Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:259/06.0BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:12/19/2023
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:MÉTODOS INDIRETOS
INVENTÁRIO PERMANENTE
IMPOSSIBILIDADE DE RECURSO A MÉTODOS DIRETOS
Sumário:I. Não é qualquer omissão, erro ou inexatidão das declarações ou da contabilidade do sujeito passivo que permite o recurso a métodos indiretos de avaliação da matéria coletável, sendo exigido que tais irregularidades sejam de tal forma relevantes que tornem inviável a quantificação direta.

II. O DL n.º 44/99, de 12 de janeiro, veio estabelecer a obrigatoriedade da adoção de inventário permanente e da elaboração da demonstração de resultados por funções, definindo os elementos básicos da listagem do inventário físico.

III. Não é a ausência de inventário permanente que impede, per se, a avaliação direta da matéria coletável.

IV. Não se pode falar em falta de colaboração do contribuinte, quando o mesmo se disponibiliza, de forma justificada, a facultar determinados ficheiros informáticos num determinado formato imposto pela AT, mas num prazo distinto do definido pelos serviços de inspeção, e quando não resulta, tout court, do RIT que tais ficheiros não estivessem disponíveis para consulta pela AT em outros formatos.

Indicações Eventuais: Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I. RELATÓRIO

J.J. L. P., S.A. (doravante Recorrente ou Impugnante) veio recorrer da sentença proferida a 23.09.2014, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto as liquidações adicionais de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), referentes ao ano de 2002.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“1a) As liquidações de IVA e de juros compensatórios, referentes ao ano de 2002, impugnadas no presente processo resultaram da fixação da matéria tributável por métodos indirectos;

2a) Para demonstrar que havia uma impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável, a Administração Tributária invocou, em primeiro lugar, que o contribuinte não possuia um inventário permanente;

3a) A exigência de as empresas terem um inventário permanente foi criado pelo Decreto-Lei n° 49/99, de 12/1 e apenas para algumas empresas;

4a) O que quer dizer que, antes de tal diploma e, após ele, em relação a algumas empresas, havia contribuintes que, legalmente, não tinham inventário permanente e tal nunca impediu a Administração Tributária de efectuar uma quantificação directa da matéria tributável;

5a) Aliás, como é dito na Circular n° 8/01 de 25 de Janeiro da Câmara dos Revisores Oficiais de Contas, “a não adaptação do sistema de inventário permanente não é, porém, determinante para a formação da opinião do revisor/auditor, visto que, em variadas circunstâncias, o controle das existências e o razoável apuramento dos saldos relacionados com as mesmas podem ser assegurados por outras formas”;

6a) E se é certo que a Administração Tributária invoca que a falta do referido inventário permanente a impossibilitou da avaliação directa, uma vez que o sistema contabilístico do contribuinte “não fornece todos os elementos que consideramos necessários, nomeadamente, as quantidades entradas, saídas, existências e respectivas valorizações”, a verdade é que a referida Administração Tributária não aponta uma única ilegalidade ou irregularidade ao referido sistema contabilístico da empresa;

7a) Sendo também certo que, por exemplo, quanto a “entradas e saídas de bens” elas estavam registadas na contabilidade da empresa, bem como a sua valorização, elementos fornecidos à Administração Tributária, como resulta da notificação feita ao contribuinte em 29/10/2004 e da respectiva resposta desse mesmo contribuinte;

8a) O que quer dizer, que não havia qualquer impossibilidade do controle directo da matéria tributável;

9a) O segundo facto invocado pela Administração Tributária para considerar legítimo o recurso à avaliação indirecta é a circunstância de o contribuinte utilizar, em sede de valorimetria das existências, o método dos “preços de venda deduzidos da margem normal do lucro”, o que seria contrário às regras estabelecidas no Plano Oficial de Contabilidade;

10a) Porém, o referido método estava expressamente previsto no Código do IRC (art° 26°, n° 1, c)), além de que a Administração Tributária não fez prova de que a utilização de tal método a impossibilitava de realizar o controle directo da matéria tributável;

11a) Aliás, o Tribunal Central Administrativo Sul já teve ocasião de se pronunciar sobre uma situação de desrespeito pelas disposições do POC quanto à valorimetria das existências, concluindo que tal apenas podia fundamentar “correcções técnicas e já não o recurso a métodos indiciários, posto que, ostensivamente, é possível apurar a matéria colectável por via directa, com os elementos que constam da contabilidade do sujeito passivo ” (Acórdão de 25/1/2005, Processo n° 330/04);

12a) O terceiro facto invocado pela Administração Tributária para fundamentar o recurso a métodos indirectos é ter havido uma “recusa de colaboração ilegítima” do contribuinte com a Administração Tributária;

