Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:684/04.0BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:02/11/2021
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO,
INTERPRETAÇÃO DA PETIÇÃO INICIAL,
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO FORMAL E/OU SUBSTANCIAL.
Sumário:Alegando-se na p.i. a falta de fundamentação, cabe ao juiz interpretar se o invocado se subsume à falta de fundamentação formal e/ou substancial.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA, com os demais sinais nos autos, vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial apresentada por C..., contra a liquidação adicional de IRS, no valor de € 39.564,00, relativo ao ano de 1998.

A Recorrente, apresentou as suas alegações, e formulou as seguintes conclusões:
«CONCLUSÕES
I. Vem o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial interposta por C... do indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra o acto de liquidação adicional de IRS n.º 5... referente ao exercício de 1998 e no montante de € 39.564,00.
II. A Fazenda Pública entende que a douta sentença incorre em excesso de pronúncia encontrando-se, por isso, ferida de nulidade, pois a impugnante atacou a liquidação enquanto objecto mediato da impugnação, invocando a falta de notificação relativa à determinação do lucro tributável resultante do exercício da actividade comercial imputada à herança indivisa, e decorrente do primeiro procedimento inspectivo dirigido à herança legitimado pela Ordem de Serviço n.º 8261, e mais alegando a ausência de fundamentação, cfr decorre dos artigos 24.º a 27.º da p.i..
III. O vício apontado reconduz-se a apreciação de matéria de facto, pois que a discordância da impugnante se centra no entendimento por si sufragado de que o imposto nunca poderia incidir subjectivamente sobre os herdeiros enquanto pessoas singulares atento o facto de estarmos perante a determinação de um rendimento na esfera da herança indivisa e com apelo a normas do CIRC, entendimento que em nada conflitua com a fundamentação de direito, porquanto sempre se manterá independentemente daquela.
IV. Ademais, reconhece a douta sentença não se mostrar a liquidação viciada pela falta de fundamentação.
V. Pelo que, retirar de uma expressão (como o fez a douta sentença) – “a fundamentação dada à luz daqueles códigos é absolutamente desapropriada para as citadas correcções” - a alegação pela impugnante de um vício de violação de lei por falta de fundamentação de direito, quando em momento algum se colhe da argumentação da impugnante, devidamente contextualizada, tal alegação, se configura como apreciação não permitida ao Tribunal a quo.
VI. Determinante da nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 125.º do CPPT e na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, bem como na segunda parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC. Sem prescindir,
VII. Ainda, diverge a Fazenda Pública do entendimento vertido na douta sentença no respeitante à apreciação fáctica da matéria relevante para os presentes autos quando esta elege como um dos factores determinantes para o reconhecimento do vicio de violação de lei o facto de resultar do relatório de inspecção a tributação dos rendimentos em sede de categoria B do IRS, porquanto aquilo que resulta do RIT é que as correcções propostas implicam a tributação do sujeito passivo, a aqui impugnante, em sede de Rendimento de Categoria B, com uma correcção proposta no valor de € 84.231,06 (vide alínea P) dos factos provados).
VIII. E não poderia ser de outra forma, uma vez que à data da elaboração do RIT - 25 de Setembro de 2002 - se encontrava em vigor o artigo 3.º do CIRS com a redacção introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, de acordo com o qual se consideravam rendimentos da categoria B os rendimentos empresariais e profissionais decorrentes do exercício de qualquer actividade comercial, pelo que, é em sede de Categoria B de IRS que têm que ser imputados à impugnante para efeito de correcções e de consequente liquidação de IRS.
IX. Pelo que incorre a douta sentença, quanto a tal aspecto, em errado julgamento de facto.
X. Por outro lado, decorre do RIT que a tributação da impugnante em sede de IRS, na esfera dos herdeiros, se impõe na sequência da determinação do rendimento decorrente da actividade comercial apurado em sede de procedimento inspectivo dirigido à herança indivisa, com apelo às regras de IRC, mais resultando do RIT que a imputação aos herdeiros é feita de acordo com a proporção que a cada um dos herdeiros cabe na respectiva herança (ponto 3 do RIT, vertido no ponto P) dos factos provados).
XI. Assim, independentemente da fundamentação de direito, matéria em relação à qual ao Tribunal a quo estava vedado apreciar, porquanto não alegada pela impugnante, sempre as correcções à impugnante se processariam da exacta forma vertida no RIT, resultando numa liquidação com o exacto valor da liquidação impugnada, realçando-se que os motivos invocados para a ilegalidade da liquidação por parte da impugnante sempre se mostrariam votados ao insucesso.
XII. Incorrendo, nestes termos, a douta sentença num errado julgamento de facto, pois que não procede o entendimento da impugnante que propugna que a tributação nunca poderia ocorrer na esfera das pessoas singulares enquanto herdeiros.
XIII. Ademais, o apelo no RIT ao artigo 6.º do CIRC não se mostra capaz de alterar aquele que seria sempre o procedimento devido atento o quadro láctico traçado nos procedimentos inspectivos decorridos, primeiro à herança indivisa, e depois à impugnante na qualidade de herdeira, pelo que foi a douta sentença proferida em erro de julgamento de direito, com violação do disposto no n.º 1 do artigo 125.º do CPPT e da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por apreciar questão sem a qual sempre seria improcedente a impugnação interposta.

