Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:646/15.2BECTB
Secção:CA
Data do Acordão:10/18/2018
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:FUNDOS EUROPEUS
ANULAÇÃO ADMINISTRATIVA
DIREITO EUROPEU
PRINCIPIO DO APROVEITAMENTO DO ATO
Sumário:I. Incorre a sentença em erro de julgamento de facto, por deficiência, se omite factualidade relevante sobre os fundamentos da acção, alegada pelas partes nos respetivos articulados, que se encontra demonstrada documentalmente no processo administrativo.
II. O ato administrativo que elimina obrigações ou encargos para o seu destinatário é um ato constitutivo de direitos, na aceção do n.º 3 do artigo 167.º do CPA.
III. Constituindo o objecto do ato impugnado a anulação de um ato constitutivo de direitos de conteúdo pecuniário, cuja legalidade pode ser objecto de controlo ou fiscalização administrativa, segundo a legislação aplicável, para além do prazo de um ano, com a imposição do dever de restituição das verbas indevidamente recebidas, aplica-se o prazo de anulação de cinco anos, previsto na alínea c), do n.º 4 do artigo 168.º do CPA e não o prazo de seis meses, previsto no n.º 1 do artigo 168.º do CPA.
IV. Resultando demonstrado que o destinatário do ato não foi ouvido em momento anterior ao da sua prática e que não teve a oportunidade de se pronunciar sobre o seu conteúdo no âmbito do procedimento administrativo, ocorre a preterição da audiência do interessado.
V. Estando em causa um ato de conteúdo vinculado, não podendo ter outro conteúdo, tem aplicação o disposto nas alíneas a) e c), do n.º 5 do artigo 163.º do CPA, que determina que não se produz o efeito invalidatório do ato administrativo, segundo o princípio do aproveitamento do ato administrativo.
VI. Trata-se de um mecanismo ope legis, que vincula o juiz a não anular o ato, afastando a margem do poder ou discricionariedade judicial em relação ao efeito anulatório do ato.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I – RELATÓRIO

O IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, IP, devidamente identificado nos autos, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, datada de 20/09/2016, que no âmbito da ação administrativa, instaurada por A…, julgou a ação procedente, anulando a decisão do Presidente do Conselho Diretivo do IFAP, notificada pelo ofício n.º IFAP-DAS-206…./2015, de 22/07/2015.


*

Formula o aqui Recorrente, IFAP nas respetivas alegações (cfr. fls. 148 e segs. – paginação referente ao processo em suporte físico, tal como as referências posteriores), as seguintes conclusões que infra e na íntegra se reproduzem:

A. A decisão proferida pelo Tribunal a quo padece dos vícios de insuficiência da matéria de facto dada por provada e erro de julgamento.

B. Do processo administrativo e do alegado pelas partes na fase dos articulados, resultam factos com relevância para a discussão dos presentes e que, pese embora o devessem ter sido, que não foram consideradas na matéria de facto dada por provada.

C. Assim, e porque não foram valorados os factos invocados pelo Réu nos artigos 3° a 10° da contestação e que se encontram devidamente refletidos no processo instrutor junto aos autos, deverá a decisão do tribunal a quo ser alterada de forma a que da mesma passe a constar, como provados os seguintes factos:

a) - “Na Campanha de 2005, o Autor através de uma transferência de exploração, assumiu o compromisso que M…. havia assumido na Campanha 2004 à Intervenção “Medidas Agroambientais - Sistemas Forrageiros Intensivos”, do Plano de Desenvolvimento Rural, previsto no Regulamento (CEE) nº 1257/99, do Conselho, de 17 de Maio, e cujo regulamento de aplicação foi aprovado pela Portaria 1212/2003, de 16 de Outubro, conforme fls 34 a 41 do PA”

b) – “compromisso assim assumido deveria ser mantido durante um período de cinco anos a contar da data da candidatura apresentada em 2004”.

c) - “Na campanha de 2008, o Autor não apresentou candidatura às medidas agras ambientais, conforme resulta do documento de fls 63 a 69 do PA”

D. A douta sentença incorre ainda em erro de julgamento ao anular o ato impugnado, por um lado por considerar que o ato em causa violou o limite temporal imposto pelo artigo 168º, nº 1 do CPA, por considerar que o ato anulado era um ato constitutivo de direitos, e ainda por entender que existiu a preterição de formalidade essencial, e que a mesma deve ser sancionada com a anulação do ato.

