Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10737/13
Secção:CA
Data do Acordão:04/19/2018
Relator:HELENA CANELAS
Descritores:AÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM
RECONHECIMENTO DE DIREITO
SUCESSÃO DE REGIMES
REVOGAÇÃO TÁCITA
MISERICÓRDIAS
IPSS
Sumário:I – À luz do quadro normativo emanado no âmbito da Constituição de 1976 e decorrente do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS´S) aprovado pelo DL. nº 519-G2/79 e, no seu seguimento, e em aperfeiçoamento deste, do novo Estatuto aprovado pelo DL nº 119/83, o apoio do Estado e das Autarquias Locais às IPSS´s, entre em que se inserem as Misericórdias, tal como reconhecido pelo Estatuto, destinar-se-á “…a reforçar os recursos próprios das instituições, aumentando-lhes as possibilidades de atuação e melhorando a qualidade desta” (cfr. artigo 5º nº 1 alínea f) do Estatuto), devendo simultaneamente as instituições cooperar com os serviços públicos (bem como entre si) “…para obter o mais alto grau de justiça e de benefícios sociais e também de aproveitamento dos recursos” (cfr. artigo 5º nº 1 alínea g) do Estatuto), erigindo o nº 3 do artigo 6º do Estatuto os acordos de cooperação, a celebrar entre o Estado (os serviços da Segurança Social) e as IPSS´s como forma obrigatória de estabelecer essa cooperação, como claramente decorre do inciso “…são sempre estabelecidas mediante acordos de cooperação…” constante daquele normativo.
II – As obras assistenciais, mormente as desenvolvidas pelas Irmandades, eram apoiadas casuisticamente pela coroa. E o apoio financeiro instituído pelo segmento da norma do artigo 9º da Lei do Congresso de 24 de junho de 1912, de harmonia com o qual 25% do rendimento da taxa de entrada nos Palácios de Sintra e da Pena seria destinado a uma dada Misericórdia, nos primórdios da implantação da República, face à geração de nova e específica receita para o Estado republicano, com a nova afetação pública daqueles palácios, até então reais, que passaram a estar abertos para visita, ao público em geral, mediante o pagamento de taxas de entrada, tem também que considerar-se casuístico, e justificado nesse contexto.
III - Com a instauração do regime democrático, o Estado assumiu como tarefas organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e apoiar (e fiscalizar) a atividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social (e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo), com vista à prossecução de objetivos de solidariedade social (cfr. artigo 63º da CRP/1976), passando simultaneamente as obras de assistência a ser também asseguradas por um universo mais lato de outras formas organizativas, os apoios do Estado (e das autarquias locais) às atividades assistenciais (agora apelidadas de solidariedade social, no que reflete a modificação da estratificação social e do pensamento social e político) haveriam então de assumir, nos termos do Estatuto das IPSS´s que veio a ser aprovado pelo DL. nº 519-G2/79 e depois dele pelo DL nº 119/83, a forma de acordos de colaboração, co-envolvendo o Estado e as instituições no desenvolvimento dessas mesmas atividades.
IV – Neste enquadramento o segmento da norma do artigo 9º da Lei do Congresso de 24 de junho de 1912 de harmonia com o qual 25% do rendimento da taxa de entrada nos Palácios de Sintra e da Pena seria destinado a uma dada Misericórdia não poderá coexistir com o regime das IPSS´s instituído após a Constituição de 1976, nem sequer enquanto norma especial.
V – A subsistência daquele segmento normativo de 1912 não encontra já, no âmbito deste novo quadro normativo, qualquer justificação, e sempre seria simultaneamente atentatório do princípio constitucional da igualdade, tal como consagrado no artigo 13º da Constituição/1976, na medida em que conferiria um apoio financeiro de relevo a uma IPSS desenquadrado das exigências legais decorrentes do Estatuto a que tais instituições estão submetidas, e de que a mesma ficaria desonerada sem justificação visível.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

A Santa Casa da Misericórdia de ..., autora na Ação Administrativa Comum que instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (Proc.º nº…) contra o Estado Português na qual peticionou a condenação do réu a reconhecer que ao abrigo do artigo 9º da Lei nº 24 de Junho de 2012, publicada do Diário do Governo nº 150º, de 28 de Junho de 1912 assiste à autora o direito a receber a transferência de 25% sobre o valor proveniente das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena ali prevista – inconformada com a sentença de 24/05/2012 do Tribunal a quo que julgando improcedente a ação absolveu o Réu do pedido, dela interpôs o presente recurso, pugnando pela sua revogação.
Formula, a final, as seguintes conclusões nos seguintes termos:
1. Mal andou a douta sentença recorrida ao entender que operou a revogação tácita da Lei do Congresso da República de 24 de Junho de 1912, por incompatibilidade do regime entretanto instituído com aquele que decorria do referido diploma legal.

2. Isto porque o regime geral introduzido na nossa ordem jurídica pelo Decreto-Lei n.º 512-G2/79, de 29 de Dezembro, não expressa a intenção inequívoca do legislador de proceder à revogação do regime especial estabelecido pela Lei do Congresso da República de 24 de Junho de 1912, nos termos exigidos pelo n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil.

3. Por outro lado, o Decreto-Lei n.º 512-G2/79, de 29 de Dezembro e o Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro manifestaram, expressamente, a intenção inequívoca do legislador de não afetar os regimes especiais vigentes à época, para as instituições particulares de solidariedade social abrangidas pelo novo regime geral.

4. Pelo que, também por este prisma, se conclui pelo erro de julgamento perpetrado pela douta sentença recorrida ao entender que operou a revogação tácita da Lei do Congresso da República de 24 de Junho de 1912.

5. Errou ainda a douta sentença ora recorrida ao considerar a vigência da norma da Lei do Congresso da República de 24 de Junho de 1912 viola o princípio da igualdade, ínsito na Constituição da República Portuguesa.

6. Não obstante, é o próprio Tribunal de Contas que assume que os apoios concedidos às instituições particulares de solidariedade social são concedidos por outras vias que não apenas os acordos de cooperação instituídos pelo Decreto-Lei n.º 512-G2/79, de 29 de Dezembro.

7. Sendo certo que nem se poderá reconduzir a regalia concedida pela norma em causa a um apoio financeiro do Estado, porquanto tal receita é originariamente afetada à Recorrente, sua proprietária, sendo o Estado como o depositário que intermedia a operação de cálculo do montante a que corresponde, em cada ano, a percentagem legalmente definida.


O recorrido Estado Português contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo formulando o seguinte quadro conclusivo a tal respeito:
1º- A A. Santa Casa da Misericórdia de … interpôs o presente recurso da douta sentença de fls. no qual pede a revogação da sentença proferida por considerar verificar­se erro de julgamento determinado pela incorrecta interpretação e aplicação das normas e princípios aplicáveis.

2°- Do teor da decisão sob recurso extrai-se que se considerou, comparados os regimes legais, ser caso de aplicação do disposto no artgº. 7º nº 2 do CC, ou seja que a aplicação da nova lei, no caso o DL 519-G2/79, e Despachos Normativos subsequentes, é incompatível com o preceituado na regra precedente ou seja com a disposição do artgº. 9° da Lei de Congresso, verificando-se assim que ocorreu a revogação tácita deste último dispositivo legal.

3°- Decisão que ao contrário do alegado se afigura totalmente correcta e em coerência com a lei aplicável, designadamente com o sobre esta matéria dispõe o artgº. 7° nº 2 do Código Civil.

4º- É o seguinte o texto decisório da sentença, na parte que agora interessa:

«Por quanto vem dito, impõe-se concluir que o parágrafo único do artgº. 9º da Lei de Congresso de 24 de Junho de 1912, que conferia à Autora o direito a auferir 25% do valor da venda de bilhetes de entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, se encontra tacitamente revogado desde a entrada em vigor Decreto-Lei nº 519-G2/79 e Despachos Normativos emitidos para a sua execução, por incompatibilidade do regime instituído com aquele que decorria da lei de 24 de Junho de 1912.»

5°- Assim e ao contrário do que neste aspecto alega a recorrente não se coloca a questão da revogabilidade da lei especial pela lei geral, neste caso da Lei de Congresso (lei especial) pelo Estatuto das IPSS (lei geral).

6°- Verificando-se que o DL 519-G2/79 configura também ele a criação de Lei especial na medida em que veio consagrar de forma autónoma o Estatuto Jurídico das IPSS, que anteriormente se encontrava regulamentado em termos genéricos na legislação que regulava o regime jurídico das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, previsto no DL 460/77 de 7/11.

7º- Alega ainda o recorrente que os DL 512-G2/79 de 29/12 e 119/83 de 25/2, artgº. 97°, manifestaram expressamente a intenção inequívoca do legislador de não afectar os regimes especiais vigentes à época, para as IPSS, abrangidas pelo novo regime, daí dever manter-se o disposto no artgº. 9° da Lei de Congresso.

8°- Sucede no entanto que aquilo que a recorrente denomina de regalias, vantagens, benefícios, privilégios, nada tem a ver com a manutenção do preceituado no artgº. 9º da Lei de Congresso, mas sim com os benefícios que anteriormente já eram concedidos a este tipo de instituições através do DL 460/77 de 7/11, designadamente quanto a isenções fiscais, artgº. 9°, regalias, artgº. 10º e direitos de expropriação, artgº 11°.

9°- Benefícios estes que foram sendo até ampliados dada a natureza da actividade prosseguida, como se alcança do DL 9/85 de 9/1, Estatuto dos Benefícios Fiscais, DL 215/89 de 1/7 e demais legislação aplicável em sede de Códigos de IRC e IVA.

10º- Sendo certo que nestes benefícios não cabe o previsto no artgº. 9° da Lei de Congresso, nem a lei artgº. 97º do DL 119/ 83, quando estipulou a manutenção dos benefícios, teve em vista a preservação do mesmo, que apenas se aplicava à Santa Casa da Misericórdia de …, mas sim aqueles que já anteriormente existiam e que abrangiam de forma genérica as pessoas colectivas de utilidade pública.

11º- O Tribunal Constitucional como se alcança da decisão proferida nestes autos pronunciou-se sobre a constitucionalidade do artgº. 9º da Lei de Congresso, apenas como foi requerido na vertente da eventual violação de normas e princípios constitucionais de natureza orçamental, constantes do artgs. 105º da CRP e não quanto à eventual violação de outros direitos constitucionalmente consagrados.

12°- Não pode assim afirmar-se como faz a A. que; "... o juízo de inconstitucionalidade quanto à vigência da norma da lei de Congresso da Republica de 24 de Junho de 1912, quanto ao ora recorrente já obteve uma pronúncia do próprio Tribunal Constitucional, sobre a não constitucionalidade da norma em questão."

13º- O juízo de inconstitucionalidade da norma cingiu-se apenas, como a própria decisão deixou bem claro, à questão de saber se o título atributivo da receita reclamada pela A. violava princípios orçamentais.

14°-Argumenta ainda a recorrente invocando o acórdão do TC, que os apoios concedidos às IPSS, não se esgotam nos acordos de cooperação estabelecidos no âmbito do DL 19/83 de 25/2 e do Despacho Normativo que o Regula, podendo assumir outras vertentes, designadamente como consta da decisão do TC, os subsídios eventuais por via do FSS e os apoios através de programas, como sejam o Pilar e o PAII, bem como as transferências destinadas a investimento através do PIDAC, daí supõe-se a legalidade do artgº. 9° da Lei de Congresso.

15º- No entanto tal afirmação por parte do TC, em nada colide com a fundamentação da sentença recorrida, já que muito embora os acordos de cooperação possam assumir outras vertentes para além dos já previstos no DL 119/83, qualquer deles é também sujeito a contratualização e fiscalização rigorosa, como determina a lei.

16°- Os acordos celebrados entre as instituições e o Estado que, envolvam comparticipações financeiras, bem como as respectivas alterações revestem sempre a forma de contrato escrito, Norma XIV do DN 75192 de 20/5 com as alterações do DN 31/2000 de 31/7/2000, protegendo-se assim a transparência nas relações entre o Estado e as instituições.

17º-É atribuído ao Estado o poder de fiscalização ou de inspecção do cumprimento dos acordos de cooperação por parte das instituições, Norma XVI- nº 1- h), (com as alterações constantes do Despacho Normativo nº 31/2000 de 31/7/2000) do DN, artgº. 63 nº 5 da CRP, e DL. 119/83.

18°-Todos os programas/projectos citados, FSS, PILAR, PAII e PIDAC, obedecem a rigorosa contratualização e o seu cumprimento está sujeito a fiscalização da respectiva tutela, v. a este propósito Relatório do Tribunal de Contas, Proc. 45/05, AUDIT, Auditoria à Concessão de Apoios às lPSSS­ htp://www.tcontas.pt/pt/actos/rel _auditoria/2006/audit-dgtc-rel035-2006-2s.pdf, se não vejamos;

19º- O mesmo sucede quanto às receitas provenientes do jogo que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa organiza em regime de exclusividade, como determina o artgº. 4° nº 3-s) dos seus Estatutos, DL 235/2008 de 3112, dado que todas essas receitas se encontram afectas a um fim legalmente previsto, como se alcança do DL 56/2006 DE 15/3, alterado pelo DL 44/2011 de 24/3 e 106/2011 de 21/10 e Portarias 327/2012 de 18/10 e 359/2012 de 31/10.

20°-Acresce que constituindo receitas da SCML, «A parte dos resultados líquidos e financeiros de exploração de jogos que for legalmente fixada», artgº. 43º nº 1- a), dos Estatutos, essas receitas necessariamente são englobadas no orçamento desta instituição e a sua afectação sujeita a aprovação da tutela, v. artgº. 44º dos Estatutos.

21°-Verificando-se assim que, o que importa aqui realçar, é que todas as verbas obtidas com os jogos cuja exploração a SCML assegura em regime de exclusividade, se encontram legalmente afectas a um fim determinado e legalmente previsto, o que não sucede com a percentagem atribuída à A. através do artgº. 9° da Lei de Congresso.

22°- Daí que terá de concluir-se como foi decidido na sentença que, o parágrafo único do artgº. 9° da Lei de Congresso de 24 de Junho de 1912, que conferia à Autora o direito a auferir 25% do valor da venda de bilhetes de entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, se encontra tacitamente revogado desde a entrada em vigor Decreto-Lei nº 519- G2/79 e Despachos Normativos emitidos para a sua execução, por incompatibilidade do regime instituído com aquele que decorria da lei de 24 de Junho de 1912- ou seja tendo em conta o quadro legal em que se desenvolvem actualmente as relações entre o Estado/Segurança Social e as IPSS, nas quais se encontra integrada a A.

23°- Pelo que se entende que a sentença não padece de qualquer dos vícios invocados pela A. e deve manter-se nos seus precisos termos.”


E requereu ainda, ao abrigo do disposto no artigo 684º-A do CPC, a ampliação do objeto do recurso quanto à parte dos fundamentos da contestação em que decaiu, formulando a tal respeito o seguinte quadro conclusivo, nos seguintes termos:
1°- Nos termos do disposto no artgº. 684-A do CPC, o R. Estado Português representado pelo Ministério Publico, não se conformando com a douta sentença na parte dos fundamentos da contestação em que decaiu, requereu a ampliação do recurso.

2º- No que respeita à revogação da lei de Congresso foi alegado nos artgs. 85° a 113º da contestação a sua revogação tácita por se entender que o novo bloco legislativo actualmente aplicável que regula as competências para a administração e gestão dos palácios operou a revogação tácita da Lei de Congresso, artgº. 7° nº 2 do CC.

3º- Alegou-se ainda nos artgs. 15° a 28º e 40° a 84° da contestação a inconstitucionalidade da Lei de Congresso, por violação dos princípios da igualdade e do direito à cultura, requerendo-se o conhecimento incidental das inconstitucionalidades alegadas.

4º- No que respeita à primeira das questões colocadas, revogação tácita, como se sabe a Lei de Congresso visou definir a titularidade e afectação dos bens dominiais do Estado, na sequência da implantação da Republica.

5°- Tal como consta do diploma esses bens foram na altura afectos a diversos ministérios, encontrando-se actualmente afectos a organismos tutelados pelo Ministério da Cultura, presentemente pela Secretaria de estado da Cultura, Direcção Geral do Património Cultural, Lei face ao que dispõe a Lei Orgânica do XIX, Governo Constitucional, DL nº 86-A/2011 de 12/7, Lei Orgânica da Presidência do Conselho de Ministros DL126-A/2011, DL115/2012 de 25/5 e Portaria 223/2012 de 24/7, que os administra e assegura a sua gestão financeira, substituindo assim, integralmente, através da legislação referida, as disposições constantes da Lei do Congresso.

6°- Com efeito onde a Lei do Congresso de 1912, dispunha sobre:

A afectação da gestão dos bens, que pertenciam anteriormente à Casa Real, nos artgs. 1 º, 6° 7º, 8º; dispõem hoje os artgs. 14º e 15, do DL 97/2007 de 29/3 e 1° da Portaria 377/2007 de 30/3 e actualmente os artgs. 1º nº2, 8° nº 2 e 10º do DL 115/2012 de 25/5 e Portaria 223/2012 de 24/7.

7º- A administração e gestão financeira dos mesmos, regulamentando as receitas nos artgs. 9°, 10°, 11º, 13º; dispõem hoje os artgs.3° e 11º, do DL 97/2007 de 29/3, 4º e 7° da Portaria 377/2007 de 30/3 e actualmente o artgº. 2º, 6° e 7º do DL 115/2012 de 25/5 e 5º da Portaria 223/2012 de 24/7.

8°- A gestão do pessoal, artgs.3º, 4º,5º ,12º; dispõem hoje os artgs. 4º, 5º 9° do DL 97/2007 de 29/3 e 1º nº 6 da Portaria 377/2007 de 30/3 e actualmente o artgº. 14° do DL 115/2012.

9°- Pelo que, e salvo melhor opinião, ao contrário do referido na douta sentença, nenhuma das disposições da Lei do Congresso tem actualmente qualquer aplicação, visto que todas elas foram sendo substituídas, por outros actos legislativos que entretanto as foram substituindo, quer quanto à administração e gestão, quer quanto às receitas que os mesmos proporcionam decorrentes do pagamento efectuado pelos visitantes dos palácios.

10º- Aliás a própria lei de Congresso admite a sua natureza transitória, ao referir expressamente, no corpo do artgº. 9º que; «Os demais palácios, quintas, jardins, tapadas e cercas, a esta data sem aplicação especial ou enquanto a não tiverem, serão destinados à visita do público mediante taxas e condições a regulamentar

11º- Verificando-se que esses bens têm efectivamente uma aplicação especial, eles constituem e como tal estão classificados, com base na lei actual, património imaterial cultural do Estado Português artgº. 1° nº 5- alíneas r) a v) e l), do Estatuto do Instituto dos Museus e da Conservação, IP, Portaria 377/2007 de 30/3 e actualmente através do DL 115/2012 de 25/5 Portaria nº 223/2012 de 24/7.

12º- Pelo que também neste aspecto se entende que todo este bloco legislativo determina (para além do decidido na douta sentença), quer por incompatibilidade, quer por a nova legislação regular toda a matéria da lei anterior, artgº. 7º nº2 do CC, a revogação tácita da Lei de Congresso.

13º- Quando assim não se entenda.

14°- Quanto à violação dos princípios constitucionais, designadamente do princípio da igualdade verifica-se que o sistema de segurança social configura uma actividade do Estado também vinculada ao princípio da igualdade, Gomes Canotilho, Vital Moreira, obra citada pag. 129.

15º- No caso do pagamento fixado pela lei de Congresso verifica-se que a mesma é completamente omissa que a determinaram, desconhece-se onde são gastas as quantias nela indicada e, qual o dispositivo constitucional e consequente interesse público que tutela a existência da norma em causa.

