Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:07040/13
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:01/16/2014
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:RECLAMAÇÃO - NULIDADE – INDEMNIZAÇÃO COMPENSATÓRIA
Sumário:- A indemnização compensatória incorpora uma verdadeira função punitiva ou sancionatória da responsabilidade civil, aparentada com a figura dos punitive damages do direito anglo-saxónico. Ou seja, visa atribuir ao lesado uma compensação por danos que foram provocados na sua esfera jurídica por um acto ilícito.
- Não é, por isso, enquadrável na categoria da “nulidade do negócio jurídico”.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1. Relatório

... , inconformado com a sentença proferida pelo Mm.º Juiz do TAF de Loulé, que julgou improcedente a Reclamação da decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Olhão que ordenou a penhora do prédio urbano registado sob o artigo 2.440, sito em Cari – Castelo Branco, veio interpor recurso jurisdicional em cujas alegações concluiu deste modo:
1.ª Sendo a falta de citação de conhecimento oficioso e estando nos autos todos os elementos necessários à apreciação da legitimidade do cônjuge do recorrente, deixou a douta decisão de conhecer questão de que devia ter tomado conhecimento, art.º 668.º n.º 1 al. d), actual art.º 615 n.º 1 al. d), do CPC, pelo que vai invocada expressamente a nulidade da douta sentença recorrida.
2.ª O raciocínio de fls 753 e 754 da douta decisão recorrida para não suspender a venda judicial parte de um pressuposto errado — que o recorrente com as queixas crime só quer a anulação dos negócios, quando, subsidiariamente invoca indemnização compensatória, caso a anulação não seja viável - deixando assim a sentença de conhecer questão que devia ter tido pronúncia, art.º 668.º n.º 1 al. d), actual art.º 615 n.º 1 al. d), do CPC, pelo que vai invocada expressamente a nulidade da douta sentença recorrida.
3.ª A douta decisão recorrida ao aplicar o direito a matéria, fls 495 e 587-624, que não está dada como assente no "probatório" conheceu questão que não devia ter conhecido — excesso de pronúncia, art.º 668.º n.º 1 al. d), actual art.º 615 n.º 1 al. d), do CPC, pelo que vai invocada expressamente a nulidade da douta sentença recorrida.
4.ª Apelando ao princípio da justiça material, podia e devia o tribunal " a quo " ter suspenso o processo executivo, porquanto a dívida exequenda está garantida e, acresce, estão preenchidos os requisitos de fato - pontos 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 10 do probatório, para que se suste a aplicação de norma legal tributária da qual resulta tributação materialmente injusta para o recorrente, tendo assim violado a decisão recorrida aquele princípio contido no art.º 266 n.º 2 do CPPT.
5.ª Violou ainda a decisão recorrida com a sua fundamentação materialmente injusta os artgs 279 n.º 1, art.º 272 nº 1, do CPC, 52.º n.º 1, 59.º nº 2 e 78 n.º 4 da LGT e 169.º n.º 1 do CPPT, pois, estando a dívida garantida, art.º 50.º n.º 1 da LGT, entendeu ainda assim não suspender a execução apesar do seu prosseguimento ofender "... a dignidade da pessoa humana, a efectividade dos direitos fundamentais, e os próprios princípios da igualdade e da proporcionalidade."

Não houve contra-alegações.

Neste TCAS o EMMP emitiu parecer no sentido do recurso merecer provimento.


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Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência.