TERMOS EM QUE, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVE A DOUTA DECISÃO, ORA RECORRIDA, SER DECLARADA NULA E SUBSTITUIDA POR OUTRA QUE ORDENE A NÃO APRECIAÇÃO DE QUESTÃO NÃO PERMITIDA CONHECER, OU DEVE SER A DOUTA SENTENÇA REVOGADA, COM AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.»


A Recorrida, não apresentou contra-alegações.
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Foram os autos a vista da Magistrada do Ministério Público que emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
****
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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As questões invocadas pela Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objeto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir são as seguintes:

_ nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art. 125.º do CPPT (cf. conclusões I a VI das alegações de recurso);
_ erro de julgamento de facto, por errónea apreciação da matéria de facto (cf. conclusões VI a IX das alegações de recurso), e por não proceder o entendimento da Impugnante de que a tributação nunca poderia ocorrer na esfera das pessoas singulares enquanto herdeiros (cf. conclusões X a XII das alegações de recurso);
_ erro de julgamento de direito porque o disposto no art. 6.º do CIRC não altera o procedimento devido face ao quadro fáctico (cf. conclusão XIII alegações de recurso).

II. FUNDAMENTAÇÃO

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

«III.1. DE FACTO
Compulsados os autos e analisada a prova documental e testemunhal encontram-se assentes, por provados, os seguintes factos com interesse para a decisão do mérito:
A. J... exerceu a actividade de compra e venda de sucatas, bem como a actividade imobiliária de revenda de prédios adquiridos para esse fim, tributado em sede de IRS, pela categoria C [cf. fls. 209 e 242 do PAT em apenso].
B. Em 21.12.1981 foi por J... adquirido para revenda, no âmbito da actividade por si desenvolvida, o imóvel designado por “Q...”, sito na freguesia de Santo Estevão, concelho de Alenquer [cf. fls. 247 a 253 do PAT em apenso].
C. Em 25.11.1983 foi por J... adquirido para revenda, no âmbito da actividade por si desenvolvida, o imóvel designado por “C...”, sito no lugar de Paredes, freguesia de Santo Estevão, concelho de Alenquer [cf. fls. 254 a 258 do PAT em apenso].
D. Em 1994 por óbito de J..., pai da Impugnante, foi instaurado processo de Inventário Obrigatório, que correu termos na 2.ª Vara Cível de Lisboa, 2.ª Secção, Proc. 3538/94 [cf. fls. 19 a 27 dos autos].
E. No processo identificado no ponto anterior apresentaram-se como interessados a cabeça de casal I..., e os filhos M..., M..., J... e a Impugnante, representada pela mãe [cf. fls. 19 a 27 dos autos].
F. Na partilha coube à Impugnante a quantia de €7.469,51, aplicada em certificados de aforro, tendo sido determinado que o estabelecimento individual de J... seria remetido para os meios comuns [cf. fls. 16 a 27 dos autos].
G. A 14.04.1998, no 17.º Cartório Notarial de Lisboa, foi assinado um documento com a epigrafe “compra e venda”, onde consta, nomeadamente, que I..., J... e S..., P... e M..., A... e M…, e L… em representação de C..., enquanto donos e legítimos possuidores, em comum e sem determinação da parte ou direito como sucessores de J..., de 237 lotes de terreno para construção urbana, situados uns na “Q...”, e outros na “Q...”, e do prédio rústico denominado “Q...”, vendem à sociedade “M... – Imobiliária, Limitada.”, pelo preço global de Esc.250.000.000$00 (duzentos e cinquenta milhões de escudos), os lotes de terreno identificados pelos n.ºs 174, 175, 176, 185, 199, 200, 201, 202, 28, 209, 219, 220, 221, 224, 225, 226 e 227, e vendem à sociedade “Q... Investimentos Imobiliários, S.A.”, pelo preço de Esc.250.000.000$00 (duzentos e cinquenta milhões de escudos), os demais imóveis, mais constando que “as presentes vendas, no que respeita à menor C..., foram autorizadas judicialmente, por despacho proferido nos autos do inventário judicial n.º 3538/94, que corre seus termos pela 2.ª Secção do 2.º Juízo Cível de Lisboa, transitada em julgado em trinta de Março de mil novecentos e noventa e oito” [cf. fls. 178 a 197 do PAT em apenso].
