Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1088/19.6BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/30/2020
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:ASILO, AUDIÊNCIA PRÉVIA, DÉFICE DE INSTRUÇÃO, RELATÓRIO SOBRE O ESTADO DE ACOLHIMENTO
Sumário:I. A Lei n.º 27/2008, de 30/06, que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, prevê no artigo 19.º-A, n.º 1, a), que o pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV;

II. Sendo outro Estado o primeiro país de asilo, o Estado português está dispensado de analisar da pretensão do interessado.

III. Ao procedimento especial de determinação do Estado membro responsável pela análise do pedido não é aplicável o artigo 17.º, n.ºs 1, 2 e 3 da Lei de Asilo, não se impondo a elaboração do relatório aí previsto, sendo a participação do requerente de proteção internacional assegurada através da realização da entrevista e da transmissão da intenção da tomada de decisão de ser outro o Estado membro responsável pela análise do pedido e da transferência do requerente, e da consequente possibilidade de o requerente se pronunciar, manifestando a sua concordância ou discordância com a retoma a cargo por outro Estado, assim se respeitando os direitos de audiência e de defesa.

IV. No procedimento especial de determinação do Estado membro responsável o artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo dispensa a análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional, mas não dispensa a análise das condições sistémicas relativas ao Estado de retoma, referentes à atual situação das condições de acolhimento nesse Estado.

V. Nos termos do artigo 3.º do Regulamento de Dublin recai sobre as autoridades nacionais o ónus de instrução sobre as condições do procedimento de asilo e as condições de acolhimento no Estado membro responsável pela apreciação do pedido, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante.

Votação:MAIORIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

O Ministério da Administração Interna, devidamente identificado nos autos de ação administrativa urgente instaurada por M.........., inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida em 29/09/2019, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que julgou a ação procedente, condenando a Entidade Demandada a reinstruir o procedimento, a proceder à audição do Requerido e só após decidir o pedido de proteção internacional.


*

Formula o Recorrente, nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“A. Resulta evidente que o Tribunal ad quo na sua ponderação e julgamento do caso sub judice não teve em atenção o quadro legal atinente aos critérios e mecanismos de determinação do Estado­Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida. Vejamos então,

B. O recorrido formulou pedido de proteção internacional no Gabinete de Asilo e Refugiados do ora recorrente, o qual foi seguido de uma entrevista pessoal realizada em 22 de Abril de 20 l9 nas instalações do SEF.

C. A entrevista supra referida foi realizada ao abrigo do art.º 16º da Lei de Estrangeiros a qual no seu nº 1 expressa o seguinte: “Antes de proferida qualquer decisão sobre o pedido de proteção internacional, é assegurado ao requerente o direito de prestar declarações na língua da sua preferência ou noutro idioma que possa compreender e através do qual comunique claramente, em condições que garantam a devida confidencialidade e que lhe permitam expor as circunstâncias que fundamentam a respetiva pretensão”.

D. Na pendência da entrevista, que se encontra documentada e como tal provada a fls. 20 e ss do procedimento administrativo, e após consulta do Sistema EURODAC, foi constatada a existência de dois Hits positivos com os "Cases ID IT ............. e DE I .................", respetivamente inseridos pela Itália e pela Alemanha, conformando que já havia sido efetuado pedido de proteção internacional nesses dois países.

E. Ora perante esta informação, o SEF, nos termos do artigo 37º, nº 1, e com sustento no mencionado registo EURODAC, solicitou às autoridades congéneres Italianas a retoma a cargo, ao abrigo do art.º 18º nº 1 d) do Regulamento (UE) 60412013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (Regulamento Dublin), as quais tacitamente aceitaram em conformidade com o disposto no art.º 25º nº 1 e 2 do Regulamento Dublin.

F. Obedecendo aos trâmites legais impostos quer pelo Regulamento, quer pela Lei de Asilo em vigor, a entidade Recorrente (SEF), em conformidade, proferiu Decisão considerando o pedido inadmissível nos termos da alínea a) do nº 1 do art.º 19º-A da Lei 27/2008, de 30 de junho (Lei de asilo), determinando a transferência do ora recorrido para a Suíça, conforme plasmado no art.º 37º, nº 3 da Lei de Asilo, decisão que o visado (o ora recorrido) viria a impugnar junto do TAC de Lisboa, o qual por sentença datada de 06 de Setembro de 2019 entendeu julgar procedente a ação impugnatória.

G. Com a devida Vénia, afigura-se ao recorrente que a Sentença, ora objecto de recurso, carece de fundamentação legal, porquanto não logrou fazer a melhor interpretação do regime que regula os critérios de determinação do estado membro responsável, em conformidade com o Regulamento (EU) que o hospeda.

H. Na verdade, não pode o ora recorrente aceitar o veredicto plasmado na Sentença que considerou boa a tese do recorrido (Autor).

J. Estatui a alínea a) do nº l do art.º 19º-A da Lei 2712008, de 30 de junho, que "O pedido é considerado inadmissível , quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV".

J. Sob a epígrafe «Procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional», o capítulo IV estabelece no art.º 36º que "quando haja lugar à determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção internacional é organizado um procedimento especial regulado 110 presente capítulo"

K. Quer isto dizer que, recebido o pedido de Proteção Internacional e verificando que, nos termos do nº 1 do art.º 37º, "a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro" as autoridades portuguesas, em conformidade com o legalmente estabelecido, iniciam um procedimento especial "de acordo com o previsto no Regulamento (EU) nº 60412013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho"

L. As diligências reclamadas pelo Tribunal "ad quo", reportam-se à tramitação do Procedimento estabelecido no capítulo III, e tem por escopo salvaguardar determinadas garantias e, em particular, assegurar "ao requerente o direito de prestar declarações (...) que lhe permitam expor as circunstâncias que fundamentam a respetiva pretensão", conforme se estabelece no art.º 16º.

M. Ora, a tramitação do procedimento de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional obedece a regras de procedimento diferentes, que são as estabelecidas pelo Regulamento (EU) nº 604/2013, do parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho (Regulamento de Dublin).

N. Nesse sentido e em sede de garantias dos requerentes, o regulamento Dublin vem estabelecer no art.º 4º o Direito à informação e, no art.º 5º, a realização de uma Entrevista pessoal "A fim de facilitar o processo de determinação do Estado-membro responsável (...)". A entrevista deve permitir, além disso, que o requerente compreenda devidamente as informações que lhe são facultadas nos termos do art.º 4º.

O. As normas prescritas nos arts. 16º e 17º da lei 27/2008 (Lei de Asilo), que estabelecem a obrigatoriedade de o requerente prestar declarações, com base nas quais se realiza um relatório escrito que deve ser notificado ao requerente para sobre ele se pronunciar, aplicam-se integralmente nos procedimentos comuns, ou seja, aqueles, cuja competência para análise do pedido de proteção internacional pertence ao Estado Português.

P. Situação diferente impende sobre os procedimentos especiais, mormente nos casos em que é necessário determinar qual o Estado que vai analisar o pedido de proteção internacional, pelo que ficando determinado que é outro o Estado responsável pela análise, não se aplicam as normas vertidas no procedimento previsto no capítulo III do referido diploma legal.

Q. Ora, nestes casos, não é aplicável o disposto no art.º 17º nº 2 da lei do Asilo, afastada pela certeza "especial" do procedimento plasmado no art.º 36º e ss. da referida Lei, tal como se comprova no nº 7 do art.º 37º, que estipula que: "em caso de resposta negativa do Estado requerido ao pedido formulado pelo SEF, nos termos do nº 1 observar-se-á o disposto no capítulo III".