13a) Ora, não houve, de todo em todo, tal recusa de colaboração e ainda que fosse verdade, tal não impedia o controle directo da matéria tributável;

14a) A invocada recusa ilegítima de colaboração ter-se-ia dado, segundo a Administração Tributária, com as respostas dadas pelo contribuinte a uma notificação de 4/6/2004, em que eram pedidas informações e esclarecimentos ao contribuinte;

15a) Tendo o contribuinte respondido a tais questões, durante o decurso da inspecção, nunca a Administração Tributária considerou que nas respostas dadas havia omissões ou havia informações erradas, considerandos que só veio a fazer no Relatório Final da Inspecção;

16a) Sendo que, após as respostas dadas pelo contribuinte à referida notificação de 4/6/2004, a Administração Tributária solicitou novas informações e novos elementos, nunca solicitando informações complementares ou correctivas das fornecidas pelo contribuinte;

17a) A Administração Tributária considerou que as informações prestadas pelo contribuinte em resposta a uma nova notificação, de 29/10/2004, continha ilegalidades e irregularidades, porque tinham sido solicitadas “Fichas Técnicas de Produção”, que não foram fornecidas;

18a) Sendo que as referidas “fichas técnicas de produção” foram só solicitadas em alternativa a outros elementos, tendo estes sido fornecidos;

19a) A Administração Tributária considerou também haver violação dos deveres de cooperação em relação a uma notificação por si feita em 24/11/2004, para o fornecimento de determinados elementos informáticos;

20a) Porém, como está demonstrado, em face da informação da empresa informática que colaborava com o contribuinte nesse sector, da impossibilidade de fornecer tais elementos no prazo fixado pela Administração Tributária e tendo sido solicitado a esta uma prorrogação do prazo para tal entrega, esta, recusou, sem sentido, sem nexo, tal prorrogação;

21a) Sendo certo, em qualquer caso, que a Administração Tributária não fez prova de que a invocada violação ao dever de cooperação a impediram de realizar uma avaliação directa da matéria colectável;

22a) Mesmo em situações de recusa de fornecimento de elementos contabilísticos - o que não foi o caso da recorrente - já o Tribunal Central Administrativo Sul considerou que “o uso dos métodos indiciários nessa situação não é a resposta a essa recusa o que poderia ser entendido como acto sancionatório” (Acórdão de 15/2/2005, Processo n° 379/2003).

23a) Em qualquer caso, repete-se, não houve qualquer recusa de cooperação nem, mesmo que tal tivesse existido, tal impedia o controle directo da matéria tributável;

24a) A Administração Tributária considera, também, que podia recorrer à avaliação indirecta, por haver uma “divergência entre a margem de comercialização declarada pela empresa e a que foi apurada pelos serviços de inspecção no sector dos estofos”;

25a) Porém, constata-se que a margem de comercialização apresentada pela Administração Tributária foi calculada com base numa amostra de dois produtos num universo de treze produtos;

26a) Esta forma de cálculo feito pela Administração Tributária, retira qualquer credibilidade a tal cálculo e, portanto, ao facto invocado como pressuposto para a aplicação dos métodos indirectos;

27a) De qualquer forma, em violação do disposto nos art°s 87° e 88° da LGT, a Administração Tributária não indica qualquer inexistência ou insuficiência dos elementos da contabilidade ao contribuinte, nem qualquer irregularidade na sua organização ou execução dessa mesma contabilidade;

28a) A Administração Tributária invoca, também, a existência de indícios de falta de vendas de diversos produtos no referido sector dos estofos;

29a) Ora, tais indícios baseiam-se, precisamente, na invocada existência de divergência entre os cálculos feitos pelo contribuinte e pela Administração Tributária quanto à margem de comercialização nesse mesmo sector dos estofos;

30a) Ora, na medida em que os cálculos feitos pela Administração Tributária sobre as margens de comercialização, não merecem, como se viu, qualquer credibilidade, porque baseados numa amostra de dois produtos num universo de treze, a consequência não pode deixar de ser a não aceitação, por não provada, da existência de indícios da falta de vendas de bens;

31a) Sendo que, e mais uma vez, a Administração Tributária não indica nem prova, a existência de concretas irregularidades ou vícios na contabilidade do contribuinte;

32a) A Administração Tributária invoca, também, a existência de indícios de falta de vendas de outros produtos;

33a) Sendo que tais indícios se baseiam em meras presunções, expressamente afirmadas pela Administração Tributária, tais como a venda de bens de forma directa, sem incorporação, pelo contribuinte, de qualquer produto;

34a) Presunções essas que conduziram a Administração Tributária a encontrar, para certos produtos, “diferenças negativas”, isto é, o contribuinte teria declarado mais vendas do que aquelas que efectivamente teria efectuado, isto é, teria considerado proveitos inexistentes...;