16º- Assim o disposto na Lei de Congresso viola desde logo o princípio da igualdade a que o interesse público tutelado pelo artgº. 63º da CRP se encontra adstrito, dado que põe em causa;

-o direito das outras instituições de solidariedade social que se relacionam com o Estado no âmbito dos parâmetros contratuais estabelecidos;

-o direito dos restantes cidadãos beneficiários da segurança social, que recebem os seus benefícios no âmbito do quadro legal estabelecido.

- o direito de todos os outros cidadãos contribuintes da segurança social que impõe a igualização e transparência de todas as situações de contratualização entre o Estado e as instituições no âmbito da prossecução das tarefas da segurança social.

17°- Pelo que se conclui que o normativo em causa Lei de Congresso, viola o princípio da igualdade consagrado no artgº. 13º da CRP, na vertente da promoção do direito à segurança social, previsto nos artgs. 9º-d), 63° e 81º- a) da Lei Fundamental.

18º- Quanto à violação do princípio do direito à cultura, previsto no artgº. 73° nº 3 da CRP, verifica-se que a fruição e criação culturais garantidas pelo artgº. 73º da CRP são finalidades prosseguidas pelas entidades públicas competentes, sendo certo que os palácios da Pena e Sintra fazem parte do património imaterial do estado Português, integrados na propriedade do Estado.

19°- Pelo que a atribuição da verba em causa à A. para além da violação dos precitos constitucionais já apontados, princípio da igualdade, viola o direito à democratização da cultura, consagrado no artgº. 73° nº 3 na medida em que a verba concedida pela Lei de Congresso, tem por base receitas pagas pelos visitantes dos palácios, verificando-se que incumbe ao Estado a gestão e preservação desses palácios, actividade esta que se insere na promoção da democratização da cultura pela fruição cultural que estes representam.

20º- Ora da verba despendida não resulta qualquer contraprestação em bens ou serviços que revertam para a fruição cultural dos cidadãos, desconhecendo-se qualquer outra afectação que como se viu não se toma possível sindicar.

21°- Conclui-se assim que o normativo em causa, Lei do Congresso, viola o princípio constitucional do Estado de Direito Democrático, consagrado no artgº. 2°, na vertente da promoção do direito à cultura e da valorização do património cultural do povo português, artgº. 9º -d) e e) e artgº. 73º todos da CRP.

22°- Verifica-se assim que a norma em causa, na sua globalidade, artgº. 9º da Lei do Congresso, constitui lei ordinária e encontra-se afectada do vício de inconstitucionalidade superveniente.

23º- Inconstitucionalidade essa que o tribunal deve apreciar, como lhe impõe o artgº. 204º da CRP, considerando tal norma inconstitucional e consequentemente recusar-se a aplicar a Lei do Congresso que confere à Santa Casa da Misericórdia de Sintra 25% das receitas das entradas, absolvendo assim o Estado do pedido formulado pela A..

24º- Assim deve o tribunal ad quem também nesta vertente, se for caso disso, absolver o R. Estado Português do pedido formulado pela A. conhecendo incidentalmente da inconstitucionalidade da Lei do Congresso de 1912, suprindo a omissão da 1ª instância.


A autora-recorrente, respondendo ao pedido de ampliação do objeto do recurso, pugnou em primeira linha pela sua inadmissibilidade, e em segunda linha pela sua improcedência, terminando, a final, com o seguinte quadro conclusivo:
1. Deve improceder totalmente a argumentação perpetrada pelo Recorrido na presente sede, porquanto, ao contrário do que é defendido, dos diplomas e das disposições legais invocadas, não é possível extrair a incompatibilidade da Lei do Congresso de 24 de Junho de 1912 com o bloco legal vigente.

2. Com efeito, os artigos 3.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 97/2007, de 29 de Março e os artigos 4.º e 7.º da Portaria n.º 377/2007, de 30 de Julho, bem como os atuais artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 115/2012, de 25 de Maio e artigo 5.º da Portaria n.º 223/2012, de 24 de Julho, apenas estabelecem as atribuições e as competências das entidades às quais se encontra acometida a administração e a gestão do património cultural.

3. Nessa medida, é manifestamente impossível concluir, por via da análise dos preceitos invocados, a revogação tácita da Lei do Congresso de 24 de Junho de 1912, não merecendo qualquer censura o julgamento que, quanto a estes argumentos, foi produzido pela douta sentença recorrida.

4. Por outro lado, não se tendo verificado o decaimento quanto ao conhecimento incidental da inconstitucionalidade da Lei do Congresso de 24 de Junho de 1912, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e do direito à cultura, mas sim a omissão de pronúncia quanto a este aspeto, deveria o Recorrido, nos termos do artigo 684.º-A do CPC, ter arguido expressamente a nulidade do aresto que, nesta parte, é colocado em crise.

5. Ao não proceder à arguição da nulidade da sentença recorrida, não há lugar à pretendida ampliação do âmbito do recurso quanto a este fundamento, devendo ter-se por não escrita toda a matéria tratada no capítulo II do articulado do Recorrido.

*
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.
*

II. DA DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO/das questões a decidir

Explicite-se, antes do mais, que na situação dos autos as normas do Código de Processo Civil relativas a recursos, supletivamente aplicáveis nos tribunais administrativos nos termos dos artigos 1º e 140º do CPTA, que aqui se deve atender são as constantes do CPC antigo, na versão anterior à que lhe foi dada pelo DL. nº 303/2007, de 24 de Agosto, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 11º do DL. nº 303/2007, de 24 de Agosto (que então aprovou o novo regime de recursos e 7º nº 1), a contrário, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (que aprovou o CPC novo), atendendo a ação foi instaurada antes de 01/01/2008 e a sentença recorrida proferida antes de 01/09/2013.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 684º e 690º do CPC antigo, na versão ao nerior ao DL. nº 303/2007, de 24 de Agosto, ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA.
No caso, em face dos termos em que foram enunciadas pela recorrente as conclusões de recurso, a questão essencial a decidir é a de saber se a sentença recorrida, ao julgar improcedente o pedido formulado pela autora SANTA CASA DA MISERICÓRDIDA DE … de reconhecimento do direito a receber do ESTADO PORTUGUÊS, ao abrigo do artigo 9º da Lei nº 24 de Junho de 2012, publicada no Diário do Governo nº 150º, de 28 de Junho de 1912 a transferência de 25% sobre o valor proveniente das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, com fundamento em que aquele normativo foi tacitamente revogado com a entrada em vigor do DL. nº 519-G2/79, de 29 de dezembro, incorreu em erro de julgamento, em termos que a decisão recorrida deva ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a ação.
Importará ainda, caso mereça provimento o recurso da recorrente SANTA CASA DA MIOSERICÓRDIA DE…, e se a tanto nada obstar, que apreciar e decidir o objeto ampliado do recurso a título subsidiário pelo recorrido ESTADO PORTUGUÊS, ao abrigo do artigo 684º-A do CPC.

*

III. FUNDAMENTAÇÃO

A – De facto

O Tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade, no seguintes termos:
A) A Autora auferiu, desde 1912, 25% das receitas resultantes da venda de bilhetes de entrada nos Palácios de Sintra e da Pena – acordo.

B) Em 15.02.2000, o IPPAR, na pessoa do seu Presidente, e em resposta ao ofício nº 123 da Autora, notificou-a nos seguintes termos:

«Reafirmo (…) de que ordenei a suspensão dos pagamentos de 25% das receitas dos Palácios da pena e de Sintra à Misericórdia de Sintra até que o Governo se pronuncie sobre a legalidade atual de tais pagamentos e sobre o modo como têm vindo a ser processados.
(…) tal decisão assentou em critérios de objetiva e estrita legalidade orçamental, de que sou directamente responsável enquanto Presidente do organismo que tem a seu cargo a gestão dos Palácios e a arrecadação das respectivas receitas.
Mais informo que foi elaborado um parecer jurídico sobre esta matéria, que submeti, no passado dia 2/12/99, à decisão superior de Sua Excelência o Ministro da Cultura. (…)» – cfr. doc. 3 junto com a PI.
C) A Autora dirigiu ao Presidente do IPPAR, nos termos do disposto no art. 31º da LPTA, um pedido de passagem de certidão dos fundamentos da suspensão dos pagamentos de 25% das receitas dos Palácios da Pena e de Sintra – cfr. doc. 4 junto com a PI, que aqui se dá por reproduzido.

D) Na sequência do pedido que antecede o Presidente do IPPAR remeteu ao Provedor da Santa Casa da Misericórdia de …o Parecer nº165/GAB.PRES/99, de 25.11.1999, sobre o assunto “Receitas dos Palácios de Sintra e da Pena” – cfr. doc. 5 junto com a PI, que aqui se dá por reproduzido.

E) Por ofício de 29.02.2000 do Gabinete do Ministro da Cultura, foi comunicado à Autora que «Na sequência das orientações transmitidas por Suas Excelências os Ministros do Trabalho e da Solidariedade e da Cultura, comunico a V. Exa. que o Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR) continuará a assegurar, até junho do corrente ano, a entrega à Santa Casa da Misericórdia de … 25% do valor das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, por forma a permitir que esse Ministério proceda no segundo semestre ao enquadramento daquele encargo na sua esfera de atribuições e competências» – cfr. doc. 8 junto com a PI.

F) Em 20.03.2000 a Autora apresentou ao Ministro da Cultura um requerimento do qual se retira, o seguinte:

«1. A ora Requerente aufere, desde 1912 e a título legal, 25% das receitas resultantes da venda de bilhetes dos Palácios Nacional de Sintra e da Pena.
2. Recentemente, (…) tal direito foi posto em causa pelo IPPAR, sendo que, em função do pedido de certidão, tomou a mesma conhecimento de um parecer jurídico que recaiu sobre este assunto, parecer esse identificado com o nº 165/GAB.PRES/99.
3. Igualmente, e em simultâneo, foi a ora requerente notificada de um despacho da Direção do IPPAR, datado de 30 de novembro de 1999, no qual se pedia ao Governo pronúncia e orientação sobre o assunto em causa.
4. Assim, nos termos do art. 61º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo, requer-se a V. Exa. Se digne mandar passar certidão de qualquer ato ou tomada de posição do Governo sobre a matéria, como peticionado pelo mencionado despacho, ou, caso não exista qualquer ato ou pronúncia, certidão da respetiva inexistência.» – cfr. doc. 6 junto com a PI.

G) Em 28.03.2000 a Autora apresentou, perante o Ministro da Cultura, recurso hierárquico do ato do Presidente do IPPAR identificado em B), invocando, no essencial, a vigência da Lei de 1912 ao abrigo da qual foram consignadas à Santa Casa da Misericórdia de …25% das receitas das entradas nos Palácios da Pena e de Sintra, bem como a preterição de direito de audiência prévia e a falta de fundamentação do ato, pedindo, a final, a revogação do ato – cfr. doc. 7 junto com a PI.

H) Em 15.11.2000 o Ministério da Cultura remeteu ao Provedor da Santa Casa da Misericórdia de … um ofício subordinado ao assunto “Entrega à Santa Casa da Misericórdia de … de 25% do valor das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena”, com o seguinte teor:

«1. Por despacho do Senhor Secretário de Estado do Orçamento foi homologado o parecer nº 54/2000 do Gabinete Jurídico e do Contencioso do Ministério das Finanças, o qual conclui que, “por contrariar as disposições constitucionais e o direito ordinário citado, a Lei de 1912 não pode manter-se em vigor, nos termos do art. 290º nº 1 da CRP” e que “os apoios do Estado às IPSS só podem ser concedidos através de acordos nos termos do art. 4º do Decreto-Lei nº 119/83”.
2. Assim sendo, não há base legal para que o Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR) continue a transferir 25% do valor das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena para a Misericórdia de …. (…)» – cfr. doc. 9 junto com a PI.

I) Em 16.01.2001 a Autora interpôs, junto do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho a que se refere a alínea que antecede – cfr. doc. 10 junto com a PI.

J) No âmbito da ação a que se refere a alínea que antecede a Autora foi notificada para se pronunciar sobre a exceção de irrecorribilidade do ato suscitada pelo Magistrado do Ministério Público – cfr. doc. 11 junto com a PI.

K) Em 15.05.2001 a Autora interpôs, junto do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação do ato do Ministro da Cultura de indeferimento tácito do recurso hierárquico a que se refere a al. G) do probatório – cfr. doc. 12 junto com a PI.

L) Por Acórdão de 12.07.2001, proferido no processo a que se refere a al. I), o Supremo Tribunal Administrativo decidiu o seguinte: «Pelo exposto, procedendo a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, acordam em rejeitar o presente recurso contencioso, por ilegalidade na sua interposição, ao abrigo do disposto no art. 57º, parágrafo 4 do regulamento do Supremo Tribunal Administrativo.» – cfr. doc. 13 junto com a PI.

M) Relativamente à decisão que antecede a Autora recorreu para o Pleno de Secção, que proferiu Acórdão em 03.07.2002, ordenando a baixa dos autos para ampliação da matéria de facto – cfr. doc. 14 junto com a PI.

N) Em 16.02.2006 a Autora requereu ao Presidente do IPPAR passagem de certidão nos termos que, em síntese, se extraem:

«(…) Se digne ordenar a passagem de certidão do ato que determinou a efetiva suspensão do pagamento à ora requerente, de 25% sobre as receitas provenientes dos Palácios de Sintra e da Pena para a ora requerente;
E ainda, caso assim não seja possível, se digne ordenar a passagem de certidão que ateste a inexistência do ato que determinou a suspensão do pagamento à Santa Casa da Misericórdia de …, de 25% sobre as receitas provenientes dos Palácios de Sintra e da Pena» – cfr. doc. 15 junto com a PI.

O) Em 23.03.2006 a Autora apresentou, junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, um pedido de intimação do IPPAR para prestação de informações e passagem de certidão, tendo por base o requerimento mencionado na alínea que antecede – cfr. doc. 16 junto com a PI.

P) Em 15.05.2006, no âmbito do processo mencionado em O), foi proferida sentença que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide – cfr. doc. 17 junto com a PI.

Q) A presente ação foi remetida ao Tribunal em 02.05.2007 – cfr. comprovativo do registo postal no rosto da petição inicial.

R) Em 09.06.2007 foi extraída certidão por funcionário deste Tribunal, da qual consta que «nesta Procuradoria da República do Tribunal Administrativo e Fiscal e Sintra, se encontra pendente P.A. nº 18/2007-C-AC, com vista a contestar e acompanhar a Ação Administrativa Comum sob a forma ordinária com o nº de processo 1343/04.0BESNT, em que são partes: Autore(es): Santa Casa da Misericórdia de… / Réu(s): Estado Português» – cfr. doc. 1 junto com a contestação.

S) Da certidão que antecede consta Nota do Gabinete do Ministro, do Ministério da Cultura, da qual se retira: «(…) Apesar de a lei de 1912 não ter sido revogada expressamente podemos considerar que a mesma se encontra tacitamente revogada quer pela Lei Orgânica do IPPAR quer pela Lei de Enquadramento Orçamental. (…) Considerando, por um lado, que se nos afigura que a afetação de 25% do valor das entradas nos Palácios de Sintra à Santa Casa da Misericórdia viola as regras de enquadramento orçamental e, por outro lado, a importância desta verba para a Santa Casa da Misericórdia propomos que esta questão seja analisada pelo Ministro do Trabalho e da Solidariedade, entidade tutelar das IPSS; podendo a sua resolução passar pela atribuição de um apoio financeiro de valor idêntico ao recebido até agora das receitas dos Palácios» – cfr. doc. 1 junto com a contestação.


*

B – De direito

1. Da decisão recorrida
Pela sentença recorrida, o Tribunal a quo julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito da autora a receber a transferência de 25% sobre o valor proveniente das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena ao abrigo do artigo 9º da Lei nº 24 de Junho de 2012, publicada do Diário do Governo nº 150º, de 28 de Junho de 1912, ali prevista. Decisão que fundou na circunstância, que julgou verificada, de aquele normativo ter sido tacitamente revogado com a entrada em vigor do DL nº 519-G2/79, de 29 de dezembro, que aprovou o Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social, e dos Despachos Normativos emitidos para a sua execução, por incompatibilidade do regime com ele instituído com aquele que decorria da Lei de 24 de junho de 1912.
~
2. Da tese da recorrente
Pugna a recorrente pela revogação da sentença recorrida, defendendo que diferentemente do que nela foi entendido o regime geral introduzido pelo DL. nº 512-G2/79, de 29 de Dezembro não operou a revogação tácita do artigo 9º da Lei de 24 de Junho de 1912, por não expressar, nos termos exigidos pelo nº 3 do artigo 7º do Código Civil, a intenção inequívoca de proceder a essa revogação e por ter sido inequívoca a intenção do legislador em não afetar os regimes especiais vigentes à época, para as instituições particulares de solidariedade social abrangidas pelo novo regime geral. Sustenta também que a sentença recorrida errou ao considerar que a vigência da norma da Lei do Congresso da República de 24 de Junho de 1912 viola o princípio da igualdade, ínsito na Constituição da República Portuguesa quer os apoios concedidos às instituições particulares de solidariedade social poderem ser concedidos por outras vias que não apenas os acordos de cooperação instituídos pelo Decreto-Lei n.º 512-G2/79, de 29 de Dezembro.
~
3. Da análise e apreciação do recurso
3.1 Do enquadramento fáctico-jurídico
Emerge não só como útil e adequado, mas também como necessário, que, antes de nos debruçarmos especificamente sobre o concreto objeto do presente recurso, atentemos na circunstância que motivou o dissídio e justificou que a autora Santa Casa da Misericórdia de … viesse a instaurar, em 02/05/2007, a presente ação visando o reconhecimento do direito, de que se arroga, a receber do ESTADO PORTUGUÊS, ao abrigo do artigo 9º da Lei nº 24 de Junho de 2012, publicada no Diário do Governo nº 150º, de 28 de Junho de 1912 a transferência de 25% sobre o valor proveniente das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena ali prevista, e bem assim nos desenlaces processuais já ocorridos nesta ação, que condicionarão a decisão final.
Vejamos, então.
Pela Lei do Congresso da República de 24 de junho de 1912, publicada no Diário do Governo nº 150º, de 28 de Junho de 1912 foi estabelecido, entre o demais, que “…a guarda, conservação e administração dos móveis e imóveis dos extintos paços riais”, passava a ficar a cargo do Ministério das Finanças, por intermediação da Direção Geral da Fazenda Pública (artigo 1º), especificando-se ficarem “…pertencendo à Fazenda Nacional e portanto abrangidos nas disposições do artigo 1º, os Palácios da Ajuda, de Belém, de Cintra, de Mafra, das Necessidades, da Pena e de Queluz” (artigo 6º). E instituído simultaneamente, quanto a outros imóveis ou a parte daqueles, a sua afetação a outros ministérios (cfr. artigo 7º). Dispondo especificamente no seu artigo 9º o seguinte:
Os demais palácios, quintas, jardins, tapadas e cercas, a esta data sem aplicação especial e enquanto não a tiverem, serão destinados à visita do público mediante taxas e condições a regulamentar.
§ único. A taxa a cobrar nunca será inferior a 100 réis, excepto ao domingo e dias feriados, em que a entrada será gratuita.
O Governo determinará, em regulamentos adequados, as taxas a cobrar por quaisquer distracções que dentro das propriedades do Estado se estabeleçam ou que estejam estabelecidas. Do rendimento da taxa cobrada nas propriedades do Estado, em Cintra, 25 por cento serão destinados à Misericórdia de Cintra.
São isentos da taxa de entrada todos os alunos de quaisquer escolas que provem a sua identidade escolar.

