Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:36/19.8BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/19/2019
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO
REGULAMENTO DISCIPLINAR DAS COMPETIÇÕES ORGANIZADAS PELA LIGA PORTUGUESA DE FUTEBOL PROFISSIONAL
PRESUNÇÃO DE VERACIDADE; PRINCÍPIOS DA CULPA, PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E IN DUBIO PRO REO; VIOLAÇÃO DE DEVERES
Sumário:
I. A presunção de veracidade dos elementos reportados pela equipa de arbitragem e delegados da Liga prevista no artigo 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar das competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP), não contende com os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, posto que se permite ao arguido a contraprova dos factos presumidos.
II. A norma em causa limita-se a atribuir um valor probatório aos factos presenciados pelas autoridades desportivas e estabelece a base fáctica que pode eventualmente consubstanciar a prática da infração, passando a caber ao arguido colocar fundadamente em causa o que dali consta.
III. Competirá então ao julgador analisar os elementos que forem carreados para os autos pelo arguido e decidir se colocam em causa a prova já existente e ilidem a presunção de veracidade daqueles elementos.
IV. Perante a prova de condutas desportivamente incorretas de sócios e/ou simpatizantes do clube, a condenação do arguido pela prática da infração prevista no artigo 187.º do RDLPFP terá de assentar na sua responsabilização pela violação de deveres a que se encontrava vinculado, o que não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
Votação:UNANIMIDADE com duas declarações de voto
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
*
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul


