Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:23/17.0BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:05/07/2020
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:IRC
PROVISÕES
COBRANÇA DUVIDOSA
ATIVIDADE DA EMPRESA
PRUDÊNCIA
Sumário:I - É regulamentada, como regra geral, no artigo 23.º, nº1, alínea h), do CIRC a dedutibilidade fiscal das provisões. Regra essa que, contudo, sofre as limitações qualitativas consignadas no artigo 33.º, e do ponto de vista quantitativo as restrições contempladas nos artigos 34.º a 36.º do citado diploma legal.
II - Quanto à atividade normal da empresa é entendido que a mesma está relacionada com o objeto social da empresa, de acordo com o descritivo do pacto social e respetiva Classificação da Atividade Económica (CAE), porquanto atividade normal abrange os atos que permitem a realização direta ou indireta do objeto da sociedade.
III - Se do probatório não resulta demonstrado o nexo entre o crédito visado e a atividade da empresa, ou seja, se não resulta provado porque motivo foram emitidos os cheques visados, a razão dos mesmos terem sido emitidos em nome da sociedade e bem assim a ratio do seu desconto junto da instituição bancária, não resulta preenchido o requisito basilar consignado no citado artigo 33.º, nº1, alínea a), do CIRC, ou seja, relação com a atividade normal da empresa, estando, assim, legitimada a correção realizada pela Administração Tributária.
IV - A integração de um grau de precaução nas contas não pode traduzir/materializar a criação de reservas ocultas ou provisões excessivas ou a propositada quantificação de ativos e proveitos por deficit ou de passivos e custos por excesso.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO


I-RELATÓRIO

A sociedade “C….., LDA” veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, a qual julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e respetivos Juros Compensatórios (JC) do exercício de 1992, no valor total de €133.442,85.

A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação apresentada contra a liquidação adicional de IRC relativa ao ano de 1992, com o n.º …..838, de que resultou imposto a pagar no montante de 93.263,07 €, acrescido de derrama no valor de 8.478,46 € e 40.179,78 € a título de juros compensatórios.

B. A Recorrente considera que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, discordando do enquadramento jurídico resultante da valoração que dos factos provados foi efetuada e, em assim, da decisão perfilhada pelo Tribunal a quo.

C. Da matéria assente na sentença recorrida resulta provado:

a) A existência de 3 (três) cheques emitidos pelo cauteleiro revendedor ambulante de lotarias J….. à Recorrente;

b) A titularidade da Recorrente nos referidos cheques

c) A entrega dos cheques no momento do levantamento dos bilhetes como garantia do bom cumprimento do trato, como «vale», até elaboradas as contas;

d) A apresentação dos cheques foram a pagamento, tendo os mesmos sido devolvidos por falta de provisão.

D. A luz dos factos que deu como provados não podia o Tribunal a quo decidir, como fez, em evidente oposição com eles, considerando que os cheques foram emitidos à ordem da Recorrente fora do âmbito da sua atividade.

E. O próprio Digno Magistrado do Ministério Público concluiu em douto parecer que se deve concluir que a emissão dos cheques se enquadrou na atividade normal da Recorrente, sendo a provisão legítima.

F. É de facto manifesta e evidente a caracterização das obrigações que ocasionaram a emissão dos cheques, estando esta relacionada com o trato comercial existente entre a Recorrente e o cauteleiro.

G. A jurisprudência assente entende que a contabilidade é eleita como o sustentáculo primeiro e potencialmente decisivo para o apuramento, a determinação, do lucro tributável. Por outro lado, a dedutibilidade dos custos exige, além, do mais, a respetiva comprovação, a qual, regra geral, deve assentar em documentos justificativos de origem externa.

H. O que se reflete, sem margem para dúvidas, no caso da Recorrente, atendendo à existência de documentos externos justificativos que se consubstanciam nos cheques emitidos pelo cauteleiro.

I. O que, efetivamente se verifica, no caso em apreço, através dos cheques emitidos pelo cauteleiro, os quais são inequivocamente documentos justificativos de origem externa, sem qualquer margem para dúvidas.

J. Efetivamente, os cheques têm uma relação causal e justificada com a atividade produtiva da Recorrente, atendendo ao facto de terem sido entregues à Recorrente como garantia do bom cumprimento do trato entre esta e o cauteleiro.

K. Não se vislumbra a possibilidade de apurar outra razão, senão a atividade de vendedor ao serviço da Recorrente, que levaria um cauteleiro a emitir e entregar à Recorrente cheques no valor de 47.216.077 Escudos (quarenta e sete milhões, duzentos e dezasseis mil, e setenta e sete escudos).

L. Resulta também da jurisprudência assente que o documento comprovativo e justificativo dos custos em sede de IRC, não tem de assumir as formalidades essenciais exigidas para as faturas em sede de IVA, uma vez que a exigência de prova documental não se confunde nem se esgota na exigência de fatura, bastando tão só um documento escrito.

M. A AT ao desconsiderar a provisão constituída pela Recorrente, sem demonstrar a factualidade em que se baseava para chegar à conclusão que os cheques emitidos por um cauteleiro, que presta serviços à Recorrente, e que foram devidamente inscritos na contabilidade não se enquadram no âmbito da sua atividade.

N. A AT, ao atuar deste modo, violou expressamente o princípio da declaração e da veracidade da escrita vigente no nosso direito conforme artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

O. Neste sentido, a doutrina e jurisprudência assente consideram que a AT está onerada em demonstrar a factualidade que a levou a desconsiderar certos custos contabilizados, prejudicando assim a presunção de veracidade das operações inscritas na contabilidade da recontente e dos respetivos documentos de suporte de que aquela goza, em homenagem ao princípio da declaração e da veracidade da escrita vigente no nosso direito.

P. Extraindo dos factos considerados provados conclusões opostas ao que deles resulta o Tribunal a quo incorre inevitavelmente em erro de julgamento, devendo a sentença recorrida ser revogada e o ato de liquidação adicional ser consequentemente anulado.

