Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:124/19.0 BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:12/19/2023
Relator:VITAL LOPES
Descritores:MÉTODOS INDIRECTOS
ERRO NOS PRESSUPOSTOS
EXCESSO DE QUANTIFICAÇÃO
CONHECIMENTO EM SUBSTITUIÇÃO
AUDIÇÃO PRÉVIA DE CADA UMA DAS PARTES
Sumário:I - Resulta da conjugação dos nºs. 2 e 3 do art.º 665.º do CPC, aplicável ao processo tributário por força do art.º 281.º do CPPT, que se o tribunal recorrido tiver julgado do mérito da causa mas deixado de apreciar certas questões por as considerar prejudicadas, o tribunal de apelação, se entender que o recurso procede, conhece delas no mesmo acórdão em que revoga a decisão recorrida, após o relator ouvir cada uma das partes pelo prazo de 10 dias.
II - A omissão dessa formalidade constitui nulidade processual secundária que inquina a decisão substitutiva (art.º 195/1 do CPC).
III - Em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação (artigo 74.º, n.º 3 da LGT).
IV - No domínio de utilização de métodos indirectos, a actuação da Administração Tributária não se limita à demonstração da ocorrência dos respectivos pressupostos, antes se lhe impõe que fundamente, ainda e também, os critérios de que venha a lançar mão na quantificação da matéria tributável.
V - Contudo, do ponto de vista do erro na quantificação, as insuficiências no método são sempre substanciais, isto é, devem evidenciar um excesso de quantificação.
VI - Não logrando o contribuinte provar a existência de tal excesso, nem se afigurando evidente para o Tribunal que o alegado excesso na quantificação resulte das regras da experiência comum ou que seja manifesto, notório ou ostensivo, é de manter o “quantum” tributável fixado pela AT, desde que devidamente fundamentado.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais: Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SUBSECÇÃO COMUM DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


I. RELATÓRIO

A Exma. Representante da Fazenda Pública recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que julgou procedente a impugnação judicial apresentada por N… contra os actos tributários de liquidação de IRS dos anos de 2014, 2015 e 2016 e respectivos juros compensatórios, perfazendo o valor de 31.437,69€, alegando para tanto, conclusivamente:

«A) Decidiu o Meritíssimo Juiz a quo pela procedência da impugnação deduzida contra os atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimentos das Pessoas Singulares (IRS) e juros compensatórios, dos anos de 2014, 2015 e 2016, no valor total de € 31.437,69;
B) Liquidaçõs emitidas em resultado de procedimento inspetivo externo a que foi sujeita a herança aberta por morte de A…, no âmbito da qual se procedeu à fixação, por métodos indiretos, da matéria tributável para os anos em causa e, em sequência ao apuramento de tributação do herdeiro N…, ora Impugnante;
C) Do extenso probatório, a sentença a quo apenas valoriza que “o número de consultas de mesa [ponto i)] não se mostram, num juízo de verosimilhança, em número considerável
(187 num total de 49.942)”, daí concuindo que “não é minimamente demonstrado, pelos serviços inspectivos, por que se considera a impossibilidade das correcções aritméticas às suas demonstrações;
D) Não conseguimos descortinar quais foram efetivamente as razões que levaram o Mmo Juiz a considerar que, no caso concreto, o relatório da Inspeção Tributária e a decisão do pedido de revisão não são suficientes, no que tange à especificação dos motivos da impossibilidade da comprovação e quantificação direta e exata da matéria tributável e do recurso aos métodos indirectos;
E) É que, “conforme resulta dos factos assentes, em sede de procedimento de inspecção foram identificados como fundamento do recurso a métodos indirectos a i) existência de consultas de mesa não facturadas e, a ii) existência de potenciais omissões de venda, na sequência de divergências verificadas nas quantidades compradas/vendidas, concluindo-se assim que, no seguimento dos procedimentos de inspecção se verificaram infracções, erros e/ou inexactidões no registo das operações e indícios claros e fundados de que a contabilidade não reflecte a exacta situação patrimonial e o resultado efectivamente obtido. A aplicação de métodos de avaliação directa não conduz à matéria tributável real do sujeito passivo em análise (n.º 1, artigo 81.º, artigos 82.º e 87.º, todos da LGT]. Deste modo, face ao acima descrito neste relatório, os factos apurados contrariam a presunção de verdade dos valores declarados, constantes do n.º 1, do artigo 75.º da LGT, por se verificar o indicado na alínea a), do n.º 2, do mesmo artigo;
F) Na verdade, foi o impugnante quem não apresentou justificação credível para as anomalias da contabilidade em causa, nem relativamente às consultas de mesa, nem quanto aos produtos comprados para posterior venda, conforme se fundamenta no Relatório Final da Inspeção, no laudo da perita da administração tributária e na decisão pedido de revisão;
G) Relativamente à existência de consultas de mesa não facturadas, a prova testemunhal produzida nos autos não permite desqualificar a existência das omissões verificadas na faturação da Herança Indivisa, mas apenas o confirmam;
H) Perante o que, ao invés da sentença a quo, entendemos, resultar do probatório e conforme consta do parecer do Ministério Público: “O impugnante não apresenta justificação credível para as anomalias da contabilidade em causa, nem relativamente às consultas de mesa, nem quanto aos produtos comprados para posterior venda, conforme se explica no Relatório Final da Inspeção, no laudo da perita da administração tributária e na decisão pedido de revisão, razão pela qual se consideram reunidos os requisitos contidos nas als. b) art. 87º e a) e d) do art. 88º da LGT, que levaram à utilização de métodos indiretos.
I) Além do mais, o impugnante, enquanto herdeiro e, nessa medida, sujeito a IRS, não apresenta novos argumentos que possam obstar aos factos já apurados, no que concerne ao rendimento por si auferido.”
J) E, tanto basta, afigura-se-nos, para preencher o ónus da prova que sobre a AT recaia acerca da impossibilidade de realização de uma liquidação com recurso a meras correções aritméticas, dado que os elementos fornecidos pelo contribuinte não eram credíveis;
K) Nos termos do n.º2 do art.º75.º da LGT, justifica-se o afastamento da presunção da veracidade das declarações dos contribuintes, bem como dos dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, tornando-se inviável o aproveitamento duma contabilidade sem correspondência com a realidade, não sendo, por isso possível o seu aproveitamento através do mecanismo das correções meramente aritméticas;
L) Não sendo função da inspeção Tributária (ou da AT em geral) executar contabilidades, mas apenas proceder à sua análise;
M) Afigura-se-nos, que se impõe concluir resultar do probatório que não só foram preenchidos todos os condicionalismos legais, como se mostram reunidos e demonstrados os pressupostos para a efetivação da aplicação de métodos indiretos no calculo da matéria tributável deste contribuinte, devendo manter-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação de IRS e respetivos juros compensatórios, respeitantes aos exercícios de 2014, 2015 e 2016 impugnados.
Pelo exposto e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida como é de inteira JUSTIÇA.».

O Recorrido apresentou contra-alegações, que culmina com as seguintes conclusões:

«1ª. A avaliação indireta tem carácter excecional, sendo seu pressuposto um universo de irregularidades, vícios, erros ou anomalias na contabilidade do s. p. que, de uma forma genérica, inviabilizem a sua credibilidade;
2.ª Impedindo a quantificação e comprovação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação do lucro tributável, abrindo caminho à aplicação dos métodos indiretos;
3.ª No entanto, da aplicação destes não deverá resultar matéria tributável que se aproxime ou coincida com a matéria tributável apresentada pelo sujeito passivo.
4.ª Nos presentes autos, as alegadas irregularidades não só representam uma mínima margem de toda a atividade do sujeito passivo, como muitas delas foram por este explicadas e justificadas;
5.ª Como bem se referiu na sentença recorrida, num universo de mais de 49942 documentos, a quantidade (187) cuja justificação não foi aceite é muito baixa.
6.ª Acresce que não se imputaram ao s.p. comportamentos típicos que possam justificar o recurso aos métodos indiretos, tais como:
- Margens de comercialização muito baixas relativamente à generalidade dos produtos vendidos;
- Vendas com prejuízos ou preços de mercado superiores aos preços declarados;
- Declarações de gastos elevados quando comparados com as vendas ou prestações de serviços declaradas;
- Margens brutas de comercialização negativas ou margens brutas obtidas por amostragem superiores às apuradas com base na contabilidade;
- Contabilidade assente em documentos sem forma legal, meros documentos internos
7.ª Assim, não se pode deixar de considerar como bem decidiu a sentença recorrida que não se verificou um desvio significativo indiciador de fuga ao fisco que justificasse o recurso aos métodos indiretos de toda a atividade da impugnante.
8.ª Pelo contrário, no caso do último ano considerado pelos serviços inspetivos (2016) verifica-se praticamente uma coincidência entre a matéria declarada pelo sujeito passivo e a matéria encontrada por métodos indiretos.
9.ª Quanto aos produtos alegadamente não faturados em que a AT não acolheu as explicações da impugnante, nomeadamente quanto ao autoconsumo dado à matéria-prima bacalhau e cafés, ainda assim poderia ter sido ordenada a correção da contabilidade de forma aritmética, pois eram conhecidas as respetivas premissas, ou seja, as quantidades adquiridas.
10.ª Assim, e em conclusão, pode afirmar-se que a AT deveria ter ordenado a correção aritmética matemática da contabilidade do sujeito passivo, sendo infundado o recurso aos métodos indiretos.
Termos em que deve ser julgado improcedente por não provado o recurso interposto pela AT, mantendo-se a decisão recorrida como é de JUSTIÇA.».

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu mui douto parecer concluindo que o recurso merece provimento, nomeadamente, no entendimento «…que a decisão recorrida confunde correcções aritméticas com omissões de receita, sendo que estas últimas justificam o recurso a métodos indirectos no apuramento da matéria colectável».

Prevenindo a hipótese de procedência da apelação, por despacho de 07/09/2023 da Exma. Senhora Desembargadora Relatora à data, foram notificadas as partes para se pronunciarem sobre as questões prejudicadas, nos termos previstos no art.º 665/3 do CPC.

Respondeu o Recorrido, em suma, pugnando pela anulação daquele despacho no entendimento de que “da sentença não resulta qualquer identificação e muito menos qualquer numeração e muito menos tratamento de quaisquer questões prejudicadas, ou que obstem ao conhecimento e decisão da causa”; “o mecanismo do art.º 665.º apenas deve ser utilizado para conhecer de questões já afloradas, discutidas e decididas nos autos e não outras”; que o despacho da Exma. Relatora “não identifica qual a questão, ou questões, envolvidas na apreciação do Tribunal de recurso”.

Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, analisadas as conclusões das alegações do recurso, as questões que importa resolver reconduzem-se a saber se a sentença incorreu em erro de julgamento ao concluir não estarem verificados os pressupostos de que depende a avaliação indirecta da matéria tributável.
***

III. FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS

Na sentença recorrida deixou-se factualmente consignado:

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».

Ao abrigo do disposto no art.º 662/1 do CPC, altera-se o ponto 17. da matéria assente, dele passando a constar:

17. Nos anos de 2014, 2015 e 2016, foram emitidos, respectivamente, 14.762, 13.965 e 21.215 documentos de facturação, num total de 49.942 documentos de facturação para aqueles mesmos anos (facto não controvertido, vd. art.º 72.º da P.I. e decisão de revisão, transcrita no aditado ponto 19.)

E adita-se ao probatório o ponto 19., de que passa a constar:

19. Na falta de acordo entre os peritos na comissão de revisão, o Sr. Director de Finanças decidiu, por despacho de 18/06/2018, que aqui damos por integralmente reproduzido e de que adiante destacaremos os segmentos mais relevantes, manter as correcções da acção inspectiva no que respeita aos anos de 2014, 2015 e 2016 (cf. fls. 19 e ss. do apenso instrutor).

B.DE DIREITO

Antes de entrar na apreciação do mérito do recurso, importará tomar conhecimento da resposta do Recorrido ao despacho de 07/09/2023 que, acautelando a hipótese de procedência da apelação, ordenou fossem ouvidas as partes sobre as questões cujo conhecimento a sentença deu por prejudicado.

Na sentença recorrida foram enunciadas as seguintes questões a resolver:
(i) Se se verificam os pressupostos de aplicação de métodos indirectos e sua fundamentação;
(ii) Se se verifica erro na quantificação da matéria tributável.