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2. Fundamentação

a) De facto
(1). ... é casado com ... e tem dois filhos menores -fls. 478-487 dos autos.
(2). Entre 13 de Janeiro e 22 de Fevereiro de 2010, ... , colectado pelo CAE 68100 - Compra e Venda de Bens Imobiliários, foi inspeccionado pela Administração Tributária quanto ao exercício de 2008 no âmbito do IRS - cfr. fls. 468 dos autos.
(3). Nesta inspecção foram apurados os seguintes factos que fundamentaram o recurso a métodos indirectos:
"1 - Através de escritura de doação e partilha de bens doados, efectuada no ano de 1984, o SP tornou-se co-proprietário de um terreno rústico (1/2), inscrito na matriz predial com o n.° 7343, sito em Olivais de Santo António, d.: freguesia de São Sebastião em Loulé (080809) em conjunto com ... (sua tia);
2 - No ano de 1995, ... doa a sua metade da propriedade, referida no ponto 1, a ... ficando desta forma a ser o único proprietário do prédio rústico, composto de terra de cultura e pastagem com árvores.
3 — Em 11 de Março de 2005, a Câmara Municipal de Loulé emitiu o Alvará de Loteamento n.° 1/2005, pelo qual licenciou no referido prédio uni loteamento e as respectivas obras de urbanização.
Fase inicial: o referido alvará constituiu o título jurídico necessário para que o prédio fosse dividido em 28 lotes para construção urbana. (...)
Fase seguinte: Realização da infra-estruturação do prédio, sem a qual o mesmo, ainda que licenciado, não poderia ser comercializado. Esta fase esteve em curso até meados de 2007. ( ...)
4 — Não possuindo os recursos económicos necessários para custear as obras de infra-estruturas, procederam a "contrato promessa de empreitada" com o construtor das infra-estruturas, ie, entregou 10 lotes (lote 1, 2, 3, 4, 5, 15, 25, 26, 27, 28) pela realização das obras de urbanização; este contrato foi mal formalizado através de escritura como se de uma normal compra e venda se tratasse, em 02 de Maio de 2005 (não recebeu qualquer valor em troca).
No dia 27 de Julho de 2006, através de escritura de dação em cumprimento, ... entrega o lote 14 para pagamento de dívida referente a obras de infra-estruturas no valor de €143.440,70.
Desta forma e atendendo ao referido anteriormente, podemos concluir que o custo do loteamento da urbanização (dos 28 lotes) corresponde ao valor dos 11 lotes entregues à empresa que procedeu às obras de infra-estruturas, C 1.731.990,00 em 2005 e C 91.500,00 em 2006, ie, um total de C 1.823.490,00. Importa referir que embora o contribuinte possua contabilidade organizada, não existem documentos de custos referentes a obras de infra-estruturas, pois estes foram suportados pela empresa que as realizou, tendo recebido em troca 11 lotes do terreno.
5 — A 2 de Maio de 2005, o contribuinte dá início da sua actividade de compra e venda de bens imobiliários, sendo os rendimentos daí resultantes enquadrados na categoria B — rendimentos empresariais de IRS, nos termos do disposto no artigo 3.0 do CIRS.
6 — Em 10 de Janeiro de 2008, o SP através de escritura vende à empresa «... — Investimentos Imobiliários, Lda.», NIPC ... , 13 lotes de terreno pelo valor global de C 1.525.000,00." — cfr. fls. 469-470 dos autos.
(4). Consequentemente, foi proposta a correcção ao rendimento colectável do IRS de 2008 no montante de € 1.023,981,14 - cfr. fls. 473 dos autos.