Q. A interpretação que AT parece preconizar da alínea a) do n.º 1do artigo 33.º do Código do IRC, na sua redação em vigor à data dos factos, no sentido de este permitir que os valores inscritos como incobráveis e a correspondente provisão contabilizada sobre cheques sem provisão, não sejam dedutíveis para efeitos fiscais, realizados no âmbito da atividade da Recorrente, mostra-se inconstitucional, por violação do direito das empresas da Tributação pelo Lucro Real, nos termos que este verte do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa, o que desde já se argui para todos os efeitos legais.

R. A liquidação de juros compensatórios apenas seria possível se se considerasse que é devido o imposto em crise, o que já vimos não poder justificar-se ou ter qualquer base legal.

S. Não se verifica o nexo de causalidade adequada entre a atuação do contribuinte e o retardamento da liquidação nem a censurabilidade, a título de dolo ou negligência, da conduta do contribuinte.

T. Não deverá ser imputada responsabilidade por juros compensatórios caso o atraso na liquidação e o respetivo reembolso de recebimento alegadamente indevido seja provado pela conduta do contribuinte e seja errónea a sua posição, mas ele tenha atuado de boa-fé e o erro seja desculpável.

U. A liquidação de juros compensatórios de que a Recorrente foi alvo é absolutamente ilegal, por erro dobre os pressupostos de facto e de direito da imputação da responsabilidade por juros compensatórios e deve ser anulada.

Termos em que o presente recurso deve ser julgado procedente e em consequência a sentença recorrida ser revogada, tudo com as devidas consequências legais, designadamente, a anulação da liquidação adicional de IRC, derrama e juros compensatórios e o pagamento de juros indemnizatórios sobre os montantes indevidamente pagos. Só nestes termos será respeitado o DIREITO e feita JUSTIÇA”


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A Recorrida optou por não apresentar contra-alegações.

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A Digna Magistrada do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

1. A Impugnante, C….., Lda, dedica-se ao comércio de lotarias, títulos, cupões, metais precisos, moedas, câmbio de divisas [lotaria, totobola, totoloto CAB 959950].

2. Em 7 de março de 1986 faleceu o respetivo sócio-gerente, J….., que possuía à sua guarda, no cofre da sociedade, o cheque n°….., sacado sobre a União de Bancos Portugueses, titulando 5.850.000$00, o cheque n°….. sacado também sobre aquele banco e titulando 36.566.077$00, e o cheque n°….., sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, titulando 4.800.000$00, todos emitidos pelo cauteleiro revendedor ambulante de lotarias J….. à ordem da Impugnante e datados, o primeiro, de 18 de fevereiro de 1986, e de 6 de março de 1986 os outros dois.

3. Tais cheques haviam sido apresentados a pagamento, respetivamente, a 26 de fevereiro de 1986, a 10 de março de 1986 e a 11 de março de 1986, mas todos haviam sido devolvidos por falta de provisão.

4. Em 10 de abril de 1986 a Impugnante denunciou criminalmente o citado J….., o que deu origem ao processo de querela n°792/86, que correu termos perante a 8ª Vara Criminal de Lisboa, pela emissão dos cheques que se revelarem não ter provisão nos bancos sacados, no âmbito da qual o seu emitente foi julgado «à revelia» como autor de três crimes de emissão de cheque sem provisão [segundo o então previsto nos arts. 23º e 24º do Decreto-Lei 13.004 de 12 de janeiro de 1927, na redação conferida pelo Decreto-Lei 400/82 de 23 de setembro, que introduziu o atual Código Penal], e como tal condenado, por sentença de 7 de novembro de 1994, numa pena de prisão de cúmulo, bem como a indemnizar a Impugnante na medida das quantias inscritas nos cheques, na dos juros vencidos desde a data da dedução do pedido cível enxerto naqueles autos e ainda na medida dos que viessem a vencer­ se ainda até integral pagamento.

5. A outra das ações foi de natureza cível, intentada em data não apurada, mas do ano de 1993, a qual tomou o n°52/93 perante o 17° Juízo Cível 1ª Secção do Tribunal de comarca de Lisboa, na qual terá sido invocado um contrato de compra e venda, a qual foi contestada pelo mencionado J….., que negou esse contrato, expondo que apenas revendia bilhetes de lotaria que obtinha junto da Impugnante, ganhando em função das percentagens atribuídas aos revendedores pelos títulos vendidos ao público e devolvendo-lhe os bilhetes que não vendesse, passando a partir de determinada data a entregar um cheque no momento do levantamento dos bilhetes, que não era para pagamento, antes ficava na posse da Impugnante como garantia do bom cumprimento do trato, como «vale», até que fossem elaboradas as cantas, depois de apurados os montantes a atribuir a cada um, Impugnante e cauteleiro, aquando da conclusão da venda dos bilhetes levantados da última vez e assim sucessivamente.

6. De todo o modo, dado o arrastar dos mencionados processos, em 1992 a Impugnante decidiu constituir uma provisão pelo valor titulado nos cheques, para acautelar a sua provável incobrabilidade final.

7. Em ação inspetiva, no respetivo relatório final, de 29 de setembro de 1995, a Administração Tributária desconsiderou aquela provisão e propôs que acrescesse, no quadro 17 da declaração de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, modelo 22,para o ano de 1992, o valor provisionado, com fundamento em que não eram dedutíveis para efeitos fiscais os seus 47.216.077$00, uma vez que não havia base documental sobre a ou as operações subjacentes àqueles créditos incobrados e, assim, não era possível aferir da sua conexão real com a atividade da empresa da Impugnante, demonstração essa de que os cheques já referenciados, por si sós, não eram capazes.

8. Antes disso, porém, instada a exibir à Inspeção a causa da provisão, a Impugnante concluíra num primeiro momento [não havendo documentação na sua contabilidade sobre tanto] que os cheques não respeitariam à sua atividade, dando disso nota, em 22 de abril de 1994, à ação inspetiva, do mesmo passo que a informavam de que os herdeiros do falecido gerente supra-mencionado entendiam o contrário, o que haviam expressado em ação que entre si e aqueles decorria em Tribunal Arbitral.

