Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:76/23.2BCLSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:05/16/2023
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:JUSTIÇA DESPORTIVA.
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
REQUISITOS
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Sumário:I. São requisitos essenciais destas providências cautelares :
a) A titularidade de um direito que releva do ordenamento jurídico desportivo ou relacionado com a prática do desporto; e
b) O receio fundado da lesão grave e de difícil reparação desse direito.

II. A incorreta escolha, definição ou aplicação da pena disciplinar envolve ilegalidade por violação de lei que se traduz na infração do normativo que define, regula e integra a pena em causa. No nosso caso, erro na subsunção jurídica da norma constante do art. 47.º, n.º 4, do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Rugby, que regula a suspensão preventiva automática, à situação de facto subjacente; a qual não é autorizada pela norma primária ou regulamentar de referência, que não inclui no seu tatbestand a possibilidade de suspensão preventiva automática relativamente ao concreto tipo de ilícito disciplinar alegadamente praticado.

III. Verificado o requisito do periculum in mora, na vertente de situação de facto consumado (impossibilidade de a equipa jogar no Campo do clube), não se podendo concluir que o decretamento da providência é susceptível de causar à Requerida um prejuízo que excede consideravelmente o dano que se pretende evitar (art. art. 368.º, n.º 2, do CPC), deve a providência requerida ser deferida.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Decisão

(artigo 41.º, n.º 7, da Lei do TAD)


I. Relatório

Clube ………. …………., com os demais sinais dos autos, intentou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), uma providência cautelar contra a Federação Portuguesa de Rugby, pedindo a suspensão da eficácia dos efeitos da deliberação de 11.05.2023 do Conselho de Disciplina da Requerida, proferida nos autos disciplinares n.º 47/2022-23, na parte que determinou a interdição preventiva do Campo ……………..

O Requerente da providência veio alegar, essencialmente, que inexiste no Regulamento de Disciplina da FPR, referente à época 2022/2023, qualquer norma que expressamente preveja a interdição preventiva do recinto desportivo, pelo que essa cominação é nula.

Quanto ao periculum in mora, alega que tal interdição preventiva se traduz numa lesão grave e irreversível, principalmente a nível patrimonial. Neste ponto evidencia a consequente redução significativa das receitas de bilheteira e o aumento dos custos de deslocação para um local a uma distância mínima de 30Km de Lisboa.

Juntou 5 documentos e o comprovativo do pagamento da taxa de justiça. Foi junta a procuração forense.



II. Da intervenção do Presidente do TCA Sul

Por despacho de 15.05.2023 do Exmo. Presidente do TAD, foram os autos remetidos a este TCA Sul para apreciação e decisão, com fundamento na circunstância de não ser viável em tempo útil a constituição do colégio arbitral e, assim, estar o TAD em condições de apreciar o pedido cautelar formulado. O despacho em questão é do seguinte teor:

“(…)

Na presente data vem Grupo Desportivo de Direito requerer medida cautelar de suspensão dos efeitos de deliberação do Conselho de Disciplina da Requerida que, conforme se documenta, "ao abrigo das disposições conjuntas dos artigos 6º e 47º nºs 1, 4 e 5 do Regulamento de Disciplina, que [a] partir de 11 de Maio de 2023 fica interdito preventivamente o recinto desportivo de ……. até ao limite mínimo da sanção mais grave prevista nas infrações imputadas ao G...., no caso 4 (quatro)" - v. ponto 8 do RI e Doc. 3 junto.

Informa ainda o Requerente que foi notificada da deliberação suspendendo em 12 de maio p.p. e que é urgente a decisão por que reclama em sede de processo cautelar, uma vez que o ato objeto da ação arbitral e da providência cautelar, se mantido nos seus efeitos, impossibilita a equipa de rugby do Clube de disputar no seu campo um jogo já no próximo dia 20 de maio (ponto 11 do RI).

Nos termos do artigo 41.º n.º 2 da LTAD, “no âmbito da arbitragem necessária, a competência para decretar as providências cautelares referidas no número anterior [as adequadas à garantia do direito ameaçado] pertence em exclusivo ao TAD".