35a) O que leva a Administração Tributária a considerar que ela, Administração Tributária, teria errado, eventualmente, no cálculo das medidas dos produtos...;

36a) É, assim, evidente, a total falta de credibilidade dos cálculos apresentados pela Administração Tributária e, concomitantemente, a total falta de credibilidade nos indícios apresentados de faltas de declarações de venda de produtos;

37a) Sendo que, de qualquer forma, a Administração Tributária, mais uma vez, não indica, nem prova, a existência de qualquer irregularidade na contabilidade do contribuinte;

38a) Salvo o devido respeito, a douta sentença recorrida considerou, erradamente, estarem provados pela Administração Tributária factos que impossibilitavam o controle directo da matéria tributável do recorrente;

39a) Não tendo a douta sentença recorrida aplicada a orientação jurisprudencial segundo a qual “cabendo à AF (...) o ónus de alegação e prova da ocorrência em concreto dos pressupostos legais legitimadores do recurso à metodologia indiciária (...) não se pode limitar a expor as razões para a falta de credibilidade de valores contabilizados antes tem, ainda, e também, de explicitar as razões porque é que tal ausência de credibilidade implicou a impossibilidade de quantificação directa, ainda que por correcções técnicas ” - Acórdão do TCA Sul de 14/7/2010, Processo n° 03784;

40a) O que quer dizer, e mais uma vez salvo o devido respeito, que a douta sentença recorrida ao considerar que estavam presentes os pressupostos para a aplicação dos métodos indirectos, fez uma errada aplicação dos art°s 87° e 88° da LGT.

Termos em que o presente recurso deve ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença recorrida, anulando-se as liquidações impugnadas, como é de

Justiça”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não contra-alegou.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há erro de julgamento, em virtude de não estarem preenchidos os pressupostos de avaliação indireta da matéria coletável?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1. A impugnante é uma sociedade anónima com o capital social de EUR 7.500.000,00, dedica-se à fabricação de mobiliário habitacional e de estofos, comercializa ainda outros produtos que adquire a empresas pertencentes ao accionista maioritário, J. L. P.. (cf. relatório de inspecção a fls. 83 dos autos em suporte de papel).

2. A impugnante faz parte de um grupo de empresas geridas pelo seu accionista J. J. L. P., detentor de 75% do seu capital social, a saber L. – F. C., Lda., S. – S. M., Lda.; I. – F. L., Lda. a trabalhar em exclusivo para a impugnante; Lo. – F. E., Lda. produz em exclusivo para impugnante; C. – I. F. Á., Lda.; L. – I. c. m., Lda. (cf. relatório de inspecção a fls. 82 e 83 dos autos em suporte de papel).

3. A gestão comercial, industrial, administrativa, de pessoal e contabilístico/fiscal, de todas as empresas referidas está centralizada em A. C., na sede da empresa J.J. L. P., e é executada pelos seus quadros, mediante a facturação dos referidos serviços (cf. relatório de inspecção a fls.84 dos autos em suporte de papel).

4. Em 7/01/2004 o serviço de Finanças de Santarém informou a impugnante através do ofício n.º 95, do início de uma acção de fiscalização de carácter externo ao exercício de 2002 (cf. pontos n.º 1.º da petição inicial e 5.º da contestação constantes dos autos).

5. Em 15/4/2004 a impugnante recepcionou o ofício enviado pelo serviço de Finanças de Santarém com a informação de que a inspecção teria “âmbito parcial” (cf. quesitos n. 8.º da PI e 5.º da contestação constantes dos autos).

6. Em 15/7/2004 a impugnante recepcionou o ofício do serviço de finanças de santarém, do qual consta a alteração do âmbito da inspecção tributária de “parcial” para “geral” com fundamento na “especial complexidade empresarial” (cf. quesitos 6.º da contestação e 9.º da PI.).

7. Em 4/6/2004 a Direcção de Finanças de Santarém solicitou à impugnante elementos e esclarecimentos nos termos do ofício de “notificação” constante de fls. 164 a 168 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

8. Em 4/1/2005 a impugnante recepcionou o projecto de conclusões do relatório final de inspecção.

9. Em 19/1/2005 deu entrada no serviço de Finanças de Santarém a exposição do direito de audição exercido pela impugnante constante de fls. 130 a fls. 204 do processo administrativo tributário, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido e no qual invoca ilegalidades inerentes à credenciação dos inspectores, ilegalidades no procedimento inspectivo, falta de fundamentos legais para a avaliação indirecta, errónea quantificação dos indicadores apurados.