E no seu artigo 10º que “a receita desta proveniência, bem como a de quaisquer arrendamentos de imóveis não compreendidos na aplicação fixada nos artigos anteriores, a de venda de frutos ou ainda outras de qualquer proveniência, constituirão receita do Estado”.
A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE …. vinha, efetivamente, recebendo do ESTADO PORTUGUÊS os 25% das receitas das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena nos termos previstos naquele artigo 9º Lei do Congresso da República de 24 de junho de 1912.
Porém, no ano de 1999 o Presidente do INSTITUTO PORTUGUÊS DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO (IPPAR), pretendendo «apurar a justeza e legalidade» daquele procedimento à luz do quadro orgânico e legislativo então em vigor, solicitou aos respetivos serviços a emissão de parecer sobre o assunto.
Nesse contexto foi emitido pelo Consultor Jurídico do IPPAR o Parecer nº 165/GB.PRES/99 datado de 25/11/1999 (junto sob Doc. nº 5 junto com a PI e referido em D) do probatório) dirigido ao respetivo Presidente, no qual se concluiu o seguinte:
«(…)
Importa alterar este privilégio, atualmente anacrónico, violador da especialização dos sectores da Administração Pública e contrário às regras orçamentais.
A Direção do IPPAR deve alertar a respetiva tutela para a necessária clarificação, tanto mais que, nos termos da lei, responde civil e criminalmente pelos atos e omissões que pratique no âmbito do exercício das suas funções de execução orçamental (artigo 22º da Lei nº 6/91).
Deve ainda, em nossa opinião, suspender de imediato os pagamentos à Misericórdia de Sintra até que os responsáveis governamentais de pronunciem.
O Governo, eventualmente apoiado em opinião mais abalizada em matéria da legalidade de despesas públicas, poderá até entender que a disposição está tacitamente revogada. Admitimos como possível a revogação tácita, já que mais não seja em face das disposições legais específicas da afetação das receitas dos organismos dependentes ao IPPAR e das normas gerais sobre enquadramento orçamental.
Seria, no entanto, temerário que uma tal conclusão partisse do próprio Instituto e que fosse por ele imediatamente assumida.
Importa ter presente que não estamos a discutir tostões e que está em causa um procedimento, que se vem mantendo por inércia, beneficiando uma entidade terceira que, como vimos, não é totalmente alheia à supervisão do Governo.
Não compete, de resto, ao IPPAR tomar medidas neste domínio.
Seja qual for a solução, importa adotá-la.
Eis o que se oferece dizer no âmbito da consulta que nos foi pedida e se leva à consideração do Senhor Presidente do Instituto.»

Apoiando-se neste Parecer, o Presidente do IPPAR determinou em 30/11/1999 a suspensão, a partir de Janeiro de 2000, do pagamento de 25% das receitas dos Palácios da Pena e de Sintra à SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE SINTRA até que os responsáveis governamentais se pronunciassem e tomasse medidas a este respeito, do que aquela foi notificada em 14/02/200 por ofício nº 2340 do Presidente do IPPAR.
No entanto, após orientação do Ministro da Cultura fornecida ao IPPAR nesse sentido, o Diretor do IPPAR determinou, por despacho nº 18/2000/PRES, de 8/03/2000, a continuação do pagamento à SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE …. dos 25% do valor das aludidas receitas, mas apenas até Junho desse ano. Tendo concomitantemente sido solicitado parecer ao Gabinete Jurídico e do Contencioso do Ministério das Finanças com o objetivo de apurar se a norma do artigo 9º da Lei do Congresso da República de 1912, que determinava que 25% do rendimento da taxa de entrada nas propriedades do Estado em Sintra fosse destinado à Misericórdia de … ainda estaria em vigor, e se a entrega de tais receitas à Misericórdia não violaria disposições em vigor sobre o enquadramento orçamental.
Foi, então, emitido por aquele Gabinete Jurídico e do Contencioso do Ministério das Finanças o Parecer nº 54/2000, datado de 05/07/2000, com o assunto «IPPAR. Entrega de parte das receitas dos Palácios de Sintra e da Pena à Misericórdia de Sintra», o qual foi homologado por despacho do Secretário de Estado do Orçamento de 24/07/2000 e comunicado aos Ministros do Trabalho e da Solidariedade Social e da Cultura. Parecer em que concluiu o seguinte:
«(…)Concluindo:
A Lei da República de 1912 que permitiu transferir 25% das receitas das entradas dos Palácios de Sintra e da Pena para a Misericórdia local é direito ordinário anterior à Constituição de 1976.

Os arts. 105º e 108º da CRP e a Lei do enquadramento orçamental (Lei 6/91) impõem que todas as receitas e despesas sejam levadas ao Orçamento, que é unitário de forma a impedir a existência de dotações e de fundos secretos.
A Santa Casa da Misericórdia de Sintra é uma instituição Privada de Solidariedade Social.

Os apoios do Estado às IPSS só podem ser concedidos através de acordos nos termos do art. 4º do Decreto-lei n° 119/83.
A fruição e criação culturais garantida pela Constituição são fins prosseguidos pelo IPPAR (art. 78º da CRP e Decreto-Lei nº 120/97).
Por contrariar as disposições constitucionais e o direito ordinário citado, a Lei de 1912 não pode manter-se em vigor, nos termos do art. 290º n° 1 da CRP».

Neste contexto, muito embora na sequência das orientações transmitidas pelos Ministros do Trabalho e da Solidariedade e da Cultura em Fevereiro de 2000 ao IPPAR este tenha continuado a transferir para a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE … 25% do valor das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, essas transferências apenas ocorreram até ao mês de Junho do ano de 2000, inclusive, tendo deixado de se verificar a partir daí.
A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE … recorreu então aos Tribunais, o que fez quer através do Recurso Contencioso de Anulação que instaurou em 16/01/2001 junto do Supremo Tribunal Administrativo visando a anulação do despacho do Secretário de Estado do Orçamento que homologou o Parecer nº 54/2000 do Gabinete Jurídico e do Contencioso do Ministério das Finanças (Proc. nº 047123), quer através do Recurso Contencioso de Anulação que instaurou em 15/05/2001 (Proc. nº 47688) do indeferimento tácito do recurso hierárquico que havia interposto para o MINISTRO DA CULTURA da decisão tomada pelo Presidente do IPPAR em 30/11/1999 e notificada à SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE … em 14/02/2000, de suspender a partir de Janeiro de 2000 o pagamento dos 25% das receitas dos Palácios da Pena e de Sintra.
Todavia, ambos aqueles recursos contenciosos de anulação foram rejeitados pelo STA ao abrigo do disposto no artigo 57° do RSTA, por ilegal interposição.
Seja, no que se refere ao primeiro processo (Proc. nº 47123), com fundamento em irrecorribilidade do ato impugnado, nos termos do decidido no Acórdão de 06/12/2005 do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA, disponível in, www.dgsi.pt/jsta (consultável no seguinte link: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/7859b96958a5a183802570ed003ec5c7?OpenDocument&ExpandSection=1), por se ter entendido ali que “…o Ministro da Cultura, primeiro, e o Secretário de Estado do Orçamento, depois, com a homologação do parecer nº 54/2000 do Gabinete Jurídico e do Contencioso do Ministério das Finanças, não definiram, qualquer deles nem provisória, nem definitivamente, a situação jurídica da recorrente” e que assim, a “…homologação, pelo Secretário de Estado do Orçamento do parecer nº 54/2000 não é fonte de lesividade para a recorrente e, por consequência, não é contenciosamente recorrível”.
Seja, no que se refere ao segundo processo (Proc. nº 47688), com fundamento de falta de objeto, nos termos do decidido no Acórdão do STA de 03/07/2007, do STA, disponível in, www.dgsi.pt/jsta (consultável no seguinte link: http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0c76935e555a5533802573150031d4bc?OpenDocument&ExpandSection=1&Highlight=0,25%25,receitas,sintra#_Section1), decorrente da circunstância, ali considerada, de não haver “…entre o Presidente do IPPAR e o Ministro da Cultura qualquer relação de hierarquia pelo que não cabia recurso hierárquico da sua decisão de suspender o pagamento à Recorrente dos 25% das receitas em causa” e de se retirar da Lei Orgânica do IPPAR que “…a tutela por parte do Ministro da Cultura que recai sobre este organismo não atinge o sector em causa”, em termos que “…não havia por parte do Ministro o dever legal de decidir, não se podendo presumir o indeferimento tácito impugnado”.
A intervenção do PROVEDOR DE JUSTIÇA foi também despoletada. Tendo este emitido a recomendação que dirigiu ao MINISTRO DA CULTURA por ofício de 19/04/2002 - Proc. R-4355/00 (A6) – com o assunto «Afetação à Santa Casa da Misericórdia de Sintra de 25% do total das receitas provenientes da venda de bilhetes de entrada de visitantes nos Palácios de Sintra e da Pena» (disponível in, http://www.provedor-jus.pt/site/public/archive/doc/SantaCasa_Sintra.pdf), com o seguinte o teor:
1. O assunto acima mencionado, que é objeto da presente missiva, é já sobejamente conhecido dos serviços desse Ministério. Atendendo, no entanto à recente alteração governativa e de modo a facilitar uma análise mais sistematizada da exposição que dirijo nesta data a Vossa Excelência, procurarei de seguida explicitar de forma sumária a questão em causa, bem como as decisões que o Governo tomou no âmbito e para resolução da mesma.

2. Assim, ao abrigo de uma Lei do Congresso da República de 1912, publicada no Diário do Governo n.º 150, de 28 de Junho daquele ano - a mesma lei que então fez depender do Ministério das Finanças a guarda, conservação e administração dos palácios nacionais - vinha sendo, desde aquela data e até Junho de 2000, anualmente entregue à Santa Casa da Misericórdia de … o montante correspondente a 25% do total das receitas provenientes da venda de bilhetes de entrada de visitantes nos Palácios de Sintra e da Pena.

O recebimento da quantia indicada resultava de determinação expressa da mencionada Lei que, no seu art.º 9.º, dita o seguinte: "Os demais palácios (que não o de Belém, referido no preceito anterior), quintas, jardins, tapadas e cêrcas, a esta data sem aplicação especial ou enquanto não a tiverem, serão destinados à visita do público mediante taxas e condições a regulamentar". E mais à frente: "Do rendimento da taxa cobrada nas propriedades do Estado, em Cintra, 25 por cento serão destinados à Misericórdia de …" (sublinhado meu).

3. A entrega à Santa Casa da Misericórdia de … de uma percentagem sobre o valor resultante da venda de bilhetes nos ditos palácios aconteceu desde então até ao momento em que a Direcção do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) questionou a legalidade da norma em apreço e a oportunidade e a conveniência da solução aí consignada (por exemplo, no ano de 1999 foram entregues à Santa Casa da Misericórdia, com base na mencionada prescrição legal e segundo dados fornecidos por aquele Instituto, quase 49 milhões de escudos), determinando, por despacho de 30 de Novembro de 1999, a suspensão dos pagamentos em causa.

Tal suspensão, só efectivada em Julho de 2000, ocorreu após o Ministério do Trabalho e da Solidariedade - a Santa Casa da Misericórdia de… , como instituição particular de solidariedade social que é, tem a sua actividade regulada pelas disposições constantes do Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, e é consequentemente tutelada por aquele Ministério - ter enquadrado no âmbito das suas atribuições o apoio financeiro do Estado à dita Irmandade em termos a que se fará referência mais à frente.

A situação descrita levou a que a Santa Casa da Misericórdia de Sintra recorresse (em momento anterior à referida solução de reenquadramento do apoio financeiro concedido pelo Estado à Instituição) designadamente ao Provedor de Justiça, com o objetivo de ver reposta a situação anterior.

No decorrer da instrução do presente processo foram então encetados contactos com a Direção do IPPAR, com o Ministério da Cultura e com o Ministério do Trabalho e da Solidariedade, tendo este Órgão do Estado tido acesso aos pareceres, também do Ministério das Finanças, que terão fundamentado a decisão do Governo de suspensão dos pagamentos efetivados ao abrigo da citada Lei da Primeira República.

4. Não é a decisão em si de suspensão dos ditos pagamentos à Santa Casa da Misericórdia de … que se põe em causa no presente documento. Poderá ser correta e é decerto legítima, em si mesma, tal decisão. Sustenta no entanto o Instituto a referida decisão numa interpretação da legislação aplicável que não pode deixar de considerar-se dúbia - e o próprio IPPAR assim o reconheceu - sendo certo que poderia o Governo ter utilizado, no caso concreto, um expediente jurídico que revestisse de maior segurança a decisão tomada.

Também a solução referente ao novo enquadramento de apoio financeiro do Estado à Instituição merece, na minha perspetiva, que dirija a Vossa Excelência os comentários que mais à frente farei a esse propósito.

5. Assim, apoiou a Direção do IPPAR a decisão de suspensão dos pagamentos em apreço numa eventual revogação tácita da norma contida na Lei de 1912, tendo em conta o espírito da Constituição da República Portuguesa, a legislação que atualmente enquadra as Misericórdias (e que aprova o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social), a Lei Orgânica do IPPAR e a Lei de enquadramento orçamental.

No entanto, conforme acima disse, é a própria Direção do Instituto que sublinha as dúvidas resultantes de um tal interpretação da lei, podendo ler-se no Despacho de 30 de Novembro de 1999, que determina a referida suspensão, o seguinte: "(…) Conforme se pode comprovar pela leitura do presente parecer (que fundamentou a decisão) subsistem dúvidas sobre a justeza e a legalidade deste procedimento (..) ". (..) Tudo aponta no sentido de o dispositivo legal de 1912 poder ser considerado como tacitamente revogado (..). (..) É minha convicção que o procedimento atual da retenção e consignação da receita pública a favor de outra entidade viola inequivocamente as mais elementares regras de enquadramento orçamental (..). (..) Assim, considerando as dúvidas suscitadas pela manutenção da prática instituída em 1912 (..) entende a Direção do IPPAR suspender este procedimento (..) até que seja superiormente esclarecida a legalidade do mesmo ( ..) e averiguando se a lei de 1912 está de facto revogada, como se crê" (sublinhados meus).

5. Façamos então uma análise sobre a eventual revogação tácita da norma de 1912 face à legislação pertinente atualmente em vigor - deixando por isso de lado um estudo da mesma reportada ao conjunto da legislação que desde 1912 veio sucessivamente regulamentando a matéria mas já não se encontra em vigor, e perante a qual a mesma Lei da Primeira República poderia ter sido considerada tacitamente revogada.

Após um percurso evolutivo quanto à sua natureza jurídica, as Irmandades da Misericórdia, Misericórdias ou Santas Casas da Misericórdia são hoje explicitamente consideradas pela lei como instituições particulares de solidariedade social e desta feita enquadradas pelo respetivo Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro (cf. designadamente art.ºs 2.º, n.º 1, alínea e), 68.º a 71.º, 95.º e 96.º do Estatuto).

Do regime jurídico em causa e com pertinência para a questão em apreço cumpre salientar o princípio que consubstancia o apoio do Estado às entidades em foco, concretizado em "formas de cooperação a estabelecer mediante acordos"(artº.4.º, n.ºs 1 e 2 do Estatuto; sublinhado meu).

Nada resulta do diploma, incluindo das disposições particularmente dirigidas às organizações religiosas e, dentro destas, às instituições da Igreja Católica, que de alguma forma possa enquadrar a atribuição, por lei, do apoio de que aqui nos ocupamos.

Sendo assim, o montante atribuído pelo IPPAR à Santa Casa da Misericórdia de … apareceria manifestamente desinserido do espírito que preside à legislação que atualmente disciplina as Misericórdias na sua relação com o Estado e muito em particular do mecanismo concreto concebido pelo legislador para a concretização do apoio público prestado àquelas Instituições.

Se é verdade que tal não tolhe a liberdade do legislador, não é menos verdade que normas como a presente surgem agora como anómalas, assistemáticas, em suma, como privilégio.

Atendendo ao regime jurídico consubstanciado no Decreto-Lei n.º 119/83 e globalmente considerado, e à circunstância de o montante especificamente percebido pela Irmandade da Misericórdia de … não ser de forma alguma despiciendo - atrás ficou dito que no ano de 1999 tal quantia ascendeu a perto de 49 mil contos - de o valor em causa tender a crescer de ano para ano, já que o número de visitantes bem como o preço dos bilhetes tenderão naturalmente a elevar-se - e de muitas outras Misericórdias, para não dizer muitas outras instituições particulares de solidariedade social, estarem em condições de receber um subsídio semelhante - pense-se nas instituições com atividade localizada em áreas que abrangem outros palácios nacionais ou em áreas onde se situam por exemplo os monumentos que à semelhança dos palácios nacionais são considerados serviços dependentes do IPPAR e constam do Anexo I à Lei Orgânica deste Instituto - não será abusivo interpretar todo o contexto legislativo em análise no sentido da revogação tácita da norma contida na Lei de 1912.

Tal prescrição legal, provavelmente justificada face à realidade social e institucional existente à data em que foi aprovada, revela-se desajustada do quadro legal, social e institucional atualmente relevante, e desenquadrada do espírito que enforma hoje em dia o reconhecimento, valorização e apoio do Estado às entidades particulares em causa.

Recordando o estipulado no artº 9º, n.º 1, do Código Civil, "a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada".

6. Importa agora ter presentes as regras sobre a cessação da vigência das leis. Desta feita, de acordo com o disposto no art.º 7º, n.º 2, do Código Civil, a incompatibilidade das novas disposições com as regras precedentes gera a revogação tácita destas. Sucede que terá de considerar-se que a norma da legislação de 1912 que para aqui releva possa consubstanciar uma lei especial face designadamente à lei geral que hoje aprova o Estatuto das instituições particulares de solidariedade social. E diz o mesmo dispositivo do Código Civil, no seu n.º 3, que a lei geral não revoga a lei especial, "exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.

Ora, não parece possível descortinar, no quadro legal de que nos ocupamos, uma intenção inequívoca do legislador no sentido da revogação em apreço. Pelo que, a tomar-se a norma de 1912 como "especial" face à legislação que ora regulamenta as instituições particulares de solidariedade social, a conclusão com base na qual, embora com dúvidas, a Direção do IPPAR decidiu como decidiu, estará seriamente comprometida.

É claro que perante o exposto, sempre subsistirá a possibilidade de a norma constante da Lei de 1912 poder ser reputada de inconstitucional, por violação do princípio da igualdade. De facto, conforme já acima adiantado, muitas outras entidades abrangidas pelo regime jurídico do Decreto-Lei n.º 119/83 reuniriam condições para a atribuição de um subsídio semelhante.

Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, "o princípio da igualdade vincula o legislador, tanto quando este reconhece direitos, concede benefícios ou confere prestações estaduais, como quando restringe direitos, impõe encargos ou comina sanções" (in, "Constituição da República Portuguesa Anotada'', 3.ª edição revista, 1993, p. 130). Adiantam ainda, na mesma anotação ao art.º 13.º da Lei Fundamental, que não obstante a proibição de discriminações não significar uma exigência de igualdade absoluta nem a proibição de diferenciações de tratamento, "o que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio". E concluem: "As diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando: (a) se baseiem numa distinção objetiva de situações; (b) não se fundamentem em qualquer dos motivos indicados no n. º 2 (ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social); (c) tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; (d) se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objetivo" (ob. cit., p. 128).

Perante a questão ora levantada, importa considerar a possibilidade de a norma em causa, tendo em perspetiva uma eventual violação do princípio da igualdade, estar ferida de inconstitucionalidade superveniente a partir da entrada em vigor da Constituição atual, ou mesmo ter sido revogada, como alguns autores defendem face ao teor do art.º 293.º, n.º 1, da sua versão originária. Sublinha-se que, conforme explicitam Gomes Canotilho e Vital Moreira em anotação ao atual art.º 290.º da Lei Fundamental, "é em princípio irrelevante que o direito ordinário anterior (à Constituição de 1976) pudesse ou houvesse de ter-se por inconstitucional à face da ordem constitucional anterior à CRP ou da ordem constitucional vigente à data da produção das normas em causa, pois o único juízo que importa é o do seu confronto com a nova Constituição" (ob. cit., p. 1072).