(5). No decurso da acção inspectiva, ... apresentou uma declaração de substituição de IRS - Mod. 3 - 2.ª fase, referente ao rendimento obtido no ano de 2008, de acordo com os valores propostos pela inspecção e referidos em 3. - cfr. fls. 473 dos autos.
(6). Em 27 de Setembro de 2011, foi registado nos Serviços do Ministério de Loulé (2.a Secção) o Inquérito n.° 1081/11.7TALLE, pelo crime de burla simples, instaurado pelo Ministério Público, e em que ... e ... são assistentes, contra os arguidos ... e ... - Investimentos Imobiliários, Unipessoal, Lda - cfr. fls. 439-453 dos autos(1).
(7). No Processo de Execução Fiscal n.° 1104-2010/01036394, instaurado no Serviço de Finanças de Olhão contra ... e ... para cobrança do IRS de 2008 no montante de € 16.005,21, foi ordenada a penhora – acto reclamado – do prédio urbano sito em Broco ou São Marcos - Lote n.° 15, registado na matriz sob o n.° 2.440 - cfr. fls. 3-8 dos autos.
(8). Em 20 de Março de 2012, ... requereu ao Chefe do Serviço de Finanças de Olhão "a suspensão da realização daquela venda (ou vendas) em virtude de ter apresentado duas queixas-crime, uma junto dos Serviços do Ministério Público de Loulé, outra perante o Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, em que (...) pretende a anulação dos negócios celebrados com as firmas «... - Investimentos Imobiliários Unipessoal, Lda.» e «... - Investimentos Imobiliários, Lda.», que junta, uma vez que, como a própria Administração Tributária reconhece no relatório de inspecção realizada ao exercício de 2008 do ora Requerente, que este «... não recebeu qualquer valor em troca...» pelos negócios realizados, tendo, isso sim, sido vítima, num caso, de recursos a meios artificiosos e ardilosos por parte da sociedade «... », ou seja, em ter ficado com os proveitos, sem nada ter recebido, ter pago em ,espécie com lotes o custo das infraestruturas sem que a facturação dós mesmos lhe tenha sido entregue, beneficiando aquela sociedade desses custos e, no outro caso, quanto ao negócio celebrado com Sociedade ... , ter havido uma redução de preço previamente à anulação da venda dos lotes restituídos, acomodando o valor dos lotes que permaneceram na sua esfera ao montante do sinal recebido, servindo-se do seu estado de necessidade, devido à grave situação financeira em que caiu, após a realização do primeiro negócio, facto a que acresce, ainda, o aproveitamento da sua notória incapacidade, quer para gerir os seus bens, quer para, até, compreender o alcance dos seus actos, motivo pelo qual apresentou, agora, as. queixas-crime contra aquelas sociedades, a fim de conseguir a anulação dos actos praticados ou a responsabilização e condenação dos denunciados. (...) Perante o exposto, requer mui respeitosamente, apelando ao princípio da justiça que deve sempre presidir aos actos tributários, a sustação da venda judicial dos seus bens penhorados até que sejam decididos os processos pendentes" - cfr. fls. 245-246 dos autos.
(9). Em 3 de Abril de 2012, a Chefe do Serviço de Finanças indeferiu este pedido de sustação da venda judicial dos bens penhorados - acto reclamado -, por não estarem reunidos os requisitos necessários para a suspensão do processo de execução fiscal previstos no n.° 1 do art. 52.° da LGT e no art. 169.° do CPPT - cfr. fls. 17 dos autos.
(10). ... tem uma inteligência na zona fronteiriça da normalidade com a débilidade - cfr. o depoimento de Paulo Sargento e os relatórios periciais de fls. 48-51 e de 400-404.