R. Explicitando - e afigura-se à entidade Recorrente que é justamente aqui que se encontra o busílis da questão e que o tribunal ad quo não alcançou -, a norma supra vem dizer claramente que só no caso da Itália expressamente declinar a sua responsabilidade na retoma ou tomada a cargo é que haverá lugar à aplicação do Capítulo III, o que como se sabe não foi o caso, uma vez que a Suíça expressamente aceitou, afastando assim e decisivamente a aplicabilidade do capítulo III.

S. No âmbito do procedimento especial previsto no capítulo IV da Lei de asilo (arts. 36º a 40º) relativo à determinação do Estado-membro responsável pela análise do pedido, tal garantia seria absolutamente inútil e desprovida de sentido, na medida em que não se vai analisar o mérito do pedido nem os fundamentos em que se baseiam a pretensão do requerente, uma vez que a determinação do Estado-membro responsável pela análise do pedido constitui causa de inadmissibilidade do pedido de proteção internacional apresentado em território nacional, nos termos do art.º 19º-A, nº 1, alínea a) da Lei de Asilo.

T. Sublinhe-se que, o nº 2 do mesmo art.º 19º-A da lei de Asilo, de forma categórica estipula que nos casos em que o pedido é considerado inadmissível, "prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional".

U. Ora prescindida a análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional, questiona-se o recorrente, afinal qual a utilidade da audiência de interessados, a qual não se encontra prevista, nem na Lei de Asilo, nem no regulamento de Dublin, quer estejamos perante uma situação de retoma ou tomada a cargo.

V. Qual o efeito útil de um acto administrativo que além de não ser legalmente exigido na situação particular, não interfere nem altera a mecânica do procedimento de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

W. Salvo melhor opinião, afigura-se ao recorrente que a audiência de interessados, tal como vem reclamada pela Sentença em crise teria como função dar ao requerente de proteção internacional a oportunidade de se pronunciar sobre os elementos constantes do relatório enunciado no art.º 17º da lei do asilo, ou seja pronunciar-se sobre o mérito do seu pedido.

X. Ora a análise do mérito do pedido foi imediatamente suspensa aquando do início do procedimento de determinação do Estado responsável pela sua analise, cfr. art.º 39º da Lei de Asilo, em articulação com o nº 7 do art.º 37º.

Y. Explicitando, estando a decorrer o procedimento de determinação do estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional iniciado nos termos do art.º 36º da Lei de Asilo, suspende-se o procedimento de análise do pedido de proteção propriamente dito, o qual só será retomado no caso de Estado que vier a ser considerado responsável declinar essa responsabilidade não a aceitando expressamente.

Z. Assim, apenas se o Estado considerado responsável declinasse essa responsabilidade, faria sentido com a retoma do procedimento de análise do pedido de proteção internacional pelo Estado Português, levar a cabo uma eventual audiência de interessados nos termos em que vem expresso na sentença em crise.

AA. Tendo as autoridades Suíças aceitado a responsabilidade de analisar o seu pedido de asilo, às autoridades portuguesas apenas restava nos termos exigidos quer pela Lei de Asilo, quer pelo Regulamento de Dublin, ouvir o recorrido no procedimento, nos termos em que o fez no dia 22 de Abril de 2019, cfr. consta a fls. 17 e ss do processo instrutor.

BB. Malgrado toda a jurisprudência invocada na Sentença, o facto é que, s.m.o., e com todo o respeito que é muito, continuamos a não vislumbrar a sustentação legal das teses defendidas para a imposição da audiência de interessados nos termos em que vem aí defendida.

CC. Nos Acórdãos referidos pelo Tribunal a quo, toda a sua linha de sustentação baseia-se fundamentalmente em equiparar o procedimento especial de determinação do Estado responsável pela analise do pedido de proteção internacional, com o procedimento que corre termos junto das autoridades administrativas portuguesas quando estas têm a responsabilidade de analisar o mérito do pedido de proteção internacional efetuado por um cidadão estrangeiro.

DD. Nos Acórdãos referidos não é feita a separação entre procedimentos distintos e que operam em fases diferentes, pois se num o que se encontra em avaliação é a determinação do Estado que vai assumir a responsabilidade de analisar o pedido de proteção internacional, noutro o que se encontra-se em analise é o próprio pedido de proteção internacional e é neste último e só neste último é que se poderá pôr em causa o cumprimento de uma garantia fundamental como é a audiência de interessados nos termos em que ela vem referida nos Acórdãos.

EE. A garantia que vem sendo assacada ao Estado Português, é uma garantia que com toda a probabilidade será assegurada pelo Estado que vier a ficar responsável pela análise do pedido de proteção internacional, in caso a Itália.

FF. No que tange às autoridades portuguesas, neste tipo de procedimento onde as garantias processuais estão bem definidas quer na Lei de Asilo, quer no regulamento de Dublin, cabe apenas conduzir o procedimento de apuramento do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional e notificar o requerente, tal como vem previsto no artigo 26º do Regulamento (EU) nº 604/2013 do Parlamento e do Conselho de 26 de Junho o qual estatui no nº l que "Caso o Estado-Membro requerido aceite a tomada ou retomada a cargo de um requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.º nº 1, alínea c) ou d), o Estado-Membro requerente deve notificar a pessoa em causa da decisão da sua transferência para o Estado-Membro responsável e, se for caso disso, da decisão de não analisar o seu pedido de proteção internacional. Se a pessoa em causa for representada por um advogado ou por outro conselheiro jurídico, os Estados-Membros podem optar por notificar a sua decisão ao representante, em vez de o fazerem à pessoa em causa, e, se for caso disso, comunicar a sua decisão à pessoa em causa."

GG. Afigura-se deste modo ao recorrente que a tese que vem sendo defendida pela jurisprudência em Portugal perfilha-se numa premissa que não distingue os procedimentos que estão aqui em causa, os quais sendo distintos não se compadecem com o mesmo tipo de tratamento ou de garantias, as quais em última instância se revelam excessiva e inúteis.

HH. Na mesma linha, o Supremo Tribunal Administrativo - cfr. recente Acórdão de 11 de Janeiro, proferido no âmbito do Proc. 807/18.2BELSB - perfilha que "(...), no procedimento especial para «determinação do Estado responsável» (arts. 36º e ss. da Lei nº 27/2008, de 30/06), está excluída, «impliciter», uma audiência do requerente antes da decisão final («vide» o art.º 37º, nº 2, do referido diploma)." - SIC.

II. Esta posição vem reforçada na letra do nº 7 do art.º 37º da Lei de Asilo a qual expressamente determina que: "Em caso de resposta negativa do Estado requerido ao pedido formulado pelo SEF, nos termos do nº l, observar-se-á o disposto no capítulo III.

JJ. Explicitando, o Estado Português só estaria obrigado a cumprir o estatuído no art.º 17º da Lei do Asilo, caso o pedido de retoma a cargo tivesse sido repudiado pelas autoridades Suíças, o que não aconteceu.

KK. Atente-se pois, que o facto de o pedido de proteção internacional ter sido efetuado em território nacional, mormente junto do Gabinetes de Asilo e Refugiados, só por si não determina a obrigação de se cumprir o a norma vertida no art.º 17º, pois quando perante uma situação de retoma a cargo, a mesma toma-se letra morta na medida em que o art.º 37º nº 2 e 7, claramente afastam a sua aplicação.

