Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:342/20.9BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/27/2020
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:FACTOS ESSENCIAIS;
FACTOS INSTRUMENTAIS;
DIREITO À PROVA.
Sumário: i) Em rigor, desde a reforma do CPC2013 que situações idênticas às que foram invocadas pela A., ora RECORRENTE, a saber, “perda de clientela", "quebra de rendimentos" e "privação de lucros", aqui invocadas como resultado da execução imediata do ato impugnado, ora suspendendo, traduzem factos essenciais suscetíveis de ser objeto de prova, ainda que careçam de concretização, na medida em que os factos complementares ou instrumentais que resultarem da instrução, preencherão, pois, tais factos;
ii) Neste pressuposto, no âmbito do seu dever de gestão processual, o tribunal a quo poderia, assim, ter feito um convite ao aperfeiçoamento - cfr. art. 7.º-A do CPTA - e mesmo à junção de prova documental – cfr., designadamente, art. 87.º, n.ºs 3 a 6 do CPTA, também aplicável aos processos cautelares – cfr. art. 116.º, n.º 2, alínea a), do CPTA - e urgentes;
iii) Ou, em alternativa, admitir a prova testemunhal requerida pela Recorrente, então requerente – sendo que, uma das testemunhas arroladas é, precisamente, revisor oficial de contas - e, fazendo uso do disposto no art. 5.º do CPC, sob a epígrafe, Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, determina que «1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.» e que «2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar. (…)» - incluir os factos instrumentais ou complementares que da mesma resultassem na matéria de facto.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

A Farmácia C..., S.A., requereu junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa a adoção de providência cautelar contra o Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde I.P, pedindo a suspensão da eficácia da deliberação do Conselho Diretivo do Infarmed, de 16 de Janeiro, publicitada no sítio do Infarmed que considerou “apto” o pedido de transferência da “Farmácia do C...”, sita na Rua J..., União das freguesias de A dos Cunhados e Maceira, concelho de Torres Vedras, distrito de Lisboa, para a Rua F..., freguesia da Ericeira, concelho de Mafra, distrito de Lisboa, mais tendo identificado uma contrainteressada.

A Requerente, e ora Recorrente, não se conformando com a sentença proferida a 06.04.2020, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que indeferiu a providência cautelar, negando provimento ao pedido, veio da mesma recorrer, culminando as suas alegações de recurso - cfr. fls. 730 e ss. do SITAF - com as seguintes conclusões:

«(…)

1.ª A Recorrente alegou no r.i. da sua providência, além do mais, que se encontra aberta ao público e em funcionamento naquele local há muitos anos (artigo 54.° do r.i.), tendo angariado clientela residente nas imediações (artigo 54.° do r.i.), que a transferência da farmácia autorizada irá implicar um impacto direto e imediato sobre a sua clientela (artigo 55.° do r.i.), implicando a "perda de clientes" (artigos 54.° e 57.° do r.i.), "privação de lucros" (artigo 57.° do r.i.), em consequência previsível da execução do ato suspendendo e "quebra de rendimentos" (artigo 58.° do r.i.), sendo tais consequências de difícil quantificação (artigo 58.° do r.i.), tendo alegado ainda ser expectável a ocorrência de quebra de rendimentos da Farmácia da Requerente e que seja desequilibrado o mercado entre as Farmácias da zona, numa atividade que é de alguns anos a esta parte muito periclitante comercial e economicamente, como constitui facto público e notório, face às inúmeras notícias de insolvência de farmácias e de dificuldades da sua atividade social (art. 58.°).

2.ª As afirmações da Requerente de "perda de clientes", de "quebra de rendimentos" e de "privação de lucro" e os demais indicados na conclusão anterior em resultado da execução imediata do ato suspenso, correspondem à alegação de factos concretos essenciais que integram a exigência da especificação dos fundamentos do pedido no requerimento da providência cautelar (artigo 114.° n.° 3 alínea g) do CPTA), não estando o requerente da providência cautelar onerado com a exigência de alegação de outros factos que não sejam os essenciais ao pedido (v. artigos 5.°, n.° 1 e 552.°, n.°1, al. d) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 1° do CPTA e o artigo 78.° do CPTA).

3.ª Ao julgar incumprido pela requerente o ónus de alegação de factos integradores de prejuízos de difícil reparação, a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, pois, ao contrário do decidido as afirmações da Requerente de "perda de clientela", de "quebra de rendimentos" e de "privação de lucro" em resultado da execução imediata do ato suspenso (ato que autoriza ilegalmente a transferência de outra farmácia para escassos metros de distância), em conjunto com os demais factos alegados, são situações concretas da vida suscetíveis de ser objeto de prova, muito embora se tratem até muitos deles de factos notórios dispensados de tal alegação.

4.ª Os factos alegados pela Requerente nos artigos 53.° a 59.° do r.i. - cuja alegação foi indevidamente desconsiderada pelo Tribunal a quo - deverão ser dados como provados por integrarem factualidade notória ou, pelo menos, tratados como factualidade a sujeitar a prova por qualquer meio admissível em sede de julgamento cautelar.

5.ª Ao dispensar a produção de prova testemunhal requerida sob a invocação genérica e tabular dos documentos juntos aos autos e da posição assumida pelas partes, o despacho interlocutório violou por falta de fundamentação o disposto no artigo 118.°, n.° 5 do CPTA.

6.ª Ao contrário do entendimento expresso pelo Tribunal a quo no despacho interlocutório que dispensou a produção de prova testemunhal, tal prova testemunhal arrolada seria útil e necessária à apreciação dos requisitos da providência cautelar, mostrando-se por isso violado o disposto no artigo 118.°, n.°s. 1 e 5 do CPTA, por errada interpretação e aplicação, bem como violado o direito à prova e à tutela judicial efetiva (arts. 20.° da CRP e 2.° do CPTA).

7.ª "Se cabe ao interessado o ónus da prova dos factos que alega, não lhe pode ser recusada a possibilidade de os provar com vista à demonstração do pressuposto do periculum in mora de que depende para a concessão da providência cautelar." - cfr., v.g. o ac. do TCAN, de 12-07-2019, no Proc. 00014/19.7BEMDL, in www.dgsi.pt.