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Aditam-se os seguintes factos:
(11). O recorrente e a mulher, ... , instauraram em 14-01-2008, no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, a acção cível n.º 133/08.5TBFAR, a correr termos no 1.º Juízo, contra ... , ... - Investimentos Imobiliários, Unipessoal, Ld.ª, ... & Filhos, Ld.ª e ... , ... – Construções, Ld.ª em que pedem que seja:
“declarada a nulidade ou, subsidiariamente, ser decretada a anulação do contrato celebrado entre autores e 1° réu em 28 de Outubro 1999 e, bem assim, da procuração irrevogável outorgada pelos autores a favor do 1° réu em 06 de Agosto de 1999 e, em qualquer dos casos, ser o 1° réu condenado a restituir aos autores a quantia de € 22.875,00 que por estes lhe foi paga em cumprimento do dito contrato, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Declarada a nulidade ou, subsidiariamente, ser decretada a anulação do contrato celebrado entre autores e 1° réu em 25 de Julho de 2004, cuja posição contratual foi parcialmente transmitida para a 2.ª ré e, bem assim, dos demais actos e negócios jurídicos celebrados em execução deste incluindo as escrituras publicas de compra e venda e de dação em cumprimento celebradas no Cartório Notarial de Vilamoura do Lic. ... em, respectivamente, 2 de Maio de 2005 e 26 de Julho de 2006 e, em qualquer dos casos:
Ser a 2.ª ré condenada a restituir aos autores, os lotes nos 4, 15, 25 e 26 - prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob os números 7833, 7844, 7854 e 7855 - todos da freguesia de São Sebastião, concelho de Loulé transmitidos pelos autores para a 2° ré por escritura outorgada em 2 de Maio de 2005 no Cartório Notarial de Vilamoura do Lic. ... ;
Ser a 3.ª ré condenada a restituir aos autores, os lotes n° 1, 2, 3 e 5 - prédios urbanos descritos sob os números 7830, 7831, 7832 e 7834 todos da freguesia de São Sebastião, concelho de Loulé - transmitidos pelos autores para a 2° ré por escritura outorgada em 2 de Maio de 2005 no Cartório Notarial de Vilamoura do Lic. ... ;
Ser a 4.ª ré condenada a restituir aos autores, livres de ónus ou encargos, os lotes n° 27 e 28 - prédios urbanos descritos sob os números 7856 e 7857 ambos da freguesia de São Sebastião, concelho de Loulé — transmitidos pelos autores para a 2° ré por escritura outorgada em 2 de Maio de 2005 no Cartório Notarial de Vilamoura do Lic. ... ;
Ser a 2.ª ré condenada a restituir aos autores o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número 7843 da freguesia de São Sebastião, concelho de Loulé, transmitido pelos autores para a 2• ré por escritura de dação em cumprimento outorgada em 26 de Julho de 2006 no Cartório Notarial de Vilamoura do Lic. ... ;
Serem os autores desonerados da confissão de dívida por eles feita à 2.ª ré no montante de E 51.802,44 exarada na já referida escritura de dação em cumprimento outorgada em 26 de Julho de 2005 no Cartório Notarial de Vilamoura do Lic. ... ;
Serem os 1° e 2 réus condenados a restituir aos autores a quantia de € 25.736,19 correspondente à factura n° 1 da r Ré que os autores pagaram acrescida de juros mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
Serem cancelados os registos prediais de aquisição a favor dos 2°, 3° e 48 réus, relativos aos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob os números 7830, 7831, 7832, 7833, 7834, 7843, 7844, 7854, 7855, 7856 e 7857 todos da freguesia de São Sebastião;
Subsidiariamente, a não ser possível, a restituição de todos e qualquer um dos referidos prédios urbanos serem os réus condenados no pagamento do respectivo valor que, nos termos do art. 569° do Código Civil e nos termos e para os efeitos do art. 471°, n° 1, ai. b) do Código de Processo Civil, se calculam individualmente pela média das avaliações juntas como Docs. n° 10 e 11 e na sua globalidade em 1.531.229,25.
(12). Por sentença de 17-04-2009 foi homologada a transação efectuada na acção referida anteriormente, do seguinte teor:
“1.º Os AA. desistem dos pedidos da presente
2.º Os RR. desisitem dos pedidos reconvencionais;
3.º Os AA. confessam não serem credores dos RR. e estes últimos confessam não serem credores dos AA.;
4.º Os AA. declaram revogar a procuração junta de fls. 128 a 131, lavrada no 2.9 Cartório Notarial de Loulé, em 06 de Agosto de 1999, declarando o Réu ... que aceita a revogação desse instrumento de representação
5.º Os AA. e os RR. ... e ... , Investimento Imobiliário Unipessoal, Lda., declaram, de comum acordo, revogar, com efeitos a partir da presente data, os contratos entre os mesmos celebrados, que estão juntos a fls. 132, 499 e 500 dos autos, reconhecendo nada terem a restituir ou a exigir reciprocamente por esses negócios, bem como válidos os efeitos jurídicos produzidos até à data pelos mesmos;
(…)
(13). O recorrente foi notificado em 19-04-2012 do despacho de penhora referida supra em 7 (AR de fls. 4 e fls. 268);