Porém, para salvaguarda do princípio da tutela jurisdicional efetiva e para que não faleça o amparo cautelar previsto no n.º 1 do artigo 41.º do TAD, designadamente perante as exigências legais no que a formação arbitral diz respeito, compete ao Ex.mo Presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul a competência jurisdicional deferida ao TAD, concretamente quando “o processo não tiver ainda sido distribuído ou se o colégio arbitrai não estiver constituído". 

Assim, considerando o procedimento obrigatório que decorre do disposto nos n.ºs 1, 2 e 8 do artigo 28.º da LTAD no que à constituição do colégio arbitrai diz respeito, condicionante óbvia da “distribuição" do processo; e perante a alegação de que a utilidade da decisão cautelar impõe que a mesma seja tomada antes de 20 de maio p.f., afigura-se ao signatário que se verificam, neste caso, os pressupostos do exercício da competência decisória pelo Ex.mo Presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul nos termos do artigo 41.º n.º 7 da Lei do TAD.

(…).”

Vejamos se estão reunidos os pressupostos que justificam a intervenção do Presidente do TCA Sul.

No presente caso, vem invocada pelo Exmo. Senhor Presidente do TAD a impossibilidade de constituição do colégio arbitral em tempo útil, atentos os prazos legalmente estabelecidos (v. supra).

Reiterando os fundamentos constantes do despacho transcrito e considerando a necessidade de cumprimento das regras adjectivas previstas na Lei do TAD, de que resultaria a susceptibilidade de fazer perigar a tutela efectiva do direito invocado, terá que concluir-se que está preenchido o requisito de que depende a intervenção do Presidente do TCA Sul.



III. Da audição da Requerida

De acordo com o n.º 5 do art. 41.º da Lei do TAD, “[a] parte requerida é ouvida dispondo, para se pronunciar, de um prazo de cinco dias quando a audição não puser em risco sério o fim ou a eficácia da medida cautelar pretendida”.

E o art. 366.º, n.º 1, do CPC estabelece que: “[o] tribunal ouve o requerido, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.

Como ensina José Lebre de Freitas, a “[u]tilidade, fim ou eficácia apontam no mesmo sentido: a audiência do requerido não deve ter lugar quando, com ela, haja o risco de se frustrar o efeito prático que concretamente se pretende atingir, isto é, quando o conhecimento da pretensão cautelar pelo requerido ou a demora no deferimento da providência resultante da observância da contraditoriedade aumente o perigo da lesão grave e de difícil reparação que a providência visa evitar” (cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. 2, 2001, p. 24).

A dispensa de audição da parte contrária, que integra um poder-dever do juiz, exige, também, a explicitação das razões que sustentam o entendimento de que essa audição colocará “em risco sério o fim ou a eficácia da providência”.

No caso presente, concretizando, a audição da Requerida, por força do prazo injuntivamente fixado no art. 41.º, n.º 5 da Lei do TAD, é de 5 dias (a que acrescerá o prazo de multa processual pela eventual prática tempestiva do acto), sendo que o jogo abrangido pela presente providência, que o ora Requerente identifica, ocorrerá no próximo dia 20 (sábado).

Pelo que, sendo susceptível de pôr em risco a eficácia da medida cautelar pretendida, ao abrigo do disposto no art. 366.º, n.º 1, do CPC, dispensa-se, oficiosamente, a audição da Requerida, procedendo-se de imediato à apreciação do mérito da presente providência cautelar.



IV. Da instância e instrução do processo

As partes são legitimas e o processo é o próprio.

Não existem excepções ou outras questões prévias que devam ser, desde já, conhecidas e que obstem à apreciação do mérito da providência requerida.

Atenta a natureza indeterminável dos interesses em discussão no presente processo, nos termos previstos no art. 34.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, fixa-se ao presente processo o valor de EUR 30.000,01.

Considerando a natureza do processo e a causa de pedir, tal como vem formulada na p.i., entende-se que nenhuma outra prova carece de ser produzida, estando, portanto, o tribunal em condições suficientes para a apreciação do mérito da causa.