Sucede que a invocação de uma eventual inconstitucionalidade da norma da Lei de 1912 por violação do princípio da igualdade, consignado na Constituição atual em qualquer uma das suas versões, leva-nos à ponderação da justificação, em termos materiais, do beneficio concedido a uma Misericórdia e negado às demais em idênticas condições.

Ora, no presente caso também será defensável considerar como inconstitucional a não adoção de medidas de apoio semelhantes face a quem esteja em situação idêntica. Trata-se de uma questão típica das chamadas omissões relativas, sugerindo o plano da constitucionalidade que se alargue o benefício a todos quantos estejam em situação de igualdade, não o retirando a quem do mesmo já goza.

Face ao exposto, fácil se torna verificar que também a argumentação no sentido de uma alegada inconstitucionalidade da norma de 1912 em apreço não suportará de forma definitiva a decisão do IPPAR.

Ainda que assim não fosse, não será curial que a Administração, substituindo-se aos tribunais, exerça uma espécie de fiscalização da constitucionalidade, em concreto e, muito menos, em abstrato, em termos que não lhe são facultados pela Constituição.

Obrigada à observância do bloco da legalidade, só em situações de inexistência de lei é que será legítima tal desobediência.

9. Situação idêntica ocorre com a invocada violação da Lei Orgânica daquele Instituto.

De facto, de acordo com os dados disponíveis no processo no que toca às atividades prosseguidas pela Santa Casa da Misericórdia de … , não parece afastada a possibilidade de poder aquela entidade beneficiar da concessão de um subsídio, nos termos a que alude o art.º 2º n.º 2, alínea i), do Decreto-Lei n.º 120/97, de 16 de Maio.

Ainda que assim não fosse, ultrapassada a questão da hipotética revogação, nos mesmos moldes acima afirmados quanto à legislação sobre IPSS, não possui a Lei Orgânica do IPPAR qualquer valor reforçado que possa conduzir à invalidade da Lei de 1912.

10. Finalmente, também não terá razão de ser a argumentação expendida a propósito de uma eventual incompatibilidade da norma de 1912 com as regras de enquadramento orçamental, atualmente aprovadas pela Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto.

Ao contrário do que é afirmado num parecer do Gabinete Jurídico e Contencioso do Ministério das Finanças, constante do presente processo, conclui-se da análise dos Orçamentos do IPPAR dos anos de 1999-2000 e 2001 que a rubrica 06.03 do Orçamento da Receita está dotada da totalidade das receitas provenientes das entradas em monumentos afectos ao IPPAR, logo também dos Palácios de Sintra e da Pena, facto que foi aliás confirmado pelo Instituto.

Por outro lado, informou o IPPAR este Órgão do Estado que o pagamento à Santa Casa da Misericórdia de ….. do montante aqui em foco sempre foi contabilizado como operação de tesouraria.

Desta feita - e não obstante poder questionar-se a forma como aparece contabilizado o montante atribuído à Misericórdia de … - não procederão as razões que apontavam para a violação da lei de enquadramento orçamental, designadamente das disposições relativas ao princípio da especificação das receitas e despesas.

No que se refere, por seu turno, ao princípio da não consignação do produto das receitas à cobertura de determinadas despesas, a verdade é que a Lei de enquadramento orçamental (a atual, mas também a anterior) excetua de tal previsão "as receitas que sejam, por razão especial, afetadas a determinadas despesas por expressa estatuição legal ou contratual" (art.º 7º , n.º 2, alínea f), da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto. V. art.º 6.º, n.º 2, da Lei n.º 6/91, de 20 de Fevereiro, hoje revogada por aquela).

Sublinha-se no entanto, que a nova Lei de enquadramento orçamental determina que as normas que consignem certas receitas a determinadas despesas tenham caráter excecional e temporário (artº 7º nº 3).

11. É por tudo o que fica exposto que entendi dirigir a Vossa Excelência o presente ofício.

Sublinho que não me parece incorrecta - pelas razões acima aduzidas a propósito do desenquadramento da solução legal em análise face à actual legislação que enforma as Misericórdias e também da sua eventual desconformidade à Lei Fundamental, por violação do princípio da igualdade - a decisão tomada pelo Governo no sentido da suspensão dos pagamentos que vinham sendo feitos à Irmandade da Misericórdia de …, pagamentos estes que não podem representar para esta instituição um direito adquirido.

Assim sendo, ao invés de ter apoiado a mencionada decisão numa fundamentação jurídica que não pode deixar de entender-se como duvidosa, conforme reconheceu o próprio IPPAR, teria sido preferível, em minha opinião, que o Governo tivesse procedido à expressa revogação da norma contida na Lei de 1912, em nome da certeza e segurança jurídicas tão importantes num Estado de direito.

É o que aqui deixo à consideração de Vossa Excelência.

12. Finalmente, uma palavra, não menos importante, relativamente à solução alternativa encontrada pelo Governo para de alguma forma "compensar" a Santa Casa da Misericórdia de … dos efeitos de tal decisão.

Segundo dados constantes do processo pendente nesta Provedoria de Justiça, terá o então Ministério do Trabalho e da Solidariedade decidido a atribuição à Instituição de um subsídio de reequilíbrio financeiro no valor de 15 milhões de escudos, bem como a celebração, com a mesma entidade, de novos acordos de cooperação e a revisão de outros já existentes.

O enquadramento do apoio financeiro do Estado à Misericórdia em causa no âmbito da legislação que enforma as instituições particulares de solidariedade social terá sido sem dúvida a melhor opção em termos de orientação seguida pelo Executivo.

Importa no entanto ter presente que a Irmandade da Misericórdia de … recebia o apoio financeiro de que nos ocupamos na presente análise há quase noventa anos, pelo que tal verba representaria para a Instituição não só uma mais-valia considerável e considerada para efeitos de planeamento da atividade da mesma, como uma verdadeira almofada financeira, sustentada que era por uma norma legal tão vetusta.

Por outras palavras, a confiança na manutenção dessa receita terá determinado a conceção de iniciativas e a realização de investimentos por parte da Santa Casa que não teriam viabilidade não fosse a possibilidade do financiamento em causa. Muitos dos referidos projetos estarão ainda em fase de concretização, correndo o risco de não resistir ao corte efetuado.

Atento tudo o que fica exposto, permito-me sugerir a Vossa Excelência que uma eventual revogação expressa da norma constante da Lei de 1912 - ou a manutenção da situação atual, isto é, a suspensão dos pagamentos sem revogação expressa da norma - seja acompanhada, caso se verifique a sua necessidade, de medidas de apoio financeiro pontuais, que o Governo poderá e deverá enquadrar no âmbito de competências do Ministério da Segurança Social e do Trabalho, tendo em vista possibilitar um período de transição que permita à Santa Casa da Misericórdia de … reequacionar todos os seus projetos com base na nova realidade.

Tal prolação de norma legislativa poderá verificar-se em diploma próprio ou, o que deixo à consideração de Vossa Excelência, aproveitando procedimento de ordem mais genérica, v. g. em lei orçamental futura ou a respeito de legislação sobre o sector do património cultural edificado pertencente ao Estado.

É considerando a circunstância de o Ministério da Cultura ter centralizado, desde o início, o tratamento da presente questão, que me dirijo a Vossa Excelência, na perspetiva de uma iniciativa no âmbito do Governo com vista à concretização do que acima fica sugerido.

13. Muito agradeço que Vossa Excelência se digne dar-me conta da sequência que entendeu dar ao conteúdo do presente ofício, aproveitando a ocasião para apresentar os meus melhores cumprimentos.»


Essa recomendação foi acolhida pelo MINISTRO DA CULTURA, nos termos vertidos no ofício nº 2016 de 13/05/2002 remetido pelo Gabinete do MINISTRO DA CULTURA ao PROVEDOR DE JUSTIÇA (disponível in, http://www.provedor-jus.pt/site/public/archive/doc/SantaCasaSintra_Resposta-MinCultura.pdf), cujo teor é o seguinte:
«Relativamente ao assunto mencionado em epígrafe e na sequência do ofício enviado por V. Exa. no passado dia 19 de Abril, o qual mereceu a nossa melhor atenção, encarrega-me o Senhor Ministro da Cultura de informar V. Exa. que este Ministério está sensibilizado para a presente questão, tendo acolhido as sugestões então apresentadas, nomeadamente o apelo à emissão pelo Governo de uma norma revogatória do artigo 9° da lei do Congresso da República de 1912, procedimento que se propugna seja acompanhado da celebração pelo Ministério da Segurança Social e do Trabalho de acordos de cooperação com a Santa Casa da Misericórdia de …, no quadro legal decorrente do estatuto das Instituições de Solidariedade Social.

Consciente do cariz político-legislativo, por um lado e do cariz político­ social, por outro, inerente à presente questão, entende, ainda, este Ministério que as medidas acima referidas devem aguardar o contexto político oportuno, o qual não deverá esquecer a necessária articulação com o Ministério da Segurança Social e do Trabalho.»

Sem que todavia haja notícia de subsequentes desenvolvimentos, mormente de tomada de medidas legislativas expressas no sentido da revogação do normativo inserto no referido artigo 9º da mencionada Lei do Congresso de 24 de Julho de 1912.

~
Está assim dilucidado o contexto em que a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra no ano de 2007 a presente ação administrativa comum (Procº nº 530/07.3BESNT) contra o ESTADO PORTUGUÊS visando o reconhecimento do direito a receber do ESTADO PORTUGUÊS, ao abrigo do artigo 9º da Lei do Congresso de 24 de Junho de 2012, publicada do Diário do Governo nº 150º, de 28 de Junho de 1912 a transferência de 25% sobre o valor proveniente das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena ali prevista.
Na sua contestação o ESTADO PORTUGUÊS defendeu não assistir à SANTA CASA DA MISERICÓRDIA o direito a receber ao abrigo daquela indicada norma do artigo 9º da Lei do Congresso de 24 de Junho de 2012, sustentando, entre o demais (grosso modo em linha com o entendimento que havia sido sufragado nos aludidos Pareceres nº 165/GB.PRES/99 do IPPAR e nº 54/2000 do Ministério das Finanças) padecer aquela norma de inconstitucionalidade material (inconstitucionalidade superveniente face à Constituição da República Portuguesa de 1976), seja por violação dos princípios da unidade orçamental (cfr. artigo 105º da CRP) - (vide designadamente artigos 29º a 39º da contestação); seja por violação do princípio da igualdade (cfr. artigo 13º da CRP) e do princípio do Estado de Direito nas vertentes do princípio da constitucionalidade e da promoção dos direitos sociais (cfr. artigos 2º, 3º nº 3, 9º alínea d) e 63º da CRP) - (vide designadamente artigos 56º a 64º da contestação); seja ainda por violação do direito à cultura (cfr. artigos 73º nº 3 e 78º da CRP) e por violação dos princípios constitucionais do Estado de direito democrático na vertente da promoção do direito à cultura e da valorização do património cultural (cfr. artigos 2º, 9º alíneas d) e e) e 73º da CRP) - (vide designadamente artigos 70º a 80º da contestação).
Por sentença (saneador-sentença) de 23/11/2010 (fls. 192 ss.) do Mmº Juiz do Tribunal a quo, então titular do processo, enfrentando aquela argumentação, julgou a ação improcedente, recusando a aplicação do artigo 9º da Lei do Congresso de 24 de Junho de 1912, por inconstitucionalidade superveniente, decorrente dos princípios constitucionais da não consignação, da universalidade, da especificação e da não compensação consignados no artigo 105º da CRP.
Em face do assim decidido foi interposto recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao qual foi concedido provimento por acórdão de 28/09/2011 (fls. 284 ss.) – (Acórdão nº 414/2011 do TC, Proc. nº 164/11, em que foi relator o Juiz Conselheiro Vítor Gomes – consultável in, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110414.html), com juízo de inverificação das apontadas inconstitucionalidades, assente na seguinte fundamentação, que se passa a transcrever:
«(…)A sentença recorrida recusou aplicação ao artigo 9º da Lei do Congresso da República, de 24 de Junho de 1912, por inconstitucionalidade superveniente, decorrente da ofensa dos princípios orçamentais da universalidade, da especificação, da não compensação e da não consignação, que considerou ínsitos no artigo 105.º da Constituição da República Portuguesa e, em consequência, absolveu o Estado do pedido.
Embora seja teoricamente discutível a qualificação dogmática da cessação de vigência do direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição por ser contrário a esta ou aos princípios nela consignados (n.º 2 do artigo 290.º da CRP), não se suscitam hoje dúvidas quanto à configuração dos litígios emergentes como questão de constitucionalidade para efeito da competência do Tribunal Constitucional e do uso dos meios processuais correspondentes.
4. Importa precisar o objecto do recurso. Apesar de na sentença recorrida se afirmar, sem mais, quem é recusada aplicação do artigo 9.º da referida Lei de 24 de Junho de 1912, do Congresso da República, a recusa efectiva (ou declaração de cessação de vigência, nos termos do n.º 2 do artigo 290.º da Constituição), não abrange o inteiro teor do citado artigo 9.º, mas somente o último travessão do respectivo § único que dispõe que “do rendimento da taxa cobrada nas propriedades do Estado, em Cintra, 25 por cento serão destinados à Misericórdia de Cintra”. Segmento este cujo exacto alcance não cabe ao Tribunal determinar, tomando-a, para efeitos do confronto com a Constituição no âmbito do presente processo, com o sentido que a decisão recorrida lhe atribuiu, designadamente, na parte em que identifica a receita de que uma parte caberia à Misericórdia como respeitando aos proventos resultantes da venda de bilhetes de entrada nos Palácios Nacionais de Sintra e da Pena.
5. Pela Lei de 24 de Junho de 1912, publicada no Diário do Governo, n.º 150, de 28 de Junho de 1912, o Congresso da República extinguiu a “Superintendência dos Paços” e transferiu para o Ministério das Finanças a guarda e administração dos móveis e imóveis dos extintos paços reais, tendo disposto, além do mais, o seguinte:
“Art.º 1.º A guarda, conservação e administração dos móveis e imóveis dos extintos paços reais, ficam a cargo do Ministério das Finanças, por intermédio da Direcção Geral da Fazenda Pública;
(...)
Art.º 6.º. Ficam pertencendo à Fazenda Nacional, e, portanto, abrangidos nas disposições do artigo 1.º os Palácios da Ajuda, de Belém, de Cintra, de Mafra, das Necessidades, da Pena e de Queluz.
(...)
Art.º 9.º Os demais palácios, quintas, jardins, tapadas e cercas, a esta data sem aplicação especial ou enquanto não a tiverem, serão destinados à visita do público mediante taxas e condições a regulamentar.
§ único. A taxa a cobrar nunca será inferior a 100 réis, excepto aos domingos e dias feriados, em que a entrada será gratuita.
O Governo determinará, em regulamentos adequados, as taxas a cobrar por quaisquer distracções que dentro das propriedades do Estado se estabeleçam ou já estejam estabelecidas. Do rendimento da taxa cobrada nas propriedades do Estado, em Cintra, 25 por cento serão destinados à Misericórdia de….
Art. 10.º A receita desta proveniência, bem como a de quaisquer arrendamentos de imóveis não compreendidos na aplicação fixada nos artigos anteriores, a da venda de frutos ou ainda outras de qualquer proveniência, constituirão receitas do Estado”
A Santa Casa da Misericórdia de … considera que a norma da parte final do § único do artigo 9.º da referida Lei continua em vigor e pretende que lhe seja judicialmente reconhecido o direito correspondente, que afirma ter sido desde sempre respeitado, antes e depois da entrada em vigor da Constituição de 1976, até que em 2000 a Administração decidiu interromper os pagamentos. A sentença recorrida não lhe reconheceu este direito por entender que a invocada norma cessou vigência nos termos do n.º 2 do artigo 290.º da Constituição por ser contrária aos princípios constitucionais da não consignação, da universalidade, da especificação e da não compensação, que considerou ínsitos no artigo 105.º da Constituição.
Tendo presente que a decisão recorrida deixou de apreciar quaisquer outras questões face à resposta que, com o exclusivo fundamento em desconformidade com o artigo 105.º da Constituição, encontrou para a questão de saber se o título atributivo da receita reclamada pela Autora se mantém vigente e que o recurso é interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas compete decidir se a norma em causa viola qualquer dos princípios constitucionais que a sentença recorrida considerou ínsitos no artigo 105.º da Constituição, designadamente, dos princípios (i) da universalidade, (ii) da especificação, (iii) da não compensação e (iv) da não consignação. Aliás, é também esta a posição sustentada nas alegações do Ministério Público.
6. Dispõe o artigo 105.º da Constituição o seguinte:
“Artigo 105.º
(Orçamento)
1. O Orçamento do Estado contém:
a) A discriminação das receitas e despesas do Estado, incluindo as dos fundos e serviços autónomos;
b) O orçamento da segurança social.
2. O Orçamento é elaborado de harmonia com as grandes opções em matéria de planeamento e tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato.
3. O Orçamento é unitário e especifica as despesas segundo a respectiva classificação orgânica e funcional, de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos, podendo ainda ser estruturado por programas.
4. O Orçamento prevê as receitas necessárias para cobrir as despesas, definindo a lei as regras da sua execução, as condições a que deverá obedecer o recurso ao crédito público e os critérios que deverão presidir às alterações que, durante a execução, poderão ser introduzidas pelo Governo nas rubricas de classificação orgânica no âmbito de cada programa orçamental aprovado pela Assembleia da República, tendo em vista a sua plena realização.”
O quadro primário de conteúdo, elaboração, aprovação e execução do Orçamento constante deste preceito é completado pelo artigo 106.º da Constituição, conjunto normativo relativamente parco que é desenvolvido pela Lei de Enquadramento Orçamental. Relembra-se que o âmbito do presente recurso é restrito à desconformidade da solução normativa em causa – na parte em que institui uma despesa para o Estado – com as regras e princípios orçamentais constantes do artigo 105.º da Constituição, a que o Tribunal vai limitar-se.
Como se diz nas alegações apresentadas pelo Ministério Público, o artigo 105.º da Constituição tem uma dupla dimensão, interna e externa. Directamente dispõe (dimensão interna) sobre o modo como deve ser organizado o Orçamento do Estado. Mas também impede (dimensão externa) que leis ordinárias com incidência orçamental contenham disposições atentatórias das regras e princípios nele consagrados.
No caso, é esta última dimensão que interessa.
7. Dos n.ºs 1 e 3 do artigo 105.º da Constituição extrai-se o princípio da plenitude do Orçamento do Estado que comporta dois aspectos ou subprincípios intimamente relacionados: o princípio da unidade – o orçamento deve ser apenas um (i.e., único) e o princípio da universalidade – todas as receitas e todas as despesas para determinado período financeiro devem ser inscritas nesse orçamento. O Orçamento do Estado compreende todas as receitas e despesas do Estado, em termos globais, incluindo a discriminação das receitas e das despesas dos fundos e serviços autónomos e do sistema de segurança social (“um só orçamento, tudo no orçamento”). A regra da universalidade visa evitar a exclusão de receitas e despesas da previsão orçamental, assegurando a racionalidade e a transparência financeira e o controlo político da actividade governativa de que o Orçamento é instrumento primordial (Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Vol. I, 4ª ed., p.149.
Ora, a instituição de uma participação na receita proveniente da gestão de determinados bens públicos a favor de uma qualquer entidade (seja ela pública, privada do sector social ou cooperativo) não é susceptível, por si, de violar o princípio da universalidade do orçamento assim entendido. Efectivamente, nada numa disposição legal deste tipo e, desde logo, na disposição legal do artigo 9.º da Lei do Congresso de República acima transcrita, indicia a “desorçamentação” das receitas aí previstas. A atribuição dessa receita à Misericórdia de Sintra – que, na lógica financeira, é uma despesa para o Estado – não aponta, directa ou indirectamente, para a exclusão de receitas ou despesas da apropriada previsão e inscrição orçamental. Esse é um problema posterior que a norma em causa não preordena nem prejudica.
A sentença recorrida parece supor que, com esse princípio, a Constituição proíbe a imposição de taxas ou a atribuição de receitas por via de leis ordinárias avulsas, o que não é exacto. Com efeito, a génese extra-orçamental dessa imposição ou fonte de despesa não a coloca fora do Orçamento. Este é que deve ser elaborado “tendo em conta as obrigações decorrentes da lei ou de contrato”, conforme determina o n.º 2 do artigo 105.º da Constituição, pelo que se a despesa correspondente não for adequadamente inscrita tal será obra da Lei do Orçamento e não do acto normativo que institui a receita ou a despesa.
Consequentemente, quando a este fundamento o julgamento de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida não pode manter-se.
8. Seguidamente, a sentença considera violado o princípio da especificação, princípio este que exige que as despesas sejam individualizadas segundo a respectiva classificação orgânica (pelos diversos departamentos da Administração financeira, organismos serviços, artigos, números e alíneas) e funcional (segundo a natureza das funções exercidas pelo Estado), de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos (n.º 3 do artigo 105.º da CRP).
Também aqui é evidente que a norma em causa não está em contradição nem sequer comporta qualquer possibilidade de pôr em risco este princípio. Uma norma que se limita a estabelecer o direito de uma entidade perfeitamente identificada a quinhoar numa certa receita do Estado não comporta violação ou risco de violação de tal princípio. O Orçamento é que tem, depois, de prever a despesa correspondente apresentando-a em conformidade com os critérios orgânicos e funcionais legalmente estabelecidos de modo a garantir, não só a transparência mas também os objectivos de racionalidade financeira e controlo político visados pela instituição orçamental (cfr. Rui Guerra da Fonseca, Comentário à Constituição Portuguesa, coordenação de Paulo Otero, Vol. II, pag. 944. Mas isso não exige, contrariamente ao que parece pressupor a sentença recorrida, que seja a lei que institui a despesa a proceder ela mesma a essa arrumação ou classificação.
É, pois, manifesto que também este fundamento de inconstitucionalidade não pode ser confirmado.
9. Foi ainda considerado na sentença revidenda que a norma em causa entrou em colisão com o princípio da não compensação orçamental. Com este princípio (rectius, subprincipio do princípio da descriminação das receitas e despesas – artigo 105.º, n.º1, alínea a), da CRP) pretende significar-se que as receitas e despesas devem ser inscritas no orçamento de forma bruta e não líquida. Dito de outro modo, não devem ser deduzidas às receitas as importâncias dispendidas para a sua cobrança ou quaisquer outras, nem às despesas se descontam receitas que tenham sido originadas na sua realização.
A sentença recorrida parece ter entendido que, da norma em apreciação resultava a eventual inscrição no Orçamento do Estado das receitas provenientes da gestão dos monumentos em causa, deduzidas do valor correspondente a 25% das mesmas, atribuído à ora recorrida. A receita seria orçamentada pelo montante previsto das cobranças, abatido desta transferência. Mas sem razão, como se sustenta nas alegações do Ministério Público e da recorrida. A norma do artigo 9.º da Lei do Congresso da República nada dispõe quanto ao modo de inscrição da receita cobrada pelas entradas nos palácios de Sintra de que a Misericórdia pretende caber-lhe parte, não obstando a que a mesma seja inscrita no Orçamento do Estado sem qualquer compensação ou desconto. Haverá, de um lado, a previsão de receita; e do outro, como despesa, a verba correspondente à percentagem a transferir para a Misericórdia.
Assim sendo, não é admissível imputar-se à norma em causa eventual inscrição das referidas receitas no Orçamento do Estado mediante a dedução do valor correspondente a 25% das mesmas, ou seja, do valor atribuído à ora recorrida, pelo que este fundamento do juízo de inconstitucionalidade também não pode manter-se.
10. Finalmente, a sentença recorrida entendeu que a norma em causa era contrária ao princípio orçamental da não consignação que também filiou no artigo 105.º da Constituição, considerando-a, também por isso, supervenientemente inconstitucional.
A consignação de receitas consiste, segundo a doutrina corrente e como se disse no acórdão n.º 452/87, www.tribunalconstitucional.pt “na afectação de determinada receita a uma determinada despesa, por tal forma que esta apenas poderá ser satisfeita se e na medida em que o montante (cobrado) dessa receita o possibilite (duplo cabimento). E, por outro lado, aquela receita não pode ser destinada a outras despesas, a menos que se verifique um excesso dela sobre a despesa a que foi afectada (cf. J. J. Teixeira Ribeiro, Lições..., cit., pp. 49 e segs., Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, 1987, p. 324, e Sabino Teixeira, «Consignação de Receita», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, II, Coimbra, 1972, p. 659)”. A razão desta regra é não só a de “evitar a existência de uma Administração Pública fragmentária, desprovida de uma gestão de conjunto, coerente e racional” (Guilherme D’Oliveira Martins, Constituição Financeira, 2.º Vol. 2.º, ed. AFDL, p. 289), mas também, como causa próxima, a de que, correspondendo a fixação das despesas ao montante dos gastos que se prevê necessário suportar, é conveniente que as receitas se destinem indistintamente à cobertura de todas as despesas porque, se assim não for e se a realização da receita previsionalmente afecta a determinada despesa vier a revelar-se inferior ao previsto, a despesa ficaria na contingência de ter de ser menor do que o necessário à satisfação da necessidade pública que a justifica. Nesta perspectiva, é duvidoso que a circunstância de uma despesa que se traduz num subsídio a favor de uma entidade estranha à Administração, fixado de modo a corresponder a um percentual de determinada receita, contenda com a razão de ser da regra da não consignação. É a própria transferência para a entidade beneficiária e, portanto, a despesa do Estado, que se torna congenitamente eventual, apenas existindo se a na medida da cobrança da receita em função da qual é calculada. Não há o risco de que essa destinação possa comprometer a satisfação de uma necessidade pública ou o cumprimento de um dever legal ou contratual a cargo da Administração.
Todavia, no caso não interessa averiguar se estamos perante uma verdadeira e própria consignação de receitas. Com efeito, nos termos da definição do seu âmbito, que resulta da conjugação do conteúdo da decisão recorrida com a previsão de recorribilidade que abriu o acesso ao Tribunal Constitucional, no presente recurso apenas cabe confrontar a norma em causa com parâmetros de constitucionalidade. Ora, como bem se argumenta nas alegações do Ministério Público e da recorrida, o princípio da não consignação de receitas, apesar de ser uma das “regras clássicas” da organização do orçamento (Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 5ª ed., p 59), não tem consagração a nível constitucional. O Tribunal já o reconheceu, designadamente, nos acórdãos n.º 452/87 e n.º 361/91, sendo que as revisões constitucionais posteriores a esses arestos não modificaram a base deste entendimento. Como se disse neste último acórdão “a regra da não-consignação – regra que postula que «todas as receitas devem servir para cobrir todas as despesas» – não tem consagração constitucional, tendo conhecido «múltiplas excepções, que derivam da existência de situações de autonomia financeira, em que as receitas de determinados organismos são afectadas à cobertura das suas despesas no âmbito da sua administração própria, e, também, de expressas determinações da lei, no sentido de que certas despesas só podem ser efectuadas se forem cobradas receitas que as cubram (consignação de receitas, em sentido estrito: exige-se então duplo cabimento da despesa, na verba da despesa e na verba da receita que a financia)» (A. Sousa Franco, ob. cit., p. 325; no sentido de que a regra orçamental da não-consignação não tem consagração constitucional, vejam-se, além deste autor, a pp. 327 e segs., J. J. Teixeira Ribeiro, «Os Poderes Orçamentais da Assembleia da República», in Boletim de Ciências Económicas, Coimbra, vol. xxx, 1987, p. 181, e Lições de Finanças Públicas, 3.ª ed., Coimbra, 1990, p. 83, e, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, embora incidentalmente, o Acórdão n.º 452/87, já atrás citado, que versa uma questão da afectação ou consignação em sentido amplo de receitas municipais a despesas municipais determinada pelo Estado, a qual apenas foi tida por inconstitucional por constar de diploma do Governo, sem dispor de autorização legislativa)”.
Em conclusão e mantendo-se este entendimento, a regra da não-consignação está prevista, comportando significativas excepções, na lei do enquadramento do Orçamento do Estado (artigo 7.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, alterada pelas Leis n.ºs 2/2002, de 28 de Agosto, 23/2003, de 2 de Julho, 48/2004, de 24 de Agosto e 22/2011, de 20 de Maio), mas não decorre, como tal, do artigo 105.º da Constituição (salvo, porventura, se a consignação fosse levada a extremos de generalização em que o próprio princípio da unidade entraria em crise). Consequentemente, também quanto a este fundamento não pode manter-se o juízo de inconstitucionalidade que levou a considerar cessada a vigência da norma objecto de apreciação no presente recurso, sem necessidade de averiguar se dela resulta uma autêntica consignação de receitas e se, neste caso, caberia em alguma das excepções que esta regra infra-constitucional de organização do Orçamento comporta.
Nestes termos, não pode confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade que levou a sentença recorrida a recusar aplicação (ou a considerar cessada a vigência nos termos do n.º 2 do artigo 290.º da CRP) à norma da última parte do § único do artigo 9.º da Lei de 24 de Junho de 1912, do Congresso da República, no segmento que atribuiu à Santa Casa da Misericórdia de … 25% do valor proveniente da entradas nos Palácios Nacionais de Sintra e da Pena.»