10. Em 25/1/2005 foi emitido o relatório final de inspecção constante de fls. 80 a fls. 154 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual consta o seguinte:

“(…)

Imagem: Original nos autos

Imagens : Originais nos autos

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11. A impugnante solicitou a revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos, nos termos do pedido constante de fls. 169 a 201 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

12. Em 23/3/2005 o Perito do contribuinte, A. C. emitiu o parecer constante a fls. 221 a 228 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual consta o seguinte:

“(…)

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(…)”

13. Em 29.04.2005, o perito independente emitiu o parecer constante de fls. 220 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido e o qual consta o seguinte:

Imagem: Original nos autos

14. Em 12.5.2005 o perito representante da Administração fiscal emitiu o parecer constante de fls. 229 a 243 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

15. Foi elaborada a acta n.º 4 de 2005 da reunião de peritos, prevista nos artigos 91.º e seguintes da LGT, constante de fls. 206 a 219 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

16. Em 16/5/2005, o Chefe de Divisão por delegação de competências do Director de Finanças proferiu a decisão sobre o pedido de revisão da matéria colectável nos termos do despacho constante de fls. 203 a 205 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido e da qual consta o seguinte:

“(…)

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(…)”

17. Em 27/6/2005 a Direcção de Finanças de Santarém enviou à impugnante por carta postal registada o oficio com o assunto “Revisão da Matéria Tributável – art. 91.º da Lei geral tributária” (cf. oficio a fls. 202 dos autos em suporte de papel).

18. Em 13/9/2005 foram emitidas as liquidações de IVA e juros compensatórios constantes de fls. 50 a 78 dos autos em suporte de papel, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, com data limite de pagamento de 30/11/2005.

19. Em 1/3/2006 a petição da presente impugnação deu entrada no TAF de Leiria (cf. carimbo a fls. 1 dos autos)”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Inexistem factos não provados com interesse para a decisão em causa, atenta a causa de pedir”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto efetuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos, especificados nos vários pontos da matéria de facto provada, no que se refere à prova testemunhal produzida, os depoimentos cingiram-se à confirmação do conteúdo do relatório final e do processo de revisão”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo errou, no julgamento que fez, atinente às correções efetuadas por recurso a métodos indiretos, na medida em que a Administração Tributária (AT) não demonstrou cabalmente a impossibilidade de determinar a matéria tributável através de métodos diretos, sendo certo que o seu sistema contabilístico não foi posto em causa.

Apreciando.

É desiderato constitucionalmente consagrado o de que a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real [cfr. art.º 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP)].

Com efeito, nos termos do art.º 104.º, n.ºs 1 e 2, da CRP:

“1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.

2. A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”.

O princípio da igualdade, evidenciado, desde logo, nos n.ºs 1 e 2 do supracitado art.º 104.º da CRP, abrange quer a vertente da igualdade perante a lei fiscal, no sentido de não haver discriminação dos cidadãos face à referida lei, quer a vertente da igualdade tributária ou igualdade de sacrifícios; esta encontra-se estreitamente ligada ao princípio da capacidade contributiva, enquanto reflexo da igualdade material.

Como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/2004, de 03.03.2004:

“A tributação segundo o rendimento real é, numa certa dimensão, uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva. É ele que justifica que a Constituição estabeleça que o sistema fiscal não pode deixar de assegurar “uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (art.º 103º, n.º 1) e que especifique, posteriormente, que os impostos devem ter em conta as “necessidades e os rendimentos [concretos] do [de cada] agregado familiar” e, finalmente, que a “tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”.

Mas o rendimento real fiscalmente relevante não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável, sendo constituído, simpliciter, “pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas [previstas na lei e] verificadas no mesmo período” (…) - o saldo entre os proveitos ou ganhos provenientes das mais diversas fontes, como vendas, bónus, comissões, rendimentos de imóveis, rendimentos de carácter financeiro, prestações de serviços, mais-valias realizadas, subsídios, etc., menos os custos ou perdas, como os encargos relativos à produção, distribuição e venda, encargos de natureza financeira e de natureza administrativa, encargos fiscais e parafiscais, reintegrações e amortizações, etc., acrescido das variações patrimoniais positivas ou diminuído das variações patrimoniais negativas, previstas na lei”.
O princípio da tributação pelo rendimento real admite, no entanto, exceções ou desvios (veja-se que o n.º 2 do art.º 104.º da CRP utiliza o advérbio “fundamentalmente”), devidamente fundados e justificados. (1)

Reflexo do respeito pelo princípio da tributação pelo rendimento real é a circunstância de o recurso à aplicação de métodos indiretos de avaliação da matéria coletável ser subsidiária em relação à avaliação direta [cfr. art.º 85.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (LGT)].

A este propósito, e para melhor densificação dos termos em que se admite o recurso a um ou outro método de determinação da matéria coletável, há que apelar, desde logo, ao art.º 81.º da LGT, nos termos do qual:

“1 - A matéria tributável é avaliada ou calculada diretamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder a avaliação indireta nos casos e condições expressamente previstos na lei”.

