Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:04597/11
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:05/03/2011
Relator:ANÍBAL FERRAZ
Descritores:COIMA. RECURSO JUDICIAL. TEMPESTIVIDADE.
Sumário:1. A nulidade, enquanto motivo de invalidade dos actos administrativos, pressupõe a existência do acto, na produção e emissão do qual se detecta a preterição muito grave e evidente dos respectivos requisitos de validade, ao ponto de a lei expressamente cominar essa sanção.
2. O art. 63.º RGIT identifica nulidades do processo, na competente fase administrativa, de contra-ordenação tributário, as quais, apesar de poderem ser arguidas até decisão final de todo o processo, incluindo as fases de recursos judiciais e jurisdicionais, em virtude de serem insupríveis, ou seja, insusceptíveis de sanação, se reportam a vícios de natureza procedimental/processual, isto é, conexionados com a violação de ditames legais relativos a aspectos de cariz adjectivo e, sobretudo, de índole formal, cuja gravidade jamais se aproxima da que se detecta nos exemplos (de actos nulos), impressivamente, fornecidos, pelo legislador, nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 133.º Código do Procedimento Administrativo/CPA.
3. Acaso tivesse sido querido viabilizar a possibilidade de recurso judicial a todo o tempo, como proposto pela Recorrente/Rte, o determinante art. 80.º n.º 1 RGIT, à semelhança do que ocorre, no processo administrativo, com o art. 58.º n.º 1 Código de Processo nos Tribunais Administrativos/CPTA, não teria deixado de prever essa, excepcional, faculdade.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I
A...& A..., S.A., contribuinte n.º ...e com os demais sinais dos autos, apresentou, para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, recurso de decisão de aplicação de coima, da autoria do Director de Finanças de Setúbal (por delegação), datada de 10.7.2009 e exarada a fls. 16/19. Mediante despacho judicial, foi o recurso rejeitado, por intempestividade.
Notificada, a arguida interpôs recurso jurisdicional, cuja alegação finalizou com as seguintes conclusões: «
i) Conforme refere a Recorrente nos presentes autos, em Setembro de 2010 foi proferida sentença pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que determinou a rejeição do recurso judicial apresentado pela ora Recorrente, nos termos do artigo 80.° do RGIT, por ser extemporâneo.
ii) A sentença ora recorrida, foi proferida sem que a ora Recorrente tenha sido ouvida relativamente à questão da extemporaneidade.
iii) Ora, nos termos do princípio do contraditório, existindo qualquer questão que obste ao conhecimento do pedido, cabe ao Tribunal oficiar a Recorrente para que se pronuncie sobre a mesma, sendo que, a omissão de tal diligência constitui uma violação do direito de audição e defesa do Arguido, nos termos do artigo 32.° n.° 10 da Constituição.
iv) Neste sentido, a sentença em causa nos presentes autos é manifestamente nula, nos termos do artigo 120.° n.° 2 al. d) do CPP, aplicável por remissão do artigo 3.° do RGIT uma vez que, o Tribunal omitiu o dever de prática de um acto processual essencial para o regular decurso do processo, a notificação da Recorrente para se pronunciar sobre uma questão essencial, violando de forma manifesta o princípio do contraditório.
v) Termos em que, a sentença recorrida deverá ser declarada nula, nos termos do artigo 120.° n.° 2 al. d) do CPP, aplicável por remissão do artigo 3.° do RGIT, por violação manifesta do princípio do contraditório, previsto no artigo 32.° n.° 10 da Constituição, não podendo a mesma persistir no ordenamento jurídico.
vi) Ademais, a Recorrente apresentou recurso da decisão de aplicação da contra-ordenação, com fundamento na nulidade da decisão de aplicação de coima.