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b) O Direito

O recorrente ataca a sentença esgrimindo vários argumentos tendentes a demonstrar as nulidades em que aquela incorreu.

Comecemos, por razões que adiante se explicitarão, pelo segundo argumento, consistente em afirmar que o raciocínio da decisão recorrida está errado por partir de pressuposto errado - o de que o recorrente com as queixas crime só quer a anulação dos negócios, quando, subsidiariamente invoca indemnização compensatória, caso a anulação não seja viável – e com isso a sentença deixou “de conhecer questão que devia ter tido pronúncia”, pelo que padece de nulidade.

Salvo o devido respeito, esta arguição de nulidade não tem a mínima consistência jurídica.

É que o recorrente confunde duas realidades completamente distintas: o da indemnização compensatória e o da nulidade do negócio.

A indemnização compensatória incorpora uma verdadeira função punitiva ou sancionatória da responsabilidade civil, aparentada com a figura dos punitive damages do direito anglo-saxónico. Ou seja, visa atribuir ao lesado uma compensação por danos que foram provocados na sua esfera jurídica por um acto ilícito.

Deste modo, tendo em conta essa especificidade da indemnização compensatória, esta figura jurídica não é subsumível à categoria da “nulidade do negócio jurídico”, como se comprova pelas características que lhe são próprias: a nulidade absoluta priva o negócio de qualquer eficácia jurídica, o que pode não estar na base da indemnização compensatória. Por seu lado a nulidade relativa (anulabilidade) refere-se a negócios que se acham inquinados de vícios capaz de lhes determinar a ineficácia, mas que podem ser eliminados, restabelecendo-se a sua normalidade, sendo que neste caso a declaração judicial de ineficácia opera ex nunc, de modo que o negócio produz efeitos até ao momento de tal declaração. E muito menos a indemnização compensatória se confunde com a inexistência jurídica, caso em que o negócio jurídico não gera quaisquer efeitos no mundo jurídico, por lhe faltar a necessária aptidão para existir, por falta de requisitos essenciais à sua existência.

Por conseguinte, tem inteira razão a sentença quando afirma que “as queixas-crime não levam à anulação dos negócios que foram os factos tributários que deram origem à quantia exequenda, desde logo por incompetência material do tribunal criminal para o efeito. Pelo que não podem ser equiparadas à Impugnação Judicial ou à Oposição Judicial que são os meios processuais eleitos pelo legislador para obter a suspensão do processo executivo por porem em causa a legalidade ou a exigibilidade da dívida exequenda”.

Por outro lado, a acção cível terminou por acordo não sendo perceptível se a penhora efectuada na execução incide sobre algum dos prédios sobre que versou a transacção. Essa demonstração competia ao recorrente, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC e art.º 74.º, n.º 1, da LGT.

Improcede, pois, esta conclusão.

Não se antolha o que o recorrente pretende dizer quando afirma que “a douta decisão recorrida ao aplicar o direito a matéria, fls 495 e 587-624, que não está dada como assente no "probatório" conheceu questão que não devia ter conhecido — excesso de pronúncia, art.º 668.º n.º 1 al. d), actual art.º 615 n.º 1 al. d), do CPC, pelo que vai invocada expressamente a nulidade da douta sentença recorrida”.

Uma vez que é o recorrente que invoca os processos-crime como fundamento da suspensão da venda executiva, não constituiu qualquer excesso de pronúncia que o tribunal a quo tenha trazido tais processos à colação para rechaçar os argumentos a favor da dita suspensão. De resto, o recorrente parece ter da estrutura da sentença uma visão muito rígida, de tal forma que qualquer facto que não constasse do probatório não podia ser convocado; mas não é assim: como reiteradamente a jurisprudência entende, a consideração de facto para além daqueles que constam do probatório pode constituir uma deficiência técnica mas não assume a gravidade de uma nulidade processual. Posto que o tribunal não ultrapasse os limites de conhecimento que a lei lhe impõe no domínio da matéria de facto – circunstância que o recorrente nem sequer alega – tendo em conta o princípio de que ao autor cabe o ónus de alegar a essencialidade da matéria de facto e ao tribunal subsumi-la ao direito, com o eventual concurso de factos instrumentais que resultem, designadamente, da instrução da causa. O que é o caso presente.