LL. Crê-se destarte inequívoco, que a Sentença a quo carece de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuto pelo direito vigente sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o acto do ora Recorrente.

MM. Ao invés, assim não atuou, razão pela qual ora se pugna pela revogação da douta Sentença, atenta a correta interpretação e aplicação da Lei.

NN. Neste contexto, e ao invés da douta sentença, o acto administrativo anulado encontra se legalmente enquadrado face ao disposto nos comandos imperativos ínsitos na legislação supra invocada, devendo assim ser acolhido, porquanto se mostra irrepreensível.

OO. Em suma, o entendimento plasmado pelo recorrido conduz à ilegalidade da sentença, devendo por isso ser revogada.”.

Pede que o recurso seja julgado procedente e a sentença recorrida seja revogada.


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O Recorrido não contra-alegou o recurso, nada tendo dito ou requerido.

*

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Pugna por o Tribunal a quo ter decidido mal ao entender que o procedimento de natureza processo executado pelo SEF não se mostra conforme à Lei de Asilo, tendo procedido a uma incorreta apreciação dos factos trazidos ao conhecimento do tribunal e à respetiva subsunção ao direito.

Nessa linha, acompanha, em toda a extensão, o sentido da fundamentação apresentada pelo Recorrente.

Estando a decorrer o procedimento de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, suspende-se o procedimento de análise do pedido de proteção, o qual só será retomado no caso de o Estado vir a ser considerado responsável.

Conclui, pela procedência do recurso.


*

O processo vai sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente, indo à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento, por ao procedimento especial de retoma a cargo do requerente de proteção internacional:

(i) não ser aplicável o artigo 17.º, n.º 2 da Lei de Asilo, no tocante à audiência prévia do requerente, e

(ii) se prescindir da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional, nos termos do artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos:

1. A 4 de Outubro de 2016, o A. pediu protecção internacional e as suas impressões digitais foram registadas no sistema EURODAC, em Foggia, Itália, sob a referência IT..................;

Cf. fingerprint form do EURODAC de fls. 3 do p.a. e auto de entrevista de fls. 20 e ss. do p.a.

2. Em 15 de Outubro de 2018, o A. pediu protecção internacional e as suas impressões digitais foram registadas no sistema EURODAC, em Heidelberg, na Alemanha, sob a referência DE.....................;

Cf. fingerprint form do EURODAC de fls. 4 do p.a. e auto de entrevista de fls. 20 e ss. do p.a.

3. O A. pediu protecção internacional junto dos serviços do SEF, em Lisboa, no dia 15 de Abril de 2019, junto dos quais declarou, na mesma altura, ser M.........., ser nacional da Guiné-Bissau e ter nascido a 13 de Janeiro de 1984 em Bissau;

Cf. questionário preliminar de fls. 5 e ss. do p.a. e declaração comprovativa de apresentação do pedido de fls. 14 do p.a., e o fingerprint form do EURODAC de fls. 1 do p.a.

4. Aquando do pedido formulado em Portugal, foram recolhidas as impressões digitais do A. e registadas na base de dados do sistema EURODAC;

Idem.

5. Em 8 de Maio de 2019, o A. foi entrevistado, no procedimento em causa, nos serviços do GAR do SEF, tendo-lhe sido feita, pelos serviços do SEF, menção ao Regulamento Dublin, de este estabelece os critérios e mecanismo de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de protecção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de país terceiro ou apátrida, de que apenas um Estado-Membro é responsável pela análise do pedido, e de que o pedido do A. seria sujeito a um procedimento especial de admissibilidade;

Cf. auto de entrevista/transcrição a fls. 34 e ss. do p.a.

6. Na entrevista aludida no ponto anterior, o A., perguntado sobre a duração da estadia em cada um dos países onde havia registos no EURODAC, disse, quanto ao registo aludido acima no ponto 1., que a sua estadia havia durado 2 anos e cinco meses, e, quanto ao registo aludido supra no ponto 2., que a sua estadia havia durado 5 meses, e, perguntado sobre se o pedido de asilo anteriormente formulado se encontrava em análise ou havia sido recusado, disse que havia sido recusado;

Idem.

7. Perguntado, na mesma entrevista, sobre se estava de boa saúde, disse que sim, perguntado sobre se tinha problemas de saúde, disse que não;

Idem.

8. Perguntado na mesma entrevista sobre a data em que havia saído do seu país de origem, a Guiné-Bissau, disse que havia saído do mesmo em 2015, e, instado a descrever o percurso efectuado desde esse país até chegar a Portugal, o A. disse o seguinte: «Sai da Guiné Bissau e viajei para o Mali, onde fiquei 3 meses, depois fui para o Níger onde fiquei um mês e daí entrei na Líbia. Na Líbia fiquei mais ou menos 6 meses. Cheguei a Itália em Julho de 2016. Tirei as impressões digitais mas não pedi asilo. Estava num campo mas disseram que ia ser fechado. Sei que era dia 4 do mês de ramadão, no ano passado. Estive um mês na rua. Sai de Itália e fui à Alemanha para fazer o meu passaporte. Como não podia ficar a viver na rua pedi assim pedi asilo e fiquei 5 meses a viver num campo. Saí da Alemanha com destino a Portugal. Viajei de comboio até frança onde fiquei preso dois dias. Daí segui viagem de autocarro primeiro para Espanha e depois Portugal. Demorei cerca de uma semana a fazer esta viagem. Cheguei a Lisboa no dia 14 de Abril de 2019.»;

Idem.

9. Findas as declarações, foi, de seguida, preenchido um formulário intitulado “Relatório” pelo SEF onde consta «De acordo com as declarações prestadas pelo requerente (…) e de acordo com as informações recolhidas, conclui-se que o mesmo», tendo-se no mesmo preenchido a quadrícula associada à seguinte situação «Apresentou pedido de proteção noutro país da União Europeia (REGULAMENTO (UE) N.º 604/2013 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de junho de 2013 que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados- Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida - Artigo 18.º, n.º 1)»;

Cf. relatório a fls. 26 e 27 do p.a.

10. Ao A. foi dado conhecimento, no mesmo dia 8 de Maio de 2019, do “Relatório” referido no ponto anterior, ao que o A., quando instado a dizer se tinha algo mais a declarar, disse: «Não quero regressar a Itália porque passei lá muito mal. Lá não nos explicam as coisas, tiram logo as nossas impressões digitais. Quero ficar em Portugal porque desde o início foi o meu destino. Gosto deste país, mesmo sem falar a língua percebo algumas coisas.»;

Idem.

11. Os serviços do SEF, em 10 de Maio de 2019, autuaram o pedido do A. formulado em Portugal como “Processo de Determinação de Responsabilidade do Pedido de Protecção Internacional (Regulamento de Dublin) Retoma a cargo”, atribuindo-lhe o n.º ............;

Cf. Capa do processo de fls. 30 do p.a.

12. A 10 de Maio de 2019, foi remetido pelos serviços do SEF para as autoridades italianas, por e-mail, um designado pedido de retoma, respeitante ao pedido de protecção internacional do A. formulado em Portugal, onde se invoca a ocorrência registada sob o n.º IT................, e a al. d) do n.º 1 do art. 18.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013;

Cf. e-mail de fls. 31 e formulário de fls. 33 e ss do p.a.