E. Resulta do regime comunitário instituído que, nos casos como o dos autos - em que, por facto imputável ao beneficiário (quebra do compromisso) os pagamentos efetuados devem ser devolvidos, exceto se entre a data do pagamento da ajuda e a data da primeira notificação ao beneficiário tiverem decorridos dez anos (artigo artigo 49° do Regulamento (CE) nº 2419/2001 da Comissão, de 11 de Dezembro)

F. Nos presentes está sob análise o ato praticado pelo Recorrente em 2015 que determinou a reposição das quantias indevidamente recebidas, e cuja restituição havia sido já determinada por ato do recorrente de 2011.

G. A douta sentença ao analisar a validade do ato impugnado, somente à luz do direito nacional, cometeu um erro de julgamento.

H. O ato de 2013, anulado pelo ato impugnado, assentou num erro sobre os pressupostos de facto, porquanto não deixaram nunca de subsistir os fundamentos para determinar a reposição das verbas indevidamente recebidas, pois que, de facto, existiu uma quebra de compromisso por parte do beneficiário, a qual tem como consequência a reposição de tudo quanto foi recebido até àquela data.

I. Não pode ser qualificado como sendo constitutivo de direitos (apesar de ter essa aparência) o ato que, em erro sobre os pressupostos de facto, determinou o arquivamento do procedimento administrativo de recuperação de verbas indevidamente recebidas, em especial quando o destinatário desse ato de arquivamento bem sabia da existência do erro sobre os pressupostos, ou pelo menos, poderia consubstanciar a existência de tal erro, uma vez que sabe que não houve alteração das circunstâncias que inicialmente determinaram a recuperação.

J. A anulação administrativa ora prevista no artigo 165º e seguintes do CPA de 2014, coincide, em larga medida, à anterior revogação do ato prevista no artigo 141° do CPA, que previa a possibilidade da revogação de atos com fundamento na sua invalidade no prazo de um ano (o prazo mais alargado para o recurso contencioso), sendo que, sobre aquele artigo 141° e a sua compatibilização com o direito comunitário foi emitido, entre outros o Venerando Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06 de Outubro de 2005 (processo nº 2017/02), ali se firmando jurisprudência com total aplicabilidade no caso dos autos, já que, estabelecendo a norma comunitária aplicável prazo distinto e como referido no citado aresto “tem de prevalecer a norma comunitária, afastando a aplicação do att.º 141.º n.º 1 do CPA, como consequência do primado do direito comunitário, tal como tem sido definido de modo constante pela jurisprudência do TJC.”; aqui, naturalmente tendo que prevalecer a norma contante do artigo 49° do Regulamento (CE) nº 2419/2001 da Comissão, de 11 de Dezembro, em detrimento da norma plasmada no artigo 168° do CPA, julgando-se assim válido o ato impugnado.

K. Tendo o Recorrido oferecido pronúncia no âmbito do procedimento administrativo em que se insere o ato impugnado, não deverá ser considerada preterida aquela formalidade.

L. Ainda que assim seja considerado, importa ainda apurar se tal omissão deverá ter efeitos invalidantes do ato impugnado, concluindo-se em sentido negativo quando perante casos, como o dos autos em que, ainda que o interessado tivesse sido auscultado, o sentido da decisão seria exatamente o mesmo atendendo ao quadro legal aplicável, devendo, nestes casos, aplicar-se o principio já há muito consagrado jurisprudencialmente e ora com acolhimento legal no artigo 163°, nº 5 do CPA, do aproveitamento do ato administrativo.”.

Pede que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão e substituindo-se aquela por decisão que julgue totalmente improcedente a ação interposta, absolvendo o Recorrente dos pedidos formulados


*

O ora Recorrido, notificado da admissão do recursão, não apresentou contra-alegações, nada tendo dito ou requerido.

*

Notificado o Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, foi emitido parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, por ter o ato impugnado violado o regime da anulação dos atos administrativos constitutivos de direitos e ainda, o princípio da participação, traduzido no direito de audiência do interessado.