H. Por ofício n.º 1388, de 24.01.2000, da Direcção de Finanças de Lisboa, foi a mãe da Impugnante notificada para esclarecer sobre a não apresentação de anexo G, referente à sua declaração de rendimento de 1998, uma vez que tinha sido detectado que a sua filha havia alienado imóveis naquele ano [cf. fls. 10 do processo de reclamação graciosa em apenso].
I. Em requerimento apresentado junto na Direcção de Finanças de Lisboa, em 02.02.2000, consta nomeadamente que:
“C..., cont.2…, declara que não recebeu qualquer quantia relacionada com a venda de uma quinta em Alenquer realizada no Décimo Sétimo Cartório Notarial de Lisboa, no dia 14 de Abril de 1998, pelo facto de ainda não ter sido feita a divisão de bens deixados pelo seu pai J.... O produto da referida venda foi recebido pelo cabeça de casal D. I... por ser ela que administradora dos bens deixados pelo falecido.”
[cf. fls. 177 do PAT em apenso].
J. Por despacho de 22.08.2002, do Chefe de Divisão da Inspecção Tributária de Lisboa, e após a análise do exercício do direito de audição prévia, foram sancionadas as correcções efectuadas em sede da acção de inspecção ao abrigo da Ordem de Serviço n.º 8261, relativas a I..., na qualidade de cabeça de casal, M..., M..., J... e a Impugnante, na qualidade de herdeiros de J... [cf. fls. 205 a 2013 do PAT em apenso].
K. Por ofício n.º 19270, de 06.09.2002, foi a Impugnante notificada para o exercício de audição prévia relativa ao projecto de relatório elaborado ao abrigo da ordem de serviço n.º 77.733 [cf. fls. 14 do processo de reclamação graciosa em apenso].
L. Por ofício n.º 16162, de 11.09.2000, foi a mãe da Impugnante notificada do encerramento da Ordem de Serviço n.º 46120, de 12.01.2000, onde se concluiu que os bens alienados faziam parte da herança indivisa, cuja venda foi recebida pela cabeça de casal na qualidade de administradora dos bens, pelo que a inspecção deveria incidir sobre aquele património [cf. fls. 13 do processo de reclamação graciosa em apenso].
M. A 17.09.2001 foi pela Impugnante apresentada queixa-crime contra I..., M..., M..., J... [cf. fls. 51 a 71 dos autos].
N. A 20.09.2012 foi pela Impugnante exercido o direito de audição prévia, relativamente ao projecto de relatório de inspecção identificado em K) supra [cf. fls. 268 a 272 do PAT em apenso].
O. A 26.09.2001 foi pela Impugnante interposta acção contra I..., M..., M..., J..., Q..., Investimentos Imobiliários, SA, S..., Lda., Investimentos Imobiliários S..., Lda., M... Construções, Lda., e M... – Imobiliária, Lda., pedindo a anulação do negócio identificado em G) supra, por vício nos pressupostos, com a consequente restituição dos bens à herança, ser a 1.ª Ré condenada a restituir à massa da herança todas e quaisquer quantias indevidamente pagas pela massa da herança, e reconhecida a sonegação dos bens da massa da herança [cf. fls. 28 a 50 dos autos].
P. A 29.09.2002 foi elaborado o Relatório de Inspecção, onde consta nomeadamente o seguinte:
“(…)
Objectivo, Âmbito e Extensão da Acção Inspectiva
· O.S.: 77733 de 19/08/02
· Identificação do Sujeito Passivo: C...
· NIF: 2…
· Domicílio Fiscal: Rua M...- 2700 Amadora
· Serviço Finanças: Amadora 2 (3140)
· Assunto: IRS - Rendimento obtido por Herança Indivisa
· Incidência Temporal: 1998
1. A presente ordem de serviço foi aberta no seguimento do ofício n.º 12228 de 2002/08/09 do Serviço de Inspecção Tributária da 2a Direcção de Finanças de Lisboa.