Por seu turno, o art.º 83.º do mesmo diploma determina que:

“1 - A avaliação direta visa a determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação.

2 - A avaliação indireta visa a determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha”.

A avaliação direta tem como ponto de partida as declarações dos contribuintes e/ou os dados apurados na sua contabilidade, que se presumem verdadeiros – cfr. o art.º 75.º, n.º 1, da LGT. No entanto, como decorre do mesmo art.º 75.º, mas do seu n.º 2, a presunção de veracidade da contabilidade cessa quando revelar “… omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo”.

Veja-se, não obstante, que não é qualquer omissão, erro ou inexatidão das declarações ou da contabilidade do sujeito passivo que justifica o recurso a métodos indiretos de avaliação da matéria coletável, sendo exigido que tais irregularidades sejam de tal forma relevantes que tornem inviável a quantificação direta.

Assim, se, apesar de haver irregularidades contabilísticas, for possível quantificar diretamente a matéria coletável, deve-se lançar mão de métodos diretos. Ou seja, sendo certo que a avaliação direta parte das declarações dos contribuintes ou dos dados constantes da contabilidade, pode fundar-se noutros elementos objetivos, desde que os mesmos permitam, com segurança, concluir no sentido da ocorrência do facto tributário e da sua quantificação concreta.
A aplicação de métodos diretos de avaliação da matéria coletável redunda nas chamadas correções técnicas ou meramente aritméticas.(2)

Apelando às palavras de Casalta Nabais, (3) “as correcções técnicas, são as correcções que a administração tributária faz à matéria tributável determinada no âmbito da avaliação directa, como a correcção concretizada, por exemplo, na não consideração de determinadas verbas como custos fiscais assim qualificadas na declaração de rendimentos (…) [;] (…) as correcções aritméticas ou correcções meramente aritméticas, têm lugar quando a administração tributária se limita a corrigir erros de cálculo das declarações-liquidações”.

Já a avaliação indireta deverá ocorrer apenas nos casos previstos nos art.ºs 87.º a 89.º da LGT.
Para que seja legítimo o recurso à tributação por via dos métodos indiretos, cabe à AT o ónus da prova de que se reúnem os pressupostos da sua aplicação, consubstanciando-se tal ónus probatório na demonstração da existência de situações fáticas, designadamente irregularidades contabilísticas, que assumam alcance tal que impossibilitam o recurso a métodos diretos de avaliação. (4)

Assim, nos termos do art.º 87.º, n.º 1, da LGT:

“A avaliação indireta só pode efetuar-se em caso de:

(…) b) Impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável de qualquer imposto…”.

Esta situação prevista na alínea b) supratranscrita remete-nos para o art.º 88.º da LGT, nos termos do qual:

“A impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata da matéria tributável para efeitos de aplicação de métodos indiretos, referida na alínea b) do artigo anterior, pode resultar das seguintes anomalias e incorreções quando inviabilizem o apuramento da matéria tributável:

a) Inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais;

b) Recusa de exibição da contabilidade e demais documentos legalmente exigidos, bem como a sua ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação”.

In casu, de acordo com o relatório de inspeção tributária (RIT) e a decisão proferida em sede de procedimento de revisão (que, nessa parte, manteve o que decorria do RIT), o recurso aos métodos indiretos, em termos de fundamentação legal, baseou-se no referido art.º 88.º, als. a) e b), da LGT.

Vejamos, pois, se se encontra devidamente explanado e fundamentado o recurso a métodos indiretos, atendendo às regras do ónus da prova já referidas supra, ou seja, aferir se, no RIT, são identificadas situações de onde resulte a impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável.

Compulsado o RIT, são referidos, como motivos para aplicação de métodos indiretos, os seguintes:

a) Falta de inventário permanente;

b) Valorimetria das existências contrária às regras da normalização contabilística;

c) Recusa de colaboração ilegítima nos termos do art.º 32.º do então Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT) – cfr. art.º 10.º do RCPIT;

d) Divergência entre a margem de comercialização declarada (32,42%) e a apurada (64,69%), no setor dos estofos;

e) Indícios de falta de vendas de diversos produtos, no setor de estofos;

f) Indícios de falta de vendas de diversos produtos, no setor de móveis;

g) Indícios de falta de vendas de outros produtos comercializados;

h) Impossibilidade de análise e validação das margens declaradas pelo sujeito passivo no setor de móveis.

Considerou, assim, a AT que este elenco redundava na impossibilidade de quantificação direta e exata da matéria tributável.

Vejamos, em síntese, cada um deles:

a) Falta de inventário permanente:

A este respeito, refere-se no RIT que a Impugnante estava, no exercício em causa, obrigada a adotar o sistema de inventário permanente na contabilização das suas existências e a proceder ao inventário físico das existências, de acordo com os procedimentos prescritos no capítulo 12, classe 3, "Existências do Plano Oficial de Contabilidade".