*

O processo vai, com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

Segundo as conclusões do recurso, as questões suscitadas pelo Recorrente, resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de:

1. Erro de julgamento de facto, por insuficiência da matéria de facto dada por provada;

2. Erro de julgamento de direito, por entender que o ato anulado é um ato constitutivo de direitos e quanto à aplicação do limite temporal previsto no artigo 168.º n.º 1 do CPA;

3. Erro de julgamento de direito, quanto à violação do princípio de participação do interessado.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

1) Os serviços da entidade demandada remeteram ao autor, que recebeu, o ofício DEV0006/2011/260323, relativo ao processo n.º 02159/2011, datado de 13/10/2013, assinado por um vogal do conselho directivo da entidade demandada, invocando agir no uso de competências delegadas pela deliberação n.º 1722/2010, publicada no DR, 2.ª Série, de 24/09/2014, do qual consta o seguinte:

«(...)


(“texto integral no original; imagem”)

(…)» [cfr. fls. 4, do processo administrativo].

2) Em 03/11/2011 o autor remeteu, através de carta registada, para a entidade demandada, que recebeu, um requerimento no qual solicitou o pagamento em prestações da quantia descrita no ponto anterior [cf. fls. 5-6, do processo administrativo].

3) A entidade demandada remeteu ao autor um ofício do qual consta o seguinte:


(“texto integral no original; imagem”)

(...)» [cf. fls. 7, do processo administrativo].

4) A entidade demandada remeteu ao autor um ofício do qual consta o seguinte:

«(…)


(“texto integral no original; imagem”)

(...)» [cf. fls. 9, do processo administrativo].

5) Em 28/06/2013 a unidade de devedores do departamento jurídico e devedores da entidade demandada solicitou, através de mensagem de correio electrónico, que a unidade de ajudas ao desenvolvimento rural do departamento de ajudas directas da entidade demandada informasse, entre outros, sobre o estado do processo n.º 02159/2011, a que se refere o ofício descrito em 1) [cf. fls. 11, do processo administrativo].

6) Em 02/07/2013 a unidade de ajudas ao desenvolvimento rural do departamento de ajudas directas da entidade demandada remeteu à unidade de devedores do departamento jurídico e devedores da entidade demandada uma mensagem de correio electrónico da qual, além do mais, consta o seguinte: «IRV 02159/2011 para arquivar (marcado com o iPD5 após análise de documento de contestação)» [cf. fls. 10, do processo administrativo].

7) Os serviços da entidade demandada enviaram ao autor, que recebeu, um ofício assinado pelo presidente do conselho directivo da entidade demandada, invocando agir no uso de competência delegadas pelo despacho n.º 298/2013, publicado no DR, 2.ª Série, de 4/02/2013, datado 08/07/2013, do qual consta o seguinte:

«


(“texto integral no original; imagem”)

» [cf. fls. 13, do processo administrativo].

8) Em 18/07/2013 a unidade de ajudas ao desenvolvimento rural do departamento de ajudas directas da entidade demandada elaborou uma informação da qual consta o seguinte:

«Em 02/07/2013 foi comunicado à DJU o arquivamento do processo de recuperação de verbas n.º 02159/2011. No entanto reanalisado o dito veio a verificar-se que se tratava de uma reclamação não aceite, não existindo motivos para o arquivamento do mesmo. Inicialmente verificou-se que o beneficiário tinha feito o Pedido Único e ao abrigo da Portaria n.º 391/2008 de 2 de Junho foi decidido o arquivamento do mesmo. Posteriormente verificou-se que o beneficiário não tinha declarado as parcelas que fazem parte do compromisso à Medida 18 – Sistemas Forrageiros Extensivos pelo que se regrediu na decisão inicial.» [cf. fls. 14, do processo administrativo].

9) A unidade de devedores do departamento jurídico e devedores da entidade demandada elaborou uma informação da qual consta o seguinte:


(“texto integral no original; imagem”)

(...)» [cf. fls. 22-23, do processo administrativo].

10) Os serviços da unidade de ajudas ao desenvolvimento rural do departamento de ajudas directas da entidade demandada remeteram ao autor, que recebeu, um ofício, datado de 22/07/2015, assinado pelo presidente do conselho directivo da entidade demandada, invocando agir no uso de competências delegadas pela deliberação 512/2015, publicada no DR, 2.ª Série, n.º 41, de 13/04/2015, do qual consta o seguinte:

«


(“texto integral no original; imagem”)

(...)» [cf. fls. 24-25, do processo administrativo].

11) Antes de receber o ofício descrito no ponto anterior, a entidade demandada não comunicou ao autor a intenção de agir nesse sentido, nem lhe concedeu um prazo para se pronunciar [a convicção do tribunal fundou-se no teor do processo administrativo e, ainda, na posição das partes, especificamente no vertido nos artigos 41.º e 42.º da contestação].