2. O ofício supra refere-se a uma informação que tem por base uma acção de inspecção efectuada aos elementos da escrita de "J..., Herdeiros", com o NIPC 9..., Herança Indivisa, que correu os seus trâmites através da ordem de serviço n.º 8261 de 2001-01-16 da 2a Direcção de Finanças de Lisboa.
3. No decurso dessa acção foi regularizada a escrita e a cabeça de casal apresentou em 2002-05-27 a respectiva declaração de rendimentos modelo 3 relativa ao ano de 1998 acompanhada do anexo C onde declara e apura um lucro fiscal de € 536 115,09 (107481 425$00). No anexo I (Herança indivisa) é feita a imputação do referido lucro na proporção que a cada um dos herdeiros cabe na respectiva herança.
4. Analisados os elementos de escrita que serviram de suporte aos valores declarados, foi proposto o valor de €362 349,55 (72 644 562$00) de correcções técnicas a acrescer ao lucro tributável declarado, originando um valor corrigido de €898.464,64 (180.125.988$00).
5. Notificada nos termos e para os efeitos dos artigos 60.° da LGT e RCPIT, a cabeça de casal exerceu o seu direito de audição, que não mereceu provimento na análise que foi efectuada.
6. Face ao verificado e dado que o sujeito passivo em causa possui o seu domicílio fiscal na área desta Direcção, propomo-nos a correcção da sua declaração de rendimentos de IRS.
7. Analisado o sistema informático verificámos que o sujeito passivo é menor e consta como dependente na declaração de rendimentos do sujeito passivo L..., NIF: 1…, não apresentando quaisquer rendimentos que nos propomos corrigir.
8. Deste modo as correcções propostas são as seguintes:
Descrição
      Rendimento Liquido
    Escudos
    Euros
Sociedade J..., Herdeiros (a)
    180.125.988
    898.464,64
% de Participação (b)
    9.375%
    9,375%
C... (c):=(a)x(b)
    16.886.811
    84.231,06
        Rendimento Categoria B
      Valor
    Valor
    Escudos
    Euros
Outros Rendimentos Categoria B
    16.886.811
    84.231,06
Total da Correcção
    16.886.811
    84.231,06
9. Foi infringido o artigo 22.° do CIRS, punido pelo artigo 34° do RJIFNA.
10. O sujeito passivo foi notificado nos termos dos artigos 60.° da LGT e 60.° do RCIT, para exercer o direito de audição, tendo se pronunciado por escrito alegando os seguintes factos:
a) A menor desconhece a existência de lucros
b) A existir pagamento de imposto a respectiva incidência deve ser feita em IRC e liquidado pela cabeça de casal, e nunca incidir a liquidação em IRS.
c) O apuramento do lucro (pertença da dita sociedade) deveria ser tributado em termos de IRC; sendo exclusiva responsabilidade do seu pagamento atribuída à cabeça-de-casal.
11. Face á exposição apresentada pelo sujeito passivo, cabe informar.
a) A presente ordem de serviço teve origem numa informação elaborada por esta Direcção relativamente à alienação de imóveis que fazem parte de uma herança indivisa e incidiu sobre o exercício de 1998.
b) A herança indivisa, a que foi atribuído o NIPC 9..., teve como autos o contribuinte J..., cujo óbito ocorreu em 24 de Março de 1994, sendo designada por J... Herdeiros. À referida herança apresentaram-se como sucessores a viúva e cabeça de casal Sr.ª I..., NIF: 1…, e os filhos, entre os quais o sujeito passivo em causa.
c) Durante o exercício de 1998 foram alienados 237 lotes de terreno para construção urbana, pelo valor de €2.493.989,49 (500.000.000$00) cuja a venda se iniciou ainda em vida do referido J... e só veio a concretizar-se neste ano de 1998.
d) Relativamente a este exercício, não haviam sido entregues quaisquer declarações de rendimentos em nome da referida herança indivisa, nem havia sido declarada qualquer imputação de rendimentos ao cônjuge sobrevivo ou aos outros herdeiros, decorrentes da actividade comercial exercida em nome da citada herança.