Com base nesta explanação e depois de sublinhar que, em seu entender, a normalização contabilística não fora observada plenamente, a AT concluiu pela “impossibilidade de quantificação direta e exata da matéria tributável, já que o sistema contabilístico que a empresa dispõe, não fornece todos os elementos que consideramos necessários, nomeadamente, quantidades entradas, saídas, existências e respetivas valorizações no que respeita quer a: // matérias-primas; // produtos em vias fabrico; e a // produtos acabados”;

b) Valorimetria das existências contrária às regras da normalização contabilística e recusa de colaboração ilegítima

Quanto à valorimetria das existências, do RIT decorre que, como inexistia inventário permanente e o sujeito passivo não colaborou nos termos que são exigíveis, tal contexto inviabilizava a determinação do custo de produção e a validação de dados de valorização.

Explanando a falta de colaboração, verifica-se que:

¾ Em relação ao pedido de informações elaborado a 04.06.2004, a AT transcreve a resposta e afirma que entende ter havido violação do dever de colaboração, por:

o Omissão de informações, por falta de identificação e quantificação dos componentes incorporados nos produtos;

o Informações incorretas ou inexatas, em virtude de o sujeito passivo ter referido que os critérios de valorimetrias são uniformemente seguidos ao longo do ano, o que não corresponde ao que resulta do inventário inicial e final, no setor dos estofos;

o Não obstante a certificação legal de contas, o método adotado para a valorização não coincide com o constante no anexo ao balanço e à demonstração de resultados;

o A valorização dos produtos acabados pela dedução da margem normal de lucro é contrária à normalização contabilística;

¾ Em relação ao pedido de informações elaborado a 29.10.2004, a AT refere que a resposta viola o dever de colaboração, por:

o Não ter indicado a forma de cálculo do preço médio de custo dos produtos do "Sector de Estofos” e a justificação do acréscimo verificado nos mesmos preços entre o inventário inicial e final do exercício de 2002;

o Não ter entregado as fichas de produção;

o Não ter indicado as camas;

¾ Em relação ao pedido efetuado a 29.11.2004:

o Foi apenas entregue o ficheiro de software de gestão FEMP001;

o O sujeito passivo solicitou prorrogação de prazo, pelo período de tempo indicado pela empresa de informática para entregar os demais ficheiros (concretamente identificados pela AT) nos termos pretendidos (formato texto);

o O prazo foi prorrogado não pelos 60 dias pedidos, mas por 15 dias;

o Face a tal circunstância, o sujeito passivo afirmou que tal prazo tornava a tarefa inexequível;

o Foi entregue fax da empresa de informática referindo ser impossível fazer a tarefa no prazo indicado;

o Perante a AT, o técnico de informática referiu que a elaboração dos ficheiros texto não era demorada;

o Foram utilizados expedientes dilatórios.

Neste contexto, a AT concluiu que a falta de inventário permanente, a não observância da normalização contabilística na valorimetria das existências e a falta de colaboração da sociedade “conduziu-nos à procura da validação da matéria tributável declarada pelo sujeito passivo neste ano de 2002, com base nos elementos disponíveis afetos aos dois sectores produtivos "Sector Estofos", "Sector Móveis" e "Outros Produtos"”.

d) Divergência entre a margem de comercialização declarada (32,42%) e a apurada (64,69%), no setor dos estofos; e e) Indícios de falta de vendas de diversos produtos, no setor de estofos:

Foi apurada, pela comparação de vendas com consumos, falta de camas de réguas, nidos (estrados elevatórios), maples Nisa com tecido, não justificada.

Considerando os valores constantes das fichas técnicas de produção, os dados das existências iniciais e finais constantes dos inventários, apurou-se o valor das margens em 64,69%, superior ao apurado pelo contribuinte (32,42%).

f) Indícios de falta de vendas de diversos produtos, no setor de móveis

Foi apurada, pela comparação de vendas com consumos, falta de mesas de centro e cadeiras de madeira, considerando as existências finais e iniciais e respetivas vendas.

g) Indícios de falta de vendas de outros produtos comercializados

Verificou-se, considerando o procedimento efetuado, omissões de vendas atinente a estrados metálicos, estrados de aglomerado, tapis e divãs.

h) Impossibilidade de análise e validação das margens declaradas pelo sujeito passivo no setor de móveis

A este respeito, a AT limita-se a referir que a falta de inventário permanente e a ausência de elementos (não concretamente especificados, mas referidos amplamente) impede tal validação.

Estes foram, em síntese, os motivos que levaram à conclusão, em sede de RIT, de que havia que lançar mão a métodos indiretos, conclusão que mereceu a concordância do Tribunal a quo.

