Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13482/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:03/16/2017
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:FUNDO DE GARANTIA SALARIAL
Sumário:I – O recurso apenas pode incidir sobre questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

II - O pagamento de créditos laborais pelo Fundo de Garantia Salarial não depende do seu prévio reconhecimento por parte do administrador de insolvência ou da decisão judicial da ação onde se impugne o não reconhecimento dos créditos por parte do administrador
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

SUSANA …………………, NIF ………………, com domicílio em Rua………………, nº 13, 8º - C, 2770-002 ……………., intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de LISBOA ação administrativa especial contra

- FUNDO DE GARANTIA SALARIAL, com sede em Av. ……………………, n.º 58, 1049-002 Lisboa.

O pedido formulado foi o seguinte:

- Declaração de nulidade ou anulação de decisão de indeferimento do Fundo de Garantia Salarial e

- A sua condenação a pagar-lhe os créditos laborais até ao limite máximo legalmente previsto.

Por sentença de 06-10-2015, o referido tribunal veio a prolatar decisão, onde julgou procedente a ação, anulando o despacho de indeferimento impugnado.

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Inconformada com tal decisão, a entidade demandada interpôs, no dia 26-01-2016, o presente recurso de apelação (autuado neste TCA Sul no dia 22-06-2016), formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

A -

O Tribunal a quo, por sentença, considerou a presente ação procedente e decidiu anular o despacho de indeferimento proferido pelo Senhor Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, com as devidas consequências legais;

B -

Ora, entende o recorrente o Fundo de Garantia Salarial que existe fundamento para recusar o pagamento peticionado pela A., uma vez que os créditos peticionados não foram reconhecidos pelo Administrador de Insolvência, decisão que foi impugnada judicialmente pela A. e que ainda não foi objeto de decisão pelo Tribunal do Comércio;

C -

O Fundo de Garantia Salarial não pode aceitar e dar como provada a existência de créditos, enquanto eles não forem reconhecidos em sede própria, no processo de insolvência;

D -

O Fundo de Garantia Salarial entende que se o Administrador de Insolvência não reconheceu os créditos e o Juiz da Insolvência ainda não decidiu se os reconhece, não pode a A. dizer que tem créditos e, que, portanto, pretender que o ora recorrente lhos pague;

E - Relativamente à instrução do requerimento destinado a requerer pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho estabelece o artigo 324.º da Lei n.º 35/ 2004, de 29 de julho, os documentos elencados que se destinam a provar a existência dos referidos créditos;

F - Assim, a A. deveria ter instruído o seu requerimento com certidão ou cópia autenticada comprovativa dos créditos reclamados emitida pelo tribunal competente onde corre o processo de insolvência, nos termos do supracitado artigo 324.º, alínea a), da Lei n.º 35/ 2004, de 29 de julho;

G - Como é bom de ver, os documentos comprovativos de que a A. reclamou créditos no processo de insolvência e de que impugnou a decisão do administrador da insolvência que não os reconheceu, não consubstanciam documentos comprovativos da existência do crédito reclamado, para efeitos do disposto no artigo 324.º, alínea a), da Lei n. º35/ 2004, de 29 de julho;

H -

Os documentos juntos pela autora apenas provam que reclamou os seus créditos, no âmbito do processo de insolvência, mas não que tais créditos existem, na medida em que os mesmos não foram reconhecidos pelo administrador da insolvência,

I - Deste modo, só após ser proferida decisão sobre a impugnação deduzida pela autora, esta, caso a mesma seja julgada procedente, poderá exigir ao Fundo de Garantia Salarial o pagamento dos créditos laborais que se arroga;

J -

O FGS só pode assegurar o pagamento dos créditos dos trabalhadores, entenda-se, existentes, a que este tenha direito, e não alegados créditos que o trabalhador diga ter, mas cuja existência jurídica esteja em discussão entre as partes, e, cujo litígio aguarde que seja dirimido pelo juiz de insolvência

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A recorrida não contra-alegou.