*

Inexistem outros factos com relevância para a decisão.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional, segundo a sua ordem lógica ou de precedência de conhecimento.

1. Erro de julgamento de facto, por insuficiência da matéria de facto dada por provada

Segundo o Recorrente a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de facto, por insuficiência da matéria de facto dada como assente, porquanto de entre essa matéria não foram considerados os factos anteriores à data da decisão final notificada ao Autor em 2011, como consta do ponto 1 da matéria de facto provada.

Não foram considerados os factos alegados sob os artigos 3.º a 10.º da contestação e que resultam do processo instrutor.

Assim, nos termos alegados pelo Recorrente deve a matéria de facto assente ser aditada, para que dela passem a constar os factos cuja redacção apresenta.

Vejamos.

Compulsada a matéria de facto alegada na contestação e aquele que é o julgamento de facto constante da sentença recorrida, assim como, considerando o objeto do litígio, de imediato se deve firmar no sentido de assistir razão ao Recorrente, tendo sido omitido do julgamento de facto matéria factual com relevo para a decisão a proferir, que fora alegada pelas partes nos respetivos articulados, in casu na contestação apresentada pelo Réu, que respeita ao mérito do litígio e que encontra demonstrada documentalmente, nos termos do processo administrativo junto aos autos.

Resulta da presente instância que o objeto do litígio respeita ao pedido de restituição de verbas, por alegado incumprimento de compromissos assumidos pelo Autor no âmbito da candidatura apresentada, tendo a sentença recorrida se limitado a levar ao probatório assente a factualidade ocorrida desde a notificação ao Autor para a restituição de verbas, datada de 2011, olvidando toda a demais matéria factual, donde resultam os termos das obrigações assumidas pelo Autor, enquanto fundamento do ato impugnado.

Nestes termos, será de conceder provimento ao fundamento do recurso, por provado, por deficiência da matéria de facto dada como provada no julgamento de facto da sentença recorrida, devendo ser aditada a matéria de facto relativa aos termos da relação jurídica estabelecida entre as partes.


*

Pelo que, em consequência, nos termos do disposto nos artigos 149.º do CPTA e 662.º do CPC, aditam-se neste Tribunal de recurso os seguintes factos, com interesse para a decisão a proferir:

12) Na Campanha de 2005, o Autor através de uma transferência de exploração, assumiu o compromisso que M…. havia assumido na Campanha 2004 à Intervenção “Medidas Agroambientais - Sistemas Forrageiros Intensivos”, do Plano de Desenvolvimento Rural, previsto no Regulamento (CEE) nº 1257/99, do Conselho, de 17 de maio, e cujo regulamento de aplicação foi aprovado pela Portaria 1212/2003, de 16 de outubro – fls. 34 a 41 do processo administrativo;

13) O compromisso assim assumido deveria ser mantido durante um período de cinco anos a contar da data da candidatura apresentada em 2004 – fls. 34 a 41 do processo administrativo;

14) Na campanha de 2008, enquanto se mantinha o compromisso assumido em 2014, o Autor não apresentou candidatura às medidas agras ambientais, conforme resulta do documento de fls. 63 a 69 do processo administrativo;

15) O que determinou a devolução das ajudas por si recebidas nas campanhas de 2005, 2006 e 2007.

2. Erro de julgamento de direito, por entender que o ato anulado é um ato constitutivo de direitos e quanto à aplicação do limite temporal previsto no artigo 168.º n.º 1 do CPA

Nos termos alegados pelo Recorrente, a sentença recorrida incorre em erro de julgamento de direito ao decidir pela aplicação do artigo 168.º, n.º 1 do CPA, sendo antes aplicável o regime previsto no artigo 49.º do Regulamento (CEE) n.º 2419/2001, da Comissão, de 11/12.

Alega que, por facto imputável ao beneficiário, os pagamentos efetuados devem ser devolvidos, exceto se entre a data do pagamento da ajuda e a data da primeira notificação ao beneficiário tiverem decorrido dez anos.

O ato impugnado, praticado pelo Recorrente em 2015, que determinou a reposição das quantias indevidamente recebidas, já havia sido precedido da restituição determinada pelo ato de 2011.