Contrapõe a Recorrente que tal não se verifica, sob vários prismas.

Quanto à exigência de inventário permanente, a este propósito, refere que “[a] exigência de as empresas terem um inventário permanente foi criada pelo Decreto-Lei n° 44/99, de 12/1 e apenas para algumas empresas” e que, de todo o modo, nada é apontado ao sistema contabilístico da empresa.

Vejamos então.

O DL n.º 44/99, de 12 de janeiro, veio estabelecer a obrigatoriedade da adoção de inventário permanente e da elaboração da demonstração de resultados por funções, definindo os elementos básicos da listagem do inventário físico.

Por referência à sua redação inicial, então em vigor, é de salientar:

a) A adoção do inventário permanente era obrigatória às entidades que aplicassem o Plano Oficial de Contabilidade (POC) – art.º 1.º, n.º 1;

b) Ficavam dispensadas do mesmo até ao termo do exercício seguinte àquele em que tenham sido ultrapassados dois dos três limites referidos no art.º 262.º do Código das Sociedades Comerciais;

c) Poderiam ficar dispensadas, mediante requerimento, as entidades mencionadas no n.º 3 do mesmo art.º 1.º.

Não é colocado em causa que a Impugnante estivesse abrangida pela obrigatoriedade de dispor de um inventário permanente.

No entanto, reconhece-se sustentação ao argumento segundo o qual não é a ausência de inventário permanente que impede, per se, a avaliação direta da matéria coletável, conquanto a forma de contabilização adotada assim o permita.

E é aqui que reside o cerne da questão, porquanto não basta apontar ao sujeito passivo inspecionado falhas na contabilidade. É necessário que as mesmas sejam de molde tal a que não seja possível a avaliação direta da matéria coletável.

Ora, nada disso é referido no RIT, que se limita, sem concretizar e sem, na realidade, pôr em causa, a afirmar de forma conclusiva que “o sistema contabilístico que a empresa dispõe, não fornece todos os elementos que consideramos necessários, nomeadamente, quantidades entradas, saídas, existências e respetivas valorizações no que respeita quer a: matérias-primas; produtos em vias fabrico; e a produtos acabados”.

Rigorosamente, a AT não explana por que motivo o sistema contabilístico da Impugnante não lhe permite encontrar respostas às suas perguntas – muito pelo contrário, na medida em que é a partir dele que extrai várias conclusões, nomeadamente quanto às alegadas omissões de vendas ou quanto ao cálculo das margens.

Quanto ao método utilizado em sede de valorimetria das existências e pelos motivos já enunciados, também não se percebe de que forma o mesmo impede a quantificação direta da matéria coletável.

No tocante ao dever de colaboração, desde já se refira que, do respetivo ponto do RIT (ponto 1.2. do capítulo IV), nada se extrai quanto à impossibilidade de recurso a quantificação direta da matéria coletável.

O que se extrai é que houve um consecutivo pedido de informações.

A tais pedidos de informações o sujeito passivo foi respondendo às perguntas efetuadas, ainda que a AT não achasse que o tivesse feito nos termos pretendidos.

Apenas quanto aos ficheiros em formato de texto (onde se incluía o ficheiro das fichas de produção) é referido pela Impugnante não conseguir, no prazo concedido, facultá-los nesse específico formato, juntando, para o efeito, informação da empresa de informática nesse sentido. Com efeito, a ora Recorrente apresentou documento da empresa de informática, para justificar o pedido de prorrogação de prazo que efetuou.

Ora, sendo certo que, perante os serviços de inspeção, um técnico dessa empresa disse outra informação, no sentido de os ficheiros poderem ser disponibilizados num prazo mais curto, não foi de modo algum esclarecida esta duplicidade de posição da própria empresa de informática, quando instada pelo sujeito passivo ou quando instada pela AT.

Ou seja, a AT limitou-se a coligir diferente informação junto de um técnico da dita empresa de informática, sem cuidar de tentar perceber o que estava inerente a tão diferente posição dessa mesma empresa.

Não se verifica, pois, nos termos assinalados, que o sujeito passivo não tenha colaborado.

Por outro lado, não se consegue perceber se houve algum tipo de falta de acesso a esses ficheiros tout court.

Assume-se que não, uma vez que os mesmos estavam perfeitamente identificados no RIT, pelo que não pode deixar de se sublinhar a ausência total de informação quanto ao facto de esse software de gestão estar ou não disponível para consulta pela AT.

Refira-se que a alínea b) do art.º 88.º da LGT nos fala em recusa de exibição da contabilidade e demais documentos legalmente exigidos, bem como a sua ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação, circunstância que não ocorreu in casu, tendo a Recorrente sempre respondido aos pedidos de informação e tendo, na verdade, a AT analisado os respetivos elementos contabilísticos, como se extrai da leitura do RIT.