8.ª A sentença recorrida enferma de erro de julgamento e viola por errada interpretação e aplicação o artigo 120.°, n.° 1 do CPTA, já que, contrariamente ao entendimento nela expresso, a perda de clientela constitui um prejuízo de difícil reparação e como tal vem sendo considerada pela jurisprudência - cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STA de 26-02-2003, no processo n.° 0149A/03 e de 15-10-2003, no processo n.° 01430/03, bem como do TCAS de 18-10-2010, no Proc. n.° 9126/12 e de 18-12-2014, no Proc. n.°. 11655/14 e os acs. do TCAN, de 08-03-2007, no proc. n.° 01845/06.3BEPRT, de 14-09-2012, no proc. n.° 00881/12.5BEPRT, de 14.06.2013, no proc. 100/13.7BAVR, de 13-092013 no proc. n.° 224/13.0BECBR e de 12-07-2018 no Proc. n.° 02550/17.0BEPRT in www.dgsi.pt.

9.ª Ao contrário do decidido na sentença recorrida, "a proximidade em relação aos utentes, é decisiva para a cativação de clientela", pelo que "aparecendo uma farmácia mais próxima geograficamente, os outros factores acabam por ter escassa relevância na fixação ou desvio da clientela (...) é forçoso concluir, por imperativo lógico, que conquistará clientela à custa da perda por parte da farmácia anteriormente instalada." - v. ac. do TCAN, de 13-09-2013 no proc. n.° 224/13.0BECBR, in www.dgsi.pt.

10.ª É ostensiva a ilegalidade do ato impugnado na ação principal, sendo provável a procedência da pretensão aí deduzida, porque, além de outras ilegalidades e como se fundamenta no r.i. apresentado junto do Tribunal a quo (i) tal ato secunda uma pretensão abusiva e em situação de fraude à lei e (ii) autoriza a transferência de uma farmácia muito antes de decorrido o prazo mínimo de 5 anos claramente previsto para o efeito no artigo 27.° da Portaria n.° 352/2012, de 30 de outubro.

11.ª Mostram-se reunidos todos os pressupostos previstos no artigo 120.° do CPTA para o decretamento da providência de suspensão de eficácia requerida. (…) deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que decrete a providência de suspensão de eficácia requerida, com as legais consequências.»

O Recorrido, INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos da Saúde, IP. (doravante INFARMED) contra-alegou (fls. 769 e ss. do SITAF), pugnando pela manutenção do julgado, nos termos seguintes:

«(…)

I - DO OBJETO DO RECURSO

O presente recurso foi interposto pela Requerente da douta Sentença proferida no âmbito do presente processo que julgou improcedente (e bem!) a providência requerida, porquanto a Recorrente considera que o douto Tribunal a quo errou ao não considerar verificados os requisitos previstos no artigo 120.°/1 do CPTA, em particular o periculum in mora.

Além disso, a ora Recorrente também interpôs o presente recurso por considerar que o douto Tribunal a quo errou ao considerar que aquela não cumpriu com o ónus de alegação dos factos integradores de uma situação de facto consumado e/ou de prejuízos de difícil quantificação caso a presente ação cautelar fosse julgada improcedente.

Por outro lado ainda, a Recorrente considera que o douto Tribunal a quo andou mal por dispensar a prova testemunhal nos termos do artigo 118.°/5 do CPTA, já que considera que a produção do referido meio de prava era determinante para a demonstração da verificação dos pressupostos necessários para a adoção da presente providência cautelar.

Todavia, e como demonstraremos nas presentes contra-alegações, é evidente que nos presentes autos não se verificam os requisitos do fumus boni iuris e do pericuium in mora, assim como demonstraremos que é manifesto o incumprimento do ónus de prova que impendia sobre a ora Recorrente.

II - DO INCUMPRIMENTO DO ÓNUS DE PROVA E DA DESNECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL

Desde da entrada em vigor do CPTA que a Jurisprudência dominante e a mais avalisada doutrina defendem que, no preenchimento do requisito do pericuium in mora, é necessário que os requerentes aleguem e provem os factos que confirmem a verificação desse requisito, não bastando a mera invocação de considerações genéricas e conclusivas, de uma situação de facto consumado ou de produção de prejuízos de difícil reparação.

A título de exemplo, até porque a Sentença recorrida já refere outros acórdãos, veja-se o Acórdão do TCAN, proferido em 14.02.2012, no âmbito do processo n.° 03712/11.0BEPRT, onde consta que,

“I. Incumbe ao requerente da providência o ónus de aiegar a matéria de facto integradora dos requisitos iegais de que depende a concessão da providência requerida (art. 342.° do CC), não podendo o tribunal substituir-se ao mesmo.

II. Daí que o requerente terá de tornar credível a sua posição através do encadeamento lógico e verosímil de razões convincentes e objetivas nas quais sustenta a verificação dos requisitos da providência já que, da conjugação dos arts. 112.°, n° 2, ai. a), 114.°, n° 3, ais. f) e g), 118.° e 120° todos do CPTA, não se mostra consagrada uma presunção "iuris tantum" da existência dos aludidos requisitos como simples consequência da existência em termos de execução do ato.

III. Impõe-se que a alegação tenha de ser concretizada com realidade factual que corporize efetivamente o requisito em questão (v.g. e no caso, a inexistência de qualquer outro espaço detido ou explorado pela requerente para realização do seu programa e/ou da sua atividade com alegação/demonstração da impossibilidade da requerente de os levar a cabo noutro ou noutros locais; qual a estrutura de custos mensais suportados pela requerente, quais as disponibilidades financeiras e rendimentos/proventos auferidos/realizados também mensal/anualmente, etc., etc.).

IV. Não é idónea a alegação de forma meramente conclusiva e de direito ou com utilização de expressões vagas e genéricas.

V. A instrução probatória através da inquirição de testemunhas apenas se pode reconduzir ou ter por objeto a factualidade que haja sido alegada pelas partes nos seus articulados, sede própria para observância desse ónus processual, não relevando ou servindo como meio de suprir a alegação ou omissão de alegação havida nos articulados".

Por outro lado, a doutrina, por Mário Aroso de Almeida, sempre defendeu que "o prejuízo do requerente deve ser considerado irreparável sempre que os fatos concretos por ele alegados permitam perspectivar a criação de uma situação de impossibilidade da reintegração específica da sua esfera jurídica, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente” (ênfase nosso - v. pág.305 in O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, 4.a Edição, Almedina).