e) Foi no entanto apurado o lucro da sociedade e declarado pela cabeça de casal (tendo sido corrigido pela Administração Fiscal). Uma vez que se trata de uma sociedade de herdeiros e portanto de um grupo familiar o lucro obtido por essa sociedade é tributado na esfera de cada herdeiro (sócio), em sede de IRS, conforme o disposto no artigo 6.º do CIRC, e não em sede de IRC conforme pretende o sujeito passivo.
f) O facto da menor afirmar que desconhece os lucros ou que não lhe foram distribuídos, não tem relevância perante o enquadramento fiscal, uma vez que para a análise dos factos tributários realizados no exercício inspeccionado de 1998 temos que atender ao disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 18.º do CIRC.
g) Assim e pelo estatuído no n.º 6 do artigo 3.° do CIRS os rendimentos ficam sujeitos a tributação desde que pagos ou colocados à disposição dos respectivos titulares. Como estes rendimentos foram apurados e colocados à disposição do sujeito passivo este tem que os declarar e sujeitá-los a tributação.
12. Por tudo o que foi referido são de manter as correcções propostas. (…) [cf. fls. 276 a 278 do PAT em apenso]
Q. O teor do relatório identificado no ponto anterior foi sancionado por despacho de 27.09.2002, do Chefe de Divisão da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa [cf. fls. 273 do PAT em apenso]
R. A 24.11.2002 foi emitida a liquidação n.º 5..., relativa a IRS do ano de 1998, no montante de €31.859,32 de imposto e €7.704,72 de juros compensatórios, no total de €39.564,04, com data limite de pagamento a 08.01.2003 [cf. fls. 67 e 68 do processo de reclamação graciosa em apenso, e 158 do PAT em apenso].
S. A 27.12.2002 foi pela representante legal da Impugnante apresentada reclamação graciosa contra o acto de liquidação identificado no ponto anterior [cf. fls. 3 do processo de reclamação graciosa em apenso].
T. Por despacho de 26.03.2004, do Chefe de Divisão da Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de Lisboa, foi indeferida a reclamação identificada no ponto anterior [cf. fls. 80 a 85 do processo de reclamação graciosa em apenso].
U. A 07.04.2004 foi a reclamante notificada da decisão identificada no ponto anterior [cf. fls. 88 e 89 do processo de reclamação graciosa em apenso].
V. A presente impugnação judicial foi apresentada em 21.04.2004 [cf. fls. 2 dos autos].
W. Por falta de pagamento dentro do prazo para pagamento voluntário da liquidação identificada em R), foi instaurado o processo de execução fiscal n.º 3…, a correr termos no Serviço de Finanças de Amadora 2 [cf. fls. 159 e 160 do PAT em apenso].
X. O PEF identificado no ponto anterior encontra-se suspenso por prestação de garantia
[cf. fls. 162 a 163 do PAT em apenso].
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Nada mais se provou com interesse para a decisão a proferir.
Assenta a convicção deste Tribunal no exame dos documentos constantes dos presentes autos e no processo instrutor, não impugnados, referidos a propósito de cada alínea do probatório.
No que diz respeito aos testemunhos produzidos por A..., M... e M..., todas elas familiares da Impugnante, revelaram ter conhecimentos directos sobre a matéria de facto em análise dos presentes autos, indicando que a Impugnante apenas recebeu a título de herança cerca de mil contos, e que quer ela quer a sua mãe nada tiveram a ver com a gerência do estabelecimento comercial deixado pelo seu pai, sendo este gerido pela cabeça de casal da herança, e que nunca partilhou quaisquer outras verbas daquele estabelecimento com a Impugnante.»
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Com base na matéria de facto supra, a Meritíssima do TAF de Sintra julgou a impugnação judicial procedente, anulando a liquidação impugnada.