13. No ponto 12. do pedido de retoma a cargo aludido no ponto anterior, sobre se o Requerente havia pedido protecção internacional ou reconhecimento de estatuto de refugiado, fez-se consignar que o A., havia formulado pedido, em 4 de Outubro de 2016, em Foggia, Itália, e que o pedido havia sido rejeitado, e no ponto 13. do mesmo, respeitante ao abandono do território do Estado-Membro, que o Requerente não havia deixado o território dos Estados-Membros;

Cf. formulário de fls. 33 e ss do p.a.

14. No dia 28 de Maio de 2019, os serviços do SEF remeteram, por e-mail, para as autoridades italianas, comunicação onde se consignou que era feita na sequência da comunicação de 10 de Maio de 2019, que o Estado-Membro deve responder ao pedido em duas semanas, invocou-se o art. 25.º, n.º 1 e 2, do Regulamento de Dublin, e concluiu-se que, considerando que não houve resposta das autoridades italianas, Portugal considerava que Itália tinha aceitado retomar a cargo o A.;

Cf. e-mail defls. 36 e 37 do p.a.

15. A 28 de Maio de 2019, foi lavrada pelos serviços do SEF, a informação n.º …../GAR/2019, sobre o pedido de protecção internacional do A., onde se lê, entre o mais, o seguinte:

«9. A Lei n.º 27/08, de 30 de junho, (…) que estabelece as condições e procedimentos para a análise dos pedidos de proteção internacional e concessão do estatuto de refugiado ou proteção subsidiária, prevê na alínea a), do n.º 1 do artigo 19º-A que o pedido é considerado inadmissível quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção, previsto no Capítulo IV.

Ainda nos termos do n.º 2 do artigo 19-A, nos casos previstos no número anterior deste artigo, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.

10. O procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional encontra-se regulado no Capítulo IV, artigo 36º e seguintes da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, (…), aplicando-se os apenas os procedimentos aqui previstos.

11. Tendo ocorrido uma situação de admissão tácita conforme ponto 7, impõe-se ao Estado português a tomada de decisão de transferência do requerente.

Pelo exposto, e tendo em consideração que os pedidos são analisados por um único Estado, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III do Regulamento (CE) N.º 604/2013 do Conselho de 26 de junho designarem como responsável, propõe-se que a Itália seja considerada o Estado responsável pela retoma a cargo, ao abrigo do artigo 25º, Nº 2 do Regulamento (CE) N.º 604/2013 do Conselho de 26 de junho»;

Cf. informação de fls. 40 ess. do p.a.

16. Sobre a informação mencionada e transcrita no ponto anterior, foi redigida, no mesmo dia 28 de Maio de 2019, proposta, com o seguinte teor: «Com base na presente informação, submete-se à consideração superior que, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19º - A, da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, (…) o pedido de proteção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a Itália do (a) cidadão (ã) acima identificado (a), nos termos do artigo 25º, Nº 2 do Regulamento (CE) N.º 604/2013 do Conselho, de 26 de junho.»;

Cf. Proposta de fls. 40 do p.a.

17. Ainda no mesmo dia 28 de Maio de 2019, foi exarada, no processo de protecção internacional do A., Decisão pelo Director Nacional Adjunto do SEF, com menção de que o fazia em suplência, por ausência da Directora Nacional, decisão onde consta, entre o mais, o seguinte:

«De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19º-A e no n.º 2 do artigo 37º, ambos da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, alterada pela Lei nº 26/2014 de 05 de maio, com base na informação n.º ……/GAR/2019 do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de protecção internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como M.......... , nacional da Guiné-Bissau, inadmissível.

Proceda-se à notificação do cidadão nos termos do artigo 37º, n.º 3, da Lei n.º 27/08 de 30 de junho (…), e à sua transferência, nos termos do artigo 38º do mesmo diploma, para a Itália, Estado Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional nos termos do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho»;

Cf. decisão de fls. 44 do p.a.

18. A decisão que se refere e parcialmente se transcreve no ponto anterior e a informação do SEF n.º ......./GAR/2019 foram entregues e dadas a conhecer ao A. em 29 de Maio de 2019;

Cf. declaração assinada pelo A. de fls. 45 do p.a.

19. Em 14 de Agosto de 2019, o Gabinete Jurídico do CPR elaborou informação sobre as condições de acolhimento de requerentes de asilo e refugiados em Itália, informação onde se lê, entre o mais, o seguinte:

«(…)

O sistema de asilo italiano tem vindo a ser amplamente analisado por várias organizações de direitos humanos, que reportam preocupantes opções legislativas e políticas das autoridades de Itália neste domínio7, às quais se associa uma forte retórica racista e xenófoba.

7Para informações detalhadas sobre o funcionamento do sistema de asilo italiano, ver também o relatório da Asylum lnformation Database-Itália, disponível em: http://www.asylumineurope.org/reports/country/italy

Sucintamente, a informação disponibilizada por organizações como o European Council for Refugees and Exiles (ECRE) e os Médicos sem Fronteiras (MSF), entre outras, revelam a existência de falhas sistémicas tanto no que respeita ao procedimento de asilo e garantias processuais, bem como na política de acolhimento dos requerentes de asilo. Entre as principais falhas, e conforme a informação recolhida e traduzida infra, contam-se:

• A degradação preocupante das condições de acolhimento de requerentes de asilo e beneficiários de protecção internacional e a existência de obstáculos significativos ao acesso a condições de acolhimento dignas (onde se incluem o acesso a cuidados de saúde, alojamento e medidas de integração);

• A limitação do escopo da protecção conferida;

• Os problemas no acesso efectivo ao procedimento de asilo;

• O alargamento dos períodos legais de detenção de requerentes de protecção internacional;

• Os riscos de violação do princípio do non-refoulement.

As insuficiências do sistema de asilo italiano, para além de reportadas por diversas fontes fidedignas, foram também já reconhecidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nomeadamente no caso Tarakhel c. Suíça8, de 2014, devendo notar-se que a situação se tem degradado significativamente desde então (nomeadamente à luz do actual contexto político).

(…)

Nota-se que também órgãos jurisdicionais de vários Estados-Membros da União Europeia, entre os quais Alemanha, França, Luxemburgo, Holanda e Reino Unido, anularam já decisões de transferência ao abrigo do Regulamento Dublin para Itália à luz do referido contexto9.

9 A este respeito ver, por exemplo as várias publicações disponíveis na página da European Data base of Asylum Law (EDAL): https://www.asylumlawdatabase.eu/en/content/germany-%E2%80%93-augsburg-administrative-court-rules-case-dublin-transfer-pregnant-asylum-seeker; https://www.asylumlawdatabase.eu/en/case-law/france-administrative-tribunal-toulouse-9-november-2018-n%C2%B0-1805185#content; https://www.asylumlawdatabase.eu/sk/case-law/france-%E2%80%93-rennes-administrative-tribunal-5-january-2018-application-no-1705747; https://www.asylumlawdatabase.eu/en/content/luxembourg-%E2%80%93-administrative-tribunal-stops-dublin-transfer-asylum-seeker-italy-due-country%E2%80%99s; https://www.asylumlawdatabase.eu/en/content/united-kingdom-%E2%80%93-upper-tribunal-allows-judicial-review-removal-italy.