9. Mais tarde, em 23 de outubro de 1995, a Impugnante informou a Inspeção daquelas ações judiciais acima referidas, como demonstração de que, afinal, a emissão e titularidade dos cheques com relação com a sua atividade normal sempre existira.

10. Aprovadas as supra-elencadas conclusões inspetivas, a 29 de dezembro de 1995 foi elaborado o mapa de correções e apuramento.

11. Com base nisso, a Administração Tributária elaborou à Impugnante, em 5 de julho de 1996, o que lhe notificou a 26 desse mesma liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas relativa ao ano de 1992, com o nº…..838, de que resultou imposto a pagar no montante de 18.697.567$00 - ao invés do reembolso que resultara da liquidação originária -, a que acresceu ainda derrama no valor de 1.699.779$00 e 8.055.322$00 a titulo de juros compensatórios, tendo o prazo de pagamento termo a 28 de agosto de 1996.

12. Disso notificada, a 22 de novembro de 1996 a Impugnante reclamou graciosamente daquela liquidação, a que coube na Repartição de Finanças do 3° Bairro de Lisboa o n°….., a qual viria a ter decisão de indeferimento de 19 de março de 1998, com fundamentação equivalente à que assistira à correção subsequente à proposta do relatório inspetivo.

13. E, notificada daquela decisão a 26 desse mês, dela recorreria a Impugnante hierarquicamente a 24 de abril de 1998, procedimento este que tomou o nº ….. na Direção-Geral dos Impostos, o qual teve decisão de indeferimento de 12 de setembro de 2002, do Exmo. Sr. Subdiretor-Geral dos Impostos, uma vez mais com fundamentos equivalentes aos já acima referidos, da ação inspetiva, que tinham sustentado a correção do provisionamento.

14. Notificada dessa decisão a 4 de outubro de 2002, no dia 28 de novembro seguinte apresentou a Impugnante a petição na origem dos presentes autos.


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A decisão recorrida fixou como factualidade não provada o seguinte:

Não há outros factos provados, que relevantes sejam para a apreciação da causa.

Com essa pertinência, contudo, não resultou já provado:

1. Qual a operação ou quais as operações subjacentes à emissão e entrega, à Impugnante, dos três cheques, pelo citado cauteleiro revendedor ambulante, tal como referido na matéria de facto provada.

2. Qual a relação dessa ou dessas operações com a atividade normalmente estabelecida entre a Impugnante e o cauteleiro mencionado na matéria de facto provada, emitente dos três cheques aí discriminados.

3. Que tenha chegado a haver uma decisão final de mérito, proferida na ação cível mencionada na matéria de facto provada.

4. Que a decisão penal referida na matéria de facto provada tenha identificado e fixado algum facto, fosse ele um ato ou um negócio, em consequência do qual ou em execução de cujas prestações, penalidades, obrigações acessórias, etc., o ali réu J….. emitira algum dos cheques à Impugnante.

5. Que a decisão penal referida na matéria de facto provada contenha, sequer, em que se traduziu, concretamente, o tal «prejuízo patrimonial» advindo da não perceção dos montantes titulados nos cheques.


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A decisão recorrida consignou como motivação da matéria de facto o seguinte:

“O Tribunal formou a sua convicção através da análise do teor do processo administrativo adjunto, que contém os elementos do procedimento inspetivo, com a documentação apresentada pela Impugnante, bem com o respetivo relatório final e mapa de correção. E, bem assim, fundou-se na análise da reclamação graciosa e subsequente recurso hierárquico, seus termos, atos e decisões e comunicações [a última delas, como resulta do inicialmente recenseado, de fls.188-190, mas destes autos], os quais igualmente se mostram adjuntos ao processo administrativo. Teve-se ainda em conta o teor da denúncia mencionada, constante da certidão de fls.5-9 destes autos.

Na medida em que a fidedignidade de tal documentação não foi posta em causa, nem suscita dúvidas acerca da correspondência das cópias que contém com os originais, mereceu ser suporte demonstrativo dos factos nela contidos, nos termos em que lho reconhecem os arts.373°nº1, 374° e 376°nº1 do Código Civil, quanto à documentação de origem privada e, a proveniente da própria Administração Tributária ou dos processos judiciais, em face do que estatuem os seus arts.369°nº1, 371°nº1, em conjugação, ainda, com a força probatória que àquela reconhece o art.34°n°2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Cumpre referir que a matéria de facto provada é consensual, apesar de a partir dela as partes extraírem conclusões opostas.

