Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:982/23.4BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:03/19/2024
Relator:JOANA COSTA E NORA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PRESSUPOSTOS
Sumário:I - Cabe a quem se pretenda valer da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a demonstração da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a qual deve assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
II - Para o efeito, deve o autor descrever uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca, não lhe bastando afirmar uma mera lesão dos mesmos.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

M…, nacional do Brasil, residente na Malásia, intentou intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Ministério da Administração Interna. Pede a condenação da entidade demandada a emitir uma decisão, convocando o autor e os “reagrupados familiares”, “se assim for entendido”, “para a realização Da Fase procedimental Dos Biométricos Em Portugal Com uma antecedência Nunca inferior 60 Dias (Úteis)”. Alega, para tanto e em síntese, que: (i) Foi considerando o direito ao reagrupamento familiar - ao abrigo do qual a família do autor poderia juntar-se ao mesmo em Portugal -, assim como o tempo que medeia entre a submissão do pedido de autorização de residência para actividade de investimento e a sua concessão - que, nos termos do disposto no artigo 82.º da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, é de 90 dias -, o autor investiu em Portugal o montante de € 280.000,00, para alcançar a referida autorização, tendo, assim, criado legítimas expectativas para um normal desenrolar do procedimento, as quais foram goradas em virtude da falta de decisão do seu pedido; (ii) Em 04.05.2022, o autor adquiriu parte de imóvel sito em Lagos, e submeteu, em 13.06.2022, o pedido de autorização de residência para actividade de investimento, nos termos do artigo 90.º-A da referida lei, não tendo ainda tal pedido sido decidido, e, em 15.06.2022, o autor solicitou o pedido de reagrupamento familiar para o seu cônjuge e seus filhos, menores de idade, ao abrigo do artigo 98.º da mesma lei, que também ainda não foi decidido, e, sendo os seus filhos estudantes, o autor tem a necessidade permanentemente de procurar instituições de ensino (com vagas) e com as devidas creditações para os colocar assim que chegue a Portugal; (iii) O autor pretende fixar residência em Portugal e fazer de Portugal o centro da sua vida social, familiar e económica, para o que precisa de concluir os procedimentos de autorização de residência e de reagrupamento familiar; (iv) Os direitos de residência em território nacional e ao reagrupamento familiar são direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias do artigo 17.º da Constituição e, sem uma decisão de mérito urgente, não poderão ser exercidos em tempo útil, atenta a demora de uma acção administrativa comum e a impossibilidade de decretamento provisório do agendamento para entrega da documentação e recolha dos dados biométricos; (v) Há milhares de investidores a quem o SEF já concedeu o direito de residência em Portugal, ao abrigo do estatuto ARI, tendo agendado a recolha dos dados biométricos, e cujos familiares já têm cartão emitido, podendo, assim, circular livremente entre o país de origem e Portugal ou fixarem residência em Portugal, pelo que a falta de decisão dos pedidos do autor viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição; (vi) A falta de decisão dos pedidos do autor é também uma violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva, da boa fé e da segurança jurídica e protecção da confiança dos cidadãos (no Estado).
Admitida liminarmente a petição, a entidade demandada apresentou resposta, contrapondo, em síntese, que não se verifica a violação de qualquer direito, liberdade e garantia, nem tão pouco a necessidade e indispensabilidade da intimação para a sua defesa, pressupostos legais da utilização deste meio processual, o que consubstancia a excepção dilatória inominada de inadequação do meio processual, pois que o autor não demonstra a existência de uma situação que justifique uma tutela definitiva urgente nem sequer a violação de um direito, liberdade e garantia.
Pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra foi proferida sentença a absolver a entidade demandada da instância por falta de verificação dos pressupostos de recurso ao processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, concluindo pela insusceptibilidade de convolação da presente acção em processo cautelar por estar ultrapassada a fase processual liminar.
O autor interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso jurisdicional é interposto da douta sentença proferida pelo Ilustre Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que considerou o meio processual utilizado – i.e., a Intimação para a Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias um meio impróprio improcedendo todo o peticionado por falta de urgência;
2. Ora, na sua interpretação, e salvo melhor opinião que o Venerando Tribunal sempre suprirá, a sentença recorrida padece de erros de interpretação, valoração e julgamento.
3. Sucumbindo nesse mesmo erro, a sentença ora recorrida, faz uma interpretação errada do pedido feito, bem como, e em especial, do direito aplicável aos factos invocados pelo Recorrente;
4. A sentença recorrida padece de erro de julgamento, de facto e de direito, ao considerar não estar em causa qualquer DLG que fundamente a urgência da emissão de uma declaração ARI.
5. Não se tendo pronunciado, de forma cabal, sobre a violação dos Direitos invocados e importantes ao correto julgamento da lide no seu todo, e que são direitos análogos aos Direitos, Liberdades e Garantias do art. 17º da CRP (não considerando, aliás, aplicável);
6. O ora Recorrente e a sua família, não residem em Portugal pelo que, segundo interpretação errada do Ilustre Tribunal, nunca poderiam ter Direitos, Liberdades e Garantias no caso a proteger;