A sentença conheceu da verificação dos pressupostos para a aplicação de métodos indirectos de tributação e, julgando procedente esse fundamento da impugnação, deu por prejudicado o conhecimento das demais questões dos autos.

Dispõe o art.º 665.º do CPC, aplicável ao processo tributário por força do art.º 281.º do CPPT:
«Artigo 665.º
Regra da substituição ao tribunal recorrido
1 - Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.
2 - Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
3 - O relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias».

Resulta da leitura conjugada dos n.ºs 2 e 3 que se o tribunal recorrido tiver julgado do mérito da causa mas deixado de apreciar certas questões por as considerar prejudicadas, o tribunal de apelação, se entender que o recurso procede, conhece delas no mesmo acórdão em que revoga a decisão recorrida, após o relator ouvir cada uma das partes pelo prazo de 10 dias.

Este acto processual de audição prévia, visa assegurar o contraditório relativamente a aspectos da causa que não eram objecto imediato do recurso, com o intuito de evitar a prolação de decisões-surpresa e a sua omissão constitui uma nulidade processual secundária, nos termos do art.º 195.º, n.º 1, do CPC, que afecta a decisão substitutiva – vd. ac. do Supremo Tribunal Administrativo (CA), de 01/23/2019, tirado no proc.º 01048/08.2BELSB 0685/18.

Com o referido despacho e contrariamente ao que dele assumiu o Recorrido, não se pretende, pois, apreciar questões novas que obstem ao conhecimento do mérito, nem de questões que não tenham sido já suscitadas no processo, mas unicamente dos fundamentos do pedido de que o tribunal recorrido não conheceu por prejudicados em vista da solução dada ao litígio (cf. art.º 608/2 do CPC) e que, no caso, resulta claro da sentença, se reconduz à questão do erro na quantificação da matéria tributável por métodos indirectos.

Assim, sendo desnecessários maiores considerandos, julga-se improcedente o pedido do Recorrido de anulação do despacho do Relator que ordenou fossem ouvidas as partes sobre as questões cujo conhecimento o tribunal recorrido deu por prejudicado.
*

Entrando na apreciação do mérito do recurso, vejamos.

A herança indivisa de A…, de que o impugnante, ora recorrido, é herdeiro e cabeça-de-casal e integra estabelecimento de restauração, foi objecto de uma acção inspectiva em que foram propostas correcções à matéria tributável do IRS dos exercícios de 2014, 2015 e 2016, com recurso a métodos indirectos.

Os fundamentos da decisão de recurso a métodos indirectos, como se apreende do projecto de conclusões do relatório, assentam na constatação de que, naqueles mesmos anos de 2014, 2015 e 2016, existem consultas de mesa activas/ emitidas, para as quais não se localizou a respectiva emissão de factura e, que a análise da comparação de quantidades compradas/ quantidades vendidas quantificada com relação a um determinado número de bens, evidencia fortes desajustamentos naqueles mesmos anos, verificando-se que as quantidades compradas são superiores às quantidades vendidas, ou seja, o sujeito passivo compra mais do que vende, já considerando na análise efectuada os inventários disponibilizados pelo sujeito passivo e os autoconsumos internos (refeições, bebidas e outros consumos internos dos funcionários).

Em audição prévia, o impugnante justificou parte das situações detectadas de consultas de mesa a que não estaria associada qualquer factura, mas não justificou as divergências encontradas nos anos em questão de 2014, 2015 e 2016, relativamente aos testes de controlo às quantidades de produtos.