Os factos que mereceram um juízo negativo sobre a sua ocorrência ou sobre a sua definição e concretização exatas tiveram essa judicação devido à total ausência de prova de tanto, os dos pontos 1.-3.desta secção. Com efeito, se quanto ao consignado no ponto 3. o juízo negativo assenta numa ausência chã de prova, sem necessidade de outra motivação judicativa, sobre aqueles primeiros dois pontos cumpre dizer algo mais. Quanto aos factos dos pontos 1.-2., além da falta de prova, ao invés do que propugna a Impugnante, o facto de ter tido um trato continuado com o tal cauteleiro vendedor ambulante de bilhetes de lotaria não conduz a que possa daí concluir-se, como que por necessidade, que os factos subjacentes à emissão, por ele, dos três cheques, se inseriam outrossim nesse mesmo trato. Por uma parte, nada obsta a que tenham tido uma qualquer outra causa, mesmo que ainda adentro da atividade e objeto social da Impugnante, o que todavia também não resultou provado. Por outra, ao contrário do entendimento perfilhado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, e s. m. o., precisamente em razão do que a Impugnante invoca, de que fora no âmbito dessas mesmas relações normais com o cauteleiro que recebera os cheques-para cumprimento, portanto, de certas e determinadas obrigações pecuniárias -, justamente porque a função que serve o que seja um título de crédito como os aqui em causa é o pagamento imediato à apresentação, mal se compreende então como é tão evanescente e incerta a caracterização (mesmo a que é invocada) do que tenha sido a causa concreta, ou as causas concretas da emissão dos cheques. Donde que a presunção de que a relação subjacente residiu no contexto de atividade normal da Impugnante não possa ter-se por algum modo assente, não só em face do assinalado vazio probatório, como máxime segundo as regras da experiência, que ensinam que os tratos constantes que envolvem valores avultados e são objeto da atividade lucrativa de uma organização (lembre-se que nomeadamente o jogo está sujeito a um conjunto apertado de normas legais de controlo), como a uma certa álea no resultado operacional final em que são, ainda, envolvidos terceiros exteriores à própria organização, simultaneamente envolvem a documentação clara, precisa e pronta não só das relações em execução, como o arquivo das relações pretéritas, por mor da segurança, certeza e até da fiabilidade e honorabilidade dos intervenientes. Assim, se normalmente adentro da atividade da Impugnante, maxime no seu trato com o referido cauteleiro, como invoca, então mais fácil e evidente seria, dir-se-ia, a identificação das concretas obrigações em causa, nomeadamente através de documentação, ainda que ela fosse irregular, ou imperfeita ou até aqui e ali lacunosa, mas de todo modo evidenciando com pelo menos mediana certeza a origem da causa da emissão dos cheques. Não tendo logrado demonstrar quais fossem essas obrigações, o que lhe incumbia por tê-las feito inscrever na sua contabilidade através da constituição da provisão questionada - ou seja, recaindo sobre si o ónus de demonstrar o direito ao abatimento que ela provoca na matéria tributável, arts.342°nº1 do Código Civil e 33°nº1 corpo e alínea a) 71°nº1 corpo e alínea a), 94°nº1 corpo e alínea b), estes do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas coevo à constituição da provisão, cfr. hoje o disposto n art.74°nº 1 da Lei Geral Tributária -, forçoso se mostra ter de se concluir pela conclusão probatória de falta de prova da caraterização das obrigações que hajam ocasionado a emissão dos cheques. Já os factos consignados como não provados sob os pontos 4.-5. desta secção ficaram a dever esse juízo negativo à prova oposta, de que não teve lugar essa caraterização no âmbito do processo penal. Com efeito, uma leitura ainda que distraída da sentença penal basta para se tornar evidente o seu vazio fático quanto à relação subjacente à emissão dos cheques. A única relevância que pode atribuir-se-lhe neste âmbito é a já consabida titularidade legítima dos cheques pela Impugnante, de resto a entidade à ordem de quem foram emitidos, neles mesmos já expressamente plasmada, tanto mais que não foram objeto de prévio endosso a outrem, nem muito menos emitidos ao portador. Mas tal nunca foi questionado. Mesmo o «mais se provou» dos factos julgados provados da sentença em causa, no que toca o tal «prejuízo patrimonial» - [de forma desde logo processualmente muito questionável e aqui irrelevante] introduzido visivelmente para atender às alterações legislativas que tinham sobrevindo sobre a descrição do tipo legal do crime de emissão de cheque sem provisão, que passou a constar do art.11° do Decreto-Lei 454/91 de 28 de dezembro com um enunciado mais restritivo e exigente, que revogou a legislação que vinha dos anos 20 do séc. XX, e é aliás citado na decisão aquando da comparação de regimes sucessivos -, mesmo o tal «prejuízo patrimonial» dizíamos, é vazio de uma qualquer indicação e concretização de factos provados que o consubstanciem e evidenciassem a relação subjacente à emissão dos cheques. Não consegue a sentença, nesse segmento, atingir outro patamar significativo além do truísmo de que quem não obtém bom pagamento do título fica privado do respetivo montante, sem que isso traga alguma luz sobre a causa da sua emissão, muito menos a inscreva no contexto da atividade da Impugnante. Portanto, também por aqui não pudemos deixar de julgar não provado o conteúdo ora em apreço.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de IRC do exercício de 1992, e respetivos juros compensatórios.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se ocorre o apontado erro de julgamento sobre a matéria de facto arguido pela Recorrente no sentido de resultarem assentes todos os elementos que permitem concluir pela dedutibilidade fiscal das provisões contabilizadas e, com base nesse julgamento, se deve ser revogada a sentença na medida em que, por virtude desse erro, conclui pela falta de subsunção e cumprimento dos requisitos constantes no artigo 33.º, nº1, alínea a), do CIRC.

Vejamos.

A Recorrente defende que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, discordando do enquadramento jurídico resultante da valoração que dos factos provados foi efetuada e, naturalmente, da decisão perfilhada pelo Tribunal a quo.

Concretiza, neste particular, que estando assente:

- A existência de três cheques emitidos pelo cauteleiro revendedor ambulante de lotarias J….. à Recorrente;

- A sua titularidade na esfera da Recorrente;

- A entrega dos mesmos no momento do levantamento dos bilhetes e como garantia do bom cumprimento do trato, e enquanto “vale”,

- E a subsequente devolução por falta de provisão;

Então, a conclusão que se impunha retirar era, tão-só, a de que os cheques foram emitidos à ordem da Recorrente e no âmbito da sua atividade, logo a provisão contabilizada no valor de €235.512,79 (Esc. 47.216.077) teria de ser dedutível em termos fiscais.

Mais aduz que, in casu, é manifesto que as obrigações que ocasionaram a emissão dos cheques, se encontra inteiramente relacionada com o trato comercial existente entre a Recorrente e o cauteleiro, estando a aludida realidade suportada em documentos externos consubstanciados nos cheques emitidos pelo cauteleiro.

Conclui, assim, que tendo a Administração Tributária desconsiderado a provisão constituída pela Recorrente, sem demonstrar a factualidade em que se baseava para chegar à conclusão que os cheques emitidos por um cauteleiro, que presta serviços à Recorrente, e que foram devidamente inscritos na contabilidade não se enquadram no âmbito da sua atividade, violou expressamente o principio da declaração e da veracidade da escrita vigente no nosso direito conforme artigo 75.º da LGT.