I. RELATÓRIO
………………………….., SAD, apresentou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), ao abrigo da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (LTAD), aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, na redação da Lei n.º 33/2014, de 16 de junho, recurso da decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, constante do acórdão de 20/03/2018, na sequência dos factos ocorridos no jogo entre as equipas do ……………………………, Futebol SAD e o …………………….., Futebol SAD, no dia 24/01/2018, no Estádio Municipal de Braga, a contar para a competição “Taça CTT”, nos termos do qual foram aplicadas as seguintes multas:
a)Sanção de multa de € 765,00, por infracção ao artigo 187.º, n.º 1, al. a), do RD da LPFP;
b)Sanção de multa de € 7.640,00 por infracção ao artigo 187.º, n.º 1, al. b), do RD da LPFP.
Por acórdão de 04/02/2019 do TAD foi decidido, por maioria:
- declarar a improcedência do pedido da demandante, mantendo-se a decisão recorrida;
- declarar a improcedência do pedido da demandada no que se refere à isenção da taxa de arbitragem.
Inconformada, a …………………………, SAD, interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“ - I -
i. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 04.02.2019 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelos arts. 187.º- l a) e b) do RD, alegadamente cometidas no jogo realizado no dia 24.01.2018. no Estádio Municipal de Braga, punindo-a em multa no valor de €8.405,00, e fixando as custas no total de €6.125,40.
- II -
ii. Considerando as infracções p. e p. pelo art. 187.º. n.º 1 do RD em causa nos autos era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da …………….. - Futebol SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da ………………….. - Futebol SAD.
iii. O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar, pelo que, não tem arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada.
iv. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência.
v. É precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente.
vi. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar esta quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.
vii. À míngua de meios de prova demonstrativos da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a demandante falhou nos seus deveres, entendendo que caberia à demandante ilidir a presunção de culpa pela qual o Tribunal se segue; recorrendo a um critério da primeira aparência.
viii. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da demandante somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
ix. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a demandante é titular e, do do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
x. Sucede que o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.º, n.05 2 e 10 da CRP), no princípio do Estado de Direito (art. 2.º da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881 e Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, www.dgsi.pt).
xi. O critério decisório adaptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA's).
xii. A figura da "prova de primeira aparência" ou "prova prima facie" é própria do direito civil, inserindo-se no quadro das presunções judiciais (art. 349.º do Código Civil) e pode, embora com cautelas e cum grano salis, funcionar nos pleitos cíveis, mas é um corpo completamente estranho no direito e processo sancionatórios, desde logo porque contraria os seus princípios estruturantes da culpa e da presunção de inocência.
xiii. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, e que não se imponha à demandante (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante,
xiv. Se assim não se fizer, incorrer-se-á em inconstitucionalidade: pois é inconstitucional -por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) -a interpretação dos artigos 222.º-2 e 250.º-1 do RDLPFP segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
xv. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.º, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação: a a actuação culposa da recorrente.
xvi. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelo art. 187.º-1, a) e b) do RD.
xvii. É inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32.º-2 e -10 da CRP), a interpretação dos artigos 13.º f) e 187.º-1 a) e b) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais; e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2.º e 30.º-3 da CRP).
- III -
xviii. O parâmetro da violação do dever de prevenção adaptado pelo Tribunal a quo é o mesmo para a imputação da infracção p. e p. pelo art. 187.º, n.º l, a) do RD, correspondente ao comportamento incorrecto dos adeptos consubstanciado em cânticos grosseiros e ofensivos de terceiros.
xix. Acontece que é completamente impossível à recorrente impedir manifestações vocais desse tipo e fica sempre por demonstrar a efectividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido.
xx. Responsabilizar disciplinarmente os clubes pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa puni-los por algo que, objectivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar. o que equivale a uma responsabilidade objectiva.
xxi. Pelo que, não podia o Tribunal a quo condenar a recorrente pela violação do art. 187.º-L a) do RD.
- IV-
xxii. A modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000.01 - ao invés do total da multa por que foi a recorrente condenada - foi feita em violação do previsto no art. 33 .º, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando-se o valor da acção no montante de € 8.405,00 daí se extraindo as devidas consequências.
xxiii. Os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º- l e 268.º-4 da CRP).
xxiv. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.º e 268.º- 4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
xxv. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.º- 1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria n.ª 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.º/l/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.ª da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º- l e 268.ª-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.ª da CRP).”