vii) Ora, por aplicação do artigo 63.° do RGIT constitui nulidade insuprível do processo, designadamente, a falta dos requisitos legais da decisão de aplicação de coima, que é o caso da situação em causa nos presentes autos, em que a autoridade administrativa não faz tão pouco qualquer apreciação do grau de culpa da Recorrente no que respeita aos factos que são imputados,
viii) Sendo que da decisão de aplicação de coima, não consta tão pouco a descrição fundamentada dos factos e das normas jurídicas que determinam a aplicação da coima, o que viola de forma manifesta o princípio da tutela jurisdicional efectiva previsto na Constituição.
ix) Neste sentido, por aplicação do disposto no n.° 5 do artigo 63.° do RGIT, a decisão de aplicação de coima, a qual é de conhecimento oficioso, só se torna definitiva com o transito em julgado da sentença que decide o recurso judicial, o qual pode ser apresentado a todo o tempo,
x) Uma vez que, considerando que no que respeita à nulidade por falta de pressupostos da decisão de aplicação da coima, está em causa o direito fundamental da Recorrente a uma tutela jurisdicional efectiva, nos termos do artigo 20.° da Constituição, este vício pode ser invocado a todo o tempo.
xi) Nestes termos, deverá considerar-se aplicável o disposto no artigo 134.° e n.° 1 do CPTA, que prevê que o acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, prevendo o n.° 2 da norma que a nulidade é invocável e pode ser declarada a todo o tempo por qualquer órgão administrativo, ou por qualquer Tribunal, o que significa que não há prazo legal para pedir a declaração de nulidade da decisão.
xii) Ademais, semelhante entendimento compagina-se igualmente com o disposto no artigo 286.° do Código Civil, que prevê que a nulidade é invocável a todo o tempo, por qualquer interessado, podendo a mesma ser declarada oficiosamente por qualquer Tribunal.
xiii) Neste sentido, e uma vez que o Direito contra-ordenacional não pode ser desfasado de qualquer interpretação sistemática, considerando que a regra no Direito Administrativo, designadamente no CPTA e a regra prevista no Direito Civil é a possibilidade de declaração a todo o tempo do vício de nulidade, sendo que o acto nulo não pode produzir qualquer efeito no ordenamento jurídico,
xiv) O n.° 5 do artigo 63.° deve ser interpretado também no mesmo sentido, possibilitando que o vício de nulidade insanável seja conhecido até ao trânsito em julgado do recurso de aplicação de coima, o qual poderá ser apresentado a todo o tempo.
xv) Porquanto, a interpretação do artigo 63.° n.° 5 do RGIT no sentido de a nulidade do processo de contra-ordenação apenas poder ser conhecida no prazo de 20 dias previsto no artigo 80.° do RGIT, viola claramente o princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20.° da Constituição, nos termos já expostos, permitindo que permanecesse no ordenamento jurídico um acto que viola de forma manifesta um direito fundamental dos particulares,
xvi) Designadamente o direito da Recorrente ao contraditório, que determina que a mesma seja notificada do teor integral da decisão de aplicação de coima, da qual deve constar a descrição detalhada dos factos que lhe são imputados, devendo na mesma decisão ser apreciado o grau de culpa imputado à Recorrente pela autoridade administrativa, permitindo que a mesma exerça de forma adequada o seu direito de defesa.
xvii) Uma vez que a sentença recorrida rejeitou liminarmente o recurso com fundamento na extemporaneidade do mesmo, apesar de a Recorrente ter invocado a nulidade do processo de contra-ordenação, a sentença deverá ser declarada nula.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, requer-se a V. Exa. que se digne declarar o presente recurso judicial procedente por provado, e por conseguinte, que se digne declarar nula a sentença recorrida, sendo a mesma substituída por outra que declare nulo o processo de contra-ordenação. »
*
O Ministério Público (em 1.ª instância) formalizou contra-alegações, onde conclui: «
- o prazo de recurso da decisão de aplicação de uma coima por entidade administrativa é, apenas, o de 20 dias previsto no artigo 80° n° l do RGIT;
- a arguida, ora Recorrente, foi notificada dessa decisão em 24/09/2009, pelo que o prazo de interposição de recurso terminou passados os 20 dias;
- o presente recurso foi interposto em 20/07/2010, pelo que se verifica a sua extemporaneidade.