Termina sustentando que a interpretação preconizada pela Administração Tributária e atendida na decisão recorrida mostra-se inconstitucional, por violação do direito das empresas da Tributação pelo Lucro Real, nos termos do artigo 104.º da CRP.

Aduz, in fine, e no concernente à liquidação de juros compensatórios que não se verifica o nexo de causalidade adequada entre a atuação do contribuinte e o retardamento da liquidação nem a censurabilidade, a título de dolo ou negligência, da conduta do contribuinte, devendo, por isso, ser anulada.

Apreciando.

O Tribunal a quo fundamentou a improcedência da seguinte forma:

“[s]ob a invocação do disposto no art.33.° nº 1 corpo e alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas na versão de então, concluindo-se que os créditos não tinham evidência documental e, portanto, não se sabia da sua atinência à atividade normal da Impugnante.”

Concretizando que “Resulta dos factos que a Impugnante constituiu a provisão no exercício de 1992, pelos valores totais titulados nos cheques que haviam sido devolvidos por falta de provisão no ano de 1986”, sendo que a Administração Tributária “[a]o deparar-se com tal, apesar de ter indagado e pedido, e bem, no decurso da ação inspetiva, saber da documentação justificativa da constituição da provisão, tudo que pôde reunir foi os cheques que, na sua literalidade e abstração vazios da causa da sua emissão, logicamente não puderam colmatar essa lacuna probatória. Assim, não pôde a Administração Tributária aceder à sua causa e, portanto, verificar a sua relação com a atividade da Impugnante, que·nem então, nem ao longo de todos estes anos, conseguiu reunir prova da causa da emissão dos títulos.”

Concluindo, assim, que “[q]uando a Administração Tributária procedeu à correção, anulando a provisão integralmente, com base nessa falta de prova de atinência com a atividade da Impugnante, procedeu de modo a repor o respetivo valor como integrando a formação da matéria tributável para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas do exercício de 1992, no que seguiu a disciplina prevista no art.33°nº 1 corpo e alínea a) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, a contrario, ou seja, a de não admissibilidade fiscal da frustração desses créditos ignotos como custo relevante para aqueles efeitos. E procedeu por isso com inteiro acerto.”

Apreciando.

A base de incidência do IRC encontra-se contemplada no artigo 3.º, do CIRC definindo-se, no seu nº 2, que o lucro tributável é resultante da “diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correções estabelecidas neste Código”.

Por sua vez, nos artigos 17.º e seguintes do CIRC estão contempladas as regras gerais de determinação do lucro tributável, especificando-se no artigo 23.º quais os custos que, como tal, devem ser considerados pela lei.

Dispunha, à data, o artigo 23.º, nº1, al. h) do CIRC, sob a epígrafe “Custos ou perdas”, que, consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente as provisões.

Mais preceituava o artigo 33.º, nº1, alínea a), do CIRC, sob a epígrafe de “Provisões fiscalmente dedutíveis” que:

“1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes provisões:

a) As que tiverem por fim a cobertura de créditos resultantes da atividade normal que no fim do exercício possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade”.

No concernente aos créditos de cobrança duvidosa encontrava-se contemplado no artigo 34.º, nº1, que:

“Para efeitos da constituição da provisão prevista na alínea a) do nº1 do artigo anterior, são créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade se considere devidamente justificado, o que se verificará, nos seguintes casos:

a) O devedor tenha pendente processo especial de recuperação de empresa proteção de credores ou processo de execução, falência ou insolvência;

b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente;

c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento”.

Resulta, assim, que é regulamentada, como regra geral, no citado artigo 23.º, nº1, alínea h), a dedutibilidade fiscal das provisões. Regra essa que, contudo, sofre as limitações qualitativas consignadas no evidenciado artigo 33.º, e do ponto de vista quantitativo as restrições contempladas nos artigos 34.º a 36.º do citado diploma legal.

Sendo que quanto à atividade normal da empresa é entendido que a mesma está relacionada com o objeto social da empresa, de acordo com o descritivo do pacto social e respetiva Classificação da Atividade Económica (CAE), porquanto atividade normal abrange os atos que permitem a realização direta ou indireta do objeto da sociedade.

Como doutrinado, no Aresto deste TCA, proferido no processo nº 133/17.4 BCLSB, datado de 05.06.2019, não obstante a lei não definir “o que são «créditos resultantes da actividade normal das empresas» (…) Parece, assim, evidente que, a expressão «actividade normal» têm de ser contextualizadas no objecto social da entidade, com base na respectiva Classificação Portuguesa de Actividade Económicas (CAE).”

De relevar, neste particular, que subjacente à constituição das provisões encontram-se os princípios do balanceamento dos custos com os inerentes proveitos, e da prudência, determinando, à data, o POC no seu ponto 2.9 que a mesma “deve respeitar apenas às situações a que estejam associados riscos e em que não se trate apenas de uma simples estimativa de passivo certo” (1).

Com efeito, o princípio da prudência “conduz à inserção nas contas de um determinado grau de precaução para fazer face a situações de incerteza, de tal forma que os activos e os resultados não sejam sobredimensionados.(2)”.

Conforme doutrina Rui Duarte Morais (3) a propósito da noção de provisão:

“As provisões são registos contabilísticos de verbas destinadas a fazer face a um encargo imputável ao exercício, mas de comprovação futura, ou já comprovado mas de montante incerto. Tal como uma pessoa cautelosa, quando confrontada com uma despesa previsível, põe antecipadamente de lado o dinheiro necessário para a satisfazer, também uma empresa previdente deve preservar certa fracção dos seus resultados para se precaver contra perdas que reputa de prováveis.”