Na decisão de revisão de 18/06/2018 (consta a fls.21 do anexo instrutor), é referido pelo Sr. Director de Finanças, nomeadamente e, entre o mais, que: «…se o contribuinte, por cada operação efectuada, emitisse sempre uma consulta de mesa, não existindo quaisquer outros indícios de omissão de facturação, poderíamos efectuar correcções meramente aritméticas dado que nessa circunstância seria possível concretizar e aferir directamente os valores omitidos. Mas, no caso em análise, não foi isso que se verificou. Além de existirem outros indícios da omissão da facturação (…), de um total de 14.762, 13.965 e 21.215 documentos de facturação emitidos nos anos de 2014, 2015 e 2016, respectivamente, apenas foram emitidas 1.162 consultas de mesa em 2014, 383 no ano de 2015 e 1.833 no ano de 2016.
(…)
Antes de mais, há que referir que os testes por amostragem constituem um procedimento de auditoria que é aplicável a menos de 100% dos itens de uma rubrica de demonstrações financeiras (…)
(…)
De facto, atendendo aos quadros constante do Capítulo IV, verificamos que foram apuradas divergências bastante acentuadas nalguns produtos/ anos, como sejam por exemplo, o café no ano de 2015, em que se verificaram apenas registos de cerca de 50% das unidades consumidas, da imperial no ano de 2014 em que o registo de unidades (convertidas em litros) vendidas representam apenas 46% das consumidas, assim como o tamboril em 2016, cujas doses vendidas representaram apenas 23,60% das doses consumidas. Refira-se que o contribuinte não justificou as divergências apuradas aquando do direito de audição, do pedido de revisão ou mesmo aquando da reunião dos peritos, na pessoa do seu perito.
(…)
(…) se considerarmos que alguns dos produtos testados, como sejam as bebidas e sobremesas, estão geralmente associados ao consumo de refeições, ao concluirmos pela omissão de vendas dos mesmos, consequentemente também estaremos perante omissões de registo de refeições, verificando-se, por isso, um descrédito do volume de negócios declarado pelo S.P. Além de que, no que respeita às divergências apuradas no “bacalhau”, “tamboril” ou “novilho”, nunca poderemos aferir em que “pratos” foram utilizados. Perante esta situação, não há qualquer possibilidade de a AT quantificar directamente o volume de negócios omitido (…)».

Acompanhando a linha expositiva do recente ac. deste TCAS, de 10/19/2023, proferido no proc.º 20017/16.2 BCLSB, que sobre o tema do recurso a métodos indirectos se debruçou, «…haverá que apelar, desde logo, ao art.º 81.º da LGT, nos termos do qual:

“1 - A matéria tributável é avaliada ou calculada diretamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder a avaliação indireta nos casos e condições expressamente previstos na lei”.

Por seu turno, o art.º 83.º do mesmo diploma determina que:

“1 - A avaliação direta visa a determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação.

2 - A avaliação indireta visa a determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha”.

A avaliação direta tem como ponto de partida as declarações dos contribuintes e/ou os dados apurados na sua contabilidade, que se presumem verdadeiros – cfr. o art.º 75.º, n.º 1, da LGT. No entanto, como decorre do mesmo art.º 75.º, mas do seu n.º 2, a presunção de veracidade da contabilidade cessa quando revelar “… omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo”.

Veja-se, não obstante, que não é qualquer omissão, erro ou inexatidão das declarações ou da contabilidade do sujeito passivo que justifica o recurso a métodos indiretos de avaliação da matéria coletável, sendo exigido que tais irregularidades sejam de tal forma relevantes que tornem inviável a quantificação direta.

Assim, se, apesar de haver irregularidades contabilísticas, for possível quantificar diretamente a matéria coletável, deve-se lançar mão de métodos diretos. Ou seja, sendo certo que a avaliação direta parte das declarações dos contribuintes ou dos dados constantes da contabilidade, pode fundar-se noutros elementos objetivos, desde que os mesmos permitam, com segurança, concluir no sentido da ocorrência do facto tributário e da sua quantificação concreta.

A aplicação de métodos diretos de avaliação da matéria coletável redunda nas chamadas correções técnicas ou meramente aritméticas.

Apelando às palavras de Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2009, p.389. “as correcções técnicas, são as correcções que a administração tributária faz à matéria tributável determinada no âmbito da avaliação directa, como a correcção concretizada, por exemplo, na não consideração de determinadas verbas como custos fiscais assim qualificadas na declaração de rendimentos (…) [;] (…) as correcções aritméticas ou correcções meramente aritméticas, têm lugar quando a administração tributária se limita a corrigir erros de cálculo das declarações-liquidações”.

Já a avaliação indireta deverá ocorrer apenas nos casos previstos nos artigos 87.º a 89.º da LGT.

