34. Ademais, há que ter em conta, nos termos acima explanados, que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tais documentos.

35. Isto significa que o conteúdo dos Relatórios juntos aos autos, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrida incumpriu os seus deveres.

36. Para abalar essa convicção, cabia ao F... apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

37. Em sede sancionatória, o "arguido", não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.

38. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Árbitros e dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não o F....

39. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrida demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Processo Disciplinar ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrida não o demonstrou, em nenhuma sede;

40. Decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir comportamentos como os sub judice através do cumprimento dos deveres in formando e in vigilando dos seus adeptos, em especial, do cumprimento dos deveres estatuídos no artigo 8.º, n.º 1, als. b), c) e m) da Lei n.º 39/ 2019, de 30 de julho, e bem assim no art.º 35.º, n.º 1, als. a), b), c) e o) do Regulamento das Competições da LPFP.

41. Com efeito, a imputação culposa das condutas infratoras dos adeptos da Recorrida, pelas quais esta é diretamente responsável (tal como determina a previsão legal das infrações disciplinares em causa), resulta, pois, do incumprimento culposo de deveres de prevenção e de ação no âmbito da violência associada ao Desporto que lhe estão cometidos e que levaram, em nexo de causalidade adequado e direto, ao resultado aqui verifica do: os comportamentos perigosos e incorretos dos seus adeptos e simpatizantes, num espetáculo desportivo.

42. Por seu turno, o Colégio Arbitral não coloca em crise a prática dos factos por adeptos da Recorrida, apenas, a responsabilização daquela pelos mesmos;

43. Do conteúdo dos Relatórios de Jogo elaborados pelos Árbitros e pelos Delegados da Liga, é possível extrair, desde logo, diretamente duas conclusões: (i) que o F... incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do F..., o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;

44. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do F... e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos árbitros e dos delegados, os quais têm presunção de veracidade. Posteriormente, o F... pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;

45. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que "o processo disciplinar que se manda instaurar (...) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)";

46. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que, dando provimento ao recurso de revista, diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;

47. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o F..., a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrida e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos.

48. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.

49. Pelo que, resulta claro que o Conselho de Disciplina coligiu e carreou para os autos, prova mais do que suficiente para concluir e decidir pela punição da Recorrida por incumprimento de deveres a que a mesma se encontra adstrita, cumprindo assim com o ónus que sobre si impende por via do disposto no artigo 115º do Código de Procedimento Administrativo, designadamente no uso da liberdade de apreciação das provas, que lhe assiste;

50. No que respeita à subsunção dos factos sub judice à previsão da norma constante no artigo 187º, sempre se dirá que a referida norma visa proteger o bem jurídico da própria dignidade do espetáculo desportivo e a segurança do público em geral, sendo que, a Recorrida não logrou demonstrar que leva a cabo medidas para incentivar o espirito ético e desportivo dos seus adeptos, ou que adota qualquer tipo de medidas sancionatórias para com os adeptos infratores, impedindo o seu acesso aos recintos desportivos ou promovendo a sua expulsão dos mesmos;

51. Assim, tendo atuado com culpa por incumprimento dos seus deveres de formação e vigilância, verificando-se o nexo causal entre essa omissão e os factos praticados pelos seus adeptos, havendo lugar à sanção do F..., por aplicação da norma prevista no artigo 187º do RD da LPDP, porquanto resulta evidente que tendo os factos em crise sido praticados por adeptos da Recorrida, que não evitou a prática dos mesmos através de uma formação compreensiva dos referidos, fica demonstrado o seu comportamento culposo violador dos deveres regulamentares impostos, o que permite concluir pelo seu sancionamento, mostrando-se a factualidade dos autos corretamente subsumida ao tipificado ilícito disciplinar p. e p. pelo artigo 187º, n.º 1, alínea a) e b), do RDLPFP18.

52. A tese sufragada pelo Colégio de Árbitros é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir­se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando- se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;

53. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF

54. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos pelos artigos 13º, al f), 127.º, n.º 1 e 187.º, n.º 1, als. a) e b) do RD da LPFP, do Regulamento Disciplinar da LPFP.

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Contra-alegou a F... – Futebol SAD, concluindo do seguinte modo:

A. Funda-se o presente recurso numa total desconsideração dos princípios estruturantes do processo disciplinar, que não poderão deixar de abranger o exercício do poder sancionatório previsto no Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, alguns deles inclusive portadores de estatuto constitucional - motivo pelo qual sempre deverá improceder.

B. Considerando as infracções p. e p. pelos arts. 127.º-1 e 187.º-1 a) e b) do RD em causa nos autos, para decidir pela condenação da Recorrida sempre seria necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por concreto sócio ou simpatizante da F... - Futebol SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo daquela entidade promotora do encontro. O que não sucede.

C. Desde logo porque não basta à Recorrente invocar que os factos ocorreram em bancada afecta a adeptos da Recorrida para que se possa concluir (e levar à matéria assente) que os autores das condutas sub judíce eram sócios ou simpatizantes do clube arguido, e, por essa via da presunção, associar à concretização do ilícito o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (ex vi art 35º do Regulamento das Competições da LPFP).

D. Na verdade, pretende a Recorrente impor uma dupla, e inadmissível, presunção: tendo por base uma presunção de autoria, e daí fazendo derivar uma presunção de culpa.

E. Porém, no âmbito do processo sancionatório - penal, contraordenacíonal e disciplinar - o recurso a presunções judiciais só se revela legítimo quando intervenham juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto - desconhecido e não directamente provado - é uma consequência natural ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza.

F. Até porque, para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar, é sempre necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, não podendo bastar uma sua simples indiciação - exigência que se mantém incólume mesmo perante o recurso a presunções.