A recorrente Fazenda Pública não se conforma com o decidido, invocando, desde logo, a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art. 125.º do CPPT (cf. conclusões I a VI das alegações de recurso).

Apreciando.

“Existe excesso de pronúncia quando o Tribunal conhece de questão que, não sendo do conhecimento oficioso, não lhe tenha sido colocada pelas partes (cfr. art. 125.º, n.º 1, do CPPT e art. 608.º, n.º 2, do CPC).” – Cf. acórdão do STA de 13/01/2021, proc. n.º 0118/14.2BEBRG.

Conforme resulta da petição inicial, a Impugnante vem deduzir impugnação judicial da liquidação de IRS do ano de 1998, invocando, enquanto causa de pedir:
_ violação do disposto no art. 3.º, n.º 6, e 21.º do CIRS, vez o valor imputado à herdeira menor em sede de ação de fiscalização nunca foi colocado à sua disposição;
_ vício de falta de fundamentação e preterição de formalidades legais, na medida em que a lei reconhece aos herdeiros o direito a serem notificados e de exercerem todas as garantias de defesa que andam associadas ao ato de determinação do rendimento tributável, designadamente o direito de audição prévia previsto no art. 60.º da LGT, o que não foi respeitado pela AT, e por outro lado, não é admissível a subsunção às disposições do CIRC, de rendimentos de natureza diversa como o IRS, sendo que “a fundamentação dada à luz daqueles códigos é absolutamente desapropriada para as citadas correcções”;
_ violação do princípio da tributação real e não presumida, não podendo haver tributação sobre proveitos futuros.

Na sentença recorrida, para além de se entender que não se verificava o vício de preterição do direito de audição prévia, entendeu-se também, quanto ao vício de falta de fundamentação que “da análise do teor do relatório de inspeção constante no ponto P) do probatório, verificamos que o mesmo revela o itinerário cognitivo que levou à tomada de decisão”. Portanto, entendeu-se que não se verifica o vício de falta de fundamentação formal.

Não obstante, entendeu-se que a liquidação enferma de vício de violação de lei, por erro quanto aos pressupostos de direito uma vez que as correções assentaram na aplicação do regime da transparência fiscal e da tributação dos rendimentos em sede de categoria B de IRS, quando estávamos perante rendimentos da categoria C.

Ora, este erro sobre os pressupostos de direito da correção que está na origem da liquidação impugnada, foi conhecido enquanto vício de falta de fundamentação substancial. Na verdade, na sentença justifica-se a subsunção jurídica com base no alegado na p.i., nomeadamente “da expressão utilizada pela Impugnante no que concerne a esta questão, e o dizer que “a fundamentação dada à luz daqueles códigos é absolutamente desapropriada para as citadas correcções”, pode-se entender que a mesma invoca, mais do que a falta de fundamentação, a fundamentação errada, o que conduz ao vício de violação de lei por falta de fundamentação de direito”.

Ora, invocando-se a falta de fundamentação da p.i, cabe ao juiz interpretar se o invocado se subsume à falta de fundamentação formal e/ou substancial, pois como bem se refere no acórdão do STA de 21/11/2019,processo n.º 0404/13.9BEVIS “As características exigidas quanto à fundamentação formal do acto tributário são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor a proferir a decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a actuação administrativa no caso concreto (ou seja, esta deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico). II - Resultando da petição inicial que a causa de pedir invocada sob a denominação “falta de fundamentação” se refere à fundamentação substancial, enferma de erro de julgamento a sentença que a apreciou como se se tratasse de fundamentação formal e, ademais, lhe deu um conteúdo que a impugnante nunca invocou.”