Para que seja legítimo o recurso à tributação por via dos métodos indiretos, cabe à administração tributária (AT) o ónus da prova de que se reúnem os pressupostos da sua aplicação, consubstanciando­-se tal ónus probatório na demonstração da existência de situações fáticas, designadamente irregularidades contabilísticas, que assumam alcance tal que impossibilitam o recurso a métodos diretos de avaliação.

Assim, nos termos do art.º 87.º da LGT (redação à época):

“A avaliação indireta só pode efetuar-se em caso de:

(…) b) Impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável”.

A situação prevista na alínea b) supratranscrita remete-nos para o art.º 88.º da LGT, nos termos do qual:

“A impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata da matéria tributável para efeitos da aplicação de métodos indiretos, referida na alínea b) do artigo anterior, pode resultar das seguintes anomalias e incorreções quando inviabilizem o apuramento da matéria tributável:

a) Inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais”.

Inerente às próprias caraterísticas da avaliação indireta, o legislador criou um procedimento próprio de reação à mesma, como resulta do disposto no art.º 86.º da LGT. Assim, se as liquidações de imposto decorrentes da avaliação direta são suscetíveis de impugnação direta (cfr. art.º 86.º, n.º 1, da LGT), já quando haja recurso a métodos indiretos a situação é distinta. Com efeito, estando em causa o erro na quantificação ou nos pressupostos, é exigido que se desencadeie o procedimento de revisão previsto no art.º 91.º da LGT, procedimento esse de cariz sobretudo pericial.

Logo, quando se verificarem os pressupostos de recurso à avaliação indireta é possível o recurso a métodos presuntivos de determinação da matéria coletável, surgindo como mecanismo de reação contra a fraude e evasão fiscal, dando resposta, por esta via, à incumbência do Estado, prevista no art.º 81.º, al. b), da CRP. [segundo o qual “[i]ncumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social: (…) b) Promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal”].

O recurso a estes meios de avaliação não é discricionário, como se conclui do que vimos expondo: estão legalmente definidas, de forma circunscrita, as situações em que é admissível à AT a sua utilização. Ademais, a presunção de rendimento que venha a funcionar é ilidível, podendo o contribuinte, desde logo, demonstrar o excesso na quantificação.

Portanto, e em suma, o nosso ordenamento prevê que a avaliação da matéria tributável se possa realizar direta ou indiretamente, sendo que o recurso à avaliação indireta funciona como última ratio, só podendo ocorrer quando se revele impossível o recurso à avaliação direta. Posto isto, o recurso a uma ou outra das formas de avaliação não é uma opção arbitrária da AT: ou se verificam condições para a avaliação direta ou, não existindo, nos termos já assinalados supra, é possível recorrer à avaliação indireta» (fim de cit.).

Transpondo estes considerandos para os autos, tendo em conta que as consultas de mesa representam uma percentagem muito diminuta da facturação (cf. ponto alterado ponto 17. do probatório e decisão de revisão), ou seja, foram emitidas muito mais facturas que consultas de mesa, a circunstância de numa pluralidade de casos da amostragem não se ter constatado a associação de qualquer factura à consulta de mesa não se apresenta impeditivo do recurso à avaliação directa, na medida em que bastaria à Administração tributária considerar como omissão à facturação o valor correspondente à consulta de mesa.

Com efeito, se o contribuinte numa das justificações que apresenta, diz que haveriam consultas de mesa não facturadas, nomeadamente, porque os clientes saiam sem pagar, claramente esta situação, na falta de melhor prova, equivale a omissão de factura, quantificável por via directa com base no valor constante da consulta de mesa.

Não estaríamos, pois, perante fundamento válido de recurso a métodos indirectos.

Sucede, porém – e isto foi completamente ignorado na sentença recorrida – , que a AT foi mais longe no procedimento de auditoria, tendo constatado, por amostragem, que quantidades adquiridas de determinados produtos como café, barril/ imperial, somersby, bacalhau, tamboril, novilho e gelados (existências iniciais + compras = existências finais) apresentam desajustamentos consideráveis face às quantidades vendidas do mesmo produto (nestas se incluindo autoconsumos internos e uma percentagem para perdas).