E foi perante a determinada reforma da decisão, em conformidade com o decidido neste acórdão do Tribunal Constitucional, que a Mmª Juíza do Tribunal a quo, então titular do processo, proferiu a nova sentença (saneador-sentença) de 24/05/2012, objeto do presente recurso, nela decidindo novamente pela improcedência do pedido agora com fundamento no entendimento de que o normativo constante do artigo 9º da Lei do Congresso de 24 de junho de 1912, que conferia à SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE … o direito a auferir 25% do valor da venda de bilhetes de entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, foi tacitamente revogado com a entrada em vigor do DL. nº 519-G2/79, de 29 de dezembro e Despachos Normativos emitidos para sua execução, por incompatibilidade do regime instituído com aquele que decorria da Lei de 24 de junho de 1912, em termos que faltando o título atributivo daquela receita o direito que se pretendia ver reconhecido não tem base legal.

~
As questões da inconstitucionalidade da norma do artigo 9º Lei do Congresso de 24 de junho de 1912, por violação dos princípios da universalidade, da especificação, da não compensação e da não consignação que a primeira sentença considerou ínsitos no artigo 105º da Constituição foram já resolvidas negativamente pelo Acórdão do Tribunal Constitucional de 28/09/2011 (Acórdão nº 414/2011).
Restando agora, em sede do presente recurso, aferir se, como propugna a recorrente, foi incorreto o entendimento feito na sentença recorrida no sentido de o normativo constante do artigo 9º da Lei do Congresso de 24 de junho de 1912, ter sido tacitamente revogado com a entrada em vigor do DL. nº 519-G2/79, de 29 de dezembro, em termos que deva ser revogada.
E se assim se concluir, haverá então que conhecer, se a tanto nada obstar, ao objeto ampliado do recurso, requerido subsidiariamente pelo recorrido em sede das suas contra-alegações de recurso ao abrigo do artigo 684º-A do CPC antigo.
~
3.2 Do invocado erro de julgamento
3.2.1 A sentença recorrida, considerou que o normativo contido no artigo 9º da Lei do Congresso de 24 de junho de 1912 de harmonia com o qual 25% do rendimento da taxa de entrada nos Palácios de Sintra e da Pena era destinado à Misericórdia de Sintra havia sido tacitamente revogado com a entrada em vigor do DL nº 519-G2/79, de 29 de dezembro, que aprovou o Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social, e dos Despachos Normativos emitidos para a sua execução, por incompatibilidade do regime com ele instituído com aquele que decorria da Lei de 24 de junho de 1912. Entendimento que assentou no seguinte discurso fundamentador, que se passa a transcrever:
«O preceito legal em que a Autora, Santa Casa da Misericórdia de… , sustenta o seu pedido – parágrafo único do artigo 9º da Lei do Congresso Nacional de 24 de junho de 1912 – dispõe do seguinte modo: “Do rendimento da taxa cobrada nas propriedades do Estado, em Cintra, 25 por cento serão destinados à Misericórdia de… ”. Por sua vez, dispõe o art. 6º da mesma lei que “Ficam pertencendo à Fazenda Nacional (…), os palácios da Ajuda, de Belém, de Cintra, de Mafra, das Necessidades, da Pena e de Queluz.”
A lei em apreço determina a extinção da Superintendência dos Paços, na sequência da implantação da República, e procede à reafetação do respetivo pessoal, bem como ao destino e gestão dos bens móveis e imóveis.
Considera o Réu que, a legislação que entrou em vigor em 2007, maxime o DL nº 97/2007 e a Portaria nº 377/2007, derrogaram todas as normas da lei de 1912, incluindo o art. 9º, no qual a Autora fundamenta o seu pedido.
Ora, conforme estabelece o nº 1 do artigo 7º do Código Civil, “Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei”. Segundo o nº 2 “A revogação pode resultar de declaração expressa da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior”.
A revogação pode, assim, assumir uma forma expressa ou uma forma tácita. Nas Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª edição, volume I, pag. 405, os Profs. PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA escrevem que a revogação é expressa se a nova lei individualizar concretamente a lei ou as disposições anteriores revogadas e tácita se faltar essa indicação expressa e a revogação resultar apenas da incompatibilidade existente entre uma lei anterior e uma nova lei, conjugada com o princípio geral da prevalência da vontade mais recente do legislador.
Ora, a norma que aqui está em causa, respeita, exclusivamente, à afetação de 25% da receita resultante da venda de bilhetes para entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, à Santa Casa da Misericórdia de ….
Assim, atentas as alterações legislativas levadas a cabo no que respeita às entidades responsáveis pela gestão destes Palácios – primeiro a Fazenda Nacional, depois o Instituto Português do Património Cultural (IPPC), criado em 1980 pelo Decreto-Lei nº 59/80, de 3 de abril, mais tarde o IPPAR, criado pelo Decreto-Lei n.º 106-F/92, de 1 de junho, que durante 15 anos regulou a classificação do património histórico português, e mais recentemente o Instituto dos Museus e da Conservação, I. P., (IMC, I. P.), criado pelo Decreto-Lei nº 97/2007, de 29 de março – importa aferir se, da legislação produzida, resultou uma vontade do legislador diferente daquela que resulta da norma em que a Autora sustenta o direito cujo reconhecimento vem pedir ao Tribunal.
Desde já se adiante que, de modo expresso, o legislador não se pronunciou, em nenhum dos diplomas acima mencionados, sobre a revogação do art. 9º da Lei de 24 de junho de 1912 na parte em que procede à afetação de 25% do valor da venda de bilhetes para entradas nos Palácios de Sintra e da Pena à Misericórdia de….
Deste modo, o direito reivindicado pela autora nos presentes autos apenas sucumbirá caso se conclua pela revogação tácita da norma em apreço.
Percorridas as normas do Decreto-Lei nº 59/80, de 3 de abril, que criou o Instituto Português do Património Cultural (IPPC), verifica-se que a intenção reguladora do legislador aponta, no essencial para a estrutura dos serviços no sentido de ultrapassar os problemas de (des)organização que vinham, como se refere no seu preâmbulo, “criando departamentos que nem sempre correspondiam a necessidades concretas e que também não eram reflexo de uma metodologia administrativa coerente e eficaz, tendo em atenção a vasta problemática do setor”. Assim, são definidas as atribuições da Secretaria de Estado da Cultura e definidos os órgãos e serviços, bem como as suas atribuições; são definidas as competências do IPPC e dos demais institutos que ficam na dependência da Secretaria de Estado da Cultura; rege sobre o regime do pessoal e, no Capítulo IV, relativo a “Disposições finais e transitórias”, as normas são de natureza organizacional e de gestão de pessoal, nada se referindo quanto a receitas provenientes do património que cabe ao IPPC gerir. A final, procede à revogação dos Decretos-Lei n.ºs 498-C/79, de 21 de dezembro; 513-J1/79, de 27 de dezembro; 519-Z1/79, de 29 de dezembro, e 533/79, de 31 de dezembro.
Por sua vez, o Decreto-Lei nº 106-F/92, que cria o IPPAR, define as suas atribuições e a sua orgânica, e determina que é da competência do Conselho Administrativo superintender na cobrança e arrecadação das receitas e na realização das despesas (cfr. al. c), do nº 2 do art. 7º). Do seu art. 22º resulta que constituem receitas do IPPAR, para além das dotações que lhe são atribuídas pelo Orçamento do Estado, as receitas arrecadadas pelos serviços dependentes ou emergentes dos bens imóveis afetos ao IPPAR, nomeadamente as decorrentes da cedência de espaços dos mesmos, a título oneroso, para a realização de atividades culturais previamente autorizadas pela direção do IPPAR – cfr. al. g) do nº 1. Do art. 23º, al. a), retira-se que constituem despesas do IPPAR os encargos com o respetivo funcionamento e plano de atividades, dentro das atribuições e competências que lhe estão confiadas. Nas disposições finais e transitórias é referido que o IPPAR sucede na universalidade dos direitos e obrigações do IPPC, e é expressamente revogado o Decreto-Lei n ° 349/87, de 5 de novembro.
De quanto se extrai, é evidente que nenhuma das disposições colide com o disposto no art. 9º da Lei de 24 de junho de 1912, no que tange à consignação da receita que a Autora entende ter direito. O facto de se prever que são receitas do IPPAR, as arrecadadas pelos serviços dependentes ou emergentes dos bens imóveis que lhe estão afetos, não contende com a consignação de 25% da receita das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena à Autora, como não contende o facto de as despesas do IPPAR consistirem nos encargos com o respetivo funcionamento e plano de atividades, não sendo claro que a intenção do legislador seja no sentido de afastar das actividades do IPPAR o apoio à Santa Casa da Misericórdia de…. Nada resulta, deste diploma legal, que permita concluir, de modo inequívoco, que o legislador não quis que permanecesse vigente o direito concedido à Autora pelo art. 9º da lei de 1912, nem expressamente na letra da lei, em norma revogatória, nem implícita ou tacitamente do novo regime instituído.
Prosseguindo, chegamos ao Instituto dos Museus e da Conservação, I. P., (IMC, I. P.), criado pelo Decreto-Lei nº 97/2007, de 29 de março, relativamente ao qual entende o Réu que os seus artigos 3º e 11º, vêm regular o que antes regulavam os artigos 9º, 10º, 11º e 13º da Lei do Congresso de 1912.
O art. 3º dispõe sobre a missão e atribuições do IMC, e o art. 11º sobre as suas receitas. Percorridas as diversas normas que compõem o art. 3º, não se pode concluir que das mesmas resulte disposição em contrário do que dispõe o art. 9º da Lei de 1912, na parte em que determina a consignação da receita à Misericórdia de…, resultando daí a impossibilidade de esta se manter em vigor. Nada permite concluir que a mais recente vontade do legislador tenha sido a de extinguir tal consignação. No que se refere ao art. 11º, entendemos que a letra da lei também não é de molde a que se possa considerar tacitamente revogado o que dispõe o art. 9º da lei em que a Autora funda o seu pedido. Aí se dispõe sobre o que são receitas próprias do IMC, o que não impede a sua afetação a determinados fins, como aquele que Autora vem alegar ter direito por força de lei.
Relativamente à Portaria nº 377/2007, de 30.03, que aprova os Estatutos do Instituto dos Museus e da Conservação, I. P., cujos arts. 4º e 7º o Réu entende que contendem com o direito invocado pela Autora e que, por isso, derrogam a norma legal em que apoia o seu pedido, as referidas normas respeitam, a primeira às competências do Departamento de Património Imaterial, e a segunda às competências do Departamento de Gestão, a que cabe, designadamente, instruir os processos relativos à cobrança e arrecadação de receitas e à realização de despesas e executar o respetivo ciclo, assegurando o registo das operações que lhe estão associadas [cfr. o art. 7º, al. f)].
Ora, quer num caso, quer noutro, não se vê donde conste regulação em sentido incompatível com o constante do art. 9º do Lei do Congresso, na parte em que confere à Autora 25% da receita proveniente da venda de bilhetes para entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, aliás, tal direito é perfeitamente compatível com o disposto no art. 7º, al. f) que manda efetuar o registo das operações que estão associadas à realização de despesas.
Por fim, importa ainda chamar à colação o Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de fevereiro, que aprova o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (EIPSS), cujo artigo 4º, nº 2 estabelece que o apoio que às mesmas é prestado pelo Estado concretiza-se em formas de cooperação a estabelecer mediante acordos, norma que é invocada no parecer nº 54/2000 do Gabinete Jurídico e do Contencioso do Ministério das Finanças, homologado pelo Secretário de Estado do Orçamento – cfr. al. H) do probatório.
No caso, não existem dúvidas de que a Santa Casa da Misericórdia de…, Autora nos presentes autos, é uma IPSS, conforme decorre de afirmação feita pela própria no introito da sua petição inicial.
O referido Decreto-Lei nº 119/83 veio revogar o Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de dezembro, em que se estabelecia que as instituições “fazem parte do sistema de segurança social referido no art. 63º da Constituição, pelo que são reconhecidas, valorizadas e apoiadas pelo Estado que as orienta e tutela, as coordena e subsidia”, estando ainda “representadas em todos os escalões da estrutura de participação do sistema” (art. 2º). Uma das directrizes a que obedecia a atuação destas instituições era a aplicação dos apoios do Estado no reforço dos recursos próprios das instituições, “aumentando-lhes as possibilidades de atuação e melhorando a qualidade desta”.
Ainda de acordo com o mencionado Decreto-Lei nº 519-G2/79, as formas de cooperação entre os serviços oficiais e as IPSS eram estabelecidas mediante acordos de cooperação a homologar pelo ministro da tutela.
Este tipo de acordos de cooperação, que constituíam, já anteriormente, uma forma comum de atribuição de subsídios às instituições, passaram a representar, a partir do Estatuto, um instrumento obrigatório, acentuando-se, assim, a natureza contratual das relações de cooperação entre o Estado e as IPSS.
Na sequência da publicação do Estatuto das IPSS de 79, foram definidas, pela primeira vez, normas reguladoras dos referidos acordos, através dos Despachos Normativos nº 387/80 e nº 388/80, de 31/12.
Posteriormente, pela Resolução nº 96/81, de 30 de abril, propôs-se o Governo proceder à revisão da legislação em vigor e à preparação de um novo diploma legal contendo a regulamentação global das instituições sem fins lucrativos que se propunham à resolução de carências sociais.
Esta decisão fundamentou-se na necessidade de obstar aos inconvenientes resultantes da excessiva delimitação do objetivo específico das instituições privadas de solidariedade social, tal como foi definido no artigo 1º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de dezembro, ou seja, o objeto de facultar serviços ou prestações de segurança social.
É nesse contexto que surge o atual Estatuto das IPSS, aprovado pelo referido Decreto-Lei nº 119/83, que veio revogar o Decreto-Lei nº 519-G2/79.
Relativamente ao esquema de cooperação entre o Estado e as IPSS, mantém-se idêntico, devendo ser estabelecido mediante acordos, conforme resulta do seu art. 4º, nº 2.
Não obstante a manutenção da regra base, as normas reguladoras dos acordos de cooperação vieram a ser alteradas pelos Despachos Normativos nº 118/84, de 8/6 e nº 12/88, de 12/3, e depois, pelo Despacho Normativo nº 75/92, de 20/5, que se encontra em vigor.
De acordo com estas normas, os quantitativos das comparticipações financeiras da segurança social previstas nos acordos, passaram a ser fixados anualmente por protocolo celebrado entre o ministro da tutela e as uniões representativas das IPSS.
Percorrido o regime estabelecido no Estatuto das IPSS, bem como no Despacho Normativo nº 75/92, emitido ao abrigo do nº 2 do art. 4º do EIPSS, que define as normas reguladoras dos acordos de cooperação, não podem restar dúvidas de que a intenção do legislador, aqui sim, e desde o Decreto-Lei nº 519-G2/79, foi a de tratar de modo igual e submeter a um só regime, todas as IPSS, garantindo que, em termos de apoios do Estado, eram cumpridas regras comuns, em prol, designadamente, do princípio da igualdade, estabelecido no art. 13º da CRP.
Na verdade, reconhecendo o Estado o papel preponderante destas instituições no cumprimento de deveres do Estado Social, e pretendendo prestar apoios no sentido do melhor e mais amplo desempenho das suas atribuições, bem como incentivar a criação de outras instituições, estabeleceu um regime uniforme de criação, regulação e funcionamento destas instituições.
Assim, por contrário ao espírito de unificação do regime aplicável às IPSS, designadamente no que respeita a apoios cedidos pelo Estado, não pode conceber-se que se mantenha em vigor uma norma legal, de 1912, que confere a uma IPSS, em particular – a Autora, determinados rendimentos à margem das normas que o legislador instituiu, primeiro em 1979, e depois em 1992, para atribuição de apoios às IPSS.
A admitir-se a vigência de tal norma a mesma padeceria de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade previsto no art. 13º da CRP, atento o ónus que para umas IPSS decorreria do EIPSS, e do Despacho Normativo nº 75/92, de cumprir toda uma série de requisitos para poder celebrar e manter em vigor um acordo de cooperação para obtenção de apoios do Estado, enquanto para a Autora, independentemente do cumprimento ou não desses mesmos requisitos resultaria garantido um significativo apoio financeiro, resultante da cedência de 25% do total do valor angariado com a venda de bilhetes para entradas nos Palácios de Sintra e da Pena.
Por quanto vem dito, impõe-se concluir que o paráfago único do art. 9º da Lei do Congresso de 24 de junho de 1912, que conferia à Autora o direito a auferir 25% do valor da venda de bilhetes de entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, se encontra tacitamente revogado desde a entrada em vigor Decreto-Lei nº 519-G2/79 e Despachos Normativos emitidos para sua execução, por incompatibilidade do regime instituído com aquele que decorria da lei de 24 de junho de 1912.
Faltando o título atributivo da receita a que a Autora entende ter direito, falece, consequentemente, a alegação de ilegalidade da decisão de suspensão dos respetivos pagamentos, uma vez que o reconhecimento do direito, que pretende fazer valer nos presentes autos não tem base legal.
Termos em que se impõe julgar improcedente a presente ação, não se reconhecendo à Autora o direito a 25% do total do valor angariado com a venda de bilhetes para entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, desde 2000, por falta de título que conceda tal direito.»