Ora, in casu a ora Recorrente apenas invocou que o ato suspendendo lhe poderá trazer perda de clientela e que poderá colocar em causa a sustentabilidade económica da sua farmácia, nomeadamente porque alegadamente a localização de destino da Farmácia C... situa-se a cerca de 880 metros da sua farmácia.

Na verdade porém, a Requerente não apresenta qualquer elemento probatório para fazer prova daquilo que alega, dizendo apenas que é "expectável que ocorra um quebra de rendimentos da Farmácia da Requerente e que seja desequilibrado o mercado entre farmácias da zona’’.

Isto é, e não obstante o ónus que sobre si impendia nos termos do artigo 342.°/1 do CC, a Recorrente não apresentou quaisquer dados concretos que demonstrem que a transferência da Farmácia C... irá causar-lhe perda de clientela e que porá em risco a viabilidade económica da sua farmácia ou das farmácias daquela zona.

Desta forma bem andou o Tribunal a quo ao considerar que a ora Recorrente não cumpriu com o ónus que sobre si impendia, assim como andou bem ao não produzir prova testemunhal.

É que, na esteira do Acórdão do TCAN que supra citámos, a “A instrução probatória através da inquirição de testemunhas apenas se pode reconduzir ou ter por objeto a factualidade que haja sido alegada pelas partes nos seus articulados, sede própria para observância desse ónus processual, não relevando ou servindo como meio de suprir a alegação ou omissão de alegação havida nos articulados".

Sendo que, como referiu o mesmo Tribunal em acórdão datado de 14.02.2014, no processo 02035/11.9BEBRG-A, “1. Na providência cautelar, compete ao juiz, perante cada caso concreto e perante a solução que a situação concreta se lhe perspetiva, aferir da necessidade ou não de produzir prova, nomeadamente testemunhal - n° 3 do art. 118° do CPTA.

2. A não inquirição das testemunhas oferecidas não constitui omissão de um ato que a lei prescreva, sendo que a lei não prescreve que deve haver sempre a inquirição das testemunhas, antes permite ao julgador aferir da sua necessidade...”.

Assim, e não tendo a Recorrente alegado qualquer facto que, de alguma forma, concretizasse as alegações conclusivas que apresentou para demonstrar o preenchimento do periculum in mora, não havia necessidade de o Tribunal a quo produzir a prova testemunhal requerida, porquanto não foram alegados factos que fossem suscetíveis de prova.

III - DO PERICULUM IN MORA

Conforme já referimos, a ora Recorrente não cumpriu com o ónus que sobre si impendia, tendo se remetido a considerações genérica que, naturalmente não são aptas a fazer prova do periculum in mora.

De facto, a ora Recorrente não apresentou qualquer elemento probatório para fazer prova daquilo que alegou, tendo se limitado a dizer que é “expectável que ocorra um quebra de rendimentos da Farmácia da Requerente e que seja desequilibrado o mercado entre farmácias da zona’’.

Isto é, e não obstante o ónus que sobre si impendia nos termos do artigo 342.°/1 do CC, a Recorrente não apresentou quaisquer dados concretos que demonstrassem que a transferência da Farmácia C... irá causar-lhe perda de clientela e que porá em risco a viabilidade económica da sua farmácia ou das farmácias daquela zona.

Sendo que a Recorrente não fez a prova que lhe cabia, porque tal não era possível, porquanto a lei do mercado não se aplica aos estabelecimentos de farmácia da mesma forma que se aplica a outros estabelecimentos comerciais, uma vez que, dado o seu objeto de atividade, a confiança que se tem na farmácia e no farmacêutico é o fator mais determinante para a escolha racional do utente.

Ou seja, como a atividade das farmácias está relacionada, principalmente, com a saúde das pessoas, a escolha de uma farmácia por um utente faz-se por critérios bem diferentes daqueles que são usados para a escolha da satisfação de outras necessidades, pelo que não faz sentido, para análise do comportamento de clientela de estabelecimentos de farmácia, analisar apenas critérios economicistas.

Aliás, é por o que se acabou de dizer que a atividade farmacêutica se encontra detalhadamente regulada pelo legislador, já que a tutela do interesse público e dos utentes não se determina a meros critérios economicistas, mas sim à confiança necessária nos estabelecimentos de farmácia.

Assim, tendo presente os bons serviços que a Recorrente certamente presta na sua farmácia, não será a abertura de uma nova farmácia causa adequada ao desvio de clientela da farmácia da Recorrente, sendo os prejuízos alegados meramente hipotéticos.

O que agora se disse foi defendido por este TCAS em 16.06.2011, no âmbito do processo n.° 07361/11, quando referiu que,

“A clientela (pessoas que estabelecem relações mercantis com o comerciante) desloca-se em função da qualidade do serviço, da forma de actuação do comerciante, do ambiente que o circunda, da forma de apresentar os produtos, do seu preço e de uma enorme variedade de factores de ordem económica, social, sociológica e psicológica.

Assim, o simples facto de abrir um novo estabelecimento junto de outro já existente, não significa, só por si, normalmente, que se venha a verificar uma deslocação da clientela.”

Por outro lado, e conforme também decidiu este TCAS, no acórdão proferido em 14.09.2014, no âmbito do processo n.° 218/13.6BEBRG,

"Na verdade, o alegado "desvio da clientela" com reflexos nos resultados económicos e financeiros da atividade comercial farmacêutica da Requerente, embora hipotético ou conjetural, apontam na tese da Requerente, a perda de receita com repercussão negativa no lucro líquido da farmácia da Requerente decorrente da atividade comercial da nova farmácia acaba por constituir um prejuízo reparável inteiramente in natura, pelo confronto entre as contas relativas aos exercícios dos anos que se sucederam ao início da atividade da farmácia da ora recorrente, e as contas relativas aos anos ou período anterior ao mesmo, designadamente por via de análises contabilísticas e auditorias.

De resto, isso mesmo foi efetuado pela Requerente, como vimos, pois embora a partir de dados não concretamente saídos da sua contabilidade, permitiu hipotizar concretizando, ao cêntimo, o dano em que a hipotética diminuição do lucro líquido se traduz, pese embora as eventuais perdas patrimoniais decorrentes da simples concorrência com deslocação da clientela, designadamente pela instalação ou abertura de novos estabelecimentos da mesma atividade numa determinada área territorial, estejam dependentes duma álea de incerteza e de subjetividade que inviabilizam um juízo minimamente seguro de adequação ou de causalidade.