G. Daí que, estando em causa a prova indirecta de um facto, deve o Tribunal na decisão que proferir: a) fundar em prova direta os factos que constituem a base da presunção de modo a que eles possam suportar a regra da experiência de que resulta a presunção; b) descrever a regra de experiência que permite relacionar o facto presumido ao facto indício, identificando a regra de normalidade (ou de probabilidade) pressuposta pelo juízo de inferência ; e c) comprovar que os (factos) indícios provados no caso concreto são subsumíveis naquela regra geral (enquanto "critério generalizante e tipificante de inferência factual"), isto é, afirmam a regra geral, não havendo outras circunstâncias que afastem aquela subsunção.

H. Caso assim não seja, o que se estabelece é uma cadeia de presunções, numa sequência de ilações incertas e pouco precisas - e, por isso, inadmissível por prejudicial a um efetivo exercício de defesa e de contraditório dos factos que sustentam a condenação.

I. Pelo que se tem por absolutamente ilegítimo, porque violador dos direitos à defesa e à presunção de inocência do arguido, a presunção da qualidade funcional de "sócio ou simpatizante" (ligação ao Clube) para, a partir dai, estabelecer uma segunda presunção: a de que o Clube arguido violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes.

J. Por seu turno, o estalão normativo de apreciação da prova probatório preconizado pela Recorrente - na linha da mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo -, no sentido de que a prova do primeiro elemento típico (que o comportamento socialmente incorrecto ou antidesportivo foi da autoria de sócio ou simpatizante do Clube) é bastante para que se prove também o segundo elemento típico, designadamente, se o Clube em apreço não demonstrar que tudo fez para evitar tal resultado, é também ele incompatível com o princípio da presunção de inocência.

K. Primeiro por implicar a imposição de um ónus de prova ao arguido; depois por baixar o grau de convicção da verificação do facto para um nível insuportável: não a certeza correspondente à convicção para além de toda a dúvida razoável, mas a suspeita baseada somente na primeira aparência; e, por último, por fazer actuar uma presunção judicial a partir de factos também eles previamente dados como provados através de uma outra presunção judicial (e não por prova directa).

L. A admissão de que a prova da violação dos deveres legais e regulamentares de vigilância, controlo e formação impostos ao Clube pode ser feita mediante presunção / indiciação de que sócios ou simpatizantes desse Clube adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, equivale a dar como provado um elemento fundamental da factualidade típica da infracção não com base numa convicção para além da dúvida razoável, mas com base tão-somente numa indiciação de primeira aparência.

M. Violando-se, do mesmo passo, o princípio da presunção de inocência quando se faz recair sobre o Clube o ónus de demonstrar que fez tudo o que estava ao seu alcance para evitar ou impedir que tais comportamentos tivessem ocorrido.

N. Não tendo sido carreado aos autos, pelo titular da acção disciplinar, nenhum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais, sempre se impunha resolver, como bem alcançou o Tribunal a quo, "em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do "in dubio pro reo".

O. Pelo que, revelando-se insuficientes os factos provados e nem havendo prova que permite colmatar esta insuficiência - e atendendo desde logo à presunção de inocência - fica necessariamente prejudicada a condenação da Recorrida no processo disciplinar em questão.

P. Motivos pelos quais é forçoso concluir que o acórdão arbitral recorrido não padece de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido correctamente os factos alegados ao direito aplicável -devendo, como tal, manter-se in totum o seu sentido e teor.

Q. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da Recorrente, reputa-se desde já como inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência ( inerente ao seu direito de defesa, art. 32º/2 /10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.º/4 da CRP: e ao princípio do Estado de direito art. 2º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2º da CRP), a interpretação dos artigos 127.º-1 , 187.º- 1 a) e b) e 258.º-1, do RDLPFP no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 13.º, f). do RDLFPF, que esses sócios ou simpatizantes adaptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.

R. Como se reputa inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.º/4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP), a interpretação dos artigos 127.º- 1 , 186.º-2, 187.º-1 a) e b) e 258.º, n.º 1, do RDLPFP, no sentido de que se pode dar como provado, por presunção, que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes com base no facto de que esses sócios ou simpatizantes adaptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, previamente também dado como provado por presunção, radicada no artigo 13º, al. f), do RDLFPF.

Termos em que se requer a V. Exas. se dignem julgar improcedente o recurso interposto pela FPF, confirmando-se integralmente o douto acórdão arbitral recorrido.

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O Ministério Público junto deste Tribunal, regularmente notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, não emitiu parecer.
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Sem vistos, atento o carácter urgente dos autos, mas com prévia divulgação do projecto de acórdão pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência.
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II – OBJECTO DO RECURSO

A questão objecto do presente recurso, nos termos em que foi colocada pela Recorrente, consiste em aferir se o acórdão do Tribunal Arbitral de Desporto padece de erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13º, al f), 127.º, n.º 1 e 187.º, n.º 1, als. a) e b) do Regulamento Disciplinar da LPFP.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

De Facto:
O TAD considerou provados os seguintes factos:
1- No dia 2 de março de 2019, no Estádio ..., no Porto, realizou-se o jogo n.º 12401 (203.01.208) disputado entre a F... - Futebol SAD e a S... - Futebol, SAD, a contar para a 24.ª jornada da Liga NOS;

2- No dia 16 de março de 2019, no Estádio ..., no Porto, realizou-se o jogo n.º 12606 (203.01.23l) disputado entre a F... - Futebol SAD e a M... - Futebol, SAD, a contar para a 26.ª jornada da Liga NOS;

3- Nesses jogos os espetadores pertencentes ao Grupo Organizado de Adeptos designado por "S..." ficaram localizados na Bancada Sul, com entrada pela porta 8, com parametrização dos bilhetes para esta porta;