V. Fundamentação

V.i. De facto

Com interesse para a decisão da presente providência cautelar, relevam os seguintes factos, documentalmente comprovados:

a) No dia 29.04.2023, no Campo ……………, em M…………, disputou-se o jogo G…….. – C……. a contar para a 17.ª jornada da Fase de Apuramento do Campeonato Nacional da Divisão de Honra (TPO 10) organizado pela FPR.

b) Após o jogo, no seguimento da entrega do relatório do árbitro e informações complementares e da factualidade deles constantes, o Conselho de Disciplina da FPR determinou a abertura de Processo Disciplinar ao G...., ao abrigo do disposto nos artigos 12.º e 47.º do Regulamento de Disciplina, imputando-lhe a prática dos factos constantes da Nota de Culpa e que aqui se dão por reproduzidos (cfr. documento n.º 3).

c) Também consignou o Conselho de Disciplina que a factualidade imputada ao G.... indicia a prática de diversas infracções, nomeadamente as constantes da als. e) e h) (ii) do artigo 38.º o Regulamento de Disciplina, passiveis de multa e de interdição do recinto desportivo.

d) Tendo o Conselho de Disciplina, com invocação dos artigos 6.º e 47.º, n.ºs 1, 4 e 5 do Regulamento de Disciplina, determinado a notificação do G.... que “a partir desta data [11 de Maio de 2023] fica interdito preventivamente o recinto desportivo de Monsanto até ao limite mínimo da sanção mais grave prevista nas infracções imputadas ao G...., no caso 4 (quatro) jogos”.

e) Do calendário desportivo a disputar pelo C………, consta o jogo a realizar no Campo ………… contra o Sport ……………, estando tal jogo agendado para o próximo dia 20.04.2023.

Nada mais importa indiciariamente provar, sendo que nenhum outro elemento de prova foi junto aos autos para comprovar o alegado no r.i..



V.ii. De direito

Nos termos do disposto no art. 41.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, “[o] TAD pode decretar providências cautelares adequadas à garantia da efetividade do direito ameaçado, quando se mostre fundado receio de lesão grave e de difícil reparação, ficando o respetivo procedimento cautelar sujeito ao regime previsto no presente artigo. E, de acordo com o n.º 9 desse artigo, “[a]o procedimento cautelar previsto no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, os preceitos legais relativos ao procedimento cautelar comum, constantes do Código de Processo Civil”.

Dispõe o art. 368.º do CPC:

1- A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.

2 - A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.

3 - A providência decretada pode ser substituída por caução adequada, a pedido do requerido, sempre que a caução oferecida, ouvido o requerente, se mostre suficiente para prevenir a lesão ou repará-la integralmente.

4 - A substituição por caução não prejudica o direito de recorrer do despacho que haja ordenado a providência substituída, nem a faculdade de contra esta deduzir oposição, nos termos do artigo 370.º.

Como já se deixou estabelecido anteriormente, são requisitos essenciais destas providências cautelares (cfr., i.a., a decisão de 20.01.2023, no proc. n.º 17/23.7BCLSB e decisões aí citadas):

a) A titularidade de um direito que releva do ordenamento jurídico desportivo ou relacionado com a prática do desporto; e

b) O receio fundado da lesão grave e de difícil reparação desse direito.

Sendo que esta titularidade do direito, deve ser séria; ou seja, no sentido de que ao requerente da providência lhe venha a ser reconhecida razão, ainda que essa análise deva ser feita – como não podia deixar de o ser, face à natureza deste meio processual – sob os ditames próprios de uma summario cognitio. Dito de modo diverso, é pressuposto (cumulativo) do decretamento da providência a probabilidade séria (fumus boni iuris), embora colhida a partir de análise sumária (summaria cognitio) e de um juízo de verosimilhança, de o direito invocado e a acautelar já existir ou de vir a emergir de acção constitutiva, já proposta ou a propor.

Por sua vez, na demonstração do grau de probabilidade ou verosimilhança em relação à existência do direito invocado pelo requerente da providência, concorre não só o acervo probatório constante do processo e que se revele adequado a formar a convicção do julgador quanto ao grau de probabilidade de existência do direito invocado, como a jurisprudência tirada sobre casos análogos e cuja decisão seja proferida por referência ao mesmo quadro normativo. Não poderá afirmar-se a “probabilidade séria da existência direito” invocado, se esse mesmo direito não é reiteradamente reconhecido nas acções principais que sobre ele versam.