3.2.2 Vejamos, então, se foi ou não correto o entendimento feito na sentença recorrida no sentido de o identificado normativo contido no artigo 9º da Lei do Congresso de 24 de junho de 1912 foi tacitamente revogado com a entrada em vigor do DL nº 519-G2/79, de 29 de dezembro e dos Despachos Normativos emitidos para a sua execução, por incompatibilidade do regime com ele instituído com aquele que decorria da Lei de 24 de junho de 1912 - (conclusões 1ª a 4ª das alegações de recurso da recorrente).
3.2.3 Antecipe-se, desde já, que deve ser mantido o assim decidido.
Vejamos porquê.
3.2.4 A sentença recorrida começou por enfrentar a questão de saber se em face das alterações legislativas levadas a cabo no que respeita às entidades responsáveis pela gestão dos Palácios da Pena e de Sintra – primeiro a Fazenda Nacional, depois o Instituto Português do Património Cultural (IPPC), criado em 1980 pelo Decreto-Lei nº 59/80, de 3 de abril, mais tarde o IPPAR, criado pelo Decreto-Lei n.º 106-F/92, de 1 de junho, e posteriormente o Instituto dos Museus e da Conservação, I. P., (IMC, I. P.), criado pelo Decreto-Lei nº 97/2007, de 29 de março – resultou, de tal legislação entretanto produzida, uma vontade do legislador diferente daquela que resulta da norma em que a Misericórdia de … sustentou o direito cujo reconhecimento pede ao Tribunal, tendo chegado à conclusão que assim não era. Entendendo, a tal respeito, que: «…nenhuma das disposições colide com o disposto no art. 9º da Lei de 24 de junho de 1912, no que tange à consignação da receita que a Autora entende ter direito. O facto de se prever que são receitas do IPPAR, as arrecadadas pelos serviços dependentes ou emergentes dos bens imóveis que lhe estão afetos, não contende com a consignação de 25% da receita das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena à Autora, como não contende o facto de as despesas do IPPAR consistirem nos encargos com o respetivo funcionamento e plano de atividades, não sendo claro que a intenção do legislador seja no sentido de afastar das atividades do IPPAR o apoio à Santa Casa da Misericórdia de … . Nada resulta, deste diploma legal, que permita concluir, de modo inequívoco, que o legislador não quis que permanecesse vigente o direito concedido à Autora pelo art. 9º da lei de 1912, nem expressamente na letra da lei, em norma revogatória, nem implícita ou tacitamente do novo regime instituído
Mas passando a debruçar-se sobre o regime regulador das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS´s), em particular do atinente às formas de apoio público estatal às suas atividades, concluiu que «…o paráfago único do art. 9º da Lei do Congresso de 24 de junho de 1912, que conferia à Autora o direito a auferir 25% do valor da venda de bilhetes de entradas nos Palácios de Sintra e da Pena, se encontra tacitamente revogado desde a entrada em vigor Decreto-Lei nº 519-G2/79 e Despachos Normativos emitidos para sua execução, por incompatibilidade do regime instituído com aquele que decorria da lei de 24 de junho de 1912.».
Entendeu a tal respeito que a «…intenção do legislador, aqui sim, e desde o Decreto-Lei nº 519-G2/79, foi a de tratar de modo igual e submeter a um só regime, todas as IPSS, garantindo que, em termos de apoios do Estado, eram cumpridas regras comuns, em prol, designadamente, do princípio da igualdade, estabelecido no art. 13º da CRP.», considerando que estabelecendo o legislador «…um regime uniforme de criação, regulação e funcionamento destas instituições» não se pode conceber «…por contrário ao espírito de unificação do regime aplicável às IPSS, designadamente no que respeita a apoios cedidos pelo Estado» que «…se mantenha em vigor uma norma legal, de 1912, que confere a uma IPSS, em particular (a Misericórdia de Sintra) determinados rendimentos à margem das normas que o legislador instituiu, primeiro em 1979, e depois em 1992, para atribuição de apoios às IPSS».
Ao que acrescentou ainda que «…a admitir-se a vigência de tal norma a mesma padeceria de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade previsto no art. 13º da CRP, atento o ónus que para umas IPSS decorreria do EIPSS, e do Despacho Normativo nº 75/92, de cumprir toda uma série de requisitos para poder celebrar e manter em vigor um acordo de cooperação para obtenção de apoios do Estado, enquanto para a Autora, independentemente do cumprimento ou não desses mesmos requisitos resultaria garantido um significativo apoio financeiro, resultante da cedência de 25% do total do valor angariado com a venda de bilhetes para entradas nos Palácios de Sintra e da Pena.»
3.2.5 Dispõe o artigo 7º do Código Civil sob a epígrafe “cessão da vigência da lei” que “…quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei” (nº 1), podendo a sua revogação “…resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras procedentes ou da circunstância de a lei nova regular toda a matéria da lei anterior” (nº 2).
A revogação pode, assim, ser expressa ou tácita.
Estar-se-á perante revogação expressa quando a lei nova individualize concretamente a lei ou as disposições anteriores revogadas, e perante revogação tácita quando, faltando aquela indicação, a revogação resultar da incompatibilidade entre as disposições da lei anterior e da lei nova ou quando a lei nova regular toda a matéria da lei anterior (substituição global), prevalecendo assim a vontade mais recente do legislador – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in, “Noções Fundamentais de Direito Civil”, 4 edição, volume I, pág. 405; Baptista Machado, in, “Introdução ao Direito e Discurso Legitimador”, Almedina, 1985, pág. 165.
Dispondo ainda o nº 3 daquele artigo 7º do Código Civil que “…a lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.
3.2.6 Neste conspecto a primeira observação a fazer é a de que não pode ser desconsiderado o contexto, em que foi emanada a Lei do Congresso da República de 24 de junho de 1912, publicada no Diário do Governo nº 150º, de 28 de Junho de 1912, designadamente o histórico, e o fim visado.
Trata-se, obviamente, de uma Lei emitida na 1ª República, após a extinção dos paços reais na sequência da implantação da República em 1910 e que se destinou a determinar a afetação dos antigos Palácios Reais, designadamente os Palácios da Ajuda, de Belém, de Sintra, de Mafra, das Necessidades, da Pena e de Queluz. Tendo em termos residuais, para aqueles a que não foi atribuída aplicação especial, sido destinados à visita do público, mediante o pagamento de taxas a regulamentar.
Entre estes encontravam-se, precisamente, os Palácios de Sintra e da Pena, relativamente aos quais aquela mesma Lei do Congresso da República de 24 de junho de 1912, publicada no Diário do Governo nº 150º, de 28 de Junho de 1912, estabeleceu que 25% do rendimento da taxa cobrada seria destinado à Misericórdia de Sintra, através do dispositivo ínsito no seu artigo 9º nos termos seguintes:
Os demais palácios, quintas, jardins, tapadas e cercas, a esta data sem aplicação especial e enquanto não a tiverem, serão destinados à visita do público mediante taxas e condições a regulamentar.
§ único. A taxa a cobrar nunca será inferior a 100 réis, excepto ao domingo e dias feriados, em que a entrada será gratuita.
O Governo determinará, em regulamentos adequados, as taxas a cobrar por quaisquer distracções que dentro das propriedades do Estado se estabeleçam ou que estejam estabelecidas. Do rendimento da taxa cobrada nas propriedades do Estado, em Cintra, 25 por cento serão destinados à Misericórdia de… .
São isentos da taxa de entrada todos os alunos de quaisquer escolas que provem a sua identidade escolar.