Fonte: USDOS- USDepartment of State: Country Report on Human Rights Practices 2018 - Italy, 13 de Marçode 2019, disponível em https://www.ecoi.net/en/document/2004308.html (consultado a 7 de Agosto de 2019)

(…)

Acesso aos Serviços Básicos: As autoridades criaram centros temporários para alojar populações migrantes mistas, incluindo refugiados e requerentes de asilo mas não conseguiram acompanhar o ritmo elevado das chegadas e o aumento do número de pedidos de asilo. Em 31 de Julho, havia 160.458 pessoas alojadas em locais de todo o país. Algumas foram acolhidas em centros administrados directamente por autoridades locais, geralmente considerados de alta qualidade, e os restantes ficaram em centros cuja qualidade variou muito e que incluíram muitas instalações readaptadas, como antigas escolas, quartéis militares e apartamentos em edifícios residenciais. Em 10 de Abril, o CPT informou que todos os centros temporários visitados em Junho de 2017 “excediam regularmente a capacidade oficial” com a concomitante degradação das condições de vida. Considerou as condições de vida no Centro Fechado de Remoção de Caltanissetta sobrelotado e as instalações em mau estado de conservação e pouco mobiliadas.

As instalações sanitárias precisavam de reparos consideráveis. O CPT também relatou que os serviços prestados aos migrantes no centro de trânsito de Lampedusa eram inadequados e que eram disponibilizados lugares insuficientes em abrigos para menores não acompanhadas, o que resultou na existência de estadias prolongadas em centros de trânsito temporários.

Representantes do ACNUR, da OIM e de outras organizações humanitárias e ONGs reportaram a existência de milhares de estrangeiros em situação regular e irregular, incluindo migrantes e refugiados, a viver em prédios abandonados e em instalações inadequadas e sobrelotadas em Roma e noutras grandes cidades, com acesso limitado a serviços de saúde, aconselhamento jurídico, educação básica e a outros serviços públicos.

Em alguns casos, refugiados e requerentes de asilo que trabalhavam na economia informal não conseguiram arrendar apartamentos, especialmente nas grandes cidades. Frequentemente ocuparam prédios onde viviam em condições precárias com os seus filhos. Em 21 de Março, a polícia desalojou à força 100 imigrantes e refugiados que tinham ocupado um prédio nos arredores de Roma. ONGs e grupos de defesa alegaram que o governo municipal de Roma não garantiu alojamento público alternativo para os migrantes despejados que se qualificavam para isso, incluindo pessoas a quem tinha sido reconhecido o estatuto de refugiado.

A 10 de Agosto, 34 requerentes de asilo em Tosco/ano Moderno protestaram contra a falta de acesso a cuidados médicos, aulas de língua e formação vocacional no centro para migrantes em que viviam.

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Fonte: The Guardian, Italy evicts more than 500 people from refugee centre, 23 de Janeiro de 2019, disponível em: https://www.theguardian.com/world/2019/jan/23/italy-evicts-morethan-500-people-refugee-centre-near-rome [consultado a 18 de Fevereiro de 2019]

Mais de 500 pessoas estão a ser expulsas de um centro de acolhimento para refugiados numa localidade próxima de Roma, naquela que é a primeira grande expulsão desde que o populista governo de direita italiano aprovou legislação que inclui medidas severas relativamente à imigração.

Trinta pessoas foram expulsas do centro, o segundo maior do seu tipo em Itália e o local onde o Papa Francisco, durante o ritual pascal em 2016, lavou os pés a residentes, em Castelnuovo di Porto, na terça-feira. Outras 75 foram expulsas na quarta-feira e os restantes 430 serão expulsos antes do encerramento do centro a 31 de Janeiro.

As expulsões surgem na sequência da aprovação, no final de Novembro, do “decreto Salvini” que assim foi designado devido a Matteo Salvini, Ministro da Administração Interna e líder do partido de extrema-direita, Liga.

A lei elimina o estatuto de protecção humanitária e suspende os procedimentos de asilo de pessoas consideradas 'socialmente perigosas' ou que tenham sido condenadas por um crime.

Também retira a nacionalidade italiana a estrangeiros naturalizados que tenham sido condenados pelo crime de terrorismo.

Salvini alega que o centro que, durante os últimos oito anos, alojou cerco de 8.000 pessoas, era um antro de 'tráfico de droga e crime' e que os 2.000 pessoas que residem no descontrolado centro de acolhimento Cara di Mineo, na Sicília e em estruturas semelhantes pela Itália, terão o mesmo destino.

Declarou que os encerramentos permitirão ao governo italiano poupar 6 milhões de euros (5.2 milhões de dólares) por ano, valor que pode ser utilizado 'para ajudar italianos'. 'Eu fiz o que qualquer bom pai faria', declarou.

Riccardo Travaglini, presidente da câmara de Castelnuovo dí Porto, disse aos repórteres que não foi feito qualquer aviso antes das expulsões. Homens, mulheres e crianças, muitas inscritos em escolas locais, foram alegadamente separados antes de a maioria ter sido transportada de autocarro para locais desconhecidos. Alguns foram acolhidos por habitantes locais, incluindo Travaglini, que acolheu uma mulher da Somália e o seu filho.

'Num único dia, destruíram anos de trabalho', declarou Traviglini. 'Estas pessoas tinham conseguido integrar-se'.

Travaglini manifestou-se, juntamente com a equipa do centro e párocos locais, enquanto Rossella Muroni, do Livres e Iguais, um pequeno partido da ala esquerda, tentou bloquear um dos autocarros. Deputados do partido Democrático, do oposição, criticaram fortemente a medida.

Roberto Morassut, do partido [Democrático] comparou as expulsões a 'deportações para os campos de concentração Nazi'. 'Uma das mais importantes estruturas de acolhimento de migrantes foi evacuada sem aviso adequado ... foi um verdadeiro ataque', declarou.

Salvini disse que aqueles que 'têm direitos' não serão deixados ao abandono e serão, ao invés, colocados noutras 'bonitas estruturas'. 'Terão direito a alimentação e alojamento', declarou.

'Mas relativamente aos restantes, daremos início ao processo de deportação.'

As expulsões iniciaram-se ao mesmo tempo que a Alemanha anunciou a sua retirada da Operação Sophia, da UE, uma missão naval que visa [combater] o tráfico de seres humanos no Mediterrâneo, devido à recusa italiana em autorizar o desembarque de migrantes nos seus portos.

A maioria dos residentes no centro de Castelnuovo di Porto tinham procedimentos de asilo pendentes. Muitos tinham recebido protecção humanitária, uma autorização de residência válida por dois anos e concedida a quem, não sendo elegível para o estatuto de refugiado, não pode, por várias razões, ser enviado para o país de origem. Estima-se que 100.000 pessoas beneficiem do estatuto de protecção humanitária, que lhes permite trabalhar e que foi abolido pelo diploma de Salvini.

'A lei de Salvini apenas amplificará os problemas sociais', disse Valeria Carlini, porta-voz do Conselho Italiano para os Refugiados. 'A lei está a relegar aqueles que já têm protecção humanitária à exclusão social... Em vez de terem a possibilidade de trabalhar, ficarão sem abrigo.