Como no citado acórdão se verteu "a clientela pode deslocar-se em função da qualidade de serviço, da forma de atuação e postura de quem está à frente do estabelecimento ou do balcão, do ambiente e condições que circundam aquele estabelecimento, da forma de apresentação dos produtos, dos preços e condições praticados. Ou seja, estando a flutuação da clientela dependente de uma enorme variedade de fatores [de ordem física, económica, sociológica e psicológica], não se vislumbra possível estabelecer como adequado e certo um nexo entre o simples facto de se abrir um novo estabelecimento junto de outro já existente.

Da abertura duma nova farmácia não significa, só por si, que se venha a verificar uma deslocação de clientela que afluía à farmácia da requerente, pelo que a existência de perdas patrimoniais ou prejuízos a ela imputadas não se pode considerar uma consequência provável da execução imediata do ato suspendendo e muito menos quando da matéria dos autos decorre que a farmácia da Recorrente tenha sequer iniciado já a sua atividade mercantil na localidade de Polvoreira" (ênfase nosso).

Ou seja, seguindo esta jurisprudência, teremos de concluir que a mera abertura de uma nova farmácia numa determinada localidade não é, por si só, motivo suficiente para haver desvio de clientela.

Ao que agora se referiu, reitere-se e sublinhe-se que a Farmácia C... situar-se-á a mais de 350 metros da farmácia mais próxima e a mais de 850 metros da farmácia da Requerente, isto é, a uma distância que o legislador considerou que apta a defender a saudável e sã concorrência entre farmácias, de forma a garantir a sustentabilidade económica das farmácias de oficina.

Acresce que, nos termos do artigo 2.°/1/a) da Portaria 352/2012, a capitação do concelho de Mafra é superior à capitação legalmente estabelecida, pelo que, mesmo sem a transferência ora em causa, o INFARMED poderia sempre determinar a abertura de concurso para instalação e abertura de nova farmácia naquele local.

Nestes termos, só podemos concluir que bem andou o douto Tribunal a quo em julgar não verificado o requisito do periculum in mora.

IV - DO FUMUS BONI IURIS

i) Da Alegada Situação Abusiva e de Fraude à Lei

Para fundamentar a sua pretensão, a Recorrente alega que o ato que aprovou a transferência da Farmácia C... da Rua S..., União das freguesias de Torres Vedras e Matacães, concelho de Torres Vedras, para a Rua J..., União das freguesias de A dos Cunhados e Maceira, concelho de Torres Vedras, praticado em 14.11.2018 (!?), é ilegal.

Isto porque, na opinião da Recorrente, além de tal ato violar o artigo 26.°/6 do DL 307/2007, por a transferência aprovada em 14.11.2018, não ter sido dentro da mesma localidade - já que a Farmácia C... instalou-se a menos de 350 metros da Farmácia H... -, o mesmo consubstancia uma situação de abuso e fraude à lei.

É que, a Recorrente entende que a ora Contrainteressada só efetuou essa transferência de forma a que pudesse ter reunidos os requisitos previstos no artigo 2.° da Lei n.° 26/2011, de 16 de junho ("Lei 26/2011”), para efetuar uma transferência para um município limítrofe a Torres Vedras.

Posto isto, importa relembrar que os presentes autos correspondem a uma providência cautelar que têm como objeto - definido pela Recorrente - a suspensão do ato, praticado pelo INFARMED em 20.01.2020, de autorização de transferência da Farmácia C... da Rua J..., União das Freguesias de A dos Cunhados e Maceira, concelho de Torres Vedras, para a Rua F..., freguesia da Ericeira, concelho de Mafra.

Quer isto dizer que, no presente processo, e por opção da Recorrente, não está em causa a discussão de mais nenhum ato de transferência da Farmácia C... que não o praticado em 20.01.2020.

Assim, para demonstrar a verificação do requisito do fumus boni iuris na presente providência, a Recorrente teria de demonstrar apenas os vícios próprios do ato suspendendo, sendo irrelevante se, relativamente à Farmácia C..., houve ou não alguma ilegalidade num procedimento anterior.

É que, o procedimento que conduziu à prolação do ato suspendendo foi um procedimento totalmente autónomo e próprio, já que não esteve dependente ou era prejudicial de qualquer outro procedimento.

Recorde-se aliás que, como é fácil de perceber pelo Documento n.° 5 junto pela Recorrente ao Requerimento Inicial, o procedimento que terminou com a autorização transferência da Farmácia C... para a da Rua J..., União das Freguesias de A dos Cunhados e Maceira, concelho de Torres Vedras, terminou em 15.11.2018, com a publicação da mesma.

Motivo pelo qual, já caducou qualquer direito da Recorrente em impugnar a referida deliberação.

Ou seja, é manifesto que este vício alegado pela Recorrente relativo a um ato (e respetivo procedimento) diferente do ato suspendendo, é totalmente imprestável para a Recorrente demonstrar a possibilidade de obter vencimento na ação principal de que esta providência é cautelar.

E contra o que agora se disse, não se refira que a Recorrente pretende, na ação principal de que esta providência é cautelar, impugnar o ato tomado pelo INFARMED em 14.11.2018.

Isto porque, naturalmente, esta providência tem os seus efeitos circunscritos ao ato praticado pelo INFARMED em 20.01.2020, por opção própria da Recorrente.

Mas mesmo que assim não se entendesse, o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, sempre se diga que seria impossível à Recorrente demonstrar o fumus boni iuris com este vício.

Isto porque, caso fosse verdade que a Contrainteressada atuou, em 2018, com reserva mental para atuar contra a lei e com isso tirar vantagens indevidas, o INFARMED nunca teve esse conhecimento e estava sempre legalmente vinculado a autorizar a referida transferência caso se verificassem os requisitos para o efeito.

Ou seja, o ato praticado em 14.11.2018 pode ter tido na sua base um procedimento cuja motivação do seu interessado, a ora Contrainteressada, não era a mais correta (o que apenas se concede em mero benefício de raciocínio); mas isso não significa por si que o ato seja ilegal por violação de alguma disposição procedimental.