Concretizando, ulteriormente, que a “[c]onsideração de uma provisão como custo de um determinado exercício dá tradução prática a dois dos sãos princípios da contabilidade: - o princípio da prudência (tomam-se em consideração, no apuramento dos resultados do exercício, os riscos previsíveis e as perdas eventuais derivadas de um facto nele ocorrido); - o princípio da especialização dos exercícios (imputa-se ao exercício em que o facto ocorreu o seu – ainda que só meramente possível – custo).

Em bom rigor, poder-se-á dizer na linha doutrinal de Teixeira Ribeiro (4) que a “[p]rovisão é uma conta em que se inscreve a verba destinada a fazer face a encargo imputável ao exercício, mas de comprovação futura, ou já comprovado, mas de montante indeterminado (…)”.

Feitos estes considerados vejamos, então, se a decisão recorrida incorre no erro de julgamento assacado pela Recorrente.

In casu, o fundamento que subjaz à correção realizada coaduna-se com a falta de demonstração de que os créditos se coadunam com a atividade normal da empresa.

Com efeito, e para concreta elucidação da aludida fundamentação importa convocar o teor do Relatório de Inspeção Tributária o qual fundava a correção da seguinte forma:

“ Provisão constituída no exercício de 1992 para créditos de cobrança duvidosa/créditos em contencioso, no montante de 47.216.077$00, referente à emissão de cheques sem provisão passados por J….. e encontrada na caixa do gerente da empresa que à data de Março de 1986 se suicidou e que da análise feita não correspondiam a movimentos derivados da actividade comercial da empresa, conforme informação obtida em tempos do contribuinte (anexos 1 a 3).

Deste modo, a referida provisão constituída terá de ser acrescida ao quadro 17 da declaração Modelo 22 do IRC, em virtude de não ser dedutível para efeitos fiscais, nos termos do nº1-alínea a) do artigo 33.º do CIRC.

De salientar que foi solicitado também ao contribuinte que nos enviasse fotocópias da facturação ou documentos equivalentes, que justificassem as operações em causa que estiveram na origem da constituição da aludida provisão.

Contudo, o contribuinte apenas nos enviou fotocópias dos cheques passados por J….. e da “certidão da sentença” (anexos. 4 e 5 fls. 1 a 3), o que, só por si, não prova se a dívida em causa resulta ou não da actividade normal da empresa”.

Ora, atentando na aludida fundamentação que subjaz às correções, ora, em contenda e cotejando-as com o recorte fático dos autos não procede o apontado erro de julgamento de facto que a Recorrente arguiu.

Senão vejamos.

Do recorte fático dos autos resulta que a Impugnante, ora Recorrente, se dedica ao comércio de lotarias, títulos, cupões, metais precisos, moedas, câmbio de divisas.

Mais dimanando que, aquando do falecimento do sócio gerente J….., a 7 de março de 1986, constatou-se que o mesmo possuía à sua guarda, no cofre da sociedade, o cheque n°…..471, sacado sobre a União de Bancos Portugueses, titulando 5.850.000$00, o cheque n°…..793 sacado também sobre aquele banco e titulando 36.566.077$00, e o cheque n°…..361, sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, titulando 4.800.000$00, os quais haviam sido emitidos pelo cauteleiro revendedor ambulante de lotarias J….. à ordem da Impugnante e datados, o primeiro, de 18 de fevereiro de 1986, e de 6 de março de 1986 os outros dois.

Resultando, outrossim, assente que tais cheques haviam sido apresentados a pagamento, respetivamente, a 26 de fevereiro de 1986, a 10 de março de 1986 e a 11 de março de 1986, e devolvidos por falta de provisão.

Do probatório resulta, igualmente, provado que foram interpostas duas ações contra o cauteleiro J….., concretamente:

Ø A 10 de abril de 1986, o processo nº 792/86, o qual correu termos perante a 8ª Vara Criminal de Lisboa, no âmbito do qual a, ora, Recorrente denunciou criminalmente J….., pela emissão dos cheques sem provisão, tendo o mesmo sido julgado “à revelia” como autor de três crimes de emissão de cheque sem provisão e como tal condenado, por sentença de 7 de novembro de 1994, numa pena de prisão de cúmulo, bem como a indemnizar a Impugnante na medida das quantias inscritas nos cheques, na dos juros vencidos desde a data da dedução do pedido cível enxerto naqueles autos e ainda na medida dos que viessem a vencer­se ainda até integral pagamento;

Ø Processo n°52/93, deduzido perante o 17.° Juízo Cível 1ª Secção do Tribunal de Comarca de Lisboa, com base na, alegada, existência de um contrato de compra e venda, a qual foi contestada pelo mencionado J….., tendo negado a existência do aludido contrato, e evidenciado que se limitava a revender bilhetes de lotaria que obtinha junto da Recorrente, cujo ganho era obtido em função do cálculo das percentagens atribuídas aos revendedores pelos títulos vendidos ao público e devolvendo-lhe os bilhetes que não vendesse, passando a partir de determinada data a entregar um cheque no momento do levantamento dos bilhetes, que não era para pagamento, antes ficava na posse da Impugnante como garantia do bom cumprimento do trato, como “vale”, até que fossem elaboradas as contas, depois de apurados os montantes a atribuir a cada um.

Tendo, assim, constituído em 1992 uma provisão pelo valor titulado nos cheques, a qual foi acrescida à matéria coletável na sequência da ação inspetiva realizada à Recorrente, por inexistência documental sobre as operações subjacentes àqueles créditos não, sendo, nessa medida, possível aferir da sua conexão real com a atividade da empresa.

Resultando, igualmente, provado que durante a ação de inspeção a Recorrente foi notificada para demonstrar e suportar, documentalmente, a causa da provisão e o seu nexo causal com a atividade, tendo a mesma afirmado, em 22 de abril de 1994, que inexistia qualquer documentação na contabilidade atinente aos cheques e que os mesmos não respeitavam à sua atividade.

E ulteriormente, concretamente, em 23 de outubro de 1995, que, afinal, a titularidade dos aludidos cheques tinha conexão com a atividade normal da empresa.