Sustenta que a sentença recorrida ao analisar a validade do ato impugnado somente à luz do direito nacional comete erro de julgamento.

Mais alega que não pode ser configurado como constitutivo de direitos, o ato que, em erro sobre os pressupostos de facto, determinou o arquivamento do procedimento administrativo de recuperação de verbas indevidamente recebidas.

Vejamos.

No respeitante à qualificação do ato que se dá como assente no ponto 7), praticado pelo Presidente do Conselho Diretivo do ora Réu e Recorrente, pelo qual foi decidido o arquivamento do procedimento administrativo, determinando, em consequência, que não sejam devidas as verbas anteriormente exigidas ao Autor, a título de restituição de verbas indevidamente recebidas, nenhuma censura merece a sentença recorrida ao qualificá-lo como constitutivo de direitos.

A decisão de arquivamento do procedimento de recuperação de verbas n.º 2159/2011 (Agro-Ambientais-Campanha 2008), é um ato constitutivo de direitos, não só nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 167.º do CPA/2015, ora aplicável, como também nos termos do anterior CPA, em vigor à data em que o ato anulado foi praticado.

Estando em causa saber se o ato impugnado, praticado em 2015, já sob a vigência do novo CPA, respeitou o prazo de anulação administrativa, interessa efetivamente a qualificação do ato primário sobre que incide, que ora se dá como assente no ponto 7) do julgamento de facto da sentença recorrida, para efeitos da aplicação do regime da anulação administrativa.

Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 167.º do CPA, são atos constitutivos de direitos “os atos administrativos que atribuam ou reconheçam situações jurídicas de vantagem ou eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos ou sujeições, salvo quando a sua precariedade decorra da lei ou da natureza do ato”.

Tendo a noção de ato constitutivo de direitos sido introduzida pela primeira vez no novo CPA, passado a constar do texto legal, já antes era assumida com esse conteúdo pela doutrina, não existindo diferença quanto à sua respetiva noção.

Assim, quer antes, quer sob a atual vigência do novo CPA, deve o ato que se dá como assente no ponto 7) do probatório factual ser entendido como um ato constitutivo de direitos, por remover ou eliminar um dever ou um encargo sobre o Autor, anulando a anterior decisão, notificada em 2011, que lhe impunha o encargo de restituição das verbas pagas, isto é, que determinou a obrigação do Autor repor a quantia que lhe fora paga, no valor de € 22.475,40, invocando a não subsistência dos pressupostos que estiveram na sua base.

Desse ato, que determina o arquivamento do procedimento administrativo de recuperação de verbas n.º 2159/2011 (Agro-Ambientais-Campanha 2008), não decorre que possua carácter precário, antes dele resultando que pretende pôr termo ao procedimento, com fundamento na inexistência dos pressupostos da decisão revogada.

Assim, como se disse na sentença recorrida, a decisão de arquivamento do procedimento de recuperação de verbas n.º 2159/2011 (Agro-Ambientais-Campanha 2008), descrita no ponto 7) do julgamento de facto, é um ato de segundo grau que eliminou um dever imposto por um ato administrativo primário, investindo o Autor numa posição jurídica de vantagem, merecedora da tutela de estabilidade que o legislador dispensa aos actos constitutivos de direitos.

Como citado na sentença recorrida, em situação idêntica à dos autos, vide o acórdão do TCA Norte, Processo n.º 00294/11.6BECB, de 20/11/2014, com o seguinte teor: “(...) o despacho de 2007 teve efeitos constitutivos na esfera jurídica da Autora, posto que por ele se inseriu na sua esfera jurídica uma posição jurídica de vantagem, decorrente de ter sido determinado pelo IFAP que não persistiam as razões conducentes ao pedido de reposição de verbas concedidas à A. e determinado o arquivamento do processo de recuperação de verbas. (...) Em face do disposto no artigo 140.º, n.º1, al. b) e n.º 2 do CPA o despacho n.º 345/2007, é um ato constitutivo de direitos para a ora Recorrida, porquanto, pelo mesmo foi determinado pelo IFADP que não persistiam as razões conducentes ao pedido de reposição de verbas concedidas à A. e determinado o arquivamento do processo de recuperação de verbas. (...) Com tal decisão constituíram-se para a ora Recorrida, o direito de manutenção em vigor do contrato de ajuda financeira celebrado com o Recorrente e o direito de não proceder a qualquer reembolso dos subsídios por si percecionados, na medida em que a prática do primeiro ato pelo R. enquanto órgão administrativo público, garantiu-lhe esses direitos. (...)”.