3.2.7 A segunda observação é atinente à natureza e atribuições da SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE …, e, sobretudo, à circunstância, que se impõe constatar, que a mesma não foi imutável ao longo dos tempos.
Como é sabido o surgimento das Misericórdias em Portugal inicia-se com a fundação, em 1498, da Santa Irmandade da Misericórdia de Lisboa, durante o reinado de D. Manuel I, sob a égide da rainha D. Leonor, no seguimento da qual, começaram a fundar-se outras Misericórdias em várias localidades do país. É o caso da Misericórdia de Sintra, que foi instituída em 1545, no reinado de D. João III, por iniciativa da Rainha D. Catarina. Inspirada nos princípios da doutrina e moral cristãs, teve na sua génese as catorze obras de Misericórdia, assim enunciadas, como «obras corporais», as de: i) dar de comer a quem tem fome; ii) dar de beber a quem tem sede; iii) vestir os que estão nús; iv) assistir os enfermos; v) dar pousada aos peregrinos e pobres; vi) remir os cativos e oprimidos; vii) enterrar os mortos; e como «obras espirituais» as de: i) dar bons conselhos; ii) ensinar os ignorantes; iii) consolar os tristes; iv) corrigir os que erram; v) perdoar as injúrias; vi) sofrer com paciência as fraquezas do próximo: vii) rogar a Deus pelos vivos e defuntos (cfr. história da Misericórdia de … in, http://www.misericordiadesintra.pt/index.php/instituicao/historia).
Na ação inicial das misericórdias em matéria de práticas de ca­ridade estas não possuíam, ainda, instituições sob a sua tutela, limitando-se a ajudar pobres e carenciados onde estes se encon­travam. Pelo que, e uma vez que os irmãos da misericórdia não possuíam instituições próprias (como viriam mais tarde a administrar), era colocada uma ênfase especial na visita como momento privilegiado de compaixão pelo próximo. Só posteriormente passaram as Misericórdias a ter sob a sua alçada hospitais, que instituíram ou que administração direta lhe foi atribuída. E outras responsabilidades se vieram, posteriormente, a somar às dos hospitais, entre elas, a criação de expostos, albergando crianças abandonadas (cfr. Isabel dos Guimarães Sá e Maria Antónia Lopes, in,História Breve das Misericórdias Portuguesas - 1498-2000”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008).
As Misericórdias assumiam assim uma função assistencial, que foi reconhecida e apoiada pela coroa.
E reportando-nos aos inícios do século XX, para nos situarmos mais próximo temporalmente da implantação da república e da emanação da Lei nº 24 de Junho de 2012, emerge como relevante o estreitamento da supervisão do Estado sobre as atividades assistenciais das Misericórdias, referindo as autoras Isabel dos Guimarães Sá e Maria Antónia Lopes, in,História Breve das Misericórdias Portuguesas - 1498-2000”, que a reforma dos serviços de saúde e beneficência decretada por Hintze Ribeiro em 1901 criou orga­nismos de supervisão a nível nacional, não bulindo, no entanto, com a autonomia das misericórdias, as quais, assumindo-se como os órgãos de assistência do país, muito embora reclamando maior autonomia e rendimentos, reconheceram de­ver estar subordinadas à supervisão do Estado.
A primeira Constituição da República, de 1911, reconhece o direito à assistência pública e a lei de 25 de Maio do mesmo ano reestrutura a assistência, criando uma série de organismos doravante presentes no quotidiano das misericórdias: a Direcção-Geral de Assistência, o Conselho Nacional de Assistência Pública, comissões de assistência distritais e mu­nicipais.
Já com o advento do Estado Novo foi definida como meramente supletiva a ação do Estado no sector da assistência, destacando as Misericórdias enquanto órgãos centrais, orientadores e coordenadores a nível concelhio, como é afirmado no Decreto de 23/07/1928 que, com o objetivo expresso de “…estimular o reflorescimento das misericórdias existentes e a criação delas nos concelhos onde ainda não existam”, promulgou uma série de medidas visando esse desiderado, designadamente, a isenção do imposto de selo e custas nos processos administrativos, judiciais e fiscais; a alteração para 20 anos do prazo mínimo de de­samortização de prédios doados ou legados para serem conservados; a entrega dos legados pios não cumpridos às misericórdias locais; a admissão de enfermeiras religiosas; a concessão de subsídios por parte das câmaras; a autorização de federação de grupos de misericórdias (cfr. Isabel dos Guimarães Sá e Maria Antónia Lopes, in,História Breve das Misericórdias Portuguesas - 1498-2000”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, pág. 104). Nesse contexto, em De­zembro do mesmo ano de 1928 a Direção Geral de Assistência distribuiu avultadas verbas por 181 misericórdias dotadas de hospitais.
De acordo com o Código Administrativo de 1936, as misericórdias eram consideradas os organismos primordiais e coordenadores da assistência em cada concelho.
É o Código Administrativo de 1940 (ano da Concordata) que atribui às mi­sericórdias a natureza jurídica de associações canonicamente eretas. Nascia a polémica com a definição consagrada pelo artigo 433º, nos termos da qual “A denominação de «Santa Casa da Misericórdia» ou de «Misericórdia» só pode ser usada por estabelecimentos de assistência ou beneficência criados e administrados por irmandades ou confrarias canonicamente erectas e constituídas por compromisso, de harmonia com o espírito tradicional da instituição, para a prática da caridade cristã”. Surgindo então o Decreto-Lei de 7 de Novembro de 1945 que veio esclarecer a dualidade, estabelecendo fronteiras cuja necessidade fora gerada pela definição que o Código consig­nava. Segundo esse decreto, as Misericórdias são estabelecimentos de assistência ou beneficência com compromissos “…elaborados de harmonia com o espírito tradicional das instituições para a prática da caridade cristã”, obrigatoriamente aprovados pelo Ministro do Interior. Junto das misericórdias existem irmandades ou confrarias canonicamente eretas, que têm por finalidade praticar atos de culto e conceder assistência religiosa e moral, e serão representadas por um membro nas mesas das respetivas misericórdias. Estas tornam-se, pois, associações que prestam apenas assistência física, sendo as irmandades os organismos que se dedi­cam ao amparo religioso - (cfr. J. Quelhas Bigotte, in, “Situação jurídica das misericórdias portuguesas”, 2ª ed., Seia, 1994; José Fraústo Basso, in, “As misericórdias”, sep. de Boletim Infor­mativo da Corporação da Assistência, Lisboa, 1973; Isabel dos Guimarães Sá e Maria Antónia Lopes, in,História Breve das Misericórdias Portuguesas - 1498-2000”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008).
Após instauração da democracia em 25 de Abril de 1974 o primeiro momento central da história recente das Misericórdias é constituído pelo DL n.º 618/75, de 11 de Novembro, que rompe com o modelo corporativo no sector hospitalar em que se destacavam as Misericórdias, na sequência do DL. n.º 704/74, de 7 de Dezembro, no quadro de um processo de integração dos estabelecimentos hospitalares das Misericórdias na Secretaria de Estado da Saúde alargando-o aos hospitais concelhios pertencentes a pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, com o que foi atingida uma vertente fundamental das Misericórdias. Como dizem Isabel dos Guimarães Sá e Maria Antónia Lopes, in, “História Breve das Misericórdias Portuguesas - 1498-2000”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, “…perdidos os hospitais, as misericórdias teriam de exercer outras modali­dades de ação social, sob pena de extinção”. Surge, então, em reação, e no contexto da conflitualidade política da época, o V Congresso Nacional das Misericórdias Portuguesas, realizado nos dias 26, 27 e 28 de Novembro de 1976, com aprovação dos estatutos da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) e ereção canónica, a qual veio a determinar o posterior reconhecimento da União das Misericórdias Portuguesas pelo Estado Português enquanto pessoa jurídica canónica. E nessa decorrência o reconhecimento de diversas Misericórdias como pessoas de direito canónico, gerando-se uma massiva reforma de estatutos objeto de aprovação diocesana e comunicação ao Estado - (cfr. Paulo Dá Mesquita, in “A tutela das misericórdias e o âmbito das jurisdições eclesiástica e do Estado”, in, JULGAR, N.º 23, 2014, pág. 115).
Simultaneamente a Constituição da República Portuguesa de 1976 consagrou a expressão “instituições privadas de solidariedade social”, associando estas instituições ao sistema de segurança social ao prever no seu 63º nº3 que “…a organização do sistema de segurança social não prejudicará a existência de instituições privadas de solidariedade social não lucrativas que serão permitidas, regulamentadas por lei e sujeitas à fiscalização do Estado.”
3.2.8 É neste contexto que surge, o DL. n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro de 1979, que aprovou aquele que seria o primeiro Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS).
No seu longo preâmbulo não deixou de ser feita referência ao artigo 63º nº 3 da Constituição de 1976, no sentido de este prescrever “…que a organização do sistema de segurança social não prejudicará a existência de instituições privadas de solidariedade social não lucrativas, que serão permitidas, regulamentadas por lei e sujeitas à fiscalização do Estado”, explicitando-se ali que “…a lei fundamental do País reconheceu assim a vigorosa realidade que constitui, entre nós, a iniciativa privada nos amplos domínios da solidariedade social” e que “…a vasta rede de instituições que a atividade particular criou forma um valioso património moral e material que, ao longo dos séculos e ainda hoje, tem contribuído, como inegável constante social, para a melhoria das condições de vida do povo português” e que “…sensibilizadas por altos ideários e conscientes do dever moral que lhes cabe de exprimir por forma organizada a solidariedade entre os indivíduos, essas instituições favorecem a humanização das atividades que importa desenvolver no exercício de uma política social dignificante”, dizendo-se que, por isso “…o Estado as reconhece, valoriza e apoia, incentivando e fomentando o seu funcionamento”, mas que “…todavia, dados os interesses públicos em jogo e o bem comum em vista, não pode deixar de regulamentar e fiscalizar, como determina a Constituição e se propõe este diploma ao criar, para tal efeito, as normas necessárias”.
Refere-se ainda no preâmbulo daquele diploma que o seu propósito “…não é o de definir os esquemas de prestações ou serviços que a Constituição indica no artigo 63.º, como conteúdo do sistema de segurança social”, sendo sim seu objetivo “…o de estabelecer a disciplina jurídica das instituições que visam prosseguir fins não lucrativos de segurança social”, resultando sua inclusão no sistema da própria Constituição.
Ali se refere ainda que “…os diplomas mais importantes que anteriormente se ocuparam desta matéria são, sem dúvida, além do Código Administrativo de 1940, a Lei 1998, de 15 de Maio de 1944 (Estatuto da Assistência Social), e a Lei 2120, de 19 de Julho de 1963 (Estatuto da Saúde e Assistência). Todavia, qualquer destas duas últimas leis tem objetivos muito alargados, procurando organizar, na época em que foram elaboradas, o sistema completo de proteção social, nos termos em que então era concebido. Daí que a matéria própria das instituições ou entidades particulares incluídas nesse sistema tenha sido tratada por forma dispersa e pouco desenvolvida. O aprofundamento do seu regime jurídico viria depois a ser efetuado em diplomas regulamentares posteriores, dos quais se citam apenas o Decreto-Lei 35108, de 7 de Novembro de 1945, e o Decreto-Lei 413/71, de 27 de Setembro.”, para concluir que “…é, pois, novo o projeto que neste momento se realiza, reunindo num só diploma as linhas fundamentais do regime jurídico destas instituições”.
Não deixando ainda de mencionar que o Estatuto assim aprovado “…resultou de um demorado processo de trabalho, mantido com persistência ao longo do mandato de vários Governos Constitucionais e que, com a publicação, atinge o seu termo”, e que foi “…ouvido um número representativo destas instituições, a União das Misericórdias Portuguesas e a Conferência Episcopal Portuguesa, consultados os serviços e obtida a colaboração dos Ministérios envolvidos nesta matéria”.
O Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) aprovado por este DL. n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro de 1979, definiu como instituições privadas de solidariedade social “…as criadas, sem finalidade lucrativa, por iniciativa particular, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos e com o objetivo de facultar serviços ou prestações de segurança social” (artigo 1º), e estabeleceu no seu artigo 3º o quadro completo das instituições privadas de solidariedade social, aí se podendo encontrar, ao lado de formas tradicionais, como sejam as associações de solidariedade social (nome novo das antigas associações de assistência ou beneficentes), as Misericórdias, as associações de socorros mútuos e as fundações, novas figuras, como as cooperativas de solidariedade social e das associações de voluntários sociais, assim como as suas uniões e federações.
Procedendo ao seu enquadramento e natureza o artigo 2º do Estatuto consagrou que, quando registadas (registo central das instituições privadas de solidariedade social, junto da Direcção-Geral da Segurança Social – cfr. artigo 33º), e enquanto entidades que facultam serviços ou prestações, tais instituições “…fazem parte do sistema de segurança social referido no artigo 63.º da Constituição, pelo que são reconhecidas, valorizadas e apoiadas pelo Estado que as orienta e tutela, as coordena e subsidia” (nº 1), assegurando que as mesmas “…estarão representadas em todos os escalões da estrutura de participação do sistema de segurança social” (nº 2) e salvaguardando que “…a tutela e os subsídios do Estado não fazem perder às instituições a sua natureza privada nem o direito de livre atuação, nos termos e com respeito pela lei aplicável” (nº 3).
Simultaneamente no seu artigo 4º reconheceu-se às Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), e suas uniões ou federações, efetuado que fosse o seu registo nos termos do Estatuto, a natureza de pessoas coletivas de utilidade pública (nº 1), asseverando-se que “…como pessoas coletivas de utilidade pública, as instituições gozam das isenções e das regalias que a lei expressamente estabelecer a seu favor” (nº 2).
E sob a epígrafe “Diretrizes da ação das instituições”, o nº 1 do artigo 5º do Estatuto estabeleceu que a ação das instituições se desenvolve “…de acordo com as diretrizes seguintes:
a) É livre a escolha das suas áreas de atividade e autónomo o exercício, de acordo com as orientações que o Estado estabeleça para o desenvolvimento do sistema de segurança social;
b) Neste exercício, as instituições assumem responsabilidades sociais e jurídicas perante a sociedade e o Estado e perante os beneficiários;
c) Os interesses e direitos dos beneficiários e dos grupos sociais a que pertençam preferem aos das próprias instituições, dos seus associados ou fundadores;
d) A vontade dos fundadores, testadores ou doadores será sempre respeitada, e a sua interpretação orientar-se-á por forma a fazer coincidir os objetivos essenciais das instituições com as necessidades coletivas em geral e dos beneficiários em particular e ainda com a evolução dessas necessidades e dos meios ou formas de as satisfazer;
e) Os beneficiários devem ser respeitados na sua dignidade e na intimidade da vida privada, não podem sofrer discriminações fundadas em critérios ideológicos, políticos, confessionais ou raciais e serão ajudados a superar o isolamento e a marginalização sociais;
f) O apoio do Estado e das autarquias locais destina-se a reforçar os recursos próprios das instituições, aumentando-lhes as possibilidades de atuação e melhorando a qualidade desta;
g) As instituições devem cooperar entre si e com os serviços públicos para obter o mais alto grau de justiça e de benefícios sociais e também de aproveitamento dos recursos;
h) As crises, as dificuldades e os diferendos surgidos na vida interna das instituições devem ser resolvidos no quadro dos seus órgãos estatutários, pelo que só excecionalmente justificam a intervenção das entidades oficiais referidas neste Estatuto;
i) A organização interna das instituições é livremente estabelecida pelos seus órgãos gerentes, com respeito pelas disposições estatutárias e da legislação aplicável”.
Estabelecendo a respeito das relações entre o Estado e as instituições, no artigo 6º do Estatuto que “…o Estado exerce em relação às instituições ação orientadora e tutelar, que tem por objetivo promover a compatibilização dos seus fins e atividades com os do sistema de segurança social, garantir o cumprimento da lei e defender os interesses dos beneficiários e das próprias instituições” (nº 1), explicitando que “…esta ação é exercida pelo Ministro da Coordenação Social e dos Assuntos Sociais e pelos serviços competentes do Ministério dos Assuntos Sociais” (nº 2) e que “…as formas de cooperação entre os serviços oficiais de segurança social e as instituições são sempre estabelecidas mediante acordos de cooperação, a homologar pelo Ministro dos Assuntos Sociais” (nº 3).
Previu-se ainda a celebração de “acordos de gestão”, através dos quais “…as instituições podem ser encarregadas de gerir instalações, equipamentos ou estabelecimentos oficiais de segurança social pertencentes ao Estado ou às autarquias locais”, podendo “…nas mesmas condições uma instituição encarregar-se da gestão de instalações, equipamentos ou estabelecimentos pertencentes a outra” (cfr. artigo 25º nºs 1 e 2).
E condicionou-se às instituições particulares de solidariedade o exercício de atividades ou a abertura de estabelecimentos para a realização dos seus fins de segurança social à sua inscrição no registo central das instituições privadas de solidariedade social junto da Direcção-Geral da Segurança Social (cfr. artigo 34º nº 3). Prevendo-se quanto a tal registo, no artigo 39º do Estatuto, que “…os atos de registo são efetuados mediante requerimentos das instituições interessadas, dirigidos à Direcção-Geral de Segurança Social e apresentados nos centros regionais de segurança social”; que “…os centros regionais remeterão os requerimentos, devidamente informados, à Direcção-Geral, no prazo de cinco dias”; que “…o registo considera-se efetuado, se não for feita notificação em contrário, até sessenta dias após a receção dos requerimentos nos centros regionais de segurança social”; que “…a inscrição das instituições só será recusada se for verificada ilegalidade nos atos jurídicos da sua constituição ou nos estatutos ou ainda incompatibilidade dos fins estatutários com os do sistema de segurança social”; que “…o registo considera-se efetuado na data da apresentação do requerimento que seja deferido”; que “…todos os atos de registo referidos neste diploma, efetuados na Direcção-Geral de Segurança Social, são gratuitos”.
Densificando o conteúdo da ação do Estado sobre as instituições particulares de solidariedade social o Estatuto definiu compreender a mesma as funções regulamentadora, fiscalizadora ou inspetiva e interventiva (cfr. artigo 43º).
Caracterizando a primeira (função regulamentadora) na atividade de emissão de “…normas orientadoras, de carácter genérico, respeitante à organização e exercício das atividades das instituições”, explicitou (cfr. artigo 44º) que no exercício de tal função “…cabe ao Ministério dos Assuntos Sociais: a) emitir normas técnicas relativas à criação, transformação extinção e funcionamento das instituições e dos seus estabelecimentos; b) fixar as condições em que o Estado deverá prestar-lhes o apoio técnico e financeiro; c) estabelecer os esquemas destinados a promover e facilitar o aperfeiçoamento dos trabalhadores das instituições, organizando ou apoiando cursos regulares ou ações eventuais; d) estabelecer critérios de avaliação dos resultados obtidos pelo funcionamento das instituições; e) regular o tratamento processual das queixas ou reclamações apresentadas pelos beneficiários acerca da ação exercida pelas instituições”.
Caracterizando a segunda função (função inspetiva e interventiva) como verificação da “…legalidade daquele exercício, com objetivo essencialmente de apoio e de prevenção de irregularidades” explicitou (cfr. artigo 45º) que no exercício de tal função “…cabe ao Ministério dos Assuntos Sociais: a) inspecionar as instituições e seus estabelecimentos; b) facultar aos corpos gerentes o resultado das inspeções regulares, na parte em que possam contribuir para o aperfeiçoamento das instituições ou dos seus trabalhadores; c) proceder a inquéritos e sindicâncias; d) fazer depender de homologação ou visto dos serviços competentes a eficácia de atos de administração especificados na lei” (nº 1), salvaguardando que “…quando, em inquérito ou sindicância, se verifique que o funcionamento de estabelecimentos ou serviços das instituições decorre de modo ilegal ou gravemente perigoso para a saúde física ou moral dos beneficiários, podem os serviços competentes do Ministério dos Assuntos Sociais determinar o seu encerramento, tomando as medidas necessárias para os repor em funcionamento normal e para garantir entretanto os interesses dos mesmos beneficiários” (nº 2).
E caracterizando a terceira função (função interventiva) como aquela em que “…através dos tribunais, promove providências cautelares ou se substitui aos corpos gerentes das instituições” explicitou (cfr. artigo 46º) que no exercício de tal função “…cabe ao Ministro da Coordenação Social e dos Assuntos Sociais ou aos serviços do respetivo Ministério, de acordo com as respetivas competências: a) participar ao Ministério Público todos os factos considerados ilegais, apurados no exercício da ação orientadora e tutelar; b) pedir judicialmente, através do Ministério Público, a destituição dos corpos gerentes cuja ação revele prática reiterada de atos de gestão prejudiciais aos interesses das instituições, dos beneficiários ou do Estado” (nº 1), devendo neste caso, o juiz “…nomear uma comissão provisória de gestão, proposta pelo Ministério Público, com a competência dos corpos gerentes estatutários e cujo mandato terá a duração de um ano, prorrogável até três”, a qual deverá “…convocar a assembleia geral antes do termo das suas funções para eleger os novos corpos gerentes” (nº 2).
Simultaneamente previa o artigo 48º do Estatuto, que careciam “…de homologação dos serviços competentes do Ministério dos Assuntos Sociais: a) a fixação da estrutura orgânica das instituições e suas modificações; b) a mudança de atividade social ou sua cessação; c) a aquisição de bens imóveis a título oneroso e a alienação por qualquer título; d) a realização de empréstimos” (nº 1) e que “…os orçamentos, as contas das instituições e os seus quadros de pessoal são aprovados pelos corpos gerentes, nos termos estatutários, mas carecem de visto dos serviços competentes do Ministério dos Assuntos Sociais” (nº 2), o qual podia todavia ser dispensado se fosse inferior ao valor fixado por portaria (nº 4), não estando, de todo o modo, as contas das instituições sujeitas a julgamento do Tribunal de Contas (nº 3).
E o artigo 49º que “…quando as instituições suspendam o exercício de atividades de segurança social sem homologação prévia e se verifique que os beneficiários são por esse motivo gravemente prejudicados, pode o Ministro da Coordenação Social e dos Assuntos Sociais requisitar os bens afetados àquelas atividades, para serem utilizados, com o mesmo fim e na mesma área, por outras instituições ou por serviços oficiais” (nº 1), requisição que cessaria “…a) quando os bens deixarem de ser necessários ao exercício das ações a que estavam afetos; b) logo que as instituições voltem a assegurar a efetiva realização das mesmas atividades; c) quando houver lugar a atribuição definitiva de bens” (nº 2).