É certo que o fumus boni juris decorre da suficiência da mera justificação dos fundamentos do mesmo. Mas, como se escreveu no ac. de 19.09.2019 do TR de Guimarães, proc. n.º 97/19.0T8VNC.G1: “na aferição de tal requisito, bem como dos demais, deve ter-se sempre presente uma perspectiva de instrumentalidade hipotética, isto é, de que a composição final e definitiva do litígio no processo respectivo possa vir a ser favorável ao requerente”.

No caso concreto, o Requerente alega que a interdição preventiva do seu Campo de jogos é ilegal, desde logo por inexistir noma legal e regulamentar que permita ao Conselho de Disciplina da FPR aplicar tal medida preventiva. O que determina a sua nulidade.

Em relação ao periculum in mora, alega que da interdição do seu recinto, nesta fase do campeonato, traduz-se numa lesão grave e irreversível, quer a nível patrimonial, quer a nível desportivo. Alega fundamentalmente que será confrontada com uma redução significativa das receitas de bilheteira e com o aumento dos custos de deslocação para um local a uma distância mínima de 30Km de Lisboa.

Vejamos então, em primeiro lugar, se ocorre ou não probabilidade séria da existência do direito invocado.

V.ii.i Do fumus boni juris

A norma regulamentar vertida no artigo 47.º, n.º 4, do Regulamento de Disciplina, invocada pelo Conselho de Disciplina da FPR, tem a seguinte redação:

Instaurado um processo disciplinar, o Conselho de Disciplina deve indicar desde logo nessa decisão as infrações indiciadas e as sanções que correspondem, em abstrato, a essas infrações, ficando o infrator automaticamente suspenso preventivamente de toda a actividade desportiva pelo período correspondente ao limite mínimo da sanção prevista para a infração indiciada”.

Sendo que o artigo 38.º, n.º 1, alínea e) e alínea h) (ii) do mesmo Regulamento, igualmente invocados pela Requerida, tem a seguinte redação:

1. Os clubes que, por si ou através dos seus agentes desportivos ou pelos seus sócios, adeptos ou simpatizantes cometam alguma das infrações disciplinares previstas no presente artigo, constantes no relatório do árbitro ou apuradas em sede de inquérito, serão punidos da seguinte forma:

(…)

e) Invasão do recinto de jogo que provoque o atraso no início ou reinício do jogo ou leve à sua interrupção não definitiva – multa de € 1500 (mil e quinhentos euros) a € 3000 (três mil euros) e interdição do recinto desportivo de 4 (quatro) a 8 (oito) jogos;

(…)

h) Incidentes provocados por sócios, adeptos ou simpatizantes dos clubes, antes, durante ou após a realização do jogo e dentro do recinto desportivo:

(…)

(ii) Que originem agressões sobre espectadores ou sobre elementos da comunicação social dentro do recinto desportivo, antes, durante ou após o jogo, que não revistam especial gravidade – multa de € 1500 (mil e quinhentos euros) a € 3000 (três mil euros) e interdição do recinto de jogo de 3 (três) a 6 (seis) jogos;

(…).”

Entende o Requerente que inexiste no Regulamento de Disciplina da FPR, referente à época 2022/2023, qualquer norma que expressamente preveja a interdição preventiva do recinto desportivo. O referido artigo 47.º, n.º 4, do Regulamento de Disciplina, no qual o Conselho de Disciplina da FPR se escuda para fundamentar a interdição preventiva do Campo Miguel Nobre Ferreira, dirige-se unicamente ao infractor enquanto pessoa singular, jogador, árbitro, treinador ou dirigente, e nunca a um clube. A não ser assim, por via de um processo disciplinar, desde que o limite mínimo da pena em abstrato seja de 4 semanas, ou jogos, resultaria sempre a imposição a esse mesmo clube da suspensão preventiva de toda a actividade desportiva; o que se afigura como intolerável.