Pelo que, no tocante à qualificação do ato constante do ponto 7) do julgamento de facto como constitutivo de direitos, não procede o fundamento do recurso, tendo a sentença decidido correctamente quanto à sua qualificação.

No que respeita a determinar se incorre a sentença recorrida em erro de julgamento quanto ao regime aplicável, designadamente, quanto ao período temporal para a anulação administrativa desse ato constitutivo de direitos, foi decidido pelo Tribunal a quo, aplicar o disposto no n.º 1 do artigo 168.º do CPA, ou seja, o prazo de seis meses a contar da cessação do erro, que ocorreu em 18/07/2013.

Encontra-se apurado nos autos que o ato assente no ponto 7) resultou de um erro sobre os pressupostos dos serviços do Réu, ora Recorrente, erro esse que o ato impugnado pretende corrigir.

Foi decidido na sentença recorrida que tendo a cessação do erro ocorrido em 18/07/2013, mostra-se excedido o prazo de seis meses para a anulação administrativa, considerando a data da prática do ato impugnado, ora assente no ponto 10) do julgamento de facto, em 22/07/2015.

Assentou o julgamento de direito da sentença recorrida na aplicação do regime constante do CPA, assim como da disposição prevista no seu n.º 1 do artigo 168.º.

Porém, considerando a matéria a que respeitam as decisões proferidas, não está em causa unicamente a aplicação do regime nacional, por se dever atender ao regime proveniente do direito europeu, a saber, a disciplina aprovada pela Portaria n.º 1212/2003, de 16/10, que visou aprovar o regulamento de aplicação do Regulamento (CEE) n.º 1257/99, do Conselho, de 17/05, estando em causa direitos que derivam de fundos europeus.

Por outro lado, a matéria sobre que versam os autos respeita a direitos de conteúdo pecuniário, decorrentes da candidatura do Autor à Intervenção “Medidas agro-ambientais”, do Plano de Desenvolvimento Rural, prevista no citado Regulamento (CEE) n.º 1257/99, do Conselho, de 17/05, em que se prevê a atividade de controlo e de fiscalização a posteriori.

Em face do exposto, o julgamento da sentença recorrida não se mostra correto, pois não tem aplicação o disposto no n.º 1 do artigo 168.º do CPA, mas antes o disposto na alínea c), do n.º 4 do citado artigo 168.º CPA, enquanto norma prevista para a anulação de atos constitutivos de direitos com conteúdo pecuniário, cuja fiscalização administrativa é diferida no tempo, ocorrendo para além do prazo de um ano, com imposição do dever de restituição das verbas indevidamente recebidas, como se verifica no caso configurado em juízo.

Resulta do disposto da citada alínea c) do n.º 4 do artigo 168.º do CPA que quando esteja em causa o ato constitutivo de direitos de conteúdo pecuniário cuja legalidade, nos termos da legislação aplicável, possa ser objecto de fiscalização administrativa para além do prazo de um ano, com imposição do dever de restituição das quantias indevidamente auferidas, tais atos podem ser objecto de anulação administrativa no prazo de cinco anos, a contar da data da respetiva emissão.

Resulta da factualidade apurada que o ato impugnado, datado de 22/07/2015, assente no ponto 10) da matéria de facto assente, veio anular o ato que se dá como assente no ponto 7) do julgamento de facto, datado de 2013, pretendendo repor o ato praticado em 13/10/2011 (e não 13/10/2013 como consta da sentença recorrida, estando em causa um manifesto lapso de escrita), a que se refere o ponto 1) do probatório assente.

O ato impugnado ao pretender repor o ato de 2011, mais não impõe ao Autor o dever de restituição das verbas indevidamente recebidas, estando em causa um ato que preenche todos os pressupostos aplicativos do disposto na alínea c), do n.º 4 do artigo 168.º do CPA.

Considerando qualquer das datas em que os atos administrativos descritos foram praticados, 2011, 2013 e 2015, não decorreu o citado período de cinco anos, previsto na alínea c), do n.º 4 do artigo 168.º do CPA.

Por outro lado, o ato praticado em 2011, assente no ponto 1) do julgamento de facto não foi impugnado pelo Autor, pelo que, não fora o lapso dos serviços, traduzido na prática do ato dado como assente no ponto 7) dos factos assentes, sempre esse ato praticado em 2011 se manteria na ordem jurídica, por falta de impugnação.