A recorrida Federação Portuguesa de Futebol requereu ser considerada isenta de custas e apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“1. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da ……. e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos.
2. Sinteticamente, de acordo com o Relatório dos Delegados da LPFP e de Policiamento Desportivo da PSP, os adeptos da Futebol Clube ……………, deflagraram diversos artigos pirotécnicos, durante o jogo e no recinto desportivo, entoando, ainda, cânticos como "Ahhhhh, filho da puta", "filhos da puta, filhos da puta, aconteça do que acontecer, …………… é merda até morrer" e "óh …………., vai pró caralho".
3. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenham sido adeptos da …….. os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
4. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, quer os relatórios da equipa de arbitragem, quer os relatórios dos delegados da LPFP, têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP).
5. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube.
6. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente.
7. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório dos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo da PSP) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.
8. Assim, os Relatório dos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente nos casos concretos. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP).
9. Isto não significa que os Relatório dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
10. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil.
11. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
12. Não obstante o supra mencionado, os concretos factos por que a Recorrente foi condenada, constam, ainda, do Relatório de Policiamento Desportivo da PSP que tem igualmente força probatória acrescida.
13. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Delegados da LPFP e das Forças de Segurança, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.
14. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
15. Do conteúdo do Relatório dos Delegados da Liga e do Relatório de Policiamento Desportivo da PSP, é possível extrair diretamente duas conclusões: (i) que o Futebol Clube …………. incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes da Futebol Clube………….., o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos (única forma dos Delegados e Forças de Segurança identificarem os espectadores, para além da bancada).
16. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres -foi retirado de outros factos conhecidos.
17. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
18. É absolutamente líquido que, segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável, foram adeptos da ……. a perpetrar as condutas descritas, bem como que a Recorrente era a entidade responsável por garantir e/ou impedir o comportamento incorreto dos seus adeptos; donde resulta, sem margem para dúvidas, que a Recorrente incumpriu com os seus deveres e deve ser responsabilizada, no contexto de uma contribuição omissiva causal promotora de um resultado típico.
19. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por três vezes em sede de recurso de revista.
20. Também não merece qualquer censura o valor atribuído à causa porquanto a Recorrente tem um interesse que vai muito para além da mera revogação da decisão disciplinar, tanto que invoca a inconstitucionalidade das normas aplicadas.
21. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
22. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitral, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pela infração p. p. pelo artigo 187.º, als. a) e b) do RD da LPFP”.
O Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto em funções neste Tribunal pronunciou-se pela procedência do recurso, com exceção da parte respeitante a custas.
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Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, as questões a decidir serão as seguintes:
- aferir do erro de julgamento do acórdão recorrido, ao confirmar a condenação da recorrente em multa pela prática da infração p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, als. a) e b), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP);
- aferir do erro de fixação do valor da causa;
- se a recorrida se encontra isenta de custas.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
[1] - No dia 24 de janeiro de 2018 ocorreu um jogo de futebol entre as equipas do ……………………. - Futebol SAD e o ……………………., Futebol SAD, no Estádio Municipal de Braga, a contar para a meia-final da Taça CTT;
[2] - Um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do ……., aos 63 e 89 minutos de jogo e no momento em que o guarda-redes da equipa do ……. procedeu à reposição da bola entoaram em coro o seguinte cântico "Ahhhhhh, filho da puta" ;
[3] - Um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do …….., ao primeiro minuto de jogo, com repetição aos 76 minutos de jogo, aos 88 minutos e ao 90+4 entoaram um cântico com a seguinte expressão: "filhos da puta, filhos da puta, aconteça o que acontecer, ……….. é merda até morrer";
[4] - Um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do ……. aos 88 minutos de jogo entoaram um cântico com aa seguinte expressão: " óh ………., vai para o caralho";
[5] - Um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do …… ao primeiro minuto de jogo fizeram uso de 3 petardos, tendo repetido ao minuto 23 e 35;
[6] - Um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do ……. ao minuto 36 fizeram uso de 9 petardos, tendo repetido r10 minuto 75 e 77 e durante a marcação de penalties, deflagraram mais 5 petardos, num total de 21 engenhos pirotécnicos;
[7] - Um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do ……. fizeram uso de 2 tochas ao minuto 36, tendo utilizado mais 2 tochas no decorrer da marcação de grandes penalidades;
[8] - Um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do ……… fizeram uso de um flash light no primeiro minuto de jogo, tendo utilizado mais utilizado por mais 7 vezes no minuto 36, e mais 2 flash light aos 90+4 minutos de jogo, no decorrer da marcação de grandes penalidades;
[9] - Os adeptos estavam localizados nas bancadas destinadas aos adeptos e simpatizantes do ……..; isto é, na bancada nascente;