(…)

Fonte: UN High Commissioner for Refugees (UNHCR), Submission by the Office of the United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR) concerning the execution of the judgment by the European Court of Human Rights ln the case of Sharifi and Others v. Italy and Greece (application no. 16643/09, judgment of 21 October 2014), 18 de Janeiro de 2019, disponível em: https://www.refworfd.org/docid/Sc61614f4.html [consultado a 7 de Agostode 2019]

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Como consequência da insuficiente capacidade das ONGs de monitorização e intervenção, o ACNUR não está em condições de obter provas conclusivas de que todas as pessoas que pretendem pedir protecção internacional em Itália tenham a oportunidade de o fazer, ou de que algumas tenham sido notificadas de uma decisão de readmissão na Grécia.

2.1 Redução do financiamento

Os fundos alocados pelo Ministério do Interior para assistência e serviços de informação nos pontos de passagem das fronteiras diminuiu significativamente ao longo do tempo. Como resultado, os serviços estão disponíveis apenas durante algumas horas por dia. Portanto, não se sabe se as ONGs estão disponíveis em todas as circunstâncias previstas lei.

Devido ao limitado financiamento disponível, as ONGs nem sempre são capazes de garantir que dispõem de pessoa/com as competências requeridas, em especial o conhecimento especializado sobre a identificação de pessoas com necessidades especiais, incluindo menores não acompanhados requerentes de protecção internacional ou vítimas de tráfico. Além disso, as ONGs não dispõem, de forma sistemática, de espaço adequado, embora tal esteja previsto na lei e seja crítico para a identificação de pessoas com necessidades especiais, o que requer um ambiente confidencial e seguro.

As ONGs também não estão devidamente equipadas com material informativo multilingue relevante.

O ACNUR também observou que em algumas áreas, por exemplo em Bari, as ONGs que prestam serviços de assistência e informação foram encarregados de prestar meramente assistência material, no aeroporto, a requerentes de asilo transferidos para Itália ao abrigo do Regulamento Dublin III, mas não são obrigadas a prestar serviços de aconselhamento a pessoas que chegam ao porto.

Além disso, em alguns pontos de passagem das fronteiras, por exemplo Trieste, onde as chegadas aumentaram recentemente, não foram estabelecidos serviços de assistência e de informação. Tal pode dever-se à falta de financiamento e/ou ao facto de as avaliações específicas das chegadas aos pontos, que são instrumentais para estabelecer serviços de assistência e informação, não serem realizadas de forma sistemática.

2.2 Concursos públicos e contratos

Os concursos são baseados na oferta financeira mais baixa e os critérios de qualidade não são totalmente tomados em conta. O ACNUR está preocupado com o facto de os concursos não preverem padrões claros e especificações. A curta duração dos contratos adjudicados às ONGs (um ano) e a falta de planeamento plurianual tiveram um impacto negativo na qualidade dos serviços.

2.3 Espaço limitado I restrito de intervenção das ONGs

As ONGs só têm acesso a pessoas já identificadas pela polícia como requerentes de asilo. Não têm acesso a outras pessoas que se apresentem no aeroporto ou em instalações portuárias e que tenham necessidades de protecção internacional e possam pretender requerer asilo. Além disso, em Veneza, as ONGs apenas estão disponíveis se para tal forem chamadas. Isso limita de facto a efciácia dos serviços das ONGs. O ACNUR preocupa-se, portanto, com a facto de nem todas as pessoas chegadas serem sistematicamente informadas sobre a legislação de imigração e sobre procedimentos de protecção internacional, nem poderem sistematicamente beneficiar de serviços de interpretação.

3. Prestação de informação, identificação de pessoas com necessidades de protecção por funcionários das fronteiras e acordos de acolhimento

Com base nas observações do ACNUR, a polícia de fronteira não tem intérpretes nem mediadores culturais suficientes, que são essenciais n a identificação de pessoas com necessidades de protecção. Este desafio relativo a recursos é particularmente preocupante dada a capacidade e envolvimento limitados das ONGs, conforme descrito acima. Além disso, a polícia de fronteira não tem materiais de informação multilingue suficientemente actualizados e adequados sobre a possibilidade de requerer asilo. O A CNUR considera existir a necessidade de reforçar a formação específica dos funcionários das fronteiras, em especial no que respeita à identificação de pessoas com necessidades de protecção. Registaram-se melhorias em relação ao acolhimento em Veneza e Ancona, mantendo-se preocupante a situação de acolhimento noutros lugares, como Bari. Uma preocupação particular diz respeito à escassa disponibilidade de alojamento, em tempo útil, para pessoas com necessidades específicas.

4. Conclusões

As preocupações supramencionadas podem ter implicações em termos de acesso ao procedimento de asilo e do cumprimento das normas processuais, considerando que a falta de serviços de interpretação, de material de informação e de pessoal devidamente equipado e formado pode impedir ou dificultar o acesso à protecção internacional.

O actual quadro operacional poderá impedir que os recém-chegados recebam informação adequada e negar aos potenciais requerentes de asilo uma oportunidade efectiva de expressar o desejo de pedir asilo em Itália. Isto pode ter implicações negativas, particularmente para pessoas com necessidades específicas e pessoas que, de acordo com o Regulamento de Dublin, possam ter razões legítimas para apresentar os seus pedidos em Itália, como os menores não acompanhados requerentes de asilo e outras pessoas com laços familiares em Itália.

5. Recomendações

O ACNUR recomenda a adopção de medidas para fortalecer o acesso efectivo ao território e a procedimentos de protecção internacional nos portos do Adriático. Para este fim, o ACNUR recomenda que mais recursos financeiros sejam alocados para serviços de assistência e informação, a fim de melhorar o papel das ONGs através de um acolhimento adequado, informação de qualidade e aconselhamento jurídico.

Além disso, o ACNUR recomenda que o trabalho da polícia de fronteira seja mais apoiado, através de serviços de interpretação adequados, material escrito de informação actualizado e formação regular em protecção internacional, identificação de pessoas com necessidades especiais e Regulamento Dublin.

Além disso, o ACNUR pede às autoridades italianas que adoptem procedimentos operacionais normalizados para definir salvaguardas processuais e serviços prestados, em particular pelas ONGs que trabalham nos pontos de passagem das fron teiras, incluindo no que diz respeito ao acesso de ONGs a pessoas que queiram pedir protecção internacional.

Finalmente, o A CNUR recomenda que as autoridades italian as competentes realizem avaliações regulares dos pontos de passagem das fronteiras onde tenha sido registado, nos últimos três anos, o maior número de chegadas, tanto em termos de requerentes de asilo como de chegadas em geral.

Fonte: HRW - Human Rights Watch, World Report 2019 - Italy, 17 de Janeiro de 2019, disponível em: https:/ /www.ecoi .net/en/document/2002229.html [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

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De acordo com o ACNUR, até meio de Novembro, apenas 22.435 migrantes e requerentes de asilo tinham chegado a Itália por mar, o que em grande parte se deve às medidas de prevenção de chegadas já implementadas pelo governo que cessou funções. Em contraste, em 2017, chegaram 119.369 pessoas.

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Fonte: Danish Refugee Council, Swiss Refugee Council, MUTUAL TRUST IS STILL NOT ENOUGH The situation of persons with special reception needs transferred to ltaly under the Dublin III Regulation, 12 de Dezembro de 2018, disponível em: https://reliefweb.int/report/italy/mutual-trust-still-not-enough-s ituation-persons-special reception-needs-transferred [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

Em 2016, o Danish Refugee Council e o Swiss Refugee Council iniciaram um projecto de monitorização conjunta, documentando as experiências de requerentes de asilo transferidos para Itália de acordo com o Regulamento Dublin III (…)

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Os 13 casos de estudo demonstram que a recepção de requerentes de asilo vulneráveis transferidos para Itália é arbitrária, apesar das garantias prestadas pelas autoridades italianas na sequência do acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no processo Danish Refugee Council

Através da monitorização da situação de 13 pessoas transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin, o Danish Refugee Council e o Swiss Refugee Council documentam como a muitos é totalmente negado o acesso ao sistema de acolhimento italiano ou necessitam de esperar longos períodos antes de serem alojados, o que dificulta significativamente o acesso efectivo ao procedimento de asilo italiano.