Nos termos da sua alegação, “[u]m Clube que venha ser objecto sanção de interdição de recinto desportivo, e sempre após processo disciplinar, não fica impedido de continuar a sua actividade, será apenas obrigado a jogar noutro local nos termos e condições previstas no Regulamento de Disciplina - artigos 27° e seguintes do RD. // Reitera-se, o que o Regulamento Disciplina determina - artigo 47°/4- é que será aplicada automaticamente ao arguido em sede de procedimento disciplinar, e desde que o limite mínimo da sanção prevista seja de 4 semanas, uma medida de suspensão preventiva de toda a actividade desportiva, mas não diz nem refere a interdição preventiva do recinto desportivo.

Nessa medida, sustenta o Requerente que está violado o princípio da tipicidade do direito penal e processual penal, aqui aplicável por remissão expressa do Regulamento de Disciplina da FPR nomeadamente quanto ao princípio da tipicidade.

Vejamos.

A medida de suspensão preventiva, ainda que não constitua a decisão sancionatória definitiva, deverá ter-se por produtora de efeitos jurídicos (fortemente) ablativos da esfera jurídica do agente infractor. Com efeito, no caso, instaurado o processo disciplinar, nos termos do n.º 4 do artigo 47.º daquele Regulamento, fica o infractor – arguido – “automaticamente suspenso preventivamente de toda a atividade desportiva pelo período de tempo correspondente ao limite mínimo da sanção mais grave” abstratamente aplicável.

Nesta medida, a determinação contida na notificação em questão, pode ser contenciosamente impugnada.

Isto estabelecido, atentemos agora na redação da norma incriminadora/punitiva, ainda que de natureza preventiva (mas imediatamente coerciva): “(…) ficando o infrator automaticamente suspenso preventivamente de toda a actividade desportiva pelo período correspondente ao limite mínimo da sanção prevista para a infração indiciada.”

E a cominação notificada ao Clube requerente: “(…) a partir desta data [11 de Maio de 2023] fica interdito preventivamente o recinto desportivo de Monsanto até ao limite mínimo da sanção mais grave prevista nas infracções imputadas ao G...., no caso 4 (quatro) jogos”.

O que imediato se constata é a falta de coincidência textual entre a previsão normativa de referência e respectiva estatuição e a leitura da mesma feita e declarada pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Rugby. Será isso admissível? Até porque a interdição do recinto desportivo será mais favorável que a suspensão da actividade desportiva.

A chave para a resolução desta dúvida, diremos nós, será encontrada por aplicação dos do princípio da legalidade consagrado, quer no artigo 29., n. 1, da CRP, quer no artigo 1.º do C.Penal, segundo o qual ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão. Este princípio, “nullum crimen, nulla poena sine lege” constitui, de resto, uma decorrência do estado de Direito Democrático e tem como corolários, i.a., as máximas “nullum crimen sine lege” e “nullum crimem, nulla poena sine lege praevia” (princípio da tipicidade).

E da interpretação conjugada dos artigos 47.º, n.º 4, 28.º (interdição de exercício de atividade), 27.º (interdição de recinto desportivo) e 20.º (contagem do tempo de suspensão preventiva), todos do mesmo Regulamento de Disciplina, resulta que a aludida suspensão da actividade desportiva se deverá reportar exclusivamente a infractores singulares e não aos clubes. Isto porque, este artigo 28.º inculca precisamente essa ideia, ao referir-se, a contrario, a “infrator não esteja inscrito em qualquer clube”, não prevendo a hipótese dos clubes em si mesmos considerados. Sendo que o art. 28.º se refere expressamente aos dirigentes ou representante dos clubes. Por outro lado, também o art. 27.º que trata da sanção de interdição de recinto desportivo – afinal a sanção provisória automática cominada – assume como pressuposto a efectiva aplicação da sanção, ao referir-se a “todo o período de interdição” (n.º 1) e aos jogos que se hajam de realizar no período da interdição e “em virtude da aplicação da sanção”. E o interprete aplicador não pode ser alheio a este feixe normativo.