Ora, relativamente a estes desajustamentos, o impugnante nenhuma explicação concreta e credível apresentou, tendo ficado por justificar os desajustamentos constatados nas quantidades anuais adquiridas e vendidas dos produtos testados.

E estando em causa diferenças muito consideráveis nas quantidades adquiridas/ quantidades vendidas, à falta de melhor explicação para o destino das mesmas, que ao contribuinte cabia fornecer, tal constitui um indicador credível e seguro de que foram consumidas no processo produtivo originando vendas não facturadas. E estas, tanto quanto alcançamos, não são quantificáveis por via directa, desde logo pela razão que o Sr. Director de Finanças aponta na decisão de revisão e que é o desconhecimento do prato do cardápio do restaurante em que o produto foi consumido (arroz de tamboril/ cataplana de tamboril; bife à casa/ bitoque/ espetada/ T-Bone; bacalhau à chefe/ bacalhau à Braga/ bacalhau à lagareiro/ cataplana de bacalhau…).

Com este fundamento, é de validar o recurso a métodos indirectos de quantificação da matéria tributável, nos termos conjugados dos artigos 87.º, n.º 1 alínea b) e 88.º da Lei Geral Tributária.

A sentença recorrida, que decidiu diferentemente, incorreu no apontado erro de julgamento, sendo de revogar e conceder provimento ao recurso.

Em vista da solução dada ao litígio, a sentença recorrida deu por prejudicado o conhecimento da questão do erro de quantificação, que importará conhecer, em substituição, dada a procedência da apelação (cf. art.º 665/2 do CPC).

Determina o art.º 74.º, n.º 3 da LGT que «Em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação».

Sobre esta matéria, mostra-se de há muito estabilizado na jurisprudência do Supremo do Tribunal Administrativo o entendimento de que «A tributação por métodos indirectos, visando, embora, o lucro real, tem em vista o presumido, alcançado mediante índices, e só por mera coincidência pode apurar uma matéria colectável igual à que resulta da contabilidade da contribuinte, julgada não reveladora da sua real situação e, portanto, imprestável para servir de base à tributação» e que «Não logrando o contribuinte provar a existência de tal excesso, nem se afigurando evidente para o Tribunal que o alegado excesso na quantificação resulte das regras da experiência comum ou que seja manifesto, notório ou ostensivo, é de manter o “quantum” tributável fixado pela AF, desde que devidamente fundamentado» – vd. acórdãos do alto tribunal, de 06/29/2004, proc.º 0471/04 e de 09/21/2011, proc.º 0537/11.

E como se fez constar do ac. deste TCAS, de 09/30/2020, tirado no proc.º 961/14.2BELLE, «No âmbito da avaliação indirecta, recai sobre a AT o dever de fundamentar os critérios utilizados na quantificação do valor tributável. Na perspectiva do erro na quantificação, as insuficiências no método são sempre substanciais, isto é, devem evidenciar um excesso de quantificação. Não é pelo facto de no método de quantificação não se levar em conta este ou aquele item que fica demonstrado o erro na quantificação, a não ser que resulte manifesto, evidente, que o critério usado conduziu a apuramento de matéria colectável claramente excessiva».

Ora, compulsados o probatório, do mesmo não se apreende qualquer facto que comprometa a credibilidade do método e do resultado da quantificação determinada por via indirecta.

Pelo contrário, é o próprio impugnante, ora Recorrido, que afirma na P.I. que por via da quantificação indirecta a AT estimou um rácio de margem bruta para o ano de 2016 de 68,34%, “…apenas 0,74% superior ao declarado…, diferença que nem deveria ter dado azo a qualquer correcção.”.

Não resultando demonstrado qualquer excesso assinalável na quantificação da matéria tributável, há que julgar improcedente este fundamento da impugnação judicial.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da Subsecção Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
i. Indeferir o pedido de anulação do despacho do Relator que ordenou a audição das partes nos termos e para efeitos do disposto no art.º 665/3 do CPC;
ii. Conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida;
iii. Conhecendo em substituição, julgar a impugnação improcedente.

Condena-se o Recorrido em custas.


Lisboa, 19 de Dezembro de 2023


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Vital Lopes


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Luísa Soares


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Tânia Meireles da Cunha