As experiências dos requerentes de asilo que participaram demonstram que, depois de terem acesso a condições de acolhimento, que frequentemente estão longe de ser adequadas para responder às suas necessidade especiais de acolhimento, as pessoas vulneráveis transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin ficam em risco de perder o direito a alojamento sem que a sua situação de vulnerabilidade seja devidamente tida em conta.

Ao acompanhar os casos documentados através do projecto de monitorização, o Danish Refugee Council e o Swiss Refugee Council concluíram que é claro que existe um risco real de que não sejam prestadas condições de acolhimento adequadas a requerentes vulneráveis retomados ao abrigo do Regulamento Dublin à chegada a Itália, expondo-os a risco de maus-tratos contrários ao artigo 3.º da CEDH e ao artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE.

O risco de violação dos direitos fundamentais das pessoas retomadas ao abrigo do Regulamento Dublin tem aumentado com as alterações ao sistema de acolhimento italiano introduzidas pelo Decreto Salvini, que entrou em vigor a 5 de Outubro de 2018 e que piorou o sistema de acolhimento italiano.

Por fim, as experiências das pessoas transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin monitorizadas evidenciam que os Estados-Membros devem cumprir as obrigações a que estão vinculados pelo Regulamento Dublin de assegurar que é dada a devida resposta às necessidades especiais de pessoas retomadas a cargo na sequência de uma transferência Dublin para o Estado-Membro responsável. Como ilustrado pelos casos de estudo deste relatório, aqueles que são responsáveis por dar resposta às necessidades especiais de pessoas vulneráveis transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin, parecem frequentemente desconhecê-las, apesar das obrigações que incumbem ao Estado que procede à transferência nos termos dos artigos 31 e 32 do Regulamento Dublin III, segundo as quais têm de transmitir qualquer necessidade especial da pessoa a transferir.

[…]

1.2. Desenvolvimentos políticos recentes e consequências para o sistema de asilo italiano

O número de novos requerentes de asilo registados em Itália diminuiu progressivamente em 2017 e 2018, em parte devido à cooperação das autoridades italianas com as contrapartes líbias.

Um Memorando de Entendimento entre as autoridades italianas e líbias foi assinado e entrou em vigor em Fevereiro de 2018 por um período de três anos. O Memorando e outras formas de cooperação entre os dois países para travar o fluxo migratório para Itália têm sido fortemente criticados, tanto por organizações internacionais de direitos humanos, como por organizações intergovernamentais. Anteriores acordos semelhantes entre a Líbia de Gaddafi e a Itália foram censurados pelo TEDH na sua decisão no processo Hirsi Jamaa e outros c. Itália, no qual o tribunal decidiu que as parcerias violavam o princípio do non-refoulement e a proibição de expulsões colectivas.

O ACNUR reportou 21.000 novas chegadas por mar a Itália entre Janeiro e Setembro de 2019, em comparação com 105.400 no mesmo período em 2017. Tal não significa, contudo, que a pressão sobre o sistema de asilo italiano tenha desaparecido, uma vez que no final de 2017 ainda estavam pendentes em primeira instância 145.906 pedidos de asilo.

(…)

Assim, a forma como as pessoas vulneráveis transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin são recebidas pelas autoridades italianas continua a ser arbitrária. A maioria das pessoas vulneráveis transferidas monitorizadas teve de dormir na rua após a sua chegada a Itália e apenas teve acesso a centros de acolhimento ou outros abrigos na sequência da sua participação no DRMP [Dublin Returnee Monitoring Project], uma vez que os entrevistadores do DRMP frequentemente intervieram no seu caso. Após terem tido acesso a condições de acolhimento, frequentemente estas estavam longe de ser adequadas para responder às suas necessidades especiais de acolhimento, em alguns casos devido à falta de cuidados médicos especializados.

(…)

(…) através da monitorização de 13 indivíduos ou famílias vulneráveis transferidas paro Itália ao abrigo do Regulamento Dublin III, o DRC e o OSAR confirmaram as conclusões do primeiro relatório DRMP de Fevereiro de 2017, que documentou seis famílias, nenhuma das quais recebeu alojamento, assistência e cuidados adequados à chegada a Itália.

Assim, contrariamente às normas relevantes de Direito Internacional, Europeu ou Nacional nenhum dos 13 indivíduos ou famílias cujas experiências foram descritas neste relatório teve acesso a alojamento adequado à chegada a Itália, o que também aconteceu às seis famílias referidas no primeiro relatório DRMP. Uma vez que as autoridades italianas não suprem as necessidades de acolhimento dos requerentes de asilo em geral, nem as necessidades especiais de requerentes de asilo vulneráveis, apesar de estarem juridicamente obrigadas a fazê-lo, o mero acesso a condições de acolhimento à chegada por uma pessoa vulnerável transferida ao abrigo do Regulamento Dublin parece ser uma questão de sorte.

(…)

(…) os requerentes de asilo vulneráveis correm o risco de lhes ser negado ou retirado o acesso ao sistema de acolhimento italiano sem que a sua situação de vulnerabilidade ou o princípio da proporcionalidade sejam tidos em conta, o que pode dificultar significativamente o seu acesso efectivo ao procedimento de asilo.

(…)

Fonte: IRIN News, New Italian law adds to unofficial clampdown on aid to asylum seekers, 7 de Dezembro de 2018, disponível em: https://www.irinnews.org/newsfeature/2018/12/07/new-italian-law-adds-unofficial-clampdown-aid-asylum-seekers[consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

Dezenas de milhares de requerentes de asilo vulneráveis perderam o direito a autorizações de residência válidas por dois anos e a serviços de integração em Itália na sequência da aprovação, na semana passada, da nova legislação promovida pelo Ministro da Administração Interna do populista governo de direita, Matteo Salvini.

Todavia, de acordo com entrevistas a requerentes de asilo e juristas especializados realizadas ao longo de vários meses, bem como com as respostas governamentais a dezenas de pedidos feitos ao abrigo do direito à liberdade de informação, nos últimos dois anos, milhares já tinham visto os serviços públicos a que tinham direito cortados ou reduzidos.

De acordo com a informação obtida pela IRIN junto dos governos locais, um em cada três requerentes de asilo que chegou a mais de metade das prefeituras italianas nos últimos dois anos, abandonou ou foi expulso do alojamento público.

(…)

Grupos de apoio alertam para o facto de que a nova lei irá agravar a já existente crise em Itália, que se debate para prestar serviços básicos a cerca de 180.000 refugiados e requerentes de asilo que aguardam decisões e que tem um número estimado de 500.000 migrantes indocumentados - muitos dos quais já estão fora do sistema de acolhimento.