- o despacho recorrido fez uma correcta apreciação dos factos provados e uma adequada aplicação do direito.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso e confirmado integralmente o douto despacho recorrido, como única forma de fazer
JUSTIÇA »
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Colhidos os vistos legais, compete conhecer.
*******
II
Mostra-se exarado, no despacho recorrido: «
Cumpre neste momento proferir despacho de admissão do recurso e verificar da sua tempestividade.
Para o efeito fixam-se os seguintes factos:
1. Em 10/07/2009, foi proferida decisão de aplicação da coima no montante de € 30.000,00 acrescida de custas, por despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária, por delegação do Director de Finanças, pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelo art. 114º, nºs 1 e 2 e art. 26º, nº 4, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias (cfr. fls. 16/19).
2. Em 24/09/2009 (data da assinatura do aviso de recepção de fls. 21 dos autos), a ora recorrente foi notificada através do ofício do Serviço de Finanças de Palmela, com o nº 9341 datado de 08/07/2009, da decisão de aplicação da coima, bem como da possibilidade de deduzir recurso da decisão de aplicação da coima, no prazo de 20 dias contados da data de assinatura do aviso de recepção, e nos termos do art. 80º do Regime Geral das Infracções Tributárias (cfr. fls. 20).
3. Em 20/07/2010 foi apresentada a petição inicial de fls. 32/45. »
***
A primeira questão que nos cumpre solucionar, prende-se com a invocação de que o despacho sob censura é nulo, nos termos e para os efeitos do art. 120.º n.º 2 al. d) CPP (1), porquanto o tribunal não ouviu a arguida, relativamente à matéria da extemporaneidade do recurso judicial, violando o seu direito de audição e defesa/princípio do contraditório.
Desde logo, sendo causas de nulidade da sentença (e demais decisões judiciais), em processo penal, unicamente, as previstas no art. 379.º n.º 1 CPP, sem mais, por imperativo legal, mostra-se inviável declarar a pretendida nulidade, face à manifesta ausência de alegação de qualquer dos motivos idóneos e incontornáveis para tal. Aspecto diverso será determinar se, por efeito da ocorrência de eventual nulidade processual, maxime, a coligida pela Recorrente/Rte, o visado despacho poderá vir a ser invalidado, anulado, nos termos do art. 122.º n.º 1 CPP.
Sendo patente que a arguida não foi convocada, pelo tribunal de 1.ª instância, para, querendo, se pronunciar sobre o aspecto da tempestividade do recurso judicial que interpôs, anteriormente à prolação do despacho que afirmou a respectiva apresentação fora de prazo, com o devido respeito, entendemos não ter sido omitida diligência essencial para a descoberta da verdade. Isto porque, deve assumir-se a dispensa de respeito pelo princípio do contraditório nas situações de manifesta desnecessidade, o que corresponde a dizer que não tem de ser promovida a audição dos intervenientes processuais quando, numa avaliação objectiva, se mostre de nenhum relevo, no sentido da decisão judicial a emitir, qualquer tipo de argumentação esgrimida pelos interessados. Doutra forma, não se pode accionar o exercício do contraditório, quando redundar na prática de um acto, uma diligência, inútil (2), inconsequente, para os termos da decisão a proferir.
Dito isto, facilmente, se percepciona que, in casu, em função dos lineares e inequívocos dados factuais disponíveis, que subsistem sem qualquer crítica ou reparo, a solução jurídica correcta da questão envolvendo a tempestividade desta impugnação judicial de decisão aplicativa de coima tinha de ser (como melhor perceberemos de seguida) no sentido da que foi judiciada no tribunal recorrido, pelo que, obviamente, era totalmente desnecessário sobre o assunto ouvir a arguida.
Em suma, não é nulo o despacho em análise.