No que respeita especificamente às irmandades da Misericórdia (elencadas na alínea b) do nº 1 do artigo 3º do Estatuto como forma das instituições subsumíveis em instituições particulares de solidariedade social) o Estatuto, procedendo no seu artigo 56º à respetiva definição dispôs que “…as irmandades da Misericórdia ou santas casas da Misericórdia são associações constituídas na ordem jurídica canónica com o objetivo de satisfazer carências sociais e de praticar atos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e moral cristãs” (nº 1) e quanto ao seu reconhecimento legal consagrou que “…as irmandades da Misericórdia adquirem personalidade jurídica e são reconhecidas como instituições privadas de solidariedade social, mediante participação escrita da sua ereção canónica, feita pelo ordinário diocesano aos serviços competentes do Ministério dos Assuntos Sociais” (nº 2). Dispondo que às irmandades da Misericórdia assim reconhecidas se aplica “…diretamente o regime estabelecido no presente Estatuto, salvo no que especificamente respeite às atividades estranhas à segurança social” (cfr. artigo 57º nº 1).
E em sede de disposições transitórias foi estipulado no Estatuto que “…as instituições com fins de solidariedade social anteriormente qualificadas como pessoas coletivas de utilidade pública administrativa deixam de ter essa qualificação e passam a ser consideradas instituições privadas de solidariedade social, pelo que ficam sujeitas ao regime estabelecido no presente Estatuto” (artigo 88º nº 1). Exigindo apenas, para o efeito, às santas casas da Misericórdia ou Misericórdias, que viessem a obter ereção canónica “…a prova respetiva junto da Direcção-Geral da Segurança Social” (artigo 90º), explicitando simultaneamente que “…nos casos em que, por força do disposto no 3.º do artigo 108.º do Decreto-Lei 35108, de 7 de Novembro de 1945, coexistam uma santa casa da Misericórdia ou Misericórdia e a respetiva irmandade canonicamente ereta, pode a santa casa da Misericórdia ou Misericórdia integrar-se na irmandade, mediante acordo de ambas”, em termos que uma vez provada “…a regularização do acordo perante a ordem jurídica canónica, ter-se-á por extinta a santa casa da Misericórdia ou Misericórdia, sucedendo-lhe em todos os direitos e obrigações a irmandade da Misericórdia em que se tenha integrado” (artigo 91º).
Por último, cumpre referir que o Estatuto previu, ainda, para além das demais disposições transitórias nele insertas, já referidas, e sob a epígrafe “regime transitório”, que “… enquanto não forem efetuadas as diligências previstas nos artigos 88.º e 89.º, as instituições atualmente existentes que prossigam objetivos de segurança social ficam submetidas a um regime transitório assim definido: a) as subvenções ou subsídios, atribuídos através dos serviços do Ministério dos Assuntos Sociais, são concedidos mediante acordos de cooperação; b) as instituições conservam as isenções fiscais e regalias concedidas atualmente; c) ficam, desde logo, reguladas pelo presente Estatuto a ação orientadora e tutelar do Estado, a atividade das instituições, a sua extinção, integração, fusão ou cisão” (artigo 94º). Devendo, neste conspecto, ater-se no disposto nos referidos artigos 88º e 89º, que era o seguinte:
Artigo 88º - Mudança de qualificação
1 - As instituições com fins de solidariedade social anteriormente qualificadas como pessoas coletivas de utilidade pública administrativa deixam de ter essa qualificação e passam a ser consideradas instituições privadas de solidariedade social, pelo que ficam sujeitas ao regime estabelecido no presente Estatuto.
2 - Estas instituições deverão reformar os estatutos de acordo com o novo regime e adotar a forma que melhor se adapte às suas finalidades.
3 - No prazo de um ano a contar da entrada em vigor deste Estatuto, comunicarão à Direcção-Geral da Segurança Social a forma que adotaram e enviarão, para registo, os novos estatutos.”
Artigo 89º - Qualificação e registo de certas instituições
As instituições atualmente existentes que não sejam consideradas pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, mas que, pelos fins que prossigam, devam ser qualificadas como instituições privadas de solidariedade social, requererão, no prazo de cento e oitenta dias, a contar da entrada em vigor do presente Estatuto, o registo na Direcção-Geral da Segurança Social”.
3.2.9 A especificidade das instituições religiosas e das Misericórdias no contexto das instituições privadas de solidariedade social reconhecida no primeiro Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) aprovado por este DL. n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro de 1979, foi retomada e aprofundada naquele que viria a ser o novo Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo DL. n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, firmado na constatação, assim vertida no preâmbulo deste diploma, de que no primeiro Estatuto foi excessiva a “…delimitação do objetivo específico das instituições privadas de solidariedade social, tal como foi definido no artigo 1.º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro, ou seja, o «objetivo de facultar serviços ou prestações de segurança social»”, por “…a restrição assim estabelecida quanto aos objetivos próprios destas instituições viera limitar, de modo que pareceu de corrigir, o âmbito de aplicação de tal diploma, na medida em que dele ficaram formalmente excluídas muitas outras instituições, criadas com idêntico propósito, de autêntica solidariedade social, embora prosseguindo ações que não dizem respeito à área da segurança social”, mencionando-se que “…a solidariedade social exerce-se não só no sector da segurança social mas também em domínios como os da saúde (atividade hospitalar e serviços médicos ambulatórios), da educação, da habitação e de outros em que as necessidades sociais dos indivíduos e das famílias encontram apoio e resposta na generosidade e capacidade de intervenção próprias do voluntariado social organizado”.
Com efeito, manteve-se no novo Estatuto como forma de instituição particular de solidariedade social as irmandades da Misericórdia (cfr. artigo 2º nº 1 alínea e)), reiterou-se que as irmandades da Misericórdia ou santas casas da Misericórdia “…são associações constituídas na ordem jurídica canónica com o objetivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios de doutrina e moral cristãs (artigo 68º nº 1); que “…a aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da igreja católica é feita com respeito pelas disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940” (artigo 44º); que “…a personalidade jurídica das instituições canonicamente erectas resulta da simples participação escrita da erecção canónica feita pelo bispo da diocese onde tiverem a sua sede, ou por seu legítimo representante, aos serviços competentes para a tutela das mesmas instituições” (artigo 45º); e que às irmandades da Misericórdia se aplica “…diretamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias”, ressalvando-se, assim, da aplicação das normas do Estatuto no que especificamente respeite às atividades das irmandades das misericórdias estranhas aos fins de solidariedade social (artigo 69º nºs 1 e 3), mas simultaneamente, dispondo que subsidiariamente ao especificamente previsto na secção III para as irmandades da Misericórdia, a estas se aplica as disposições aplicáveis às associações de solidariedade social (artigo 69º nº 2).
3.2.10 Neste âmbito refere PAULO DÁ MESQUITA, in, “A TUTELA DAS MISERICÓRDIAS E O ÂMBITO DAS JURISDIÇÕES ECLESIÁSTICA E DO ESTADO”, in, revista JULGAR n.º 23, Coimbra Editora, 2014, pág. 134 ss., acompanhando GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, que “O dever estadual de apoiar a atividade das IPSS previsto no n.º 5 do artigo 63.º da Constituição constitui «também um meio de o Estado poder fazer depender a dimensão prestacional (a cargo do Estado) da observância de condições económicas e financeiras de forma a evitar que a multiplicação de IPSS, com base no direito (agora consagrado) à sua constituição de instituições particulares de solidariedade social, coloque em crise o sistema global do financiamento estadual». As irmandades da Misericórdia que também constituem IPSS, além de integrarem o sector cooperativo e social da economia (artigo 82.º, n.º 4, alínea d), da Constituição), estão submetidas à fiscalização estadual por força do n.º 5 do artigo 63.º da Constituição, que mesmo no caso das associações civis constituem «restrições ao direito geral de associação (cfr. art. 46.º) devem limitar-se ao necessário e serem proporcionais aos interesses públicos que as justificam»”. Acrescentando que “Os princípios de aplicação às irmandades da Misericórdia que são IPSS, «sem prejuízo da sujeição canónica», direta do regime jurídico previsto nesse estatuto e, subsidiária, das disposições aplicáveis às associações de solidariedade social decorrem do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 69.º do Estatuto das IPSS”. E que como foi referido no acórdão do STJ de 17-12-2009, “as irmandades da Misericórdia que são IPSS comportam «aspectos de índole patrimonial e prestacional que justificam a aplicação do nosso ordenamento jurídico e a sujeição a alguma forma de tutela ou controlo público (até porque, em muitos casos, o exercício de tal actividade prestacional envolve o recebimento de apoios ou subsídios públicos)». As restrições à autonomia das pessoas jurídicas aplicáveis à generalidade das IPSS que não interfiram com a organização interna das irmandades da Misericórdia enquanto pessoas jurídicas canónicas também se lhes aplicam enquanto IPSS. Existe, assim, uma tutela estatal que não colide com a das autoridades eclesiásticas e que, nalguns domínios, pode envolver escrutínios simultâneos, embora com diferentes vertentes funcionais, dos mesmos atos materiais”. Concluindo neste trecho que “a atividade com fins de assistência e solidariedade desenvolvida pelas irmandades da Misericórdia tem de respeitar o regime jurídico instituído pelo direito português, encontrando-se essas pessoas jurídicas canónicas sujeitas a fiscalização das competentes entidades estaduais similar à que impende sobre as pessoas jurídicas civis que sejam IPSS”.
E GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 4ª Edição, 2007, pág. 821, referem, neste domínio, que a tutela do Estado é, aqui, “…apenas uma tutela de legalidade, pois cabe ao Estado exercer poderes de fiscalização e inspeção destinados a garantir o cumprimento dos respetivos objetivos e a aferir da prossecução efetiva dos acordos e protocolos celebrados com o Estado”, mas que “…quando tais instituições sejam beneficiárias de apoios públicos, nomeadamente de subsídios, como frequentemente sucede, já os meios de fiscalização e intervenção do poder público são compreensivelmente mais amplos, em tudo o que se refira à utilização desses fundos. Por maioria de razão, sempre que as IPSS desempenhem tarefas públicas delegadas, por acordo com a Administração pública, então os respetivos convénios podem e devem prever os necessários instrumentos de controlo público”.
3.2.11 Tem, assim, que considerar-se que à luz do novo quadro normativo emanado no âmbito da Constituição de 1976 e decorrente do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social aprovado pelo DL. nº 519-G2/79 (e no seu seguimento, e em aperfeiçoamento deste, do novo Estatuto aprovado pelo DL nº 119/83) o apoio do Estado e das Autarquias Locais às IPSS, entre em que se inserem as Misericórdias, entre elas a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE… , tal como reconhecido pelo Estatuto, se destinará “…a reforçar os recursos próprios das instituições, aumentando-lhes as possibilidades de atuação e melhorando a qualidade desta” (cfr. artigo 5º nº 1 alínea f) do Estatuto aprovado pelo DL. nº 519-G2/79), devendo simultaneamente as instituições cooperar com os serviços públicos (bem como entre si) “…para obter o mais alto grau de justiça e de benefícios sociais e também de aproveitamento dos recursos” (cfr. artigo 5º nº 1 alínea g) do Estatuto aprovado pelo DL. nº 519-G2/79).
Nas relações entre o Estado e as instituições aquele exerce em relação a estas ação orientadora e tutelar, tendo por objetivo promover a compatibilização dos seus fins e atividades com os do sistema de segurança social, garantindo o cumprimento da lei e defendendo os interesses dos beneficiários e das próprias instituições (cfr. artigo 6º nº 1 do Estatuto aprovado pelo DL. nº 519-G2/79).
Erigindo o nº 3 do artigo 6º do Estatuto aprovado pelo DL. nº 519-G2/79 os acordos de cooperação, a celebrar entre o Estado (os serviços da Segurança Social, na dependência do Ministro dos Assuntos Sociais) e as Instituições como forma obrigatória de estabelecer essa cooperação, como claramente decorre do inciso «…são sempre estabelecidas mediante acordos de cooperação…» constante daquele normativo.
O que foi, aliás, mantido no novo Estatuto aprovado pelo DL nº 119/83, em cujo artigo 4º, sob a epígrafe “Apoio do Estado e das autarquias” se estabeleceu que “…o Estado aceita, apoia e valoriza o contributo das instituições na efetivação dos direitos sociais” (nº 1) e que “…o contributo das instituições e o apoio que às mesmas é prestado pelo Estado concretizam-se em formas de cooperação a estabelecer mediante acordos” (nº 2). Sem prejuízo de simultaneamente se ter admitido que “…as instituições podem encarregar-se, mediante acordos da gestão de instalações e equipamentos pertencentes ao Estado ou a autarquias locais” (nº 3) e salvaguardado que “...o apoio do Estado e a respetiva tutela não podem constituir limitações ao direito de livre atuação das instituições” (nº 4).
Foi, pois, correto o entendimento feito na sentença recorrida quanto a este aspeto, ao considerar que os acordos de cooperação passaram a constituir, com o Estatuto das IPSS´s (inicialmente pelo DL. nº 519-G2/79 e, posteriormente, pelo DL nº 119/83) um instrumento obrigatório para firmar a colaboração entre o Estado e as instituições.
3.2.12 A recomendação que o Provedor de Justiça emitiu nesta matéria (que vertemos supra) também não deixou de considerar isso mesmo, salientando que desse quadro normativo resulta o princípio que consubstancia o apoio do Estado às instituições concretizado em formas de cooperação a estabelecer mediante acordos, explicitando dele nada resultar «…incluindo das disposições particularmente dirigidas às organizações religiosas e, dentro destas, às instituições da Igreja Católica, que de alguma forma possa enquadrar a atribuição, por lei, do apoio» aqui em causa, e entendendo que, desta forma, o montante a ser atribuído à Santa Casa da Misericórdia de Sintra nos termos previstos no artigo 9º da Lei do Congresso da República de 24 de Junho de 1912, aparece atualmente como «…manifestamente desinserido do espírito que preside à legislação que atualmente disciplina as Misericórdias na sua relação com o Estado e muito em particular do mecanismo concreto concebido pelo legislador para a concretização do apoio público prestado àquelas Instituições», concluindo que «…se é verdade que tal não tolhe a liberdade do legislador, não é menos verdade que normas como a presente surgem agora como anómalas, assistemáticas, em suma, como privilégio», e que «…tal prescrição legal, provavelmente justificada face à realidade social e institucional existente à data em que foi aprovada, revela-se desajustada do quadro legal, social e institucional atualmente relevante, e desenquadrada do espírito que enforma hoje em dia o reconhecimento, valorização e apoio do Estado às entidades particulares em causa.»
Não obstante, naquela Recomendação do Provedor de Justiça considerou que a norma do artigo 9º da Lei do Congresso da República de 24 de Junho de 1912, no segmento em causa, poderia consubstanciar uma lei especial, designadamente face à lei geral que constitui o Estatuto das IPSS´s aprovado em 1979, e que assim, deveria atender-se ao disposto no artigo 7º nº 3 do Código Civil nos termos do qual a lei geral não revoga lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador. E entendendo não parecer possível descortinar, nesse quadro legal, uma intenção inequívoca do legislador no sentido da revogação do segmento normativo em causa, e propugnando como duvidosa a posição assumida pelo IPPAR com a suspensão da entrega à Santa Casa da Misericórdia de … de 25% da receita das entradas nos Palácios de Sintra e da Pena e respetiva fundamentação, propugnou que teria sido preferível que o Governo tivesse procedido à expressa revogação da norma contida na Lei de 1912 «…em nome da certeza e segurança jurídicas tão importantes num Estado de direito». Sensível que foi também à circunstância, ali atendida, de que à data a Irmandade da Misericórdia de Sintra recebia aquele apoio financeiro há quase noventa anos, sendo tal verba considerada por aquela instituição para efeitos de planeamento da sua atividade da mesma, com a qual constava e que simultaneamente, representaria uma verdadeira almofada financeira. E que, assim, «…a confiança na manutenção dessa receita terá determinado a conceção de iniciativas e a realização de investimentos por parte da Santa Casa que não teriam viabilidade não fosse a possibilidade do financiamento em causa» estando muitos projetos ainda em fase de concretização e correndo o risco de não resistir ao corte efetuado, o que conduziu a que também fosse recomendado que a eventual revogação expressa da norma constante do artigo 9º da Lei de 1912 fosse acompanhada, se necessário, «…de medidas de apoio financeiro pontuais, que o Governo poderá e deverá enquadrar no âmbito de competências do Ministério da Segurança Social e do Trabalho, tendo em vista possibilitar um período de transição que permita à Santa Casa da Misericórdia de … reequacionar todos os seus projetos com base na nova realidade».
3.2.13 A recorrente suporta-se precisamente no disposto no nº 3 do artigo 7º do Código Civil para suportar o invocado erro de julgamento quanto à decisão proferida pela 1ª instância. A nosso ver sem razão.
É que a leitura das normas, como aliás é sabido, não pode ser feita desenquadrada do contexto histórico, e também normativo, em que foram emitidas. As obras assistenciais, mormente as desenvolvidas pelas Irmandades, eram, como se viu, apoiadas casuisticamente pela coroa. E o apoio financeiro instituído pelo segmento do artigo 9º da identificada da Lei de 1912 à Misericórdia de Sintra nos primórdios da implantação da República, face à geração de nova e específica receita para o Estado republicano, com a nova afetação pública daqueles palácios, até então reais, que passaram a estar abertos para visita, ao público em geral, mediante o pagamento de taxas de entrada, tem também que considerar-se casuístico, e justificado nesse contexto.
Mas quando com a instauração do regime democrático o Estado assumiu como tarefas organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e apoiar (e fiscalizar) a atividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social (e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo), com vista à prossecução de objetivos de solidariedade social (cfr. artigo 63ºda CRP/1976), passando simultaneamente as obras de assistência a ser também asseguradas por um universo mais lato de outras formas organizativas, os apoios do Estado (e das autarquias locais) às atividades assistenciais (agora apelidadas de solidariedade social, no que reflete a modificação da estratificação social e do pensamento social e político) haveriam então de assumir, nos termos do Estatuto das IPSS´s que veio a ser aprovado pelo DL. nº 519-G2/79 e depois dele pelo DL nº 119/83, a forma de acordos de colaboração, co-envolvendo o Estado e as instituições no desenvolvimento dessas mesmas atividades.
Neste enquadramento o segmento da norma do artigo 9º da Lei de 1912 não poderá coexistir com o regime das IPSS instituído após a Constituição de 1976, nem sequer enquanto norma especial como propugna a recorrente.
3.2.14 Por outro lado, e como bem foi entendido na sentença recorrida, a subsistência daquele segmento normativo de 1912 não encontra já, no âmbito deste novo quadro normativo, qualquer justificação, e sempre seria simultaneamente atentatório do princípio constitucional da igualdade tal como consagrado no artigo 13º da Constituição/1976 na medida em que conferiria um apoio financeiro de relevo a uma IPSS desenquadrado das exigências legais decorrentes do Estatuto a que tais instituições estão submetidas, e de que a autora ficaria desonerada, sem justificação visível.
3.2.15 A que acresce dizer não assistir razão à recorrente quanto ao argumento, de que também lança mão, de que o legislador do Estatuto das IPSS´s (aprovado pelo DL. nº 519-G2/79 e depois dele pelo DL nº 119/83) ressalva, nas suas palavras «regimes especiais vigentes à época». É que das normas em que a recorrente se suporta para tal efeito, não se retira o por si propugnado. Na verdade, o Estatuto aprovado pelo DL. nº 519-G2/79 previu, para além das demais disposições transitórias nele insertas, sob a epígrafe “regime transitório”, que “… enquanto não forem efetuadas as diligências previstas nos artigos 88.º e 89.º, as instituições atualmente existentes que prossigam objetivos de segurança social ficam submetidas a um regime transitório assim definido: a) as subvenções ou subsídios, atribuídos através dos serviços do Ministério dos Assuntos Sociais, são concedidos mediante acordos de cooperação; b) as instituições conservam as isenções fiscais e regalias concedidas atualmente; c) ficam, desde logo, reguladas pelo presente Estatuto a ação orientadora e tutelar do Estado, a atividade das instituições, a sua extinção, integração, fusão ou cisão” (artigo 94º). Sendo que o que os referidos artigos 88º e 89º, dispunham era o seguinte:
Artigo 88º - Mudança de qualificação
1 - As instituições com fins de solidariedade social anteriormente qualificadas como pessoas coletivas de utilidade pública administrativa deixam de ter essa qualificação e passam a ser consideradas instituições privadas de solidariedade social, pelo que ficam sujeitas ao regime estabelecido no presente Estatuto.
2 - Estas instituições deverão reformar os estatutos de acordo com o novo regime e adotar a forma que melhor se adapte às suas finalidades.
3 - No prazo de um ano a contar da entrada em vigor deste Estatuto, comunicarão à Direcção-Geral da Segurança Social a forma que adotaram e enviarão, para registo, os novos estatutos.”
Artigo 89º - Qualificação e registo de certas instituições
As instituições atualmente existentes que não sejam consideradas pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, mas que, pelos fins que prossigam, devam ser qualificadas como instituições privadas de solidariedade social, requererão, no prazo de cento e oitenta dias, a contar da entrada em vigor do presente Estatuto, o registo na Direcção-Geral da Segurança Social”.
Trata-se ali, claramente, de assegurar um regime transitório, até à adaptação das instituições ao novo enquadramento contante do Estatuto. O qual em nada bule com a situação da autora, e que, além do mais, se destinada a uma vigência temporal limitada e transitória.
3.2.16 Aqui chegados, e por tudo o exposto, tem de concluri-se não assistir razão à recorrente, devendo manter-se o julgamento de improcedência feito na sentença recorrida.
Não merece, pois, provimento o recurso, devendo confirmar-se a sentença recorrida. O que se decide.
~
3.3 Da requerida ampliação do objeto do recurso
Em face do supra decidido, com improcedência do recurso da autora, fica prejudicado o conhecimento do objeto ampliado do recurso requerido a título subsidiário pelo recorrido Estado Português nas suas contra-alegações, de que assim nos abstemos de conhecer.
*
IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
~
Custas pela recorrente - artigo 527º nºs 1 e 2 do CPC novo (aprovado pela Lei nº 41/2013) e artigos 7º e 12º nº 2 do RCP (artigo 8º da Lei nº 7/2012, de 13 de fevereiro) e 189º nº 2 do CPTA.
*
Notifique.
D.N.
*
Lisboa, 19 de abril de 2018

______________________________________________________
Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas (relatora)




______________________________________________________
Maria Cristina Gallego dos Santos




______________________________________________________
Ana Celeste Catarrilhas da Silva Evans de Carvalho