Como se observou no ac. do TCA Norte de 20.11.2012, proc. n.º 691/10.4BECBRA, no âmbito do processo disciplinar, a incorreta escolha, definição ou aplicação da pena disciplinar envolve ilegalidade por violação de lei que se traduz na infração do normativo que define, regula e integra a pena em causa. No nosso caso, erro na subsunção jurídica da norma constante do art. 47.º, n.º 4, à situação de facto subjacente; a qual não é autorizada pela norma primária ou regulamentar de referência, que não inclui no seu tatbestand a possibilidade de suspensão preventiva automática relativamente ao concreto tipo de ilícito disciplinar alegadamente praticado.

Assim, nem os princípios próprios do Direito Penal e Processual Penal, nem os ditames da interpretação jurídica, mesmo admitindo a hipótese da possibilidade da interpretação extensiva estrita neste domínio, autorizam a conclusão alcançada pelo Conselho de Disciplina da Requerida e comunicada ao Requerente.

Em conclusão, a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina, na parte aqui impugnada, não é válida, dado que o citado art. 47.º, n.º 1, do Regulamento de Disciplina nada prevê quanto à interdição preventiva.

Acompanhamos, assim, a alegação do Requerente quando sustenta: “Desta sorte, face à inexistência de uma norma que imponha uma medida preventiva para a situação em causa, deveria, unicamente, o Conselho de Disciplina ter deduzido a Nota de Culpa ao G….. e, aguardar a tramitação do processo disciplinar e, após o exercício do contraditório, aplicar a sanção que melhor entendesse, inclusive a sanção de interdição de recinto desportivo. // A Decisão do Conselho de Disciplina da FPR é nula na parte em que fixa a interdição preventiva do Campo ……………., por falta de fundamento legal.

Muito haveria que discernir sobre os princípios da legalidade e da tipicidade em Direito Penal e seu âmbito de aplicação, apenas identificados e sumariamente descritos supra, mas tal afigura-se inoportuno e desnecessário em face do meio cautelar em uso, por definição de sumario cognitio.

Pelo que a suspensão preventiva automática aplicada, não é válida.

E assim sendo, para tanto bastando, num juízo de prognose de summaria cognitio - que é o que aqui se impõe -, pode concluir-se pela verificação de uma titularidade séria do direito invocado pelo Requerente. Ou seja, a providência requerida passa o crivo do requisito do fumus boni juris.

V.ii.ii Do periculum in mora

Em relação ao periculum in mora, alega o Requerente que:

Não se oferecem dúvidas que no caso vertente existe o fundado receio da lesão, sendo decisivo também, ter presente a existência de um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado.

(…)

O Campeonato Nacional da Divisão de Honra (TOP10) organizado pela FPR, disputa- se entre 10 equipas, nos seguintes termos,

(i) Fase Regular, jogando todas as equipas contra todas, em duas voltas;

(ii) Os dois primeiros classificados são apurados diretamente para as Vè finais que jogarão na qualidade de equipas visitadas, sendo que os terceiro a sexto jogarão os píay -off (1/4 de final) para apuramento os outros dois semifinalistas;

(iii) A final será jogada em campo neutro, entre os vencedores das meias finais.

O jogo de maior relevância que cada uma das equipas participantes no campeonato nacional disputa na condição de visitado durante uma época é a Zi final, jogo em que terá maior assistência, maior receita de bilheteira, significativa e acrescida exposição nos media e possibilidade de projectar as marcas dos patrocinadores, entidades que tornam possível e viável a manutenção do jogo de Rugby em Portugal.

O G.... ao classificar-se em 2.º lugar no decurso da Fase Regular garantiu o acesso à 1/2 Final, e o direito de jogar no seu Campo …………., estando tal jogo agendado para o próximo dia 20 de Maio de 2023, colocando frente a frente G……….e Sport …………..

Atenta a Decisão do Conselho de Disciplina da FPR de impor como medida preventiva a interdição do recinto desportivo do G………, ver-se-á este impedido de utilizar o Campo …………… e jogar, tal como determina o Regulamento de Disciplina noutro campo a 30Km de distância mínima (artigo 27°/3 do RD)

A concretizar-se a interdição preventiva do Campo ………….., tal facto para além de carecer de tutela do direito, causa e provoca ao G………. um prejuízo de elevada dimensão patrimonial e irreparável.