Por outras palavras, o eventual vício na vontade da Contrainteressada no procedimento que culminou com o ato praticado em 14.11.2018, não contagiou o referido ato.

Além disso, na ação principal, a Recorrente teria sempre de demonstrar e provar o animus da Contrainteressada em atuar de forma em contornar a lei, o que se afigura completamente impossível.

Por outro lado, também não há nenhuma violação do artigo 26.°/6 do DL 307/2007, porquanto, onde se lê “localidade”, deve se ler "concelho”.

Recorde-se que, nos termos do artigo 9.° do CC, deve-se sempre fazer uma interpretação sistemática de cada norma e presumir que o legislador procurou sempre a solução mais correta.

Ora, se no artigo 26.°/6/b) do DL 307/2007, consta que as distâncias previstas no artigo 2.° da Portaria 352/2012 podem ser desconsideradas em casos em que “não ocorra alteração da cobertura farmacêutica”, e o INFARMED apenas pode aferir essa alteração ao nível global de um concelho;

Não faz qualquer sentido, sob pena de esvaziamento da norma, que se leia “localidade” e não “concelho”.

Nestes termos, é manifesto que este vício não será julgado procedente na ação de que esta providência é instrumental.

ii) Da Alegada Ilegalidade por Violação do Artigo 27.° da Portaria 352/2012

A Recorrente alega também que o ato suspendendo é inválido pelo facto de a transferência em causa para a Rua F..., freguesia da Ericeira, concelho de Mafra, ter acontecido apenas 1 ano desde a transferência da Farmácia C... para Rua J..., União das Freguesias de A dos Cunhados e Maceira, concelho de Torres Vedras, em violação do artigo 27.° da Portaria 352/2012.

Na verdade, porém, a Recorrente não tem qualquer razão, porquanto o artigo 27.° da Portaria 352/2012, não confere nenhum prazo que impeça a transferência de uma farmácia após outa transferência.

De facto, e como se pode comprovar pela mera leitura do referido artigo, o prazo de 5 anos referido naquele artigo visa impedir a transferência de farmácia após instalações iniciais no âmbito de concursos abertos nos termos dos artigos 3.° e seguintes da Portaria 352/2012.

É que, a abertura de concursos para instalação de novas farmácias tem na base estudos de interesse público para uma determinada localidade e / ou população, motivo pelo qual o legislador entendeu que se justifica uma estabilidade de 5 anos, de forma a evitar novo concurso.

No caso das transferências, e contrariamente ao que acontece com os concursos, o que está na sua origem é a decisão do proprietário da farmácia que, em princípio, será tomada com base no que é mais benéfico para a sua farmácia; pelo que o legislador já não considerou necessário “bloquear” essa decisão por tempo determinado.

Desta forma, improcede em absoluto este vício assacado ao ato suspendendo.

Assim, é manifesto que in casu também não se verifica o requisito do fumus boni iuris, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao julgar improcedente o presente processo cautelar. (…)». (sublinhados nossos).

Também a contrainteressada R..., LDA, contra-alegou – cfr. fls. 782 e ss. do SITAF -, tendo, nessa sede, formulado as conclusões seguintes:

«(…)

1. O presente recurso vem interposto da douta sentença que indeferiu a presente providência cautelar, negando provimento ao pedido de suspensão da eficácia da Deliberação do Conselho Directivo do INFARMED — Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (doravante designado por «INFARMED»), de 16 de Janeiro de 2020, que deferiu o pedido de transferência das instalações da Farmácia do C..., propriedade da contrainteressada, da Rua J..., 2560-090 Maceira, freguesia de A dos Cunhados e Maceira, concelho de Torres Vedras, para a Rua F..., 2655-250 Ericeira, freguesia de Ericeira, concelho Mafra (I... Ericeira), doravante designada por «douta decisão recorrida»;

2. O presente recurso vem ainda interposto da douta decisão interlocutória que indeferiu a produção de prova testemunhal requerida pela Recorrente, por desnecessária, nos termos do disposto no artigo 118.°, n.° 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante designada por «douta decisão interlocutória recorrida»;

3. A douta decisão recorrida, ao ter indeferido a presente providência cautelar, negando provimento ao pedido de suspensão da eficácia da Deliberação do Conselho Directivo do INFARMED — Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (doravante designado por «INFARMED»), de 16 de Janeiro de 2020, que deferiu o pedido de transferência das instalações da Farmácia do C..., propriedade da contrainteressada, da Rua J..., 2560090 Maceira, freguesia de A dos Cunhados e Maceira, concelho de Torres Vedras, para a Rua F..., 2655-250 Ericeira, freguesia de Ericeira, concelho Mafra (I... Ericeira), por não se verificar o requisito do «periculum in mora» previsto no artigo 120.°, n.° 1, primeira parte, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por défice de alegação, não merece qualquer censura, pelo que a mesma deve ser mantida nos seus precisos termos;

4. A Recorrente não alegou quaisquer factos concretos que permitam perspectivar produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que visa assegurar no processo principal, nomeadamente, o valor das vendas da Farmácia da Recorrente e o valor da estimada diminuição das vendas da Farmácia da Recorrente, em consequência da transferência da Farmácia da contrainteressada, pelo que a douta decisão interlocutória recorrida, ao ter indeferiu a produção de prova testemunhal requerida pela Recorrente, por desnecessária, nos termos do disposto no artigo 118.°, n.° 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não merece qualquer censura, devendo ser mantida nos seus precisos termos;

5. O acto suspendendo, que deferiu o pedido de transferência das instalações da Farmácia do C..., propriedade da contrainteressada, da Rua J..., 2560-090 Maceira, freguesia de A dos Cunhados e Maceira, concelho de Torres Vedras, para a Rua F..., 2655-250 Ericeira, freguesia de Ericeira, concelho Mafra (I... Ericeira), não é ilegal por qualquer alegada, mas claramente inexistente, pretensão abusiva e em situação de fraude à lei;

6. O acto suspendendo, que deferiu o pedido de transferência das instalações da Farmácia do C..., propriedade da contrainteressada, da Rua J..., 2560-090 Maceira, freguesia de A dos Cunhados e Maceira, concelho de Torres Vedras, para a Rua F..., 2655-250 Ericeira, freguesia de Ericeira, concelho Mafra (I... Ericeira), não padece de qualquer alegada, mas claramente inexistente, ilegalidade da transferência ao ter lugar antes de ter decorrido o prazo de 5 anos previsto na lei para esse efeito;

7. A presente providência cautelar deve ser recusada por este douto Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 120.°, n.° 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, porquanto os danos que resultariam para o interesse público prosseguido pelo INFARMED e, bem assim, que resultariam para os interesses da contrainteressada, são superiores àqueles que podem resultar para a Recorrente com a sua concessão. (…) deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, por não provado, proferindo-se acórdão que confirme, nos seus precisos termos, a douta decisão recorrida e a douta decisão interlocutória recorrida.»