7. Isto é, salvo melhor opinião, uma errada interpretação do direito vigente e da jurisprudência do Tribunal Constitucional, tendo servido, este, de base para toda a fundamentação erradamente utilizada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra;
8. Consistindo, evidentemente, numa violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrando (art.º 13.º CRP) onde o tribunal não procede com a intimação por estar em causa, em exclusivo, alguém que não reside em Portugal e que tem de estar subordinado à demora “pública e notória…” da AIMA;
9. Em primeiro lugar, resulta evidente que o Recorrente não reside em Portugal (a menos que estivesse em regime de ilegalidade…) mas que o está a tentar fazer há, pelo menos, um ano de forma ininterrupta;
10. Estando há mais de um ano a querer mudar-se para Portugal, onde pretende estabelecer a sua vida diária, o Recorrente vê essa mesma possibilidade vedada pela inoperância do SEF;
11. Vendo também vedada, de igual forma, a possibilidade ao Reagrupamento familiar;
12. Ambos, Direitos Liberdades e Garantias que merecem chancela da Constituição da República Portuguesa;
13. De facto, a vida do Recorrente e da sua família está em suspenso, uma vez que a família pretende fixar em Portugal o centro da sua vida social e familiar, com a necessidade de preparar a mudança; a aquisição de habitação própria; a mudança de trabalho e as inscrições nas instituições de ensino;
14. Pelo que, nos termos do art. 90ºA da Lei 23/2007 precisa de, pelo menos, ter apresentado o pedido de ARI para poder entrar em Portugal e ser considerada residente legal e não mera turista, com uma permissão de estada de 90 dias;
15. Daí o recurso à Intimação e não outro meio processual por estar em causa uma violação urgente e atual dos Direitos conjugados consagrados nos art. 53º e 86º do CPA e art. 90º-A da Lei 23/2007 afunilando, destarte, nos arts.º 13; 15; 17 e 20 Constituição da República Portuguesa;
16. Ao decidir em contrário, a Douta sentença recorrida viola o art.º 109º do CPTA e os direitos consagrados nos art.º 53º e 86º do CPA e ar 90º-A da Lei 23/2007;
17. Da violação do disposto no art. 53º do CPA decorre o facto do Recorrente não poder dar início à sua pretensão de obtenção de residência e reagrupamento familiar para a sua família em Portugal;
18. Direito este que vem sendo negado desde 2022: o de poder apresentar, tão simplesmente, o seu pedido de ARI e de reagrupamento familiar para a sua família;
19. Efectivamente, só o recurso à Intimação para proteção direitos, liberdades e garantias poderá salvaguardar em tempo útil (ou tão útil quanto possível) os direitos ameaçados, pois caso contrário, a Recorrente ver-se-á privada de apresentar o pedido de residência ARI decorrente do direito previsto no art.º 90ºA da Lei 23/2007 conjugado com o art.º 53º do CPA, de apresentar ao SEF, sem saber quando o poderá fazer;
20.O direito ao agendamento de data para início do procedimento administrativo (com a entrega da documentação e recolha dos dados biométricos) não pode ser decretado a título precário e provisório; fazendo com que os meios de tutela comum não sirvam o desiderato em causa.
21. Ainda para mais, diga-se, quando está em causa a violação de Direitos, Liberdades e Garantias do Recorrente;
22. Parecendo resultar que tal só pode ser efetivado se for reconhecido o carácter urgente da sua violação, e o que tal acarreta, entendendo que a sua efetivação só é possível com recurso à Intimação para Proteção direitos, liberdades e garantias;
23.Conforme decidido em Douta Sentença proferida nos autos de Intimação para proteção direitos, liberdades e garantias que correram termos na 1ª UO do TAF Porto, Proc. 8/22.5BCPRT,“ ...se está previsto o direito a uma decisão é o dever da Administração se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados e, nomeadamente, sobre os assuntos que aos interessados digam diretamente respeito (Cfr art. 13º do CPA), a situação escrita corresponde a uma denegação desse direito e ao defraudar desse dever por constituir um obstáculo de facto a que os interessados apresentem sequer os seus “assuntos” à Administração”; [Negrito e Sublinhado Nosso]
24.O recurso ao uso da Intimação para proteção direitos, liberdades e garantias é o meio idóneo para condenar o SEF a adotar uma conduta (o agendamento) que vem sendo negada à Recorrente, não sendo viável o recurso a outro meio processual, sob pena de ainda daqui a cinco anos (e para quem já esperou três não é um prazo impossível de imaginar..), o seu direito consagrado no art.º 86º e art.º 53º do CPA e o seu Direito a apresentar pedido de ARI ainda estar por exercer;
25.Enfermando em absoluto erro toda a sedimentação de fundamentação quando considera que o Recorrente, e a sua família, por não residirem em Portugal, não carecem de proteção da Constituição da República Portuguesa;
26.Sendo que a própria Constituição, e o Tribunal Constitucional em jurisprudência emanada, consideram que o art.º 17.º da CRP se aplica, de igual forma, a casos como aqueles que estamos em apreço;
27. Incorrendo o Tribunal Recorrido na violação clara e flagrante do escopo do art.º 13.º da CRP por considerar que a intimação não é o meio processual idóneo por se tratar de um não-residente em Portugal.
28.Bem assim também fazendo uma má interpretação aquando da denegação de utilização das proteção previstas na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH);
29.Pelo que estão amplamente violados os arts. º 13.º; 15.º; 17.º e n.º 5 do art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa;
30.Não deixando de considerar que, com tal atuação, o procedimento no qual se verificou o atraso desrazoável diz respeito à obtenção de um documento de identificação pessoal, pelo que a inércia administrativa representa, em concreto, e cumulativamente, um obstáculo ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrado no artº 26º da CRP.
31. Estando, de facto, em questão a violação de não um, mas vários Direitos, Liberdades e Garantias estabelecidos na CRP;
32.Pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o pedido de intimação do SEF a agendar data para a entrega do pedido de ARI e de reagrupamento familiar e recolha dos dados biométricos.”