De elevada dimensão patrimonial porque tal provocará uma significativa redução de receitas de bilheteira e implicará os custos de deslocação das duas equipas, neste caso G.... e Sport Lisboa e Benfica, num total mínimo de 60 pessoas, para um local a uma distância mínima de 30Km de Lisboa (artigos 27°/2 e 38°/4 do RD).

Como é sabido o Rugby é um jogo amador que vive maioritariamente de patrocínios e receitas de bilheteira, pela a concretizar-se tal interdição no jogo da 14 final, o mais importante da época desportiva o G.... ver-se-á privado de receitas essenciais á prossecução do seu objecto.

O prejuízo é irreparável, porque tal jogo acontece apenas uma vez em cada época, não podendo a sua realização ser adiada.

(…).”

A propósito do periculum in mora, veja-se o que se concluiu no ac. de 11.02.2021 do T. R. de Lisboa, no proc. n.º534/16.5T8SXL-A.L1-2:

“(…) não é toda uma qualquer ou mera consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva, que se configura com capacidade de justificar o recurso e decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da requerida contraparte;

III - efectivamente, de acordo com a legal enunciação, só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade e viabilidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto e salvaguarda da previsível lesão;

IV – destra forma, a decisão cautelar do tribunal, de forma a evitar a lesão, está condicionada à projecção da lesão como grave, bem como ao facto, em cumulação, de ser dificilmente reparável do direito afirmado;

(…)

VII - revelando-se, inclusive, necessário o preenchimento concludente ou impressivo de tal requisito de periculum in mora, devendo a gravidade e a difícil reparação da lesão ou dano, configurar-se com um plus, acrescento ou excesso de risco, relativamente àquele que normalmente existe e é inerente à pendência de qualquer acção;

(…).”

O periculum in mora, como afirmado no ac. 14.06.2018 do STA, proc. n.º 435/18, “constitui verdadeiro leitmotiv da tutela cautelar, pois é o fundado receio de que a demora, na obtenção de decisão no processo principal, cause uma situação de facto consumado ou prejuízos de difícil ou impossível reparação aos interesses perseguidos nesse processo que justifica este tipo de tutela urgente”.

No caso, o que se detecta é que o periculum in mora alegado funda-se, como se disse já, na impossibilidade de reconstituição da esfera jurídica do Requerente, dado que se traduz na impossibilidade de jogar no próximo dia 20 no seu Campo.

Como se afirmado noutras decisões, o fundado receio ou periculum in mora, cuja verificação é necessária para a procedência do procedimento cautelar comum, tem de resultar da alegação de factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Como ensina Abrantes Geraldes: “só devem ter-se em conta para a aferição da existência do requisito do “periculum in mora” as lesões graves e dificilmente reparáveis, em que se exigem maiores cuidados, devendo o juiz “convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo de lesões graves e dificilmente reparáveis.// A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado” (in Temas Da Reforma Do Processo Civil, vol. III, 1998, pp. 83 a 88).

E como a jurisprudência tem entendido, a “previsível gravidade da lesão deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera do interessado, abrangendo tanto os prejuízos materiais, como os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação” (cfr., i.a., o ac. do T.R.Coimbra, proc. n.º 306/15.4T8FND.C1). É que, como bem sintetiza Antunes Varela, as providências cautelares “visam precisamente impedir que, durante a pendência de qualquer acção declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a sentença não se torne numa decisão puramente platónica” (cfr. A. Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2.ª ed. revista e actualizada, 1985, p. 23).

E sabido é que os danos ou prejuízos imateriais ou morais são por natureza irreparáveis ou de difícil reparação (cfr. o ac. de 8.04.2021 do T.R. de Guimarães, proc. n.º 1053/21.3T8GMR.G1; idem, o ac. de 11.02.2021 do T.R. de Lisboa, proc. n.º534/16.5T8SXL-A.L1-2). Sendo que a privação ou limitação do exercício daqueles direitos constituem, por regra, em si mesmo, um dano de difícil reparação.