[10] - Os adeptos nesta bancada estavam identificados com cachecóis, bandeiras, camisolas e entoavam cânticos de apoio ao …….;
[11] - A Demandante não foi a promotora do evento;
[12] - A Demandante tem o cadastro disciplinar na época 2017/2018 que se encontra junto aos autos no anexo lº, a tis 38 a 49;
[13] - A Demandante não coloca em causa os incidentes ocorridos no jogo em causa e descritos nos factos atras identificados;
[14] - O Sr. Fernando……….. foi o OLA do ……… no jogo dos autos;
[15] - O OLA Fernando ……. falou com adeptos localizados na bancada nascente do estádio e que na segunda parte do jogo acalmaram, mas que uns eram GOA e outros não;
[16] - O OLA Fernando………. assinou o acordo de reconhecimento dos prejuízos e reparação de danos, nomeadamente destruição de cadeiras, provocada pelos adeptos do …….., conforme melhor se refere no Relatório dos delegados da liga a fls 24 do 12 anexo junto aos autos pela Demandada;
[17] - A Demandante agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos acontecimentos incumpriu deveres legais e regulamentares que lhe competiam enquanto participante no espetáculo desportivo.
V - FUNDAMENTAÇÃO PARA A MATÉRIA CONSIDERADA PROVADA
A convicção deste colégio assenta na prova junta aos autos, quer em termos documentais quer testemunhais, nomeadamente:
- Comunicado oficial n.º 182 da LPFP (Fls. 17 e 18);
- Relatórios da equipa de Arbitragem (fls.19 a 23);
- Relatório dos delegados da LIGA (fls. 24 e seguintes);
- Relatório de Ocorrências do Policiamento Desportivo (fls. 33 a 36);
- Informação de jogo do ……. (fls. 67 a 71);
- Relatório de Vistoria do Estádio Municipal de Braga (fls. 76 e 77);
- Solicitação de esclarecimentos (fls. 99);
- Esclarecimentos prestados por escrito dos delegados da Liga (fls. 108 e 109);
- Esclarecimentos prestados por escrito da Divisão de Policiamento e Ordem Pública, subscrito pelo Superintendente - Chefe Manuel ………………………… (fls. 112 e 113);
- Fotografias da bancada nascente (fls. 116 a 123);
- Transcrição de parte do depoimento da testemunha nomeada em sede de Recurso Hierárquico impróprio - Sr. Fernando ……… (OLA do …….) descrita em sede de acórdão a fls 149, que não foi colocado em causa pela Demandante em sede de recurso para este Tribunal e antes admitido em sede de Petição de Recurso no seu ponto nº 90;
- Depoimento prestado pela Testemunha da Demandada, Sr. Reinaldo…………., Coordenador dos Delegados da Liga.
Cumpre dizer que se entende existirem nos autos matéria de prova que baste para alcançar os factos que foram considerados provados nesta decisão. A prova documental é abundante para confirmar todos os factos relativos ao jogo com interesse para a causa e para a sua boa decisão, nomeadamente a sua organização, ou os acontecimentos normais e anormais ao jogo, como é o caso dos petardos e flash lights.
Por outro lado, a prova testemunhal tem um complemento fundamental para que se compreenda todo o restante enquadramento dos factos. O depoimento do OLA em conjugação com o depoimento da testemunha da Demandada é importante para se entender algumas circunstâncias e procedimentos antes, durante e até após o jogo.
Com efeito, antes do início do jogo é função dos delegados da Liga, acompanhados pelo OLA das equipas intervenientes deslocarem-se aos locais onde vão estar localizados os adeptos para verificarem o estado do local, voltando no final do jogo para aferirem de danos causados - depoimento da testemunha Reinaldo……………… em sede de audiência nestes autos, de acordo com a gravação junta aos autos, minutos 15 a 24. Por outro lado, diz Fernando……………… {OLA do …….., cujo depoimento foi reproduzido pela Demandante no seu ponto 90 da sua Petição de Recurso, que:
"... atuou de imediato junto dos adeptos presentes naquele jogo: quando nós pressentimos que algo de correto não está a acontecer, eu tento intervir logo junto dos dirigentes dos grupos organizados de adeptos, quer via telefone quando não é possível pessoalmente. Nesse caso eu lembro-me pessoalmente de ter ido falar com eles e lembro-me que até depois na segunda parte os coisas foram mais calmas" (cf Depoimento prestado a 13-03-2018, ficheiro RHI 42 (17 - 18) inquirição, min. 00.05.55 a 00.06.15).
Não nos restam dúvidas da conjugação destes depoimentos que a bancada nascente estava confirmada para os adeptos do ……., que foi vistoriada e nada foi apontado como existente de anormal no local visitado, assim como que pela deslocação que o OLA Fernando ……….. efetuou ao local em momento temporal que não situa mas que se reconhece como sendo o de ocorrências não corretas, o mesmo falou com adeptos (palavras dos mesmos) e portanto pode identifica-los e os mesmos até acalmaram na 2ª parte.
Por outro lado, estes depoimentos e em conjugação com o Relatório dos Delegados da Liga onde consta que o OLA assinou o acordo para reparação de danos, nomeadamente a destruição de cadeiras, sem qualquer reparo ou recusa, leva-nos a crer que o mesmo admitiu que todos os atos foram praticados por adeptos do seu clube.
Também os esclarecimentos prestados pelos delegados da Liga e pela Divisão de Policiamento e Ordem Publica em conjugação com a Informação de jogo do …….. e o Relatório de Vistoria do Estádio Municipal de Braga permitem-nos alcançar uma melhor compreensão e confirmação sobre a localização dos autores dos comportamentos incorretos e sua ligação ao clube a quem a bancada foi atribuída, assim como sobre o procedimento prévio ao jogo em termos de segurança. Por fim entendemos que as fotografias confirmam o aparato dos acontecimentos e o massivo número de pessoas presentes na bancada afeta ao ……..
VI. MATÉRIA DE FACTO DADA COMO NÃO PROVADA
Não consideramos existir matéria de facto não provada dentro dos factos articulados pelas partes.»
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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir neste processo cingem-se a saber:
- se ocorre erro de julgamento do acórdão recorrido, ao confirmar a condenação da recorrente em multa pela prática da infração p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, als. a) e b), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP);
- se ocorre erro na fixação do valor da causa e das custas do processo arbitral;
- se a recorrida se encontra isenta de custas.