In casu, não se verifica excesso de pronúncia porquanto o invocado pela Impugnante na p.i. subsume-se, efetivamente à falta de fundamentação substancial, tendo a Meritíssima Juíza a quo justificado adequadamente e acertadamente o conhecimento do vício compreendido na causa de pedir.

Na verdade, conforme se retira do teor do art. 27.º da petição inicial, sindica-se a correção subjacente à liquidação impugnada, colocando em causa a concreta aplicação das normas jurídicas à realidade fáctica do caso em apreço, o que tanto basta para que não se verifique a nulidade da sentença por excesso de pronúncia nos termos do n.º 1, do art. 125.º do CPPT.

Pelo exposto, não se verifica a nulidade da sentença.

Invoca ainda a recorrente Fazenda Pública erro de julgamento de facto, por errónea apreciação da matéria de facto, mais concretamente a alínea P) dos factos provados na parte correspondente ao ponto 8 do relatório de inspeção (cf. conclusões VI a IX das alegações de recurso), e por não proceder o entendimento da Impugnante de que a tributação nunca poderia ocorrer na esfera das pessoas singulares enquanto herdeiros (cf. conclusões X a XII das alegações de recurso). Por outro lado, invoca erro de julgamento de direito porque o disposto no art. 6.º do CIRC não altera o procedimento devido face ao quadro fáctico (cf. conclusão XIII alegações de recurso).

Vejamos.

Nesta parte é a seguinte a fundamentação da sentença recorrida:

“Ora, a fundamentação de direito em que assentou a correcção em causa, baseia-se no pressuposto que estamos perante uma sociedade para efeitos de IRC, cujo lucro é apurado em sede daquele imposto, e que por força da aplicação do regime de transparência fiscal, vertido do artigo 6.º, do CIRC, imputado a cada herdeiro.
Segundo o relatório de inspecção, “trata-se de uma sociedade de herdeiros e portanto um grupo familiar, o lucro obtido por essa sociedade seria tributado na esfera de cada herdeiro (sócio), em sede de IRS.”
Seguindo tal raciocínio, e de acordo com o quadro constante no ponto 8. do relatório de inspecção, foi imputado o montante correspondente à parcela detida pela Impugnante, em sede de categoria B, considerando que nos termos do artigo 3.º, n.º 6, do CIRS, os rendimentos ficam sujeitos à tributação desde que pagos ou colocados à disposição dos respectivos titulares.
Antes de mais importa desde logo realçar que a redacção dos artigos invocados na fundamentação de direito aqui analisada, não são os que se encontravam em vigor à data dos factos, ou seja em 1998.
Assim, relativamente ao exercício fiscal de 1998, quando se refere ao artigo 6.º do CIRS, o regime de transparência fiscal encontrava-se regulado no artigo 5.º do CIRS, e o artigo 3.º, n.º 6, do CIRS, corresponde ao artigo 3.º, n.º 7, do CIRS, à data dos factos.
De seguida importa reconhecer que a fundamentação de direito invocada para a correcção em análise não é correcta.
A actividade comercial deixado por J... não consubstanciava uma sociedade tributada em sede de IRC, mas sim um estabelecimento comercial, tributado em sede de categoria C, em IRS.
Assim, não se aplicaria o regime da transparência fiscal, uma vez que não estamos perante um grupo familiar, definido nos termos do 5.º, n.º 4, al. c) do CIRC, cujo lucro é apurado segundo as regras definidas dos termos do CIRC, e feita a imputação nos termos do artigo 19.º do CIRS, a cada sócio. Da mesma forma que não se aplicaria o artigo 3.º, n.º 7, do CIRS, uma vez que não estamos perante rendimentos tributados em sede daquela categoria.
Estamos sim perante rendimentos de categoria C de IRS, cujo lucro é apurado de acordo com as regras do CIRS, por remissão do artigo 31.º do CIRS, e que após apuramento desse valor, é efectuada a imputação a cada herdeiro, nos termos do artigo 18.º do CIRS.
É exactamente isso que se pode ler na informação para que remete a contestação: “A alienação dos supra referidos prédios pertencentes ao estabelecimento comercial (actividade imobiliária) do autor da herança constituiria, pois, actividade comercial enquadrável na categoria C de IRS do autor da herança caso não tivesse ocorrido o falecimento./ Antes do falecimento do autor da herança, o apuramento do lucro tributável era feito nos termos do CIRC por força do disposto no artigo 31.º./Não há, pois, qualquer alteração na forma de apuramento do lucro tributável após a abertura da herança. Tal como anteriormente, o lucro tributável deverá ser apurado de acordo com as regras do CIRC./No entanto, dada a existência de uma contitularidade de rendimentos pelos herdeiros do de cuiús, deverá ser imputada a cada um dos herdeiros a parte correspondente, nos termos do disposto nos artigos 18.º e 21º, n.º 2, al. a) do CIRS (actualmente arts. 19.º e 22.º, n.º 2, al. a) do CIRS).” (cf. artigo 35.º a 38.º da informação da Justiça Contenciosa junta à contestação apresentada pela Fazenda Pública).
Contudo, não foi esta a fundamentação que esteve na base das correcções efectuadas pelos Serviços de Inspeçcão, uma vez que do relatório de inspecção resulta a aplicação do regime de transparência fiscal, e da tributação dos rendimentos em sede de categoria B de IRS, e não podendo esta fundamentação a posteriori não pode ser aproveitada para o acto impugnado.
Importa assim reconhecer o vício de lei por erro quanto aos pressupostos de direito, pelo que deve a presente liquidação ser anulada, por ilegal.”