A entidade recorrida não respondeu à alegação do recorrente.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso, sustentando que, nem da matéria de facto provada, nem da alegação do recorrente se retira a violação de qualquer direito, liberdade ou garantia, tendo o mesmo limitado a sua alegação à invocação de que a não concessão de autorização de residência desrespeitaria diversos direitos, sem concretizar as liberdades e as garantias constitucionais afectadas.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

A questão que ao Tribunal cumpre solucionar é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento por ter considerado não verificados os pressupostos de que depende o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida não fixou factos.


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Alega o recorrente que a sentença recorrida errou “ao considerar não estar em causa qualquer DLG que fundamente a urgência da emissão de uma declaração ARI.”, bem como ao recusar a protecção de direitos, liberdades e garantias do recorrente e da sua família por os mesmos não residirem em Portugal, em violação do princípio da igualdade. Mais alega o recorrente que “O direito ao agendamento de data para início do procedimento administrativo (com a entrega da documentação e recolha dos dados biométricos) não pode ser decretado a título precário e provisório; fazendo com que os meios de tutela comum não sirvam o desiderato em causa.”, pelo que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, é o meio idóneo para o efeito.

A sentença recorrida absolveu a entidade demandada da instância por falta de verificação dos pressupostos de recurso ao processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias. Mais precisamente, consta o seguinte da sentença recorrida:
“(…)
Note-se que, sem prejuízo da consideração negativa que o tribunal efectua a propósito do excessivo tempo que o SEF tem levado a instruir e decidir casos desta natureza, perante o quadro jurídico-factual apresentado pelo intimante, entende este Tribunal que o intimante não logra, efectivamente, preencher os referidos requisitos a que a admissibilidade do presente meio processual se encontra adstrita.
(…)
Ora, no caso concreto, o autor justificou a presente invocando que o autor ainda não reside em Portugal, pura e simplesmente, porque não pode uma vez que depende deste título de residência para o fazer, sendo seu intuito – e vontade – mudar-se rapidamente para Portugal para aqui estabelecer o seu centro de vida social e familiar.
É por demais evidente que, no caso concreto, o requerente não alega de forma minimamente substanciada uma qualquer situação concreta de lesão que justifique, nos termos que atrás se fizeram alusão, o recurso ao presente meio processual, sendo certo que a teleologia que lhe subjaz não se coaduna com a mera invocação de um receio fundado em situações hipotéticas e abstractas, sem qualquer conexão com uma situação específica de direitos, liberdades ou garantias. No entanto, e ainda que assim não fosse, sempre seria de concluir que o intimante também não traça, na petição inicial apresentada, uma qualquer situação de facto que demonstre a subsidiariedade que necessariamente inere à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Em boa verdade, facilmente se conclui que tais desideratos poderão ser prosseguidos através da instauração da(s) competente(s) acção(ões) administrativa(s) – reagindo contra um silêncio ou omissão de um dever de decidir, acompanhada(s) ou não da dedução de meios cautelares, através dos quais se busquem obter medidas interinas e provisórias que salvaguardem tais pretensões –, sem que daí resulte uma qualquer diminuição de tutela dos seus direitos.
(…)