a) da condenação pela prática de infração disciplinar

Defende a recorrente que:
- o ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar;
- o princípio da presunção de inocência proíbe a inversão do ónus da prova;
- a presunção de veracidade dos relatórios prevista no artigo 13.º, al. f), do RD, não subtrai esta prova à livre apreciação do julgador;
- o critério decisório com base na prova da primeira aparência viola o princípio da presunção de inocência, e do mesmo passo implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não seja necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente a sua simples indiciação;
- é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência, do direito a um processo equitativo e do princípio do Estado de direito a interpretação dos artigos 222.º, n.º 2, e 250.º, n.º 1, do RDLPFP, segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infração disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação;
- da presunção de verdade prevista no artigo 13.º, al. f), do RD, não decorre a atuação culposa da recorrente, pois nos relatórios em causa não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem como facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado, pelo que falta preencher esse pressuposto legal exigido pelo artigo 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD;
- é inconstitucional por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa e do princípio da presunção de inocência a interpretação dos artigos 13.º, al. f), e 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RDLPFP, no sentido de que a indicação com base em relatórios de condutas incorretas dos sócios/adeptos é suficiente para provar que essas condutas se devem à culposa abstenção de medidas de prevenção por parte do clube, impondo a sua responsabilização objetiva por facto de outrem.

Iniciemos então a análise que se impõe pela presunção de veracidade dos relatórios prevista no artigo 13.º, al. f), do RD, e da distribuição do ónus da prova.
De acordo com o referido normativo, vigora o princípio geral da presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa, inscrevendo-se esta presunção nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, e conferindo um valor probatório reforçado àqueles elementos.
Veja-se, em lugar paralelo, que o artigo 169.º do Código de Processo Penal (CPP), considera provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa.
E o artigo 170.º, n.º 3, do Código da Estrada (CE), ao prever que “[o] auto de notícia levantado e assinado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.”
Destes preceitos não decorre qualquer presunção de culpabilidade ou inversão do ónus da prova, posto que as normas em causa se limitam a atribuir um valor probatório reforçado relativamente a factos presenciados pelas autoridades, policiais neste caso, desportivas no caso dos autos.
Os relatórios e declarações a que alude o artigo 13.º, al. f), do RD, estabelecem, caso dos mesmos isso expressamente decorra, a base fáctica que pode eventualmente consubstanciar a prática da infração.
E estabelecida esta base fáctica, passa a caber ao eventual agente da infração colocar fundadamente em causa o que dali consta. Competindo ao julgador analisar os elementos que forem carreados para os autos pelo eventual agente da infração, decidindo se colocam em causa a prova já existente, ilidindo a presunção de veracidade daqueles elementos.
Igualmente não assiste razão à recorrente quando sustenta que a utilização de presunções judiciais no direito e processo sancionatórios contraria os seus princípios estruturantes da culpa e da presunção de inocência.
As presunções judiciais, como definidas no artigo 349.º do Código Civil, são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
E na prova por utilização de presunção judicial, como já analisado pelo Tribunal Constitucional (acórdão n.º 391/2015, de 12/08/2015, disponível em http://www. tribunalconstitucional.pt/), “intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do réu.”
Tal orientação está longe de ser inovadora, antes se ancorando num historial de decisões do Tribunal Constitucional no sentido da compatibilidade com a presunção geral de inocência e com o princípio in dubio pro reo da prova de um facto poder resultar do funcionamento de uma presunção, conforme ali enunciadas, vejam-se:
- o acórdão n.º 38/86, que decidiu não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 169.º, § 1.º, e 557.º do Código de Processo Penal (de 1929) e as do artigo 2.º, n.º 2 e seu § único, do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de outubro de 1948, que se referiam à “fé em juízo” do auto de notícia em processo sumário;
- o acórdão n.º 448/87, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 26.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 85-C/75, de 26 de fevereiro (Lei de Imprensa), que havia como autor do escrito ou imagem o diretor da publicação e o responsabilizava como autor do crime;
- o acórdão n.º 246/96, que decidiu não julgar inconstitucionais as normas do artigo 22.º, n.os 1 e 2, do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Aduaneiras, quanto a presumir não nacionais as mercadorias detidas sem os documentos e selos legalmente exigíveis;
- o acórdão n.º 276/2004, que decidiu interpretar, nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o artigo 152.º, n.º 1, do Código da Estrada (com correspondência nos atuais n.os 2 e 3 do artigo 171.º), que estabelecia a presunção ilidível do proprietário ou possuidor do veículo ser o seu condutor.
Do que fica dito resulta já, de certa forma, a improcedência da invocação seguinte da recorrente, relativa à inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência, do direito a um processo equitativo e do princípio do Estado de direito da interpretação dos artigos 222.º, n.º 2, e 250.º, n.º 1, do RDLPFP, segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infração disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação;
Prevê-se naqueles normativos, respetivamente, a necessidade de fundamentação de facto e de direito dos acórdãos da Secção Disciplinar, com enunciação clara e sintética da sua motivação, e que os mesmos se devem fundar na prova produzida durante a instrução e no decurso da audiência disciplinar.
Não se acolhe que da decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, bem como do acórdão recorrido, se retire a interpretação da comprovação de um elemento constitutivo de uma infração disciplinar estar sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido. Conforme já sublinhado, os relatórios e declarações a que alude o artigo 13.º, al. f), do RD, limitam-se a estabelecer uma base fáctica que pode eventualmente consubstanciar a prática da infração. E caso isso suceda, a partir daí passa a caber ao arguido colocar em causa o que dali resulta.
Por outro lado, como igualmente se aponta no citado acórdão n.º 391/2015, a utilização da prova indireta ou por presunções “assenta num processo lógico de inferência” e numa “valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão”, como tal compatível com o dever de fundamentação.