Ainda em relação a esta não satisfação por parte da AT com os elementos facultados pelo contribuinte, nada é dito sobre de que forma a mesma impediu a avaliação direta da matéria tributável.

Quanto às margens, a análise da AT centrou-se no setor dos estofos, onde, no RIT, são indicadas treze tipologias de matérias primas utilizadas para produção (v.g. peles, tecidos, colchões, …) e é afirmado que são apenas recolhidos os elementos das compras de duas destas tipologias, para controlo com os produtos vendidos, o que não permite que se consiga, sem mais, atribuir rigor à amostra construída.

De todo o modo, também daqui não resulta evidenciada a impossibilidade de correção direta da matéria coletável.

O mesmo resulta das alegadas vendas omitidas (isto abstraindo das diferenças negativas apuradas em alguns casos), que, a existirem, não revelam per se, muito pelo contrário, a impossibilidade de correção através de métodos diretos.

Aliás, não pode deixar de se sublinhar que, em sede de pedido de revisão, ocorreram logo alterações favoráveis ao sujeito passivo, quer no setor dos móveis, por inexistir fundamento para recurso a métodos indiretos, quer no setor dos estofos, nos estrados de aglomerado e nos divãs.

Em suma, não obstante a AT ter indicado a falta de inventário permanente, ter construído um raciocínio no sentido de afastar a adesão à realidade da margem de 17% que a Recorrente indicou para a generalidade da sua atividade, através de uma análise parcial e parcelar, apesar de ter tentando elencar uma série de informação relativa à Recorrente e sua atividade, a verdade é que, a final, nunca explica por que motivo não foi possível a correção através de métodos diretos globalmente e/ou setor a setor – trata-se de um aspeto essencial do recurso a métodos indiretos, que não se compadece com a utilização de fórmulas conclusivas.

Aliás, a AT usa os próprios dados da contabilidade da Recorrente, cuja veracidade, na verdade, não é posta em causa, para construir as suas amostras e fazer as suas análises.

Mesmo em relação às alegadas omissões de vendas, as mesmas são computadas de acordo com os valores recolhidos na contabilidade.

Ou seja, a AT, ainda que possa ter razão quando indica algumas irregularidades que deteta, nunca explana por que motivo as mesmas a impedem de quantificar de forma direta a matéria coletável.

Em sentido idêntico e situação muito similar, v. o Acórdão deste TCAS de 14.01.2021 (Processo: 376/09.4BELRA).

Logo, assiste razão à Recorrente.

Vencida a Recorrida é a mesma responsável pelas custas em ambas as instâncias (art.º 527.º do CPC), sem prejuízo de não haver lugar ao pagamento de taxa de justiça na presente instância, por não ter contra-alegado [art.º 7.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais (RCP)].

Cumpre, ainda, atento o valor dos autos, considerar o disposto no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

Assim, nos termos desta disposição legal, “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

No caso, tendo em conta a circunstância de ser apenas uma a questão controvertida, cuja complexidade não se apresenta superior à regra, determina-se que haja lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, julgar procedente a impugnação e anular as liquidações impugnadas na parte atinente às correções através de métodos indiretos;

b) Custas pela Recorrida em ambas as instâncias, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 19 de dezembro de 2023

(Tânia Meireles da Cunha)

(Luísa Soares)

(Jorge Cortês – vencido, conforme declaração infra)


Declaração de voto

Não acompanho a presente decisão e a sua fundamentação, porquanto entendo que o relatório inspectivo contém elementos que justificam o recurso aos métodos indirectos.

Do mesmo resulta que não existe contabilidade analítica, foram provadas as omissões de vendas e de inventários e ocorreram sucessivas faltas de cooperação e de esclarecimento por parte do contribuinte no decurso da inspecção. O relatório inspectivo contém uma análise detalhada das omissões de vendas por produto e mercadoria, cujos pressupostos não foram infirmados. Acresce referir a própria posição do perito do contribuinte, em sede de comissão de revisão, no sentido de aceitar as omissões e erros da contabilidade, bem como alguns dos valores propostos em sede de quantificação indirecta da matéria colectável.

Em síntese, os elementos coligidos nos autos permitem discernir a impossibilidade de avaliação directa da matéria colectável e a necessidade do recurso à avaliação indirecta.

Jorge Cortês
























1) V. a este propósito o Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 84/2003, de 12.02.2003
2) Para uma noção de correções meramente aritméticas, v. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 13.09.2013 (Processo: 00120/03 – Porto).
3) Direito Fiscal, 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2009, p.389
4) Neste sentido, v., exemplificativamente, os Acórdãos deste TCAS de 25.05.2017 (Processo: 06473/13), de 17.03.2016 (Processo: 06556/13) e de 13.03.2014 (Processo: 07216/13).