4- Os espectadores pertencentes ao Grupo Organizado de Adeptos designado por "C..." ficaram localizados no topo do sector 28 da Bancada Norte, com entrada pela porta 23, com parametrização de bilhetes para esta porta;

5- Os adeptos das equipas visitantes, S... e M..., ficaram localizados no sector 46 da Arquibancada Nascente;

6- Durante o jogo n.º 12401 (F...-S...), espectadores localizados no sector destinado ao Grupo Organizado de Adeptos "S...", identificados com cachecóis, camisolas e bandeiras alusivas ao F..., deflagraram cinco flashlights (dois logo no início do jogo e três ao minuto 18 da 1 .ª parte) e sete potes de fumo (quatro no início do jogo e três ao minuto 18 da l.º parte);

7- Durante o Jogo n.º 12401 (F...-S…), espectadores localizados no sector destinado ao Grupo Organizado de Adeptos "C..." fizeram deflagrar um pote de fumo, ao minuto 18 da l.ª parte;

8- Ainda durante o mesmo jogo n.º 12401 (F...-S...), espectadores situados no sector 6 da bancada topo sul exibiram uma faixa em que constava a seguinte mensagem: "O Porto não se verga ao centrismo";

9- Durante o jogo n.º 12606 (F...-M...), realizado em 16/06/2019, foram detonados dois petardos ao minuto 57 do jogo, um na bancada onde estava localizado o Grupo Organizado de Adeptos "S...", e outro do lado onde se situava o Grupo Organizado de Adeptos "C...";

10- A Demandante manteve com as forças de segurança, públicas e privadas, reuniões de segurança preparatórias dos jogos em apreço;

11- À data dos factos, a Demandante F... - Futebol, SAD tinha os antecedentes disciplinares que constam de fls. 82 a 99 dos autos de processo disciplinar.

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No que tange aos factos não provados, consta do acórdão recorrido queNão foram provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão dos autos, tendo a restante matéria alegada e não constante do presente enunciado sido desconsiderada pelo Tribunal, por ter resultado não provada ou consubstanciar matéria de direito, conclusiva ou irrelevante para a decisão da causa.”

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O TAD motivou assim a sua decisão de facto:

“Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 94.º do CPTA. aplicável ex vi artigo 61.º da LTAD, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, decidindo segundo a convicção que forme sobre cada facto em discussão6 (Ressalvados os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial e aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes).

A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto provada assentou na análise crítica dos documentos constantes dos autos, com especial ênfase para os documentos que integram o processo administrativo.

Concretizando:

a) Para a prova do facto 1.º contribuíram os documentos constantes de fls. 20 a 60 do processo disciplinar (relatórios de árbitro, de delegado e de policiamento desportivo; fichas técnicas dos clubes; formulários Modelo N - Declaração Setores Equipa Visitante e Modelo O - Organização do Jogo);

b) Para a prova do facto 2.º relevaram os documentos constantes de fls. 63 a 81 do processo disciplinar (relatórios de árbitro, de delegado e de policiamento desportivo; fichas técnicas dos clubes; formulários Modelo N - Declaração Setores Equipa Visitante e Modelo 0 - Organização do Jogo);

c) Os factos 3.º, 4.º e 5.º foram julgados provados com base nos mesmos documentos reproduzidos a fls. 20 a 81 dos autos de processo administrativo, resultando ainda dos esclarecimentos prestados pela PSP a fls. 36 a 40;

d) A factualidade retratada nos pontos 6.º, 7.º e 8.º resultou provada dos relatórios de delegado e de policiamento desportivo constantes de fls. 26 a 28 e 33 a 35 do processo administrativo, bem como dos mencionados esclarecimentos constantes de fls. 36 a 40;

e) O facto provado 9.º resultou provado dos relatórios de delegado e de policiamento desportivo constantes de fls. 70, 71, 76 e 77 do processo administrativo;

f) O facto provado 10.º resultou demonstrado com base nos documentos juntos pela Demandante com o seu requerimento inicial; e finalmente,

g) O facto provado 11.º decorreu do registo disciplinar da Demandante constante de fls. 82 a 99 do processo administrativo.

Os factos provados 6.º a 9.º correspondem ainda, em particular, a factos que, na sua objetividade, não foram postos em causa pela Demandante, que não os impugnou no seu recurso nem sobre os mesmos ofereceu qualquer contraprova.

No que respeita aos factos não provados, considerou o Tribunal não ter resultado demonstrada, com a necessária segurança, a factualidade identificada sob as alíneas k), l) e m) do rol de factos dados como provados na decisão disciplinar, isto é, que a Demandante «não impediu que os seus adeptos entrassem no estádio com objetos não autorizados”, que a Demandante «não adotou as medidas preventivas» a que se encontrava obrigada e, bem assim, que. atuando de tal modo, a Demandante “agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos e simpatizantes, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam».

A referida alegação resultou excluída por se tratar de matéria eminentemente conclusiva e de direito, sem lugar no elenco da decisão de facto, sendo também certo que, relativamente à mesma. nenhuns verdadeiros factos resultaram do probatório. Tudo o que se demonstrou a tal respeito foi a ocorrência da factualidade objetiva retratada sob os n.ºs 6.º a 9.º , não tendo sido possível ao Tribunal a formação de uma convicção acerca de factos de onde resulte o cumprimento ou incumprimento pela Demandante de quaisquer deveres.

De igual modo, os factos que conformam o elemento subjetivo das infrações redundaram também não provados face à ausência de prova de factos de onde se possam extrair tais elementos do foro interno, de mais a mais vindo a Demandante acusada e condenada a título doloso («agiu de forma livre, consciente e voluntária...») .