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O digno magistrado do M.P. junto deste tribunal foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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Consideramos as três dimensões do Direito como ciência do conhecimento prático - por referência à ação humana e ao “dever-ser” inerente às normas jurídicas -, quais sejam, (i) a dimensão factual social - que influencia muito e continuamente o direito legislado através das janelas de um “sistema jurídico” estável (: uma ordem teleológica e axiológica, aberta, de princípios jurídicos gerais, encimada pela Constituição material), (ii) a dimensão ética e seus princípios práticos - que influenciam o direito objetivo também e apenas através das janelas do sistema jurídico - e, a jusante, (iii) a dimensão normativa e seus princípios prático-jurídicos.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Ora, do confronto entre a decisão objeto de recurso e as conclusões afirmadas pelo Recorrente resulta que a questão da adequação dos documentos juntos pela Recorrida para instruir o seu requerimento a solicitar o pagamento de créditos ao Recorrente (conclusões E a H) – que não diz respeito à prova neste processo, mas sim no procedimento administrativo - constitui questão que não foi suscitada e apreciada em sede de primeira instância.

Pelo que não pode este Tribunal de recurso conhecer da mesma.

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.

A questão a resolver neste recurso é a identificada no ponto II.2, onde a apreciaremos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

O tribunal “a quo” deu como provada a seguinte matéria de facto:

1. SUSANA …………………….., ora A., foi trabalhadora dos Supermercados …………………….., SA, auferindo, em 2011, a remuneração base mensal de €614,50 (cfr. os docs. 1 e 4 juntos com a p.i, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);

2. Por sentença, de 20.5.2011, do 3º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, proferida no processo nº 170/11.2TYLSB, publicitada no DR., 2ª Série, nº 119, de 22 de junho, Anúncio nº 8598/2011, foi declarada a insolvência da Supermercados ………………, SA, e nomeado Administrador da Insolvência: Eusébio …………………… (cfr. o doc. 2 junto com a p.i, idem);

3. Em 18.7.2011, a ex-entidade empregadora da aqui A., Supermercados ……………………, SA., emitiu declaração comprovativa de que a A. foi sua trabalhadora desde 12.4.1999, e que lhe deve as quantias de “- €307,25 referente a metade do subsídio de natal do ano de 2010; // - €1.823,22 referente a diferenças de vencimento por atualização salarial, (…)” (cfr. o referido doc. 1 junto com a p.i,);

4. A ora A. apresentou no processo nº 170/11.2TYLSB reclamação de créditos dirigida ao Administrador da Insolvência, o Sr. Eusébio ………………………, no valor total de €19 265,03 (cfr. o doc. 4 junto com a p.i, ibidem);

5. A reclamação que antecede foi recebida e assinada em 22.7.2011 pelo Sr. Administrador da Insolvência (idem);

6. Em 5.9.2011, a ora A. impugnou, no processo nº 170/11.2TYLSB, da Lista de Credores Reconhecidos, em virtude do não reconhecimento de qualquer dos seus créditos por parte do Sr. Administrador da Insolvência (cfr. o doc. 5 junto com a p.i, ibidem);

7. Em 13.10.2011 a ora A. entregou junto da Segurança Social requerimento, para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho pelo FGS, ora Entidade demandada, preenchendo todos os campos do Mod. GS 1/2012-DGSS, aprovado, designadamente o 4. “[o]s valores indicados foram reclamados em processo judicial de falência a decorrer no Tribunal do Comércio de Lisboa, 3º Juízo, (…), Processo nº 170/11.2TYLSB (…)” (cfr. o doc. 3 junto com a p.i, ibidem);

8. O requerimento que antecede foi certificado, rubricado e datado, pelo empregador (idem);

9. Em 6.7.2012 a ora A. apresentou requerimento junto da Segurança Social, juntando certidão do Tribunal de Comércio com o seguinte teor: “CERTIFICA que, neste Tribunal e Juízo correm termos de “Insolvência de Pessoa Coletiva (…), registados sob o nº 170/11.2TYLSB, em que é requerente “P………………..Unipessoal, Lda.”, com sede (…), e insolvente "Supermercados ……………., S. A”, sede em (…), com o valor processual de (…), a qual foi apresentada Juízo em 07-02-2011. // MAIS CERTIFICA que por sentença dotada de 20/05/2011, transitada em julgado em 17/07/2011, foi declarada a insolvência da insolvente. // AINDA SE CERTIFICA NARRATIVAMENTE que o credor "Susana ………………….” reclamou um crédito, não reconhecido pelo Sr. Administrador da Insolvência no relatório elaborado nos termos do art. 129º do C.I.R.E., no montante de €19.262,03, tendo o não reconhecimento desse credito sido impugnado pelo referido credor. // É quanto cumpre certificar (…), destinando-se a presente a ser entregue ao credor "Susana ……………………….”, para efeitos de ser apresentada junto do Fundo de Garantia Salarial. // (…)” (cfr. o doc. 6 junto com a p.i, ibidem);