Ora, contrariamente ao evidenciado pela Recorrente da aludida factualidade não resulta comprovado o nexo entre o crédito visado e a atividade da empresa, desde logo, porque inexiste qualquer facto que ateste, objetivamente, que os aludidos cheques foram entregues à Recorrente no âmbito da sua atividade e como forma de “vale” e garantia de bom pagamento até encontro de contas.

Inversamente ao preconizado pela Recorrente em nenhuma das alíneas do probatório supra evidenciado se retira esse nexo de relação com a atividade da empresa. Com efeito, do probatório, em concreto, do ponto 5., resulta tão-só que no âmbito da contestação de uma ação cível o cauteleiro J….. assumiu que revendia bilhetes da Recorrente, ganhando em função de uma percentagem apurada a posteriori, e que a partir de uma determinada data (não concretizada em termos temporais o que, desde logo, seria fundamental), passou, no momento da entrega dos bilhetes, a entregar um cheque como garantia do bom cumprimento.

Ademais, a Recorrente apenas fundou o erro de julgamento -sublinhe-se sem nunca impugnar a matéria de facto fixada- na factualidade provada descurando, de todo, a factualidade não provada, a qual, in casu, assumiu acuidade manifesta e determinou a improcedência da lide. Com efeito, aduza-se em abono da verdade, que quanto à factualidade não provada a Recorrente não refuta, contesta ou mesmo aduz qualquer comentário a sufragar a sua errada interpretação.

Explicitemos, então e com o pormenor que se impõe, o que resulta da factualidade não provada.

A decisão recorrida, expressamente, consignou que não resultava provado:

1. Qual a operação ou quais as operações subjacentes à emissão e entrega, à Impugnante, dos três cheques, pelo citado cauteleiro revendedor ambulante
2. Qual a relação dessa ou dessas operações com a atividade normalmente estabelecida entre a Impugnante e o cauteleiro, emitente dos três cheques aí discriminados.
3. Que tenha chegado a haver uma decisão final de mérito, proferida na ação cível mencionada na matéria de facto provada.
4. Que a decisão penal referida na matéria de facto provada tenha identificado e fixado algum facto, fosse ele um ato ou um negócio, em consequência do qual ou em execução de cujas prestações, penalidades, obrigações acessórias, etc., o ali réu J….. emitira algum dos cheques à Impugnante.
5. Que a decisão penal referida na matéria de facto provada contenha, sequer, em que se traduziu, concretamente, o tal «prejuízo patrimonial» advindo da não perceção dos montantes titulados nos cheques.

Ora, tendo presente a aludida factualidade não provada – reitere-se e sublinhe-se não impugnada-não pode ser apontado qualquer erro de julgamento ao Tribunal a quo, visto que, em razão do supra aludido não resultando provadas as premissas base, (entenda-se: razão da emissão dos três cheques e bem assim o motivo pelo qual os mesmos foram emitidos em nome da sociedade e, in fine, porque motivo foram descontados junto do Banco), que relevariam à conclusão de que os créditos se encontravam relacionados com a atividade da empresa e estando esse ónus probatório na esfera da Recorrente, então, ter-se-á de concluir que o Tribunal a quo ajuizou, correta e acertadamente, pela falta dedutibilidade fiscal da provisão, donde, pela improcedência da ação.

De relevar, neste particular, que o Tribunal a quo dissecou, ajuizadamente, os motivos pelos quais ajuizava nesse e para esse efeito.

Com efeito, o Tribunal a quo concretizou o seguinte:

No concernente aos factos elencados nos pontos 1 a 3 esclareceu que “tiveram essa judicação devido à total ausência de prova.”

Esclarecendo, depois, que “[q]uanto ao consignado no ponto 3. o juízo negativo assenta numa ausência chã de prova, sem necessidade de outra motivação judicativa”

Densificando, depois, quanto aos primeiros dois pontos o seguinte:

“Quanto aos factos dos pontos 1.-2., além da falta de prova, ao invés do que propugna a Impugnante, o facto de ter tido um trato continuado com o tal cauteleiro vendedor ambulante de bilhetes de lotaria não conduz a que possa daí concluir-se, como que por necessidade, que os factos subjacentes à emissão, por ele, dos três cheques, se inseriam outrossim nesse mesmo trato. Por uma parte, nada obsta a que tenham tido uma qualquer outra causa, mesmo que ainda adentro da atividade e objeto social da Impugnante, o que todavia também não resultou provado.

Mais sublinhando, que não resultou, outrossim, provado “[d]e que fora no âmbito dessas mesmas relações normais com o cauteleiro que recebera os cheques-para cumprimento, portanto, de certas e determinadas obrigações pecuniárias -, justamente porque a função que serve o que seja um título de crédito como os aqui em causa é o pagamento imediato à apresentação, mal se compreende então como é tão evanescente e incerta a caracterização (mesmo a que é invocada) do que tenha sido a causa concreta, ou as causas concretas da emissão dos cheques.”

Adensando, depois, que “[a] presunção de que a relação subjacente residiu no contexto de atividade normal da Impugnante não possa ter-se por algum modo assente, não só em face do assinalado vazio probatório, como máxime segundo as regras da experiência, que ensinam que os tratos constantes que envolvem valores avultados e são objeto da atividade lucrativa de uma organização (lembre-se que nomeadamente o jogo está sujeito a um conjunto apertado de normas legais de controlo), como a uma certa álea no resultado operacional final em que são, ainda, envolvidos terceiros exteriores à própria organização, simultaneamente envolvem a documentação clara, precisa e pronta não só das relações em execução, como o arquivo das relações pretéritas, por mor da segurança, certeza e até da fiabilidade e honorabilidade dos intervenientes.”

Extrapolando, assim, que “[s]e normalmente adentro da atividade da Impugnante, maxime no seu trato com o referido cauteleiro, como invoca, então mais fácil e evidente seria, dir-se-ia, a identificação das concretas obrigações em causa, nomeadamente através de documentação, ainda que ela fosse irregular, ou imperfeita ou até aqui e ali lacunosa, mas de todo modo evidenciando com pelo menos mediana certeza a origem da causa da emissão dos cheques.”