Deu-se ainda como não provado o facto identificado sob a alínea f) dos factos provados na decisão disciplinar (“No sector 19 da Bancada Nascente Inferior, ficam localizados os adeptos regulares do F..., com entrada pela porta 17”) , por se mostrar o mesmo limitativo e pouco condizente com as regras da experiência comum, não resultando. por outro lado, suficientemente indiciado dos elementos constantes dos auto.”

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De Direito
No âmbito do processo nº 59-18/19, o Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol proferiu acórdão, datado de 30.04.2019, negando provimento ao recurso hierárquico que a ora Recorrida F... – Futebol , SAD interpusera da decisão (proferida pela formação restrita daquela secção) que a condenara pela prática de 5 infracções disciplinares, punindo-a nos seguintes termos:
- duas infracções p. e p. pelo artigo 127º, nº 1 do RD (inobservância de outros deveres), ex vi art. 35º, nº 1, als. b), c) e o) do Regulamento de Competições da LPFP, sendo as multas de 2295,00 euros e 957,00 euros;
- infracção p. e p. pelo art. 187º, nº 1, al. a) do RD (comportamento incorrecto do público), sendo a multa de 383,00 euros;
- duas infracções p. e p. pelo artigo 187º, nº 1, al. b) RD (comportamento incorrecto do público), sendo as multas de 2391,00 euros e 1434,00 euros;
Em causa estão acontecimentos ocorridos no decurso dos jogos realizados em 02/03/2019 (opondo a F... - Futebol, SAD à S... - Futebol, SAD), e em l6/03/2019 (opondo a F... - Futebol, SAD à M... - Futebol, SAD), ambos no Estádio ... e a contar para a Liga NOS.
Assim, no respeitante ao jogo disputado com a S... - Futebol, SAD, esta foi condenada pela prática de 3 infrações disciplinares p. e p., respectivamente, pelos artigos 127.º, n.º l, 187.º, n.º l, al. a), 187.º, n.º l, al. b), do RDLPFP; e, no respeitante ao jogo disputado com a M... - Futebol, SAD, 2 infrações disciplinares p. e p., respectivamente, pelos artigos 127.º, n.º l, e 187.º, n.º 1, alínea b), do RDLPFP.
Inconformada, a ora Recorrida F... - Futebol, SAD apresentou pedido de arbitragem junto do TAD e este, por acórdão de 28.09.2020, julgou procedente a acção, anulando a decisão recorrida e absolvendo a Demandante da prática das infracções em que foi condenada.
Para tanto firmou entendimento assim sumariado, no que aqui releva:
“III - Para não se terem como fixando uma responsabilidade objetiva vedada pelo ordenamento jurídico português, as normas constantes de regulamentos disciplinares que cominem sanções para os clubes por simples e direta decorrência de comportamentos levados a cabo pelos seus adeptos têm vindo a ser, unanimemente na jurisprudência , objeto de uma interpretação conforme à Constituição, no sentido de nelas estar em causa, não a punição por atos de terceiros, mas a violação de concretos deveres que impendem sobre os clubes.
IV - Estando em causa as normas consagradas nos artigos 35.º, n.º 1, alíneas b). c), f), h), k), l), o), do Regulamento das Competições da LPFP 2018/2019, nos artigos 6.º, alíneas a) a g), 9.º , n.º 1, alíneas f), g), e m), subalínea vi), 10.º, n.º l, alíneas a), b), j), o), e 11.º, n.º 1, do respetivo Regulamento de Prevenção de Violência, e nos artigos 8.º, n.º 1 , alíneas a), b), e), g), i), l) e m), 9.º , n.º 1, 22.º, n.º 1, alíneas b) e d) , e 23.º, n.º 1, alíneas e), i) , j) e l), da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, os deveres que das mesmas advêm para os clubes e sociedades desportivas não são deveres de evitar um qualquer resultado, mas meros deveres de agir, cuja violação apenas pode ocorrer por via de uma omissão (dolosa ou negligente) do cumprimento integral e pontual das condutas por via deles impostas.
V- Em caso de omissões puras e de infrações de mera atividade, a tipicidade objetiva da conduta afere-se por comparação do comportamento praticado ou omitido com a descrição típica do dever em causa. Não se fala nem de causalidade, nem de imputação objetiva, uma vez que não se conexiona a ação ou inação com um qualquer evento, seja de dano, seja de perigo. A infração basta-se, pois, com a prova do não cumprimento dos deveres em apreço, apenas havendo a apurar se o agente agiu ou não.
VI - Ainda que pudesse considerar-se estar em causa no artigo 187.º do RDLPFP uma forma especial do ilícito previsto no artigo 127.º do RDLPFP, agravada pelo resultado (resultado de dano ou de perigo concreto, consoante esteja em causa a sua alínea a) ou a sua alínea b)) , a sua aplicação teria sempre de resultar excluída, por não se mostrar possível, na atual arquitetura do sistema, recte, perante a atual redação da norma ínsita no artigo 187.º do RDLPFP, falar numa imputação causal aos clubes de factos praticados por adeptos.
VII - Mesmo numa interpretação extensiva do artigo 187.º do RDLPFP, o quadro legislativo e regulamentar vigente não consente uma imputação subjetiva e causal aos clubes de comportamentos praticados por espectadores, sob pena de interpretação inconstitucional do preceito, por violação dos princípios da legalidade, da tipicidade e da culpa.
VIII - Estando em causa atos de conteúdo positivo, o ónus da prova da verificação dos respetivos pressupostos pertence à Administração. Pelo que, alegando o impugnante o não preenchimento dos pressupostos jurídico-factuais do ato administrativo, é sobre a entidade Demandada que recai o risco da sua não demonstração.
IX - No caso concreto, recaía sobre a Demandada o ónus de demonstrar quais as concretas atuações da Demandante que, integrando o conteúdo dos deveres jurídicos a que mesma se encontrava adstrita. não foram por esta praticadas ou o foram insuficientemente.
X- Nos termos do artigo 115.º do CPA, a entidade Demandada encontra-se vinculada a um dever de boa administração de averiguação dos factos e de promoção de todas as diligências necessárias à sua fixação rigorosa e verdadeira.”
A Recorrente imputa ao referido acórdão erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos pelos artigos 13º, al. f), 127.º, n.º 1 e 187.º, n.º 1, als. a) e b) do Regulamento Disciplinar da LPFP e sustenta que o mesmo contraria aquela que é a jurisprudência maioritária do próprio Tribunal Arbitral de Desporto bem como a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional.
Cumpre apreciar e decidir, tendo presente o disposto no art. 8º, nº 3 do CC.
E, para tanto, começaremos por atentar no teor das normas convocadas e constantes do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (na versão aplicável durante a época desportiva 2018/2019).