10. Pelo, de 15.6.2012, a Sra. Diretora da Segurança Social, notificou a aqui A. de que por despacho, de 8.6.2012, do Sr. Presidente do FGS, foi indeferido o pedido de pagamento de créditos, com os seguintes fundamentos: “(…) - Os seus créditos encontram-se na lista do Administrador de Insolvência como não reconhecidos. // - O requerimento não se encontra instruído com os documentos previstos no artigo 324º da Lei 35/2004, de 29 de julho // - Mais se informa que quando for proferida a sentença de Verificação e Graduação dos Créditos, pode V/Exa. reclamar o Fundo de Garantia Salarial.” (cfr. o doc. de fls. 64 do p.a, ibidem);

11. O despacho que antecede é de concordância com o Parecer, emitido pelo Núcleo do FGS, de 8.6.2012, propondo que se mantenha da proposta de indeferimento, sobre a qual a aqui A., foi ouvida em audiência de interessados (cfr. de fls. 58 a 63 do p.a., ibidem);

12. Em 19.11.2012 foi instaurada a presente ação;

13. Na data que antecede a reclamação do crédito e a impugnação do não reconhecimento do mesmo pelo Administrador da Insolvência, deduzidos pela A. no processo nº 170/11.2TYLSB continuavam pendentes (não impugnado).

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II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há, pois, condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional), ter presentes, “inter alia”, os seguintes princípios jurídicos fundamentais: (i) juridicidade e legalidade da administração pública, ao serviço do bem comum; (ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas; (iii) certeza e segurança jurídicas (em vez do casuísmo judicial inerente ao “common law” (1)); e (iv) tutela jurisdicional efetiva dos direitos das pessoas.

Em consequência, este tribunal utiliza uma doutrina da aplicação prática do direito (ou método jurídico (2)) adequada à garantia efetiva, previsível e transparente dos direitos e interesses legítimos das pessoas, através de um processo decisório orientado apenas (i) à concretização da Constituição material e (ii) ao controlo racional de coerência dos nexos da sistematicidade jurídica que precedam a resolução do caso.

Com efeito, a resolução de litígios através de um tribunal, num Estado democrático e social de Direito como o nosso, implica: (i) um rigoroso respeito pelas normas materialmente constitucionais inseridas nos artigos 9º e 10º do Código Civil, na busca do pensamento legislativo da fonte de direito dentro do sistema jurídico atual e com respeito pela máxima constitucional da sujeição dos juizes às leis e aos artigos 111º e 112º da Constituição da República Portuguesa (cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, págs. 23-29 e Parte II; e JOSÉ LAMEGO, Elementos de Metodologia Jurídica, 2016, págs. 11-36, 71-108 e 259-292); (ii) e, nos casos “difíceis” e excecionais em que tal for lícito ao juiz, implica ainda a metodologia racional-justificativa consistente no sopesamento ou ponderação de bens, interesses e valores eventualmente colidentes na situação concreta, sob a égide da máxima metódica da proporcionalidade, mas sempre sem prejuízo, quer dos cits. quatro princípios jurídicos fundamentais, quer do princípio constitucional da sujeição da atividade jurisdicional às leis (artigos 2º, 13º, 20º e 202º ss da Constituição da República Portuguesa e artigos 8º ss do Código Civil). Afinal, “a decisão jurisdicional é continuação do processo de criação jurídica” (H. KELSEN), mas não é momento inicial criador; nela, o tribunal procede a várias operações consecutivas relativas à correção externa e à correção interna da sua decisão: a obtenção racional - e de acordo com a lei - da premissa menor da sentença, isto é, da factualidade relevante; a interpretação jurídica científica das fontes de direito, de acordo com os artigos 9º e 10º do Código Civil e a CRP, para obtenção da premissa maior; e, finalmente, a escolha da solução que, no estrito espectro das possibilidades reveladas direito objetivo aplicável, seja aceitável de um ponto de vista racional e possa valer para casos análogos (cf. artigos 2º, 13º e 202º ss da Constituição da República Portuguesa e artigos 8º ss do Código Civil).