Invoca ainda a recorrente que da presunção de verdade prevista no artigo 13.º, al. f), do RD, não decorre ter tido uma atuação culposa, pois nos relatórios em causa não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem como facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado, pelo que falta preencher esse pressuposto legal exigido pelo artigo 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD.
Daí inferindo a inconstitucionalidade por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa e do princípio da presunção de inocência a interpretação dos artigos 13.º, al. f), e 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RDLPFP, no sentido de que a indicação com base em relatórios de condutas incorretas dos sócios/adeptos é suficiente para provar que essas condutas se devem à culposa abstenção de medidas de prevenção por parte do clube, impondo a sua responsabilização objetiva por facto de outrem.
O artigo 187.º do RDLPFP, sob a epígrafe ‘comportamento incorreto do público’, prevê o seguinte no seu n.º 1:
“Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos:
a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC;
b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC.”
Que aqui cumpre conjugar com a presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa, prevista no artigo 13.º, al. f), do mesmo diploma.
Cumprindo ter aqui igualmente em consideração o respetivo artigo 17.º, que considera infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável.
Veja-se também que o artigo 35.º do Regulamento das Competições da LPFP (RCLPFP), em matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, considera deveres dos clubes, designadamente:
- assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança, al. a);
- incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados, al. b);
- aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto, al. c);
- zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos, al. l).
Ressalta dos factos dados como assentes que:
- no jogo em questão um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do …….., aos minutos 63, 76, 88, 89 e 90+4 minutos, dirigiram insultos a jogadores e adeptos adversários;
- um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do ……. fizeram uso de petardos aos minutos 1, 23, 35, 36, 75, 77 e durante a marcação de grandes penalidades;
- um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do ……. fizeram uso de tochas ao minuto 36 e durante a marcação de grandes penalidades;
- um grupo de adeptos situados na bancada nascente destinada aos adeptos do ……. fizeram uso de flash lights aos minutos 1, 36, 90+4 e durante a marcação de grandes penalidades;
- estes adeptos estavam identificados com cachecóis, bandeiras, camisolas e entoavam cânticos de apoio ao ……;
- o Oficial de Ligação aos Adeptos (OLA) falou com os adeptos localizados na bancada nascente do estádio e que na segunda parte do jogo acalmaram;
- a aqui recorrente agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos acontecimentos incumpriu deveres legais e regulamentares que lhe competiam enquanto participante no espetáculo desportivo.
Factos estes que alicerçaram a condenação da recorrente pela prática das infrações previstas nas citadas alíneas a) e b) do artigo 187.º do RDLPFP.
Esta condenação não assenta numa presunção de culpa ou em responsabilidade objetiva, mas antes na responsabilização do clube por violação de deveres a que se encontrava vinculado, em função do decidido em sede de matéria de facto, resultante da prova produzida e da utilização de presunções, a que nada obstam os preceitos da Lei Fundamental invocados.
Os adeptos que proferiram insultos, lançaram petardos, tochas ou flash lights encontravam-se na bancada destinada aos adeptos do ……., estavam identificados com cachecóis, bandeiras, camisolas e entoavam cânticos de apoio ao …….; presume-se, pois, que eram seus adeptos de facto, conforme atestado no relatório de jogo.
Competia então à recorrente infirmar tal factualidade, o que manifestamente não fez.
Pelo que, não tendo evitado o cometimento destes factos, omitiu o cumprimento dos deveres legalmente impostos, incorrendo na prática das sobreditas infrações.
Conclusão a que se chega sem vislumbrar uma interpretação desconforme aos invocados princípios constitucionais dos artigos 13.º, 187.º, als. a) e b), do RDLPFP.
Atente-se que, em sede de fiscalização da constitucionalidade de normas do Decreto-Lei n.º 270/89, de 18 de agosto, que estabeleceu medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto, e do anterior Regulamento Disciplinar, aprovado na assembleia geral extraordinária da FPF de 18/08/1984, com alterações introduzidas na assembleia geral extraordinária de 04/08/1990, o TC pronunciou-se quanto a tais questões (acórdão n.º 730/95, de 14/12/1995, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/), não discernindo em normas paralelas às que agora estão em causa uma ideia de responsabilidade objetiva, mas sim de responsabilidade por violação de deveres, desde logo por se exigir para a aplicação da sanção da interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes, servindo o processo disciplinar para “averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube). Com o que não pode dar-se como verificada a tese sustentada pelo requerente da violação do princípio da culpa.”
Acolhe-se aqui a orientação consensual da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de que são exemplos mais recentes os acórdãos de 02/05/2019, proc. n.º 073/18.0BCLSB, de 04/04/2019, proc. n.º 030/18.6BCLSB, de 04/04/2019, proc. n.º 040/18.3BCLSB, e de 21/02/2019, proc. n.º 33/18.0BCLSB (todos disponíveis em http://www.dgsi.pt), conforme lapidarmente sumariado neste último:
- a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do RD/LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo;
- a responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência;
- a responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.