Das alegações elencadas pelo intimante é possível extrair que a instauração da presente intimação lhe é, de certo modo, conveniente, do ponto de vista da celeridade processual que o presente meio acarreta, mas não logra arguir, por qualquer forma, a impossibilidade ou a insuficiência da abrangente panóplia de meios processuais existentes na lei processual administrativa para salvaguardar, de forma cabal, a pretensão que aqui reclama em juízo, as quais, como se viu, facilmente poderão ser obtidas através do recurso a meios processuais de tutela não urgente e urgente (caso assim o entenda necessário). Em bom rigor, pretendendo o intimante obviar a uma situação de inércia da Administração – seja no agendamento para a recolha dos dados biométricos, seja no desenvolvimento procedimental com o subsequente apreciação do pedido de concessão de autorização de residência ao abrigo do artigo 90.º-A , seja na emissão do correspondente título de residência – deve o Autor lançar mão da acção administrativa regulada no Título II do CPTA, formulando nessa sede o competente pedido de condenação à prática do acto devido, consubstanciado na concessão da autorização de residência requerida ou na emissão do correspondente título, e, caso assim entenda, recorrer à instauração de processo cautelar, aí requerendo o decretamento provisório das providências que considere adequadas à tutela dos direitos invocados. Assim, também a falta de subsidiariedade da intimação para prestação de direitos, liberdades e garantias consubstancia uma excepção dilatória inominada, cuja procedência obsta ao conhecimento do mérito da causa e impõe a absolvição da entidade demandada da instância.
*
Face a todo o exposto, coloca-se a questão da possibilidade de convolação dos presentes autos de intimação em processo cautelar, contudo, e tal como decorre do n.º 1 daquele normativo, “Quando verifique que as circunstâncias do caso não são de molde a justificar o decretamento de uma intimação, por se bastarem com a adoção de uma providência cautelar, o juiz, no despacho liminar, fixa prazo para o autor substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, seguindo-se, se a petição for substituída, os termos do processo cautelar” (sublinhado nosso). Como se infere, o legislador optou, assim, por circunscrever a possibilidade de convolação para processo cautelar ao momento da prolação de despacho liminar – e parece-nos que adequadamente. Com efeito, se, por um lado, com a citação da entidade demandada se forma a instância, com todas as consequências processuais que daí decorrem – v.g., no que tange ao princípio da sua estabilidade, de harmonia com o disposto no artigo 260.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA –, por outro, o facto de aquela ser chamada ao processo e apresentar a sua resposta sempre terá por efeito inutilizar um qualquer ganho de eficiência que pudesse advir da convolação do meio processual, na medida em que sempre teriam de ser apresentados (pelo menos, dois) novos articulados, incrementando a densidade e complexidade dos autos em causa, sem a obtenção de qualquer vantagem em termos de economia do processo que justifique a derrogação do antedito princípio da estabilidade da instância. Por outro lado, se o Juiz, nos termos do supra referido artigo, tem um dever de controlo liminar e de correção oficiosa do meio processual, não se pode dizer que, nos presentes autos, numa análise perfunctória da PI, não houvesse efetivamente uma aparência de adequação processual, o que porém, numa maturada apreciação da mesma, não se pode confirmar, demonstrada que se encontra a inadequação do meio processual escolhido pelo requerente/intimante. Assim é forçoso concluir que se encontra inviabilizada a convolação do presente meio processual para processo cautelar, por força do estatuído na alínea f) do n.º 2 do artigo 116.º do CPC, conjugadamente com o princípio da proibição da prática de actos inúteis vertido no artigo 130.º do CPC.
Pelo que, em face do exposto, há que concluir pela procedência da excepção dilatória inominada invocada pela entidade intimada, com a sua consequente absolvição da instância, nos termos conjugados dos n.os 2 e 4 do artigo 89.º e do artigo 109.º, n.º 1, ambos do CPTA, o que se julga de seguida, resultando, naturalmente, prejudicadas as demais questões suscitadas pelas partes, sem prejuízo do requerente poder lançar mão, caso entenda, da panóplia dos meios processuais adequados, que o CPTA lhe proporciona.”