Ora, o presente recurso de apelação coloca a seguinte questão:

- O pagamento de créditos laborais pelo Fundo de Garantia Salarial está dependente do seu prévio reconhecimento por parte do Administrador de Insolvência ou do Juiz da Insolvência, quando aquele não os tenha reconhecido?

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Vejamos.

A sentença objeto de recurso conclui, em síntese, que o prévio reconhecimento do crédito salarial em sede de processo de insolvência da entidade patronal não é conditio sine qua non do pagamento pelo FGS, dado que os pressupostos estabelecidos pelo quadro legal aplicável (o qual é constituído pela Lei nº 35/2004 de 29 de julho – veja-se a este propósito o artigo 3º do Decreto-Lei nº 59/2015 de 21 abril, que rege sobre a aplicação no tempo do novel diploma) são (i) o vencimento dos créditos laborais e (ii) a instrução do pedido com os documentos indicados no artigo 324º da Lei nº 35/2004 de 29 de julho (3).

Esta posição merece o nosso acordo, em parte pelos argumentos que já constam da decisão recorrida.

O Fundo de Garantia Salarial assegura, em caso de incumprimento pelo empregador, ao trabalhador o pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, nos casos, inter alia, em que o empregador seja judicialmente declarado insolvente. Refere-se aos créditos que se tenham vencido nos seis meses que antecedem a data da propositura da ação.

Com efeito, não se vislumbra dos comandos legais aplicáveis in casu (artigos 316º a 326º da Lei nº 35/2004 de 29 de julho) que o prévio reconhecimento dos créditos por parte do Senhor Administrador de Insolvência seja pressuposto ou requisito para se poder requerer o seu pagamento ao Fundo de Garantia Salarial. Ou, caso este não os reconheça, a existência de decisão judicial posterior em processo de impugnação daquele não reconhecimento.

Concomitantemente, e in casu, é possível retirar da matéria de facto dada como provada que a Recorrida cumpriu com todos os pressupostos que se encontravam na sua esfera de ação, além do comprovado vencimento do crédito salarial (e da outra questão, não apreciada pela decisão recorrida, relativa à instrução do pedido ao FGS). Assim, a autora aqui recorrida:

- Procedeu à reclamação dos créditos laborais na ação de insolvência (cf. artigo 324º/a) da Lei 35/2004);

- Dirigiu requerimento ao Fundo de Garantia Salarial para pagamento dos créditos laborais, requerimento este que foi certificado/datado e assinado pela sua ex-entidade empregadora;

- Deduziu impugnação judicial da decisão de não reconhecimento dos créditos por parte do Administrador da Insolvência.

Considerando esta realidade e que foi proferida sentença que decretou a insolvência da ex-entidade empregadora da Recorrida, e que a ex-entidade empregadora assumiu que devia determinadas importâncias à Recorrida, enquanto ex-trabalhadora sua (pontos 2 e 3 da matéria de facto provada), não merece censura a decisão da Meritíssima Juíza do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Para além dos arestos jurisprudenciais já citados na decisão recorrida, e embora sobre questão diferente, veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10-09-2015 no processo nº 0147/15 (disponível em www.dgsi.pt), que configura o vencimento dos créditos como condição para solicitar o seu pagamento ao Fundo de Garantia Salarial, sendo irrelevante a existência de decisão judicial que os reconheça (aliás, este aresto chama também à colação acórdãos referidos na sentença objeto de recurso).