Improcede, também, esta conclusão.

Sustenta ainda o recorrente que “apelando ao princípio da justiça material, podia e devia o tribunal " a quo " ter suspenso o processo executivo, porquanto a dívida exequenda está garantida e, acresce, estão preenchidos os requisitos de fato - pontos 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 10 do probatório, para que se suste a aplicação de norma legal tributária da qual resulta tributação materialmente injusta para o recorrente, tendo assim violado a decisão recorrida aquele princípio contido no art.º 266 n.º 2 do CPPT”.

Esta argumentação já tinha sido antecipadamente refutada pelo Mm.º Juiz a quo dizendo que o Processo de Execução Fiscal se suspende, nos termos dos artigos 52.°, nos 1 e 2, da LGT, e 169.°, n.° 1, do CPPT, com dedução de Impugnação Judicial ou Oposição à Execução, se for constituída garantia nos termos do artigo 195.° (hipoteca ou penhor) ou se for prestada garantia nos termos do artigo 199.° (garantia bancária, caução, seguro-caução ou qualquer outro meio susceptível de assegurar os créditos do exequente e, bem assim, penhor ou hipoteca voluntária).
Sucede que nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 169.º do CPPT, se os bens penhorados garantirem a dívida exequenda e acrescido, nada obsta à suspensão da execução.
Ora, apesar de no requerimento referido supra em (8) o recorrente ter pedido que a garantia incidisse sobre os bens penhorados, nem a informação que sobre o requerimento recaiu refere que tais bens não garantem a dívida exequenda e acrescido nem no despacho de indeferimento é feita qualquer alusão à sua inidoneidade para tal fim, limitando-se o despacho a dizer, aliás, que o requerimento não reúne os requisitos legais para que o pedido de suspensão pudesse ser deferido.
Sucede, porém, que não tendo o reclamante invocado um só vício do acto reclamado, o tribunal não pode substituir-se-lhe nessa alegação, decretando a anulação do acto com fundamento numa ilegalidade oficiosamente conhecida.
É que não obstante a reclamação prevista nos artigos 276.º e seguintes consubstanciar um verdadeiro incidente da execução – na medida em que constitui uma ocorrência estranha ao normal desenvolvimento da lide executiva(2) - não deixa de constituir um meio de impugnação do acto reclamado visando essencialmente a sua erradicação da ordem jurídica, em tudo semelhante a um recurso que tenha por obtenção uma decisão de segunda grau anulatória de uma precedente decisão administrativa, que em primeira mão tenha definido o direito aplicável ao caso concreto.
Ora, neste tipo de meio processual – quer seja deduzido a título incidental quer a título principal – o objecto do pedido anulatório será sempre o acto visado, sendo a causa de pedir constituída pelos vícios de que o mesmo padeça.
Como no caso em concreto o recorrente, em relação ao despacho de indeferimento da suspensão, nem um só vício alega, limitando-se a considerações de todo em todo espúrias para a aferição da sua eventual ilegalidade, apenas aflorando o princípio da boa-fé ínsito ao art.º 59.º, n.º 2, da LGT (n.º 52 da reclamação) - questão que de resto não é traduzida em factos concretos a ponto de ficar demonstrado qualquer vício de violação de lei – e a prejudicialidade do processo criminal para o prosseguimento da execução, está o tribunal impedido de decretar a anulação de um acto que o recorrente não demonstra ser ilegal, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC e 74.º, n.º 1, da LGT. Sublinhe-se que a hipotética inconstitucionalidade suscitada no n.º 51 da reclamação diz respeito à sua subida imediata que não a vícios do acto reclamado.
Não existindo portanto causa de pedir anulatória, não pode o tribunal suprir ex officio essa falta, descortinando uma invalidade do acto que não foi alegada, apesar de no requerimento em que peticionou a suspensão o recorrente ter alegado que os bens penhorados garantem a dívida exequenda e o acrescido.
Improcede, portanto, esta conclusão.