Artigo 13.º
Princípios fundamentais do procedimento disciplinar
O procedimento disciplinar regulado no presente Regulamento obedece aos seguintes princípios fundamentais:
(…)
f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa;

Artigo 127.º
Inobservância de outros deveres
“1. Em todos os outros casos não expressamente previstos em que os clubes deixem de cumprir os deveres que lhes são impostos pelos regulamentos e demais legislação desportiva aplicável são punidos com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 10 UC e o máximo de 50 UC.
(…)”

Artigo 187.º
Comportamento incorreto do público
“1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos:
a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC;
b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC.”
Como resulta do acórdão em crise e bem assim das alegações e contra-alegações apresentadas, a questão controvertida no presente recurso – isto é, a responsabilidade desportiva disciplinar dos clubes de futebol em decorrência do comportamento incorreto dos seus adeptos por ocasião de um jogo de futebol - não é nova. Na verdade, trata-se de matéria já muito discutida e abundante quer neste Tribunal Central Administrativo Sul quer no Supremo Tribunal Administrativo.
E se neste Tribunal Central Administrativo Sul a resposta a esta problemática tem variado, no Supremo Tribunal Administrativo, ela é unânime e reiterada. É disso demonstrativo o seguinte elenco de arestos do STA que, a pecar, será por defeito: ac. de 18.10.2018, processo nº 144/17; ac. de 20.12.2018, processo nº 8/18; ac. de 21.02.2019, processo nº 33/18; ac. de 21.03.2019, processo nº 75/18; ac. de 04.04.2019, processos nºs 30/18 e 40/18; ac. de 02.05.2019, processo nº 73/18; ac. de 19.06.2019, processo nº 1/18; ac. de 05.09.2019, processos nºs 65/18 e 58/18 ; ac. de 26.09.2019, processo nº 76/18; ac. de 03.10.2019, processo nº 34/18; ac. de 12.12.2019, processo nº 48/19; ac. de 16.01.2020, processo nº 39/19; ac. de 07.05.2020, processos nºs 144/17 e 74/19; ac. de 18.06.2020, processo nº 42/19; ac. de 05.11.2020, processo nº 43/19; ac. de 19.11.2020, processos nºs 102/19 e 82/18; ac. de 03.12.2020, processo nº 147/19; e ac. de 11.03.2021, processo nº 89/19 (todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).
O primeiro daqueles acórdãos, proferido a 18.10.2018, no âmbito do processo nº 144/17 - bem como o que se lhe seguiu, a 20.12.2018 (proc. nº 8/18), - foi assim sumariado, no que aqui releva:
II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percepcionados, estabelecida pelo art.º 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não é inconstitucional.
III - O acórdão que manteve a decisão Tribunal Arbitral do Desporto que efectuara a apreciação probatória partindo do pressuposto que, em face do princípio da presunção de inocência do arguido, não se poderia atender a quaisquer presunções como a resultante do referido relatório, incorre em erro de direito, devendo, por isso, ser revogado.
A 21.02.2019, no processo nº 33/18, o STA é novamente chamado a pronunciar-se sobre esta temática e é o teor deste acórdão que é reproduzido na quase totalidade das restantes decisões do STA supra referidas.
Presentemente, o STA vem recusando a revista de acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul que acolhem a solução perfilhada e admitindo a revista daqueles acórdãos que “afrontam” a solução perfilhada (cfr. acórdãos, datados de 18.02.2021 e proferidos nos processos nºs 49/19 e 2/19)
Serve isto para dizer que, uniformemente, o STA decide que:
“I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
III - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
IV - A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
(…)” – cfr. sumário do acórdão de 21.02.2019 (proc. 33/18) e outros que se lhe seguiram.
Não obstante o caso em apreço seja semelhante a tantos outros, dois aspectos há a sublinhar. Por um lado, como já referido, o TAD adoptou aqui um entendimento que não é o maioritário no seu próprio seio; e, por outro, não está aqui em discussão aquele que é normalmente o primeiro aspecto a conhecer, isto é, aferir da existência/inexistência de prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados pelos sócios ou simpatizantes do clube de futebol visado.
Com efeito, tendo em conta a factualidade por si fixada (não inteiramente coincidente com o quadro factual constante da decisão disciplinar punitiva), conformou-se o TAD com o entendimento exarado na decisão disciplinar de que os comportamentos incorrectos eram da autoria de adeptos do clube de futebol visado.
Assim, a questão aqui em discussão cinge-se a saber se andou bem o TAD quando decidiu excluir a subsunção do presente caso na previsão do artigo 187º do RD da LPFP e quando concluiu pela insuficiência da factualidade dada como provada para sustentar a condenação da ora Recorrida pela violação dos deveres legais e regulamentares a que se encontra adstrita, por não se detectar uma identificada conduta omitida ilícita e culposa, nos termos do disposto nos artigos 17º e 127º, nº 1 do RD da LPFP.
Neste tocante, é este o entendimento do STA:
“47. Insurge-se, ainda, a recorrente contra o juízo de não preenchimento in casu do ilícito disciplinar previsto e punido nos arts. 127.º, 186.º, n.º 1, e 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 e 06.º, al. g) e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017, que veio a ser firmado no acórdão do «TCA/S», juízo esse fundado na inexistência de prova pela recorrente da efetiva culpa da aqui recorrida dada a ausência de demonstração da ocorrência de conduta ou comportamento de incumprimento de um qualquer dever que sobre a mesma impendesse, e que, como tal, mostravam-se violados aquele quadro normativo e, como sustenta a recorrida, os princípios da culpa [art. 02.º da CRP] [dada a inexistência de responsabilidade objetiva por facto de outrem e de não se haver avaliado a concreta conduta da mesma enquanto agente desportivo, tanto mais que não resulta em evidência qualquer ato ou omissão que possa ter contribuído para os acontecimentos] e da presunção da inocência [art. 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP], ocorrendo inconstitucionalidade.
Vejamos, convocando, previamente, o concreto quadro normativo que releva para a análise da questão, na certeza de que soçobra, nesta sede, a invocação do princípio da presunção da inocência dado que não só se mostra desfasada e deslocada neste contexto, mas, também, insubsistente à luz do atrás exposto, cientes de que, em momento algum do procedimento e/ou do processo, resultaram preteridos à aqui recorrida os seus direitos e/ou as garantias de defesa.