Também no que concerne à gravidade, “apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida” (idem, o ac. do T.R. de Lisboa citado).

De igual modo, afirmou o STJ, no acórdão de 7.12.2017, proc. n.º 697/16.0T8VVD.G1, que “[n]o essencial, pretendem-se prevenir os prejuízos que decorrem da natural demora do processo - o periculum in mora. // Decidiu o S.T.J., no Ac. de 18/03/2010, que a providência deve ser decretada, “sempre que se esteja ante uma lesão grave, atenta a importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objecto mediato) e que está em risco de ser sacrificado, e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível (ut Procº. 1004/07.8TYLSB.L1.S1, Cons.º Álvaro Rodrigues in www.dgsi.pt).”

Ora, de acordo com o probatório em conjugação com as regras da experiência, o cenário de impossibilidade de ser jogado o próximo jogo no Campo do Requerente, e pelo período de 4 jogos, constitui, em si, um prejuízo grave e de difícil reparação. Ou, para utilizar uma terminologia própria do contencioso administrativo, uma situação de facto consumado.

Na verdade, caso o Requerente venha a obter ganho de causa na acção principal, sempre os efeitos danosos se teriam produzido e consumado integralmente (o requisito do periculum in mora encontrar-se-á preenchido sempre que exista fundado receio de que quando venha a ser proferida uma decisão no processo principal a mesma já não venha a tempo de dar resposta adequada ou cabal à situação jurídica e pretensão objeto de litígio – v. ac. do STA de 17.12.2019, proc. n.º 620/18.7BEBJA).

Deste modo, tudo ponderado, na situação concreta em análise, temos, igualmente, por verificado o requisito do periculum in mora.

V.ii.iii Do requisito da proporcionalidade

Verificados estes requisitos, cumpre ainda ao tribunal verificar se o decretamento da providência é susceptível de causar à Requerida um prejuízo que excede consideravelmente o dano que se pretende evitar (art. art. 368.º, n.º 2, do CPC). Isto é, importa verificar da proporcionalidade do decretamento da providência, perante os valores contrapostos.

O decretamento de uma qualquer providência cautelar implica necessariamente a formulação de um juízo de proporcionalidade acerca dos respectivos efeitos, “o que reclama na actuação do julgador, no momento da decisão, a conjugação e a interferência dos factores de ponderação, de bom senso e equilíbrio na busca da justa medida que permita estabelecer a melhor composição dos interesses conflituantes” (cfr., i.a., o ac. de 23.11.2004 do T.R.de Coimbra, proc. n.º 3064/04; idem o ac. de 4.07.2019 do STJ, proc. n.º 32/19.5YFLSB).

Embora se possa presumir que em causa estará a afectação dos valores da autoridade e do prestígio da organização desportiva do Rugby e da dignidade, estabilidade e tranquilidade das respectivas competições, certo é que nada nos autos evidencia que o decretamento da providência cause qualquer prejuízo relevante à Requerida, para além do (mero) retardamento da acção punitiva prevista no art. 38.º, n.º 1, alínea e) e alínea h) (ii) do Regulamento de Disciplina. Mas isto, diremos nós, é a consequência “natural” do provimento da medida cautelar; de qualquer medida cautelar.

Para além de que só uma considerável desproporção relativamente às consequências para o requerido será capaz de justificar a recusa da providência (cfr., sobre esta matéria, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 4.ª ed., 2010, pp. 245-251); o que manifestamente não se afigura ser o caso.

Pelo que, tudo visto, entende-se nada obstar ao decretamento da providência requerida, o que se determinará no local próprio (infra).



VI. Decisão

Pelo exposto decide-se:

- Julgar procedente a providência cautelar requerida e suspender a execução da decisão recorrida, na parte em que determinou a interdição preventiva, até 4 jogos, do Campo M …………..

Custas da responsabilidade do Requerente, que do processo tirou proveito (art. 539.º, n.º 1, do CPC), a atender, a final, na acção principal (art. 539.º, n.º 2, do CPC).

Notifique pelo meio mais expedito; também o TAD.

Lisboa, 16 de Maio de 2023


Pedro Marchão Marques
Juiz presidente