Firmada esta conclusão, derradeiramente, impõe-se avaliar da possibilidade de haver ocorrido errado julgamento do aspecto relativo ao tempo correcto de apresentação do recurso judicial, na 1.ª instância, tendo o despacho sujeito a sindicância entendido que, quando, a 20.7.2010, tal ocorreu, há muito se encontrava ultrapassado o prazo de 20 dias disponibilizado, para o efeito, pelo art. 80.º n.º 1 RGIT, dado a notificação da decisão de aplicação da coima ter sido feita, à arguida, em 24.9.2009. Como suporte do seu apontamento, a Rte defende que, ao eleger como um dos fundamentos do recurso judicial a ocorrência de nulidade insuprível no processo de contra-ordenação, prevista no art. 63.º RGIT, o disputado recurso podia ser apresentado a todo o tempo, a coberto do disposto, entre outros, nos arts. 134.º n.º 1 e 2 CP(T)A e 286.º Cód. Civil.
Anotando ser, cumpridos mais de 20 anos de judicatura, a primeira vez que nos vemos confrontados com esta perspectiva de encarar a problemática em apreço, respeitosamente, não lhe dedicamos acolhimento.
Face ao disposto no art. 133.º CPA (3), a nulidade, enquanto motivo de invalidade dos actos administrativos, pressupõe a existência do acto, na produção e emissão do qual se detecta a preterição muito grave e evidente dos respectivos requisitos de validade, ao ponto de a lei expressamente cominar essa sanção. Ora, com uma amplitude que, nitidamente, não esta, o art. 63.º RGIT identifica nulidades do processo, na competente fase administrativa, de contra-ordenação tributário, as quais, apesar de poderem ser arguidas até decisão final de todo o processo, incluindo as fases de recursos judiciais e jurisdicionais, em virtude de serem insupríveis, ou seja, insusceptíveis de sanação, se reportam a vícios de natureza procedimental/processual, isto é, conexionados com a violação de ditames legais relativos a aspectos de cariz adjectivo e, sobretudo, de índole formal, cuja gravidade jamais se aproxima da que se detecta nos exemplos (de actos nulos), impressivamente, fornecidos, pelo legislador, nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 133.º CPA.
Por outro lado, além desta razão de cariz mais geral, ao nível dos princípios processuais, julgamos defensável que, acaso tivesse sido querido viabilizar a possibilidade de recurso judicial a todo o tempo, como proposto pela Rte, o determinante art. 80.º n.º 1 RGIT, à semelhança do que ocorre, no processo administrativo, com o art. 58.º n.º 1 CPTA (4), não teria deixado de prever essa, excepcional, faculdade. Ao invés, aí se inscreveu o prazo, único, de 20 dias, após a notificação das decisões de aplicação das coimas, para delas recorrer para o tribunal tributário de 1.ª instância, o que é indício, claro, objectivo, da vontade do legislador em fixar um privativo prazo para recorrer, independentemente dos casuísticos fundamentos invocados pelos arguidos, sendo certo que não desconhecia a estatuição normativa referente às apontadas nulidades insupríveis e a susceptibilidade de as mesmas serem arguidas pelos injungidos com coimas.
Assim, resta concluir e afirmar ter o despacho recorrido judiciado no respeito pela lei aplicável, não merecendo censura a rejeição do recurso judicial, apresentado pela arguida, por intempestividade.
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III
Face ao expendido, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, acorda-se negar provimento a este recurso jurisdicional.
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Custas pela recorrente/arguida.
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(Elaborado em computador e revisto, com versos em branco)
Lisboa, 3 de Maio de 2011

ANÍBAL FERRAZ
LUCAS MARTINS
MAGDA GERALDES


1- Código de Processo Penal; « A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. »
2- Em sintonia e paralelo com o disposto no art. 137.º CPC; “Não é lícito realizar no processo actos inúteis, (…)”.
3- Código do Procedimento Administrativo.
4- Código de Processo nos Tribunais Administrativos; « A impugnação de actos nulos ou inexistentes não está sujeita a prazo. »