Neste Tribunal Central Administrativo, o DMMP, notificado para o efeito, não se pronunciou.

Com dispensa dos vistos, atento o caráter urgente dos autos, importa apreciar e decidir.

I. 2. Questões a apreciar e decidir:

O objeto dos recursos é delimitado, em princípio, pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado – cfr. art.s 635º, 639.º e 608.º, n.º 2, 2ª parte, todos do CPC, aplicáveis ex vi art. 1.º do CPTA. E dizemos em princípio, porque o art. 636.º do CPC, ex vi art. 1.º CPTA, permite a ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, situação que não se coloca nos autos.

Neste pressuposto, serão estas as questões que cumpre apreciar e decidir:

i. Do erro de julgamento quanto à inobservância pela Requerente, ora Recorrente do ónus de alegação de factos caracterizadores de periculum in mora;

ii. Da ilegalidade da dispensa de prova testemunhal arrolada por violação do direito à prova;

iii. Do erro de julgamento quanto à não ocorrência de prejuízos de difícil reparação; e

iv. Da procedência da pretensão a formular nos autos principais.

II. Fundamentação

II.1. De facto

A matéria de facto constante da sentença recorrida é a que aqui se transcreve ipsis verbis:
«(…)
a) A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objecto social o exercício da actividade de farmácia, a prestação de serviços farmacêuticos e actividades conexas (cfr. doc. 2 junto aos autos com o RI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
b) A Requerente explora a farmácia com a denominação «Farmácia C...», sita na P..., na Ericeira, concelho de Mafra, para a qual foi emitido o alvará 5…, pelo INFARMED — Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde I.P.(cfr. doc. 3, junto aos autos com o RI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
c) A contrainteressada «R..., LDA», é uma sociedade comercial que explora a farmácia com a denominação «FARMÁCIA DO C...», sita na Rua J..., União das freguesias de A dos Cunhados e Maceira (cfr. doc. n.° 4 junto aos autos com o RI, cujo o teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
d) No ano de 2018 a «FARMÁCIA DO C...» encontrava-se instalada na Rua S..., na cidade de Torres Vedras, concelho de Torres Vedras (cfr. doc. 5, junto aos autos com o RI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
e) A 14/11/2018, o INFARMED autorizou a contrainteressada transferir as instalações da «FARMÁCIA DO C...», da cidade de Torres Vedras (Rua S...) para a localidade de Maceira (Rua J..., Maceira) (cfr. doc. 5, junto aos autos com o RI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
f) A que se reporta a alínea anterior, transferência veio a ser concretizada para um local situado a cerca de 100 m de uma outra farmácia a “Farmácia H...” (cfr. doc. 8, junto aos autos com o RI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
g) A 24/05/2019, a contra-interessada requereu ao INFARMED para funcionar ao abrigo do regime excepcional de funcionamento previsto no artigo 57.°-A do Decreto-Lei n.° 307/2007, de 31 de agosto, na sua redação inicial, (“DL 307/2007”) (cfr. Págs. 37 e seguintes do Processo Instrutor).
h) A 27/05/2019, o pedido a que se reporta a alínea anterior foi deferido pelo INFARMED (cfr. fls. 35 do PA);
i) A 26/07/2019, a contra-interessada requereu ao INFARMED, a autorização para a transferência definitiva das instalações da Farmácia do C..., sito na Rua J..., 2560-090 Macieira, freguesia A dos Cunhados, concelho de Torres Vedras, distrito de Lisboa, para a Rua F..., 2655-250 Ericeira, freguesia de Ericeira, concelho de Mafra, distrito de Lisboa (cfr. fls. 2 e 3 do PA);
j) A 06/08/2019, o INFARMED, em sede de análise do procedimento, solicitou à contra-interessada o envio de nova declaração fundamentada para preenchimento dos critérios previstos no n.° 2 do artigo 26.°. do Decreto-Lei n.°307/2007, de 31 de agosto alterado pela Lei n.°26/2011, de 16 de junho, com base na informação na qual pode ler-se, entre o mais, o seguinte (cfr. fls. 47 a 49 do PA:

«Imagem no original»


k) A 16/08/2019, a contra-interessada enviou ao INFARMED nova declaração fundamentada para preenchimento dos critérios previstos no n.°2 do artigo 26.°., nos termos solicitados na alínea anterior do probatório (cfr. fls. 51 a 72 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
l) A 01/10/2019, pelos serviços do INFARMED, foi elaborada informação com proposta de deferimento do pedido de transferência da Farmácia do C..., na qual pode ler-se, entre o mais, seguinte (cfr. fls. 111 e segs. do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):

«Imagem no original»

m) A Câmara Municipal de Torres Vedras e a Câmara Municipal [Mafra] pronunciaram-se favoravelmente à transferência da Farmácia C... para a Rua F..., freguesia da Ericeira, concelho de Mafra, distrito de Lisboa (cfr. fls. 139 e 141 do PA);

n) Por deliberação do CD do INFARMED, datado de 16/01/2020, o pedido de transferência da farmácia do C... para a Rua F..., freguesia da Ericeira, concelho de Mafra, foi deferido (cfr. fls. 146 a 148 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

*

Os factos provados com interesse para a decisão da causa assentam na análise crítica e perfunctória dos documentos juntos aos autos, e não impugnados, através do exame crítico desses mesmos documentos, bem como do processo administrativo instrutor, tendo por base a posição adoptada pelas partes nos respectivos articulados, representando o iter procedimental em causa nos presentes autos, tudo conforme discriminado nas diversas alíneas do probatório.