Acolhendo-se o entendimento aí propugnado, cumpre concluir que improcedem todas as questões convocadas pela recorrente, sendo de manter a sua condenação pela prática da infração p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RDLPFP.


b) do valor da causa

Nesta sede, sustenta a recorrente:
- que a modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000.01 foi feita em violação do previsto no artigo 33.º, al. b), do CPTA;
- e que são inconstitucionais as normas aplicadas para fixar o valor das custas finais, artigos 2.º, n.os 1 e 5, por referência à tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro, 76.º, n.os l, 2 e 3, e 77.º, n.os 4, 5 e 6, da Lei do TAD, por violação do princípio da proporcionalidade, artigo 2.º da CRP, e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, artigo 20.º, n.º l, e 268.º, n.º 4, da CRP.
Quanto ao primeiro ponto, é por demais evidente o erro do acórdão recorrido.
Estamos no âmbito de um processo disciplinar, no âmbito do qual se concluiu pela aplicação de duas multas à aqui recorrente.
Prevê o artigo 77.º, n.º 1, da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro (Lei do Tribunal Arbitral do Desporto - TAD), que “[o] valor da causa é determinado nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”
E de acordo com o invocado artigo 33.º, al. b), do CPTA, quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário, como aqui à evidência ocorre, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada.
Como tal, o valor da causa corresponde a € 8.405,00 (oito mil, quatrocentos e cinco euros).