Vejamos.

A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias “(…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” - cfr. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA. Trata-se de um meio processual sumário e principal, pois que visa a prolação de uma decisão urgente e definitiva, recortado para “situações de especial urgência (lesão iminente e irreversível de DLG)” e “destinado a conferir protecção qualificada aos direitos, liberdades e garantias, no âmbito da concretização do comando constitucional consignado no n.º 5 do artigo 20.º da CRP.” – cfr. FERNANDA MAÇÃS, “Meios Urgentes e Tutela Cautelar”, «A Nova Justiça Administrativa», Centro de Estudos Judiciários, 2006, Coimbra Editora, pp. 94 e 95. Por isso mesmo, esta intimação tem carácter excepcional, só se justificando se constituir o único meio para obstar à violação de um direito, liberdade e garantia, sendo a regra a da utilização da acção não urgente, sempre que esta, ainda que conjugada com o processo cautelar, seja apta a satisfazer a pretensão deduzida em juízo.
Nestes termos, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, apenas pode ser utilizada quando se verifiquem os referidos pressupostos; ou seja, não só (i) que a célere emissão de uma decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também (ii) que, nas circunstâncias do caso, não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar. Assim, cabe a quem pretenda valer-se deste meio processual alegar factos concretos idóneos ao preenchimento dos referidos pressupostos, de modo a demonstrar que a situação concreta reclama uma decisão judicial definitiva e urgente.
No que concerne ao primeiro pressuposto – o da indispensabilidade da emissão de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, como escrevem Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 883, o seu preenchimento“(…) pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso, a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”
Quanto ao segundo pressuposto – o da impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar -, “A impossibilidade poderá resultar do facto de o juiz, para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão. Estamos a referir-nos àquelas situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas demarcadas, maxime, questões relacionadas com eleições, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado (como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo), situações de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém, ou, ainda, casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa.” – cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, “A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: quid novum?”, O Direito, n.º 143, I, 2011, pp. 31-53.