Assim, sem prejuízo de prazo mais longo que eventualmente seja aplicável por força do regime de direito europeu, sempre decorre do disposto na alínea c), do n.º 4 do artigo 168.º do CPA, a possibilidade de anulação administrativa em 2015, do ato constitutivo de direitos, praticado em 2013, repondo o ato datado de 2011, que determinou a obrigação de reposição de verbas por parte do Autor, por a sua prática ocorrer dentro do prazo de cinco anos, a contar da data da sua prática.

Nestes termos, não estando o juiz vinculado às alegações das partes no tocante ao direito aplicável, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 5.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, será de concluir pelo erro de julgamento da sentença recorrida no respeitante ao prazo aplicável à anulação administrativa, por não ser aplicável o prazo de seis meses, previsto no n.º 1 do artigo 168.º do CPA.

Consequentemente, não incorre o ato impugnado no vício de violação de lei que se mostrava invocado, por não violar a norma respeitante ao prazo de anulação administrativa, podendo ser praticado na data em que o foi, daí não resultando os condicionalismos temporais da anulação administrativa.

Termos em que, se conclui pela procedência do fundamento do recurso a respeito do erro de julgamento da sentença recorrida, quanto à aplicação do prazo de seis meses, previsto no n.º 1 do artigo 168.º do CPA, considerando não terem sido violados os condicionalismos temporais aplicáveis à anulação administrativa.

3. Erro de julgamento de direito, quanto à violação do princípio de participação do interessado

Por último, invoca o Recorrente o erro de julgamento da sentença recorrida quanto à procedência da questão da preterição da audiência prévia ou da participação do interessado.

Sustenta que o ato impugnado foi praticado no seio de um procedimento administrativo no qual o interessado se pronunciou e no âmbito do qual confessou ter cometido a irregularidade que fundamentou a decisão de restituição de verbas.

Mais alega que mesmo que assim não se entenda, deve considerar-se que a preterição da formalidade de audiência prévia não deve gerar a invalidade do ato impugnado, por o seu destinatário se ter pronunciado sobre os fundamentos que determinam o sentido do ato e sempre o sentido da decisão dever ser o mesmo, por ocorrer a quebra do compromisso da campanha de 2008 e dever ser determinada a obrigação de reembolso das ajudas indevidamente recebidas.

Pugna o Recorrente pela aplicação do disposto no artigo 163.º, n.º 5 do CPA.

Vejamos.

Considerando a matéria factual apurada em juízo dela decorre que o Réu, ora Recorrente, não notificou o Autor previamente à prática do ato impugnado para se pronunciar sobre o projeto de decisão.

Encontra-se demonstrado factualmente que não existiu a audiência do interessado, por a Administração não ter cumprido essa formalidade.

Por outro lado, não assiste razão ao Recorrente na parte em que sustenta que o interessado já se havia pronunciado no âmbito do procedimento administrativo sobre o projeto da decisão administrativa que veio a ser tomada, ora impugnada, pois em nenhum momento o Autor se pronunciou sobre a anulação do ato que veio a determinar o arquivamento do procedimento administrativo.

O interessado pronunciou-se anteriormente à prática do ato praticado em 2011, que ora se dá como provado no ponto 1) do julgamento de facto, mas não se pronunciou sobre os pressupostos de facto e de direito do ato impugnado, que considera existir um lapso dos serviços em relação à prática do ato constante do ponto 7) da matéria de facto assente, anulando o ato que determinou o arquivamento do procedimento administrativo.

Assim, é efetivamente de concluir pela preterição da audição do interessado.

Convoca, no entanto, o Recorrente a aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 163.º do CPA, no sentido, de a preterição da audiência prévia no presente caso não dever determinar a anulação do ato impugnado, devendo o mesmo manter-se, por o conteúdo do ato não poder ser outro e o ato, independentemente da falta da audiência do seu destinatário, dever manter o seu conteúdo.

Nos termos que resulta do julgamento de facto e do conhecimento do anterior fundamento do recurso, a matéria sobre que versam os atos prende-se com a atividade de controlo ou fiscalização de uma candidatura apresentada pelo Autor a apoios financeiros provenientes de fundos europeus, de que resultou apurado o incumprimento dos compromissos assumidos, com a consequente obrigação de restituição das verbas recebidas.