O Decreto-Lei sobre Imigração e Segurança em resumo: (…)

• Requerentes de asilo deixam de ter acesso a serviços de integração até que o seu pedido seja deferido;

• Drástica redução da rede de centros de acolhimento; (…)

Há apenas 25.000 lugares no sistema italiano de acolhimento de longo-prazo, gerido pelo governo, conhecido pelo seu acrónimo italiano, SPRAR, que tipicamente presta cuidados de elevada qualidade. Isto significa que mais de 150.000 pessoas que aguardam a decisão do seu pedido de asilo, ou 80 por cento do total, estão alojadas em mais de 9.000 infra-estruturas de acolhimento supostamente temporárias, conhecidas pelo acrónimo CAS. Na sua maioria, estas são geridas por entidades comerciais sem qualquer experiência de prestação de alojamento e serviços a requerentes de asilo e que têm sido associadas a corrupção e condições precárias.

(…)

'Centenas já foram expulsos de centros de acolhimento por toda a Itália e ficaram sem-abrigo de um momento para o outro', relatou à IRIN Oliviero Forti, responsável pela divisão de migração da Caritas em Itália. 'Em alguns locais, como Crotone, os abrigos da nossa organização ficaram assoberbados durante o fim-de-semana. Algumas pessoas muito vulneráveis, como mulheres grávidas ou pessoas com doença psiquiátrica, estão a ser postas na rua sem qualquer medida de apoio e, inacreditavelmente, as infra- estruturas públicas estão a pedir ajuda à Caritas.'

(…)

Em 2016, a Itália tomou o lugar da Grécia como principal ponto europeu de entrada de migrantes e requerentes de asilo, tendo recebido 320.000 pessoas nos últimos dois anos - com a grande maioria a chegar em pequenos e sobre/atados barcos operados por contrabandistas pelo Mediterrâneo desde o Norte de África ou após serem resgatados no trajecto.

(…)

Aqueles relativamente aos quais seja prima facie determinada a existência de um fundamento legítimo para requerer asilo têm direito a um lugar no sistema SPRAR, ainda que a maioria não o obtenha. [Estas] são instalações de pequena dimensão, uniformemente distribuídas pelo país, criadas pelo Ministério da Administração Interna e geridas por organizações humanitárias com experiência de trabalho com populações migrantes. São amplamente conhecidas por prestarem serviços básicos de qualidade elevada, bem como formação profissional e apoio psicológico. As 25.000 vagas disponíveis têm-se destinado, em regra, aos casos mais vulneráveis, como menores vítimas de tráfico.

De acordo com a nova legislação de Salvini, apenas pessoas a quem seja concedido um visto - processo que pode demorar vários anos - e não requerentes de asilo, podem ser colocadas em infra-estruturas SPRAR. Os migrantes e requerentes de asilo serão enviados para um CAS.

Os Médicos sem Fronteiras [MSF] afirmaram em comunicado que a nova lei terá 'impacto dramático na vida e saúde de milhares de pessoas'. Os MSF declararam que 'nos anos em que operaram nos CAS', os seus trabalhadores concluíram que permanências prolongadas nos centros 'deterioram a saúde mental dos migrantes' e 'prejudicam a probabilidade de se integrarem na sociedade com sucesso'.

(…)

Entrevistas com juristas especializados, assistentes sociais, dezenas de migrantes e a análise de decisões de cessação revelam um padrão de violações generalizadas dos direitos legais dos migrantes nos centros de acolhimento, sendo as autoridades locais, por vezes, coniventes com os abusos.

Os centros CAS - na sua maioria unidades hoteleiras e apartamentos privados identificados e aprovados pelas autoridades locais - são, teoricamente, apenas um elo numa complexa e mal regulada cadeia de alojamento para migrantes. Todavia, como os centros SPRAR estão completos, assumiram o excedente. (…)

Com as condições insatisfatórias do sistema de acolhimento, os bairros de lata cresceram nos últimos anos. Nestas comunidades, é frequentemente difícil para os migrantes obter serviços básicos como cuidados de saúde e apoio jurídico necessário ao acompanhamento dos pedidos de asilo.

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Fonte: European Database of Asylum law (EDAL), The Netherlands - Court blocks transfer of asylum seeker to lta/y due to the reception system's deficiencies after the latest decree, 18 de Outubro de 2018, disponível em: https :// www.asylumlawdatabase.eu/en/content/netherlands-o/oE2%80"/o93-court-blockstransfer-asyl um-see ker-italy-due-reception-system%E2%80%99s-deficiencies [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

A 18 de Outubro, o Tribunal Distrital da Haia pronunciou-se sobre um caso relativo à transferência Dublin para Itália de uma cidadã eritreia, cujo pedido de autorização de residência temporária de asilo foi recusado pelas autoridades holandesas com base no facto de as autoridades italianas serem responsáveis por analisar o pedido de asilo da requerente.

A requerente impugnou a decisão perante o Tribunal Distrital afirmando, inter alia, que não poderia ser transferida para Itália devido às sérias deficiências estruturais no procedimento de asilo e acolhimento no país. De acordo com a requerente, o recente decreto sobre asilo e migração limitou os direitos dos requerentes de asilo e agravou as condições de acolhimento.

Consequentemente, os requerentes de asilo e os beneficiários de estatuto de protecção humanitária estão excluídos do acesso a infra-estruturas de acolhimento SPRAR, sendo forçados a viver em centros de acolhimento temporários, onde as condições são frequentemente críticas.

O Tribunal notou que a restrição de acesso a infra-estruturas de acolhimento do Sistema SPRAR pode afectar negativamente a capacidade das restantes infra-estruturas de acolhimento. Neste contexto, citou várias fontes que documentam a considerável pressão que as instalações de acolhimento italianas já enfrentam, incluindo relatórios dos Médicos sem Fronteiras e da ECRE/AIDA. O governo holandês argumentou que, apesar de ser necessário examinar as

De acordo com o Tribunal, o argumento do governo não tem em conta as consequências mais amplas que o referido decreto poderá ter em geral nas condições de acolhimento em Itália. Assim, não estava suficientemente substanciado que não há deficiências estruturais na recepção em Itália. O Tribunal anulou a decisão impugnada e devolveu o processo às autoridades nacionais para que decidam de acordo com as conclusões da sentença.

[…]

Fonte: European Council on Refugees and Exiles, Asylum Information Database, ltaly: Latest lmmigration Decree drops Protection Standards, 26 de Setembro de 2018, disponível em: http://www.asylumineurope.org/news/26-09-2018/italy-latest-immigration-decree-dropsprotection- standards [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

(…)

O Decreto-Lei também limita o Sistema de Protecção de Requerentes de Asilo e Refugiados (SPRAR), uma rede de projectos de acolhimento de pequena escala e descentralizados com 35.881 lugares de alojamento actualmente financiados, a beneficiários de protecção internacional e crianças não acompanhadas. Os requerentes de asilo e beneficiários de estatuto de protecção humanitária ficarão, portanto, excluídos do SPRAR e apenas terão acesso a centros de acolhimento de primeira linha e a centros de acolhimento temporários (CAS), onde as condições de vida são, frequentemente, críticas.

(…)

Fonte: European Data base of Asylum law (EDAL), Luxembourg - Administrative Tribunal stops Dublin transfer of asylum seeker to ltaly, due to country's systemic deficiencies, 10 de Julho de 2018, disponível em: https:/ /www.asylumlawdatabase.eu/en/content/luxembourg%E2%80%93-administrative-tribunal-stops-dublin-transfer-asylum-seeker-italy-duecountry%E2%80%99s [consultado a 15 de Fevereiro]

A 10 de Julho, o Tribunal Administrativo do Luxemburgo pronunciou-se no