Por outro lado, não obstante vir alegado no requerimento inicial, quanto ao periculum in mora, um conjunto de alegações, entre as quais que “ [a] transferência da farmácia autorizada pela deliberação sub judice terá um impacto direto e imediato sobre a clientela da Farmácia da Requerente, com perda de clientes irreparável.” verifica-se que todas elas são genéricas e conclusivas, não consubstanciando em si mesmas quaisquer factos que possam ser julgados como provados ou não provados, pelo que apenas veio ao probatório a matéria de facto susceptível de tal qualificação, conforme resulta do probatório.”

II.2. DE DIREITO

Porque umbilicalmente ligados, conheceremos dos dois primeiros invocados erros de julgamento, a saber:

Do erro de julgamento quanto à inobservância pela Requerente, ora Recorrente, do ónus de alegação de factos caracterizadores de periculum in mora e da consequente ilegalidade da dispensa de prova testemunhal arrolada, por violação do direito à prova.

Sobre esta mesma matéria, entende a Recorrente que:

«(…)

Como reconhece a própria sentença recorrida, a ora Recorrente alegou no r.i. da providência, além do mais, que se encontra aberta ao público e em funcionamento naquele local há muitos anos (artigo 54.° do r.i.), tendo angariado clientela residente nas imediações (artigo 54.° do r.i.), que a transferência da farmácia autorizada irá implicar ter impacto direto e imediato sobre a sua clientela (artigo 55.° do r.i.), implicando a "perda de clientes" (artigos 54.° e 57.° do r.i.), "privação de lucros" (artigo 57.° do r.i.), em consequência previsível da execução do ato suspendendo e "quebra de rendimentos" (artigo 58.° do r.i.), sendo tais consequências de difícil quantificação (artigo 58.° do r.i.).

Ora, salvo o devido respeito, tais afirmações reportam-se inequivocamente a situações concretas da vida, situando-se no domínio dos factos e prescindindo a sua demonstração em juízo de qualquer operação lógica de subsunção a regras de direito.

Tratam-se, é certo, de factos que a requerente situa num contexto hipotético - pois é disso que se ocupa a providência cautelar, procurando evitar a ocorrência de prejuízos que ainda não ocorreram - mas, nesse contexto perspectivado, saber se a requerente perderá ou não perderá clientes é claramente uma questão de facto, assim como o são as questões de saber se a requerente ficará ou não privada de lucros e/ou de rendimentos.

(…)

Coisa diferente será o juízo valorativo de saber se as ditas perda de clientes e quebra de rendimentos e/ou lucros – (…) - se apresentam ou não como sendo prejuízos de difícil reparação, o que apela já a uma questão de direito.

(…) a perda de clientela - em especial, no caso das farmácias em que é facto conatural por via do acréscimo de farmácias vizinhas - constitui um prejuízo de difícil reparação e como tal vem sendo considerada pela jurisprudência - cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STA de 26-02-2003, no processo n.° 0149A/03 e de 15-10-2003, no processo n.° 01430/03, bem como do TCAS de 18-10-2010, no Proc. n.° 9126/12 e de 18-12-2014, no Proc. n.°. 11655/14 e os acs. do TCAN, de 08-03-2007, no proc. n.° 01845/06.3BEPRT, de 14-09-2012, no proc. n.° 00881/12.5BEPRT, de 14.06.2013, no proc. 100/13.7BAVR, de 13-092013 no proc. n.° 224/13.0BECBR e de 12-07-2018 no Proc. n.° 02550/17.0BEPRT in www.dasi.pt.(…)»

Cumpre conhecer.

Em rigor, desde a reforma do CPC2013 que situações idênticas às que foram invocadas pela A., ora Recorrente, a saber, “perda de clientela", "quebra de rendimentos" e "privação de lucros", aqui invocadas como resultado da execução imediata do ato impugnado, ora suspendendo, traduzem factos essenciais suscetíveis de ser objeto de prova, ainda que careçam de concretização, na medida em que os factos complementares ou instrumentais que resultarem da instrução, preencherão, pois, tais factos.

Neste pressuposto, no âmbito do seu dever de gestão processual, o tribunal a quo poderia, assim, ter feito um convite ao aperfeiçoamento - cfr. art. 7.º-A do CPTA (1) - e mesmo à junção de prova documental (2) – cfr., designadamente, art. 87.º, n.ºs 3 a 6 do CPTA, também aplicável aos processos cautelares – cfr. art. 116.º, n.º 2, alínea a), do CPTA - e urgentes (3).

Ou, em alternativa, admitir a prova testemunhal requerida pela ora Recorrente, então requerente – sendo que, uma das testemunhas arroladas é, precisamente, revisor oficial de contas - e, fazendo uso do disposto no art. 5.º do CPC, sob a epígrafe, Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, determina que «1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.» e que «2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar. (…)» - incluir os factos instrumentais ou complementares que da mesma resultassem na matéria de facto.

E esta é, precisamente, a situação que pode resultar nos autos em apreço.

Vejamos em que termos.

O tribunal a quo, para indeferir o requerimento de prova testemunhal apresentado pela requerente, ora Recorrente, entendeu que «(…) os elementos de prova documental, sem necessidade de outros, permitem apurar, indiciariamente, todos os factos relevantes para a decisão a proferir na presente instância cautelar, termos em que se indefere a produção de prova testemunhal requerida, por desnecessária.». (cfr. despacho prévio à sentença recorrida, supra transcrito).

Porém, em sede de discurso fundamentador da sentença invocou que «(…) a Requerente não cura de alegar individualizada e concretamente em que medida o não decretamento da providência cautelar impede a progressão da sua actividade económica e em que medida são irá “sofrer imediata e necessariamente e de acordo com a normalidade das coisas, prejuízos decorrentes de perda de clientela e da inerente privação de lucros ”, ao ponto de se considerar tal situação como um facto consumado ou um prejuízo de difícil reparação.

Para além de estar apenas em causa a alegação de um eventual um prejuízo de “lucros futuros”, estes são totalmente indemnizáveis no quadro de uma hipotética procedência da acção principal, não apresentando a requerente qualquer outra alegação quanto ao efectivo perigo na demora no seio da actividade que desenvolve, não explicando sequer em que medida a “perda de clientes é irreparável” sendo certo, e assim resulta da experiência comum, que a clientela, ou seja, o consumidor no âmbito farmacêutico, não se cinge exclusivamente ao critério da proximidade, mas também a outros critérios de procura.