Ora, não se verifica o erro de julgamento de facto nem de direito que a recorrente assaca à sentença recorrida, cuja fundamentação supra aqui confirmamos.

Na verdade, não se verifica errónea apreciação da matéria de facto, porque efetivamente resulta da alínea P) dos factos provados, mais concretamente do ponto 8 do relatório de inspeção, que a tributação assentou no disposto no art. 6.º do CIRC, ou seja, por força do regime de transparência fiscal, imputando-se a cada herdeiro a parte do respetivo lucro da sociedade. Mais resulta que foi imputado à Impugnante o rendimento em sede de categoria B, posto que é invocado o art. 3.º, n.º 6 do CIRS.

Ora, como bem salienta a sentença recorrida, estamos perante rendimentos da categoria C de IRS, cujo lucro é apurado de acordo com as regras do CIRC, por remissão do art. 31.º desse código, como aliás, a própria AT reconheceu na informação constante dos autos para a qual remete a contestação, e à qual a sentença recorrida faz alusão. Assim sendo, verifica-se efetivamente erro sobre os pressupostos de direito da liquidação impugnada.

Por outro lado, não colhe, de igual modo, a argumentação da recorrente vertida na conclusão VIII das alegações de recurso, quanto à aplicação da redação vigente à data do relatório de inspeção, porquanto sendo o rendimento referente ao ano de 1998, é a redação vigente à data do facto tributário. Na verdade, ao contrário do que invoca a recorrente nas suas conclusões X a XIII, as normas jurídicas aplicadas pela AT, enquanto fundamentação substancial de direito da correção, devem ser aquelas vigentes à data dos factos tributários, e aquelas em que os factos apurados se possam subsumir à hipótese normativa, e nessa medida a sentença não enferma de erro de julgamento, nem de facto, nem de direito.

Pelo exposto, improcedem todos os fundamentos do recurso, sendo de confirmar a sentença recorrida, e, portanto, negar provimento ao recurso.

Em matéria de custas o artigo 527.º do CPC consagra o princípio da causalidade, de acordo com o qual paga custas a parte que lhes deu causa. Vencida na presente causa a recorrente, esta deu causa às custas do presente processo (n.º 2), e, portanto, deve ser condenada nas respetivas custas (n.º 1, 1.ª parte).

Sumário (art. 663.º, n.º 7 do CPC)

Alegando-se na p.i. a falta de fundamentação, cabe ao juiz interpretar se o invocado se subsume à falta de fundamentação formal e/ou substancial.

II. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.


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Custas pela recorrente Fazenda Pública.

D.n.

Lisboa, 11 de fevereiro de 2021.


A Juíza Desembargadora Relatora

Cristina Flora



A Juíza Desembargadora Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01/05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Juízes Desembargadores Tânia Meireles da Cunha e António Patkoczy.