48. Constitui uma incumbência do Estado, em colaboração, nomeadamente, com as associações e coletividades desportivas [in casu, os clubes de futebol] a prevenção e combate à violência no desporto [cfr., no quadro internacional a «Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das Manifestações Desportivas e nomeadamente de Jogos de Futebol» vulgo «Convenção ETS n.º 120» (aprovada, por ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 11/87, de 10.03, e que cessou a sua vigência em 01.01.2019 - cfr. Aviso n.º 90/2018 publicado DR 26.07.2018) e a «Convenção sobre uma Abordagem Integrada da Segurança, Proteção e Serviços por Ocasião de Jogos de Futebol e Outras Manifestações Desportivas» (ETS n.º 218 - vigente na nossa ordem jurídica desde 01.08.2018 - cfr. Aviso n.º 91/2018 publicado DR 26.07.2018); no quadro normativo interno, nomeadamente, os arts. 79.º, n.º 2, da CRP, 03.º, n.º 2, 05.º da Lei n.º 5/2007, de 16.01 (Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto - doravante LBAFD), 01.º, 05.º, 07.º, 08.º, 09.º, 16.º a 18.º, 23.º a 25.º, da Lei n.º 39/2009, de 30.07 (diploma que veio estabelecer o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança - com as alterações introduzidas pela Lei n.º 52/2013, de 25.07)], pugnando-se para que a atividade desportiva seja «desenvolvida em observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes» [cfr. o art. 03.º, n.º 1, da LBAFD].
49. Em decorrência do que neste domínio constituem as obrigações e deveres legais enunciados no referido quadro normativo, que impendem, também, sobre os clubes e as sociedades desportivas, vieram, entretanto, a ser aprovados e publicitados pelas entidades responsáveis e organizadores das competições desportivas diversos regulamentos internos em matéria não apenas da organização daquelas competições, mas, também, de prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos, e, bem assim, de disciplina, nomeadamente, dos clubes de futebol e sociedades desportivas e dos agentes desportivos [cfr., no que aqui releva, o RD/LPFP-2017 - seus arts. 04.º, n.º 1, als. a) e b) 19.º, 66.º, 80.º, 94.º a 96.º, 105.º, 113.º, 131.º, 132.º, 145.º, 151.º a 154.º, 157.º a 159.º, 173.º, 178.º a 187.º - e o RC/LPFP-2017 - seus arts. 03.º, als. a) e d), 34.º, 35.º, 36.º e Anexo VI ao mesmo Regulamento].
50. Assim, no contexto do futebol, extrai-se do art. 06.º do RD/LPFP-2017 que o regime disciplinar desportivo é autónomo e independente da «responsabilidade civil ou penal, assim como do regime emergente das relações laborais ou estatuto profissional, os quais serão regidos pelas respetivas normas em vigor» [n.º 1], bem como da «responsabilidade disciplinar de natureza associativa decorrente da qualidade de associado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional» [n.º 2], sendo que a «aplicação de sanções criminais, contraordenacionais, administrativas, cíveis ou associativas não constitui impedimento, atento o seu distinto fundamento, à investigação e punição das infrações disciplinares de natureza desportiva» [n.º 3], prevendo-se, no que releva, quanto ao âmbito subjetivo de aplicação das normas disciplinares que os «clubes são responsáveis pelas infrações cometidas nas épocas desportivas em que participarem nas competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional e no âmbito dessas competições» [cfr. art. 07.º, n.º 2].
51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no n.º 1 do art. 17.º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos seus arts. 29.º e 30.º o leque de sanções disciplinares [principais e acessórias] e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.
52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RD/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» [cfr. subsecção I, arts. 62.º a 83.º], «graves» [cfr. subsecção II, arts. 84.º a 118.º] e «leves» [cfr. subsecção III, arts. 119.º a 127.º], seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espectadores», resultando enunciado no art. 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» [n.º 1] e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial da equipa visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» [n.º 2] [sublinhado nosso].
53. Também as «infrações dos espectadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» [cfr. subsecção II, arts. 173.º a 178.º], «graves» [cfr. subsecção III, arts. 179.º a 184.º] e «leves» [cfr. subsecção IV, arts. 185.º a 187.º], estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art. 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» [n.º 1].
54. Decorre, por outro lado, do art. 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» [n.º 1], e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado; … d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» [n.º 2].
55. Resulta do art. 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (…) k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» [n.º 1], e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis» [n.º 2], sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» [n.º 6] [sublinhados nossos].
56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência [cfr. art. 36.º daquele RC] a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP - adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art. 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art. 04.º que «[c]ompete à Liga e aos seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art. 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» [cfr. art. 06.º do mesmo Regulamento].
57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art. 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos [cfr. art. 11.º] se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art. 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.
58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.
59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afeto ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.
60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.
61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.
62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.
63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.
64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.