E veja-se também o e-book do Centro de Estudos Judiciários, de dezembro de 2014, com o título “Processo de insolvência e ações conexas” (pág. 728), onde se afirma que: “(…) uma vez verificadas as pressupostas circunstâncias, a invocada possibilidade de acionar o Fundo de Garantia Salarial não depende da apresentação da decisão definitiva sobre os créditos peticionados, para cujo fim valem outros meios de prova: certidão ou cópia autenticada comprovativa dos créditos reclamados pelo trabalhador emitida pelo Tribunal competente onde corre o processo de insolvência, ou pelo IAPMEI, no caso de ter sido requerido o procedimento de conciliação; também a declaração emitida pelo empregador, comprovativa da natureza e montante dos créditos em dívida, declarados no requerimento pelo trabalhador e ainda declaração de igual teor emitida pela ACT, anotando-se que na sentença declarativa da insolvência se cuidou logo de notificar o FGS – vide o já citado texto de Maria Adelaide Domingos, pg. 277, e o ajuizado a propósito no citado Acórdão de 25.3.2010.” , (disponível aqui:

http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Processo_insolvencia_acoes_conexas.pdf)

Temos assim que a posição assumida pela Recorrente carece de sustentação legal.

Mas, há um outro prisma que nos parece relevante considerar e que o despacho impugnado e, consequentemente, a posição vertida pela Recorrente nas suas peças processuais, ignora, que é o cariz eminentemente social do Fundo de Garantia Salarial.

Isto é, o Fundo de Garantia Salarial foi criado pelo legislador, visando garantir (como a própria designação indica) o pagamento aos trabalhadores das prestações consignadas no quadro legal aplicável, e a que já nos referimos.

Acresce que este pagamento não pode demorar tanto no tempo que se revele (quase) desnecessário quando, por fim, chegar, deixando até lá, os trabalhadores requerentes numa situação potencialmente insustentável.

Logo, não nos parece que faça sentido tornar o acesso ao Fundo de Garantia Salarial um caminho repleto de escolhos (sendo, que, infelizmente, a complexidade e morosidade de um processo judicial não podem deixar de ser vistos como um escolho por parte de um trabalhador requerente), que seguramente os principais destinatários deste instituto não lograrão ultrapassar, erigindo um obstáculo que o legislador não pode ter desejado aquando da criação deste instituto.

Aliás, se bem vemos, só esta perspetiva fundamenta a criação por parte do legislador de um mecanismo de sub-rogação (cf. artigo 322º da Lei 35/2004), que permite depois ao Fundo de Garantia Salarial acionar os mecanismos necessários a ser ressarcido relativamente aos valores que adiantou aos trabalhadores requerentes, ficando sub-rogado nos seus direitos.

Não é assim merecedora de censura a decisão recorrida, pelo que cabe confirmar a mesma.

Concluindo:

I – O recurso apenas pode incidir sobre questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

II - O pagamento de créditos laborais pelo Fundo de Garantia Salarial não depende do seu prévio reconhecimento por parte do administrador de insolvência ou da decisão judicial da ação onde se impugne o não reconhecimento dos créditos por parte do administrador.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, negando provimento ao recurso, julgá-lo improcedente.

Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 16-03-2017


(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(J. Gomes Correia)


(1)“Incentivado” pela dispensa de fundamentação das decisões judiciais da 1ª instância e dos júris (cf. JOSÉ LAMEGO, Elementos de Metodologia Jurídica, 2016, pág. 169).
(2) Ou método concretizador da Ciência do Direito, o método da disciplina que, em termos empíricos ou de “quids” a posteriori, conhece e expõe o direito vigente, depurando a linguagem jurídica, complementando-a e ordenando-a (N. BOBBIO, “Scienza del Diritto e Analisi del Linguaggio” (1950), in: Uberto Scarpelii (ed.), Diritto e Analisi del Linguaggio, Milão, 1979, págs. 287-324); a C. do Direito trata, pois, da determinação do significado das fontes e também da enunciação de proposições e teorias para resolver casos; não trata da descrição e sistematização das normas jurídicas e dos conceitos jurídicos fundamentais em termos estruturais-formais ou de “quids” a priori.
(3)O requerimento previsto no número anterior é instruído, consoante as situações, com os seguintes meios de prova:
a) Certidão ou cópia autenticada comprovativa dos créditos reclamados pelo trabalhador emitida pelo tribunal competente onde corre o processo de insolvência ou pelo IAPMEI, no caso de ter sido requerido o procedimento de conciliação;
b) Declaração, emitida pelo empregador, comprovativa da natureza e do montante dos créditos em dívida declarados no requerimento pelo trabalhador, quando o mesmo não seja parte constituída;
c) Declaração de igual teor, emitida pela Inspeção-geral do Trabalho.