Outrossim, é patente o erro do acórdão recorrido ao fixar o valor das custas finais no total de € 6.125,40, invocando os artigos 76.º, n.os l e 3, e 77.º, n.o 4, da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro (Lei do TAD), e a Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro.
O artigo 76.º da Lei do TAD prevê o seguinte:
“1 - As custas do processo arbitral compreendem a taxa de arbitragem e os encargos do processo arbitral.
2 - A taxa de arbitragem corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor da causa, por portaria dos membros do Governo responsáveis pela área da justiça e do desporto.
3 - São encargos do processo arbitral todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção da prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros.”
E o artigo 77.º, n.º 4, prevê que “[a] fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo TAD.”
A Portaria n.º 301/2015, prevê no respetivo artigo 2.º o seguinte:
“1 - A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do Desporto em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante.
(…)
4 - São encargos do processo arbitral todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção da prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros.
5 - A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I.”
Perfilha-se aqui o entendimento adotado no acórdão deste TCAS de 06/12/2017, tirado no proc. n.º 155/17.5BCLSB (disponível em http://www.dgsi.pt), quanto a potenciais situações na aplicação desta Portaria de violação dos princípios da proporcionalidade, do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efetiva, no âmbito das custas a fixar nos processos do TAD, na medida em que as citadas regras podem resultar num valor de custas processuais muitíssimo superior ao valor processual e num valor relativamente elevado tendo presente o valor da causa, de forma patentemente desproporcional e injusta.
Sucede que no caso dos autos tal não se verifica, pois o valor das custas processuais terá de ser recalculado e será necessariamente inferior a metade do valor do processo.
Pelo que, no caso vertente, não se mostram violados os princípios constitucionais invocados, sendo certo que o valor das custas terá de ser revisto.


c) da isenção de custas da recorrida

Pretende a recorrida ver aqui reconhecida a sua isenção de pagamento de custas, em função do disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais.
Trata-se de questão pacífica na jurisprudência dos tribunais superiores, vejam-se os acórdãos do STA de 18/10/2018 (proc. n.º 0144/17.0BCLSB), de 20/12/2018 (proc. n.º 08/18.0BCLSB) e de 21/02/2019, proc. n.º 33/18.0BCLSB (todos disponíveis em http://www.dgsi.pt), no sentido de resultar dos artigos 76.º, n.º 2, e 77.º, n.º 3, da Lei do TAD “que a taxa de arbitragem corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e que esta é integralmente suportada pelas partes e por cada um dos contrainteressados e não se encontrando prevista neste diploma, nem na Portaria n.º 301/2015, de 22.9, nenhuma isenção de pagamento dessas taxas, não se pode verificar qualquer desigualdade entre os intervenientes processuais no que a esse pagamento respeita e que, nessa medida, fosse violadora do art. 13.º da CRP, sendo que também é insuscetível de infringir os citados preceitos constitucionais a circunstância de, eventualmente, a legislação que introduziu a arbitragem obrigatória se traduzir num agravamento da responsabilidade tributária da recorrente, quando nem sequer é alegado que o novo regime seja de tal modo gravoso que dificulte de forma considerável o acesso aos tribunais e que, desta forma, se possam considerar postergados os comandos insertos nos arts. 20.º, n.ºs 1 e 2, e 268.º, n.º 4, da CRP”.
Sufragando na íntegra tal entendimento, impõe-se indeferir o pedido de isenção do pagamento da taxa de justiça formulado pela recorrida.
*

III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
§ negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão do TAD na parte em que condenou a recorrente pela prática da infração p. e p. pelo artigo 187.º, nº 1, als. a) e b), do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional;
§ fixar o valor da causa no montante de € 8.405,00 (oito mil, quatrocentos e cinco euros);
§ indeferir o pedido de isenção do pagamento da taxa de justiça formulado pela recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 19 de junho de 2019

(Pedro Nuno Figueiredo)


(Carlos Araújo)
[com declaração de voto]


(Paulo Pereira Gouveia)
[revendo posição anterior, com base na recente e reiterada jurisprudência do STA]


Declaração de voto
Com a declaração de que voto a decisão considerando a recente jurisprudência do STA sobre a verificação das infracções disciplinares, mostrando-se inútil qualquer decisão em sentido contrário porque sujeita a revogação por aquele Tribunal, sem prejuízo do que eventualmente venha a ser decidido pelo TC.