66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/» e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos arts. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18.08 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que «[n]ão é, pois, (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».
67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.
68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos arts. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.
69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar [cfr. arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD/LPFP-2017] que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».
70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.
71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.
72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.
73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra, ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.
74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o primeiro princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio.” (cfr. acórdão de 21.02.2019 (proc. 33/18) e outros que se lhe seguiram).
Transpondo esta jurisprudência - que é uníssona e reiterada no STA, pelo menos, desde Outubro de 2018 - , para o caso em apreço, resta concluir que, atenta a factualidade apurada, a ora Recorrida incumpriu, com culpa, os deveres de vigilância, controlo e formação a que estava obrigada, em virtude do disposto nos artigos 13º, al. f), 127º, nº 1 (inobservância de outros deveres) e 187º, nº 1, als. a) e b) (comportamento incorrecto do público), todos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (2018/2019), que, para o que aqui releva, não difere do RD (2017) a que alude a decisão transcrita supra.
E assim é porquanto, como já referido, inexiste dissídio sobre o circunstancialismo de os adeptos da ora Recorrida terem tido comportamentos incorrectos durante o decorrer de dois jogos de futebol, deflagrando 5 flashlighst e 8 potes de fumo, exibindo uma faixa com os dizeres “O Porto não se verga ao centrismo” e detonando 2 petardos, e, no mais, apenas foi demonstrado que a ora Recorrida “manteve com as forças de segurança, públicas e privadas, reuniões de segurança preparatórias dos jogos em apreço”.
Donde, incorreu em erro de julgamento o acórdão do TAD quando decidiu excluir a subsunção do presente caso na previsão do artigo 187º do RD da LPFP e quando concluiu pela falta de alegação e demonstração da ocorrência de uma conduta de incumprimento de um qualquer dever que impendesse sobre a ora Recorrida.
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Sobre as inconstitucionalidades que a Recorrrida invoca (conclusões Q e R) - sendo de assinalar que a referência ao art. 186º, nº 2 se deverá certamente a mero lapso pois o mesmo não vem referido nem no acórdão recorrido nem na decisão disciplinar punitiva -, pronunciou-se já o STA, em acórdão de 03.12.2020 (proc. nº 147/19), nos seguintes termos:
“15. A conclusão de que se pode dar como provado, por presunção, que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes com base no facto de que esses sócios ou simpatizantes adotaram um comportamento social ou desportivamente incorreto também não viola o princípio jurídico-constitucional da culpa, que se extrai do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP, pois, como se afirmou no acórdão atrás citado, o que os artigos 187.º, n.º 1, als. a) e b), 127.º, n.º 1 e 258.º, n.º 1, do RDLPFP sancionam é o «negligente cumprimento dos deveres supra enunciados».
16. Aquela conclusão também não afronta o direito da recorrida a um processo equitativo, nos termos do n.º 4 do artigo 20.º da CRP.
Como se afirmou a este propósito no Acórdão desta Secção, de 12 de dezembro de 2019, proferido no Processo n.º 048/19.0BCLSB, em que a ora recorrida também era parte:
« 26. (...) se é certo que a CRP consagra nos seus arts. 20º e 268º nº 4, o direito a um processo justo, imparcial e equitativo, o qual postula, designadamente, que a «todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», temos que a definição dos meios de tutela jurisdicional desses direitos e interesses, daquilo que são as suas regras de tramitação, os poderes e os ónus que recaem sobre as partes e poderes do julgador, carecem de consagração e concretização legal, não resultando dos direitos em referência a atribuição aos cidadãos, na defesa e tutela de seus direitos e interesses, de um direito a livremente poderem socorrer-se de todo e qualquer meio processual ou probatório que considerem adequado, nem que estejam isentos ou desonerados do respeito de regras contendo deveres e ónus/faculdades processuais e/ou das consequências que derivem do seu incumprimento ou da sujeição às decorrências resultantes dos comportamentos desenvolvidos no ou fazendo uso de ónus/faculdades.
27. Na verdade, atendendo a outros bens e valores jurídicos que importa que sejam igualmente considerados, o legislador procede à definição dos meios ao dispor dos cidadãos para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, disciplina as suas regras e pressupostos, institui deveres, poderes e ónus para as partes, cientes de que o direito a um processo equitativo só se considera violado quando for impossível o estabelecimento de uma relação mínima de equilíbrio ou proporção entre a justificação da exigência em causa e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento de tal exigência.
28. No caso vertente não se vislumbra uma qualquer ofensa ao comando constitucional em crise e ao direito convocado, porquanto à Recorrida mostrou-se e mostra-se assegurado, em pleno, o direito a um processo equitativo na e com tramitação e decisão dos vários meios impugnatórios de que dispôs e deduziu em várias sedes e instâncias, feitas segundo as regras disciplinadoras dos mesmos e que se mostram equilibradas/proporcionais aos valores e direitos a tutelar - cfr., também, em idêntico sentido o ponto 2.4 do Ac. deste STA de 5/9/2019 (Proc. n.º 058/18.6BCLSB).»
Em igual sentido se pronunciou também o recentíssimo acórdão do STA de 11.03.2021, proferido no processo nº 89/19.
*
Impõe-se, pelo exposto, revogar o acórdão recorrido e manter na ordem jurídica a decisão disciplinar punitiva.
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IV - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão do Tribunal Arbitral de Desporto e mantendo a decisão disciplinar que aplicou à ora Recorrida F... – Futebol SAD as penas de multa, no valor global de € 7.460,00.
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Custas pela Recorrida, nos termos do art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 06 de Maio de 2021