Doutro passo não há qualquer violação dos artigos 279 n.º 1, art.º 272 n.º 1, do CPC, 52.º n.º 1, 59.º nº 2 e 78 n.º 4 da LGT e 169.º n.º 1 do CPPT, violação que de resto o recorrente se limita a convocar em termos genéricos, sem qualquer tradução em factos concretos.

De resto, não se vê em que seja posto em causa o princípio da justiça material, nem qual a relevância que os normativos citados podem ter para efectivação deste no caso concreto. Outrossim, o que se constata é que o recorrente – ao arrepio das mais elementares normas processuais – apenas proclama panfletáriamente que o prosseguimento da execução ofende "... a dignidade da pessoa humana, a efectividade dos direitos fundamentais, e os próprios princípios da igualdade e da proporcionalidade", sem que traduza essa alegada ofensa em factos concretos.

Por fim, resta apreciar a primeira questão colocada pelo recorrente e que diz respeito à falta de intervenção do respectivo cônjuge no presente processo.

Ainda que a argumentação tivesse algum sustentáculo – e não tem, basta pensar que quem impulsiona a causa é o próprio recorrente, confundindo pois a legitimidade para a reclamação com a legitimidade no processo executivo - como se trata de questão nova que não foi anteriormente suscitada e sobre a qual a sentença recorrida não se pronunciou nem podia ter-se pronunciado, não pode a mesma ser apreciada pelo tribunal de recurso.

Com efeito, constitui entendimento pacífico na jurisprudência que a impugnação das decisões judiciais por meio de recurso visa, unicamente, modificar a decisão recorrida através do seu reexame e não criar decisões sobre matéria nova. Consequentemente, não é possível apreciar questões que as partes, nos seus articulados, não tenham submetido à pronúncia do Tribunal recorrido, o que vale quer para as questões processuais, quer para as questões substantivas que digam respeito à relação material controvertida. Claro que tal entendimento fica paralisado face às questões cujo conhecimento oficioso a lei impõe.

E mesmo que se entenda que essa questão é de conhecimento oficioso – como de resto defende a jurisprudência – nem assim a mesma poderia ser conhecida nesta reclamação. Com efeito, tendo esta por objecto o despacho de indeferimento do pedido de suspensão da execução, a apreciação dessa questão envolveria uma inadmissível alteração do objecto do processo ao arrepio do elementar princípio da estabilização da instância, já que a lide impugnatória relativa à nulidade da citação não chegou sequer a iniciar-se.

E este entendimento não traduz qualquer prejuízo para o recorrente. Com efeito, não obstante a falta de citação constitua uma nulidade insanável de conhecimento oficioso, por manifestamente lesar os direitos de defesa do executado no respectivo processo de execução fiscal, pode ser arguida junto do órgão de execução fiscal até à decisão final, nos termos do artigo 165.º n.os 1, alínea a), e 4 do CPPT e, em seguida, ser reclamada para o tribunal tributário no caso de indeferimento.

Não se coloca, assim, qualquer obstáculo a uma tutela jurisdicional efectiva.

Em face de todo o exposto, não se verificando qualquer nulidade da sentença e sendo improcedentes todas as conclusões, o recurso não merece provimento.


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3. Dispositivo:

Em face de todo o exposto acordam em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Notifique e d.d.n.

Lisboa, 2014-01-16

(Benjamim Barbosa)

(Anabela Russo)

(Aníbal Ferraz)


1- Modificada a redacção original, onde constava que o Ministério Público e os assistentes eram “autores” e os arguidos “réus”.
2- Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, …4.º vol., 6.ª ed., p. 268