Considerando o descrito enquadramento jurídico, cumpre aferir se se mostram verificados no caso os pressupostos de recurso ao meio processual utilizado pelo autor.
Em primeiro lugar, ao contrário do que alega o recorrente, a sentença não afastou a existência no caso de qualquer direito, liberdade e garantia, nem, tão-pouco, recusou a protecção de direitos, liberdades e garantias do recorrente e da sua família por os mesmos não residirem em Portugal. Com efeito, a decisão no sentido da falta de verificação dos pressupostos de recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, assentou na consideração de que o autor se limitou a invocar “um receio fundado em situações hipotéticas e abstractas, sem qualquer conexão com uma situação específica de direitos, liberdades ou garantias”, bem como na falta de alegação na p.i. de “uma qualquer situação de facto que demonstre a subsidiariedade que necessariamente inere à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.” Nestes termos, é a alegação do recorrente – e não a sentença recorrida – que labora em erro pois que se baseia numa fundamentação que não consta da sentença, o que prejudica a respectiva análise nesta sede recursiva. Sem embargo, cumpre referir que o assim decidido se mostra acertado. Com efeito, o recorrente limita-se a alegar que pretende fixar residência em Portugal e fazer de Portugal o centro da sua vida social, familiar e económica, para o que precisa de concluir os procedimentos de autorização de residência e de reagrupamento familiar, a fim de poder, juntamente com a sua família, deslocar-se para Portugal, o que tarda em acontecer, reconduzindo este contexto factual à violação dos direitos de residência em território nacional e ao reagrupamento familiar. Assim, o autor recorrente não descreve uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca – necessária ao preenchimento dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias -, limitando-se a afirmar uma mera lesão dos mesmos, não sendo possível extrair da sua alegação qualquer urgência para o recorrente na concessão de autorização de residência. É que não basta estar em causa um direito, liberdade e garantia, sendo ainda necessário demonstrar que é urgente a sua tutela, o que o recorrente, nos termos expostos, não fez. Acresce que não assistem ao recorrente os direitos que invoca, de residência em território nacional e ao reagrupamento familiar. Por outro lado, o recorrente reconhece que não reside em Portugal e pretende um agendamento com uma antecedência nunca inferior a 60 dias úteis, donde se retira que o autor conduz a sua vida pessoal e familiar no seu país de origem. De toda esta alegação, não se extrai qualquer urgência para o autor na concessão de autorização de residência, nada mais aduzindo o recorrente nesse sentido.
Em segundo lugar, face à alegação de que “O direito ao agendamento de data para início do procedimento administrativo (com a entrega da documentação e recolha dos dados biométricos) não pode ser decretado a título precário e provisório; fazendo com que os meios de tutela comum não sirvam o desiderato em causa.”, cumpre referir que o direito à decisão do procedimento administrativo pode – tal como, com acerto, se concluiu na sentença recorrida – ser tutelado provisoriamente, através de uma autorização de residência provisória; ponto é que o recorrente preencha os requisitos necessários ao seu decretamento, não sendo impossível nem insuficiente para a tutela dos interesses do recorrente o decretamento de uma providência cautelar.

Ante o exposto, concluímos que não foi alegada factualidade apta a demonstrar a verificação dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, nem a indispensabilidade de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, nem, tão-pouco, a impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar.

Termos em que se impõe julgar improcedentes os fundamentos de recurso invocados.
*
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 19 de Março de 2024

Joana Costa e Nora (Relatora)
Marta Cavaleira
Carlos Araújo