Está em causa matéria cujos pressupostos são estritamente vinculados, pelo que o conteúdo do ato não pode ser outro.

Assim, apurando-se o erro dos pressupostos em que assentou a prática do ato dado como assente no ponto 7) do probatório, outra decisão não pode ser tomada senão a da sua anulação administrativa, sendo substituída por outra decisão que reponha o ato anterior, que determinou a reposição das verbas indevidamente recebidas, para cujo ato o Autor logrou ser notificado em audiência prévia e cujos pressupostos não lograram ser postos em causa, por esse ato, que impôs ao Autor a obrigação de restituição da verba no valor de € 22.475,40, não ter sido impugnado.

Nestes termos, estão verificados os pressupostos da aplicação do disposto nas alíneas a) e c), do n.º 5 do artigo 163.º do CPA, que determina que não se produza o efeito anulatório do ato impugnado.

Está em causa o que a jurisprudência administrativa foi designando por aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo, o qual, começando por seu um princípio de construção jurisprudencial, evoluiu no novo CPA para uma forma de conformação legal da invalidade administrativa, sendo um efeito produzido ope legis, de mera verificação judicial – neste sentido, cfr. Ana Celeste Carvalho, “Os vários caminhos da jurisprudência administrativa na aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo”, in Estudos em Homenagem a Rui Machete, Almedina, 2015, pp. 23.

Segundo a redacção agora aprovada, não se concede ao juiz a faculdade de anular ou de anular o acto administrativo viciado, verificadas as circunstâncias enunciadas na lei. O juiz administrativo passa a ter o imperativo legal de não anular o acto sempre que se verifiquem os pressupostos previstos nas alíneas do n.º 5 do artigo 163.º, pelo que, é afastada a margem do poder ou discricionariedade judicial em relação ao efeito anulatório do acto.” – Ana Celeste Carvalho, idem.

Pelo exposto, procede igualmente o fundamento do recurso, quanto ao erro de julgamento da sentença recorrida no tocante à procedência da falta de audiência dos interessados, por em face da matéria apurada nos autos, se dever concluir pela aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 163.º do CPA, que determina que não se produza o efeito anulatório do ato impugnado.


*

Em consequência, será de conceder provimento ao recurso, por provados os seus fundamentos, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, em julgar a ação improcedente, mantendo o ato impugnado na ordem jurídica.

*

Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Incorre a sentença em erro de julgamento de facto, por deficiência, se omite factualidade relevante sobre os fundamentos da acção, alegada pelas partes nos respetivos articulados, que se encontra demonstrada documentalmente no processo administrativo.

II. O ato administrativo que elimina obrigações ou encargos para o seu destinatário é um ato constitutivo de direitos, na aceção do n.º 3 do artigo 167.º do CPA.

III. Constituindo o objecto do ato impugnado a anulação de um ato constitutivo de direitos de conteúdo pecuniário, cuja legalidade pode ser objecto de controlo ou fiscalização administrativa, segundo a legislação aplicável, para além do prazo de um ano, com a imposição do dever de restituição das verbas indevidamente recebidas, aplica-se o prazo de anulação de cinco anos, previsto na alínea c), do n.º 4 do artigo 168.º do CPA e não o prazo de seis meses, previsto no n.º 1 do artigo 168.º do CPA.

IV. Resultando demonstrado que o destinatário do ato não foi ouvido em momento anterior ao da sua prática e que não teve a oportunidade de se pronunciar sobre o seu conteúdo no âmbito do procedimento administrativo, ocorre a preterição da audiência do interessado.

V. Estando em causa um ato de conteúdo vinculado, não podendo ter outro conteúdo, tem aplicação o disposto nas alíneas a) e c), do n.º 5 do artigo 163.º do CPA, que determina que não se produz o efeito invalidatório do ato administrativo, segundo o princípio do aproveitamento do ato administrativo.

VI. Trata-se de um mecanismo ope legis, que vincula o juiz a não anular o ato, afastando a margem do poder ou discricionariedade judicial em relação ao efeito anulatório do ato.


*

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, por provados os seus fundamentos, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, em julgar a ação administrativa improcedente, por não provada, mantendo o ato impugnado na ordem jurídica.

Sem custas.

Registe e Notifique.

(Ana Celeste Carvalho - Relatora)

(Conceição Silvestre)

(Carlos Araújo)