Quanto à restante alegação, nada de mais sério e concretizado foi alegado pela requerente, como lhe competia, a título de exemplo, os impactos concretos do não decretamento da providência na sua actividade ou estabilidade financeira, sendo impossível descortinar tal situação por falta de alegação e prova quanto à sua situação contabilística, fiscal e/ou perante a segurança social, prova esta que estava ao seu alcance, designadamente, através de documentos que atestassem a sua situação financeira ou a sua situação fiscal e que o Tribunal desconhece, por défice de alegação.

Daí que, por défice de alegação, não pode ter-se por demonstrada a ocorrência de prejuízos susceptíveis de configurarem uma situação de "periculum in mora.»

Discurso fundamentador este que, face a todo o exposto, se revela contraditório com a invocada desnecessidade de prova, fundamento da dispensa da prova testemunhal requerida pela requerente, ora Recorrente, designadamente, quando refere que a «falta de (…) prova quanto à sua situação contabilística, fiscal e/ou perante a segurança social, prova esta que estava ao seu alcance, designadamente, através de documentos que atestassem a sua situação financeira ou a sua situação fiscal e que o Tribunal desconhece (…)», ao ter, precisamente, dispensado, por desnecessária, a produção da prova requerida.

Atente-se no facto de que o indeferimento de requerimentos probatórios não corresponde ao exercício de um poder discricionário do juiz, visto que essa decisão está condicionada pela desnecessidade da prova ou pela irrelevância dos factos sobre os quais se pretende produzir a prova – cfr. art. 118.º, n.º 3 e 5 do CPTA.

Indiscutível é, porém, face a todo o exposto, o relevo, para o desfecho da causa, da possibilidade de serem ouvidas as testemunhas arroladas pela requerente, ora Recorrente – sendo que uma delas é revisor oficial de contas -, sobre a “perda de clientela", "quebra de rendimentos" e "privação de lucros" em resultado da execução do ato impugnado que autorizou a transferência da farmácia, sendo estes factos essenciais suscetíveis de ser objeto de prova, ainda que careçam de concretização, pois os factos complementares ou instrumentais que resultarem da instrução preencherão tais factos, nos termos do citado art. 5.º do CPC, ex vi art. 1.º do CPTA.

Com isto não queremos dizer que o desfecho final não poderá ser igual ao que já foi proferido, mas apenas que tal desfecho deverá ocorrer sem violação do princípio do contraditório e do direito à prova, incluído este no conceito de processo equitativo, previsto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), no n.º 1 do artigo 2.º do CPTA e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), pois é isto que está em causa, quando se decide indeferir requerimentos de prova.

O que, e sem necessidade de mais fundamentação, compromete a decisão tomada quanto ao indeferimento da prova testemunhal requerida, pois, na verdade, os factos alegados pela requerente, ora Recorrente - “perda de clientela", "quebra de rendimentos" e "privação de lucros", invocados como resultado da execução do ato impugnado –, que reputamos como sendo essenciais e integradores da causa de pedir, e que foram, aliás, na sua maioria, impugnados pela entidade requerida em sede de oposição, são também factos controvertidos, assim como são factos cujo apuramento se revela fundamental para a boa solução da causa à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito, designadamente, a que seguiu a sentença recorrida.

Relativamente ao requisito fumus boni iuris, que a sentença recorrida considerou prejudicado face à falência do primeiro requisito conhecido, sublinha-se que o processo administrativo instrutor não faz fé em juízo e a sua valoração como meio de prova não pode implicar uma ofensa aos princípios da igualdade das partes, também, quanto ao mesmo direito à prova. Repare-se que a matéria de facto que vem fixada assenta nos elementos documentais juntos aos autos e os constantes do processo administrativo instrutor, sem que sobre a sua materialidade tivesse havido a menor discussão.

Concluindo, no caso em apreço, o tribunal a quo errou no juízo efetuado acerca da suficiência da prova existente e da sua devida estabilização, cumprindo anular a sentença proferida, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 2, alínea c) do CPC, ex vi art. 1.º do CPTA, por insuficiência da matéria de facto, devendo o tribunal a quo determinar a abertura de um período de produção de prova em ordem a apurar, com a devida observância das garantias adjetivas, a factualidade provada e não provada, proferindo, posteriormente e em conformidade, a decisão sobre a causa.

Em face da procedência do recurso nesta parte, fica prejudicado o conhecimento das demais questões que integram o objeto do mesmo.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e em anular a sentença recorrida, ordenando a baixa dos autos, devendo o tribunal a quo determinar a abertura de um período de produção de prova.

Custas pelos Recorridos em partes iguais.

Lisboa, 27.07.2020.

Dora Lucas Neto

Sofia David

Vital Lopes

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(1) Neste sentido, v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, 4.ª edição, pg. 76, «(…) Por fim, o princípio da cooperação processual, na vertente em que envolve a cooperação do tribunal com as partes (artigo 7.º, n.º 2, do CPC), comporta a possibilidade de o juiz se esclarecer perante as partes (convidando-as a aperfeiçoar os articulados, mormente mediante o suprimento de insuficiências ou imprecisões da explanação da matéria de facto (…)», pg. 92 e pg. 938, nota de rodapé n.º 1159, no âmbito dos processos urgentes «(…) de facto, o preceito em análise desempenha, no âmbito dos processos cautelares, uma função similar à do artigo 87.º, aplicável à ação administrativa, só podendo dar lugar à eliminação de ambiguidades ou imprecisões, ou à alegação de circunstâncias complementares, e não à alteração do pedido ou da causa de pedir.»

(2) Idem, op.cit., pg. 588 «(…) Nada parece obstar, por outro lado, a que a concessão de prazo para a·juncão de documentos se torne extensiva a documentos de apresentação facultativa como sejam aqueles que se destinam a fazer prova dos fundamentos do pedido. Tratando-se de documentos não obrigatórios, a sua não apresentação com a petição inicial não preclude a possibilidade de eles serem juntos num momento posterior, mormente na fase de produção de prova (cfr. artigo 423.º do CPC).(…)»

(3) Ibidem, op. cit, pg. 938, nota de rodapé n.º 1159.