(Nos termos e para os efeitos do art. 15º- A do DL nº 10 - A/2020 de 13.03, a Relatora consigna e atesta que o presente acórdão tem voto de conformidade do Exmo. Senhor Juiz Desembargador Carlos Araújo e voto de vencido da Exma. Senhora juíza Desembargadora Sofia David, nos termos que se seguem.)
Ana Paula Martins

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Voto vencida por entender que existe aqui um delito de omissão e que que a imputação (funcional) à pessoa colectiva – ao Clube de futebol – da autoria dos correspondentes ilícitos, por violação do dever jurídico de garante, exige a concreta identificação das pessoas singulares que correspondem aos sócios ou simpatizantes que executaram o ilícito disciplinar, não se podendo presumir a indicada qualidade de sócio ou simpatizante apenas com base na respectiva localização no Estádio e por naquela zona se envergarem cachecóis, camisolas e bandeiras alusivas ao clube. Ou seja, não se aceita que possa ser imputado um ilícito disciplinar ao Clube apenas com a prova de que uma pessoa singular desconhecida, que executou materialmente a infracção - que estava a assistir ao jogo na zona dos sócios e adeptos do Clube, onde se envergavam cachecóis, camisolas e bandeiras alusivas ao clube - é necessária e obrigatoriamente um sócio ou um simpatizante do respectivo Clube. A punição do Clube pela violação do dever de garantir os comportamentos sociais e desportivamente correctos dos seus sócios e simpatizantes, exige a prova de que o executor material da infracção é sócio ou simpatizante do referido Clube. Ora, os factos trazidos aos autos não são bastantes para, a partir deles, se poder extrair a presunção judicial de que foram necessariamente certas pessoas sócias ou simpatizantes do Clube quem executou os actos pelos quais o Clube foi punido. Para o efeito, ter-se-iam de reunir outros factos, v.g, teria de ficar assente que naquele local só poderiam estar os referidos sócios e não outras pessoas que o não fossem, porque quem aí estivesse foi previa e nominalmente identificado na qualidade de sócio do Clube.
No mais, tal como resulta dos preceitos invocados, para o Clube ser punido pelos actos dos seus sócios também terá de resultar provado no procedimento disciplinar que foram omitidos os deveres que lhe incumbiam, de prevenir e reprimir eventuais condutas incorrectas dos seus sócios, adeptos ou simpatizantes. Ou seja, para a punição do Clube não basta a ocorrência de comportamentos e condutas incorrectas, perpetradas pelos sócios, adeptos ou simpatizantes, que estejam atestadas em relatórios oficiais, mas é, também, preciso ficar provado no procedimento disciplinar que o indicado Clube omitiu deveres de vigilância e cuidado, porque não levou a cabo as condutas necessárias para efectivar os seus deveres de garante. Terá que ficar provado no procedimento disciplinar que o Clube tinha de ter adoptado determinadas acções visando a prevenção e repressão das condutas incorrectas dos seus sócios e simpatizantes e que omitiu esse seu dever jurídico. A culpa do Clube tem de ser uma culpa efectiva, não uma culpa presumida. Têm de existir factos no procedimento punitivo que comprovem uma efectiva abstenção do Clube em adoptar certos comportamentos ou acções, que constituíssem um dever jurídico, fossem os adequados a obstar à violência e às condutas impróprias dos sócios, adeptos ou simpatizantes do Clube. Estar-se-á a punir por um ilícito omissivo impróprio ou comissivo por omissão, em que resultado se incluí no próprio tipo legal. Por conseguinte, no facto delitual exige-se incluída quer a acção adequada a produzir o indicado resultado, como a omissão adequada a evitá-lo.
Tal como decorre dos art.ºs 17º, 182.º e 187.º do RD, o Clube tem um dever de garante face à actuação dos seus sócios, adeptos e simpatizantes. Tal dever estará justificado pela proximidade entre estes e o Clube e pela possibilidade do Clube assumir o domínio do facto ou uma posição de controlo sob os referidos sócios, adeptos e simpatizantes.
Assim sendo, para a punição do Clube terá de resultar provada a ligação funcional, ou de proximidade ao Clube, do sócio ou simpatizante que cometeu as condutas impróprias, com a sua identificação processual. Mas, para além disso, terá também que ficar provado nos autos que existiu um comportamento, comissivo ou omissivo, imputável ao Clube, que originou um risco na verificação do resultado que se pretendia evitar, ou que o Clube provocou ou potenciou esse resultado com a omissão dos seus deveres jurídicos.
Ora, nada disso ficou provado na decisão recorrida. Nessa decisão não foi dado por assente, por provado, um único facto concreto relativo à materialização da violação pelo Clube dos deveres de prevenir e reprimir eventuais condutas incorrectas dos sócios, adeptos ou simpatizantes, por se ter abstido, em termos efectivos (e não presumidos) da prática de certas acções, comportamentos ou actividades.
Razões porque voto vencido.
Lisboa, 6 de Maio de 2021.
(Sofia David)