Para depois concluir que “Não tendo logrado demonstrar quais fossem essas obrigações, o que lhe incumbia por tê-las feito inscrever na sua contabilidade através da constituição da provisão questionada - ou seja, recaindo sobre si o ónus de demonstrar o direito ao abatimento que ela provoca na matéria tributável, arts.342°nº1 do Código Civil e 33°nº1 corpo e alínea a) 71°nº1 corpo e alínea a), 94°nº1 corpo e alínea b), estes do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas coevo à constituição da provisão, cfr. hoje o disposto n art.74°nº 1 da Lei Geral Tributária -, forçoso se mostra ter de se concluir pela conclusão probatória de falta de prova da caraterização das obrigações que hajam ocasionado a emissão dos cheques.”

No concernente aos factos elencados nos pontos 4 e 5 da factualidade não provada, e ainda que a sua redação não prime pela melhor técnica jurídica, retira-se que a mesma se reporta ao processo crime, assentando numa inferência negativa dimanante da factualidade dele constante, ou melhor, da inexistência de factualidade que permita extrapolar por qualquer forma o nexo dos cheques com a atividade normal da empresa, sustentando, para o efeito, que de “[u]ma leitura ainda que distraída da sentença penal basta para se tornar evidente o seu vazio fático quanto à relação subjacente à emissão dos cheques. A única relevância que pode atribuir-se-lhe neste âmbito é a já consabida titularidade legítima dos cheques pela Impugnante, de resto a entidade à ordem de quem foram emitidos, neles mesmos já expressamente plasmada, tanto mais que não foram objeto de prévio endosso a outrem, nem muito menos emitidos ao portador. Mas tal nunca foi questionado.

Continua depois sublinhando que até “[o] tal «prejuízo patrimonial» dizíamos, é vazio de uma qualquer indicação e concretização de factos provados que o consubstanciem e evidenciassem a relação subjacente à emissão dos cheques. Não consegue a sentença, nesse segmento, atingir outro patamar significativo além do truísmo de que quem não obtém bom pagamento do título fica privado do respetivo montante, sem que isso traga alguma luz sobre a causa da sua emissão, muito menos a inscreva no contexto da atividade da Impugnante.

Concluindo, desta feita, que “[t]ambém por aqui não pudemos deixar de julgar não provado o conteúdo ora em apreço.”

Ora, face a todo o exposto, não resultando provado porque motivo foram emitidos os três cheques e bem assim a razão dos mesmos terem sido emitidos em nome da sociedade e bem assim a ratio do seu desconto junto da instituição bancária, não resulta preenchido o requisito basilar consignado no citado artigo 33.º, nº1, alínea a), do CIRC, ou seja, relação com a atividade normal da empresa, estando, assim, legitimada a correção realizada pela Administração Tributária.

Note-se, neste particular, que a Recorrente não apresenta qualquer documento ainda que de natureza interna que pudesse atestar a sua conexão com a atividade da empresa, nem tão-pouco arrolou qualquer testemunha que pudesse demonstrar esse nexo, pelo que a falta de prova tem, necessária e inequivocamente de contra si ser valorada, inexistindo, nessa medida, qualquer violação do princípio da verdade declarativa, consignado no artigo 75.º da LGT.

In fine, importa relevar que não pode, igualmente, lograr provimento a argumentação da Recorrente atinente à violação do princípio da tributação do lucro real visto que a esteira de entendimento preconizada pelo Tribunal a quo assenta, como visto, na falta de demonstração e prova dos pressupostos que estavam acometidos na esfera jurídica da Recorrente, em nada pondo em causa o lucro real.

De todo o modo sempre se dirá, que os cheques datam de 1986, foram descontados nesse mesmo ano, e a provisão apenas foi constituída em 1992, ficando, desde logo, por justificar a própria ratio da provisão, caraterística da incerteza que justifica a criação das provisões e inerente prudência. Como doutrinado no Aresto deste Tribunal, proferido em 14.11.2019 (5) “As provisões, aliando o princípio da prudência com o da especialização dos exercícios, visam acautelar eventos futuros de ocorrência provável”.

Destarte, os limites à dedutibilidade dos custos em causa não deixam de prosseguir objetivos de justiça material, com respeito pelo princípio da tributação do rendimento, consignado no artigo 104.º da CRP, até porque, “a integração de um grau de precaução nas contas não pode conduzir à criação de reservas ocultas ou provisões excessivas ou à deliberada quantificação de activos e proveitos por defeito ou de passivos e custos por excesso (6).”

E por assim ser, conclui-se que não estando verificados os pressupostos legais para a dedutibilidade fiscal da provisão contabilizada e, ora, em contenda devendo assim manter-se o ato de liquidação de IRC impugnado.

Do mesmo modo, atenta a ligação intrínseca entre a liquidação de imposto e a de juros compensatórios, existindo retardamento do imposto e nexo de causalidade adequada entre o seu comportamento e a falta de recebimento pontual de prestação, sem qualquer causa de exclusão da culpa, mormente, a divergência de interpretação, verificam-se, assim, os pressupostos objetivos e subjetivos para a corresponde liquidação.

Face a todo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, a decisão recorrida que decretou a manutenção do impugnado tem de ser manter-se na ordem jurídica.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Segunda Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em Negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente

Registe e notifique.

Lisboa, 07 de maio de 2020

(Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

(Tânia Meireles da Cunha)


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(1) Vide, neste sentido, F. Pinto Fernandes e Nuno Pinto Fernandes, CIRC anotado e comentado:4ª edição-1994, p.306.
(2) In ob. Cit., anotação ao artigo 33.º, p. 306.
(3) In Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pp. 119-120.
(4) J.J. Teixeira Ribeiro, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3684, pág. 84.
(5) Proferido no processo nº 9467/16.4 BCLSB, integrando o mesmo coletivo que o do presente autos.
(6) In ob. Cit, em anotação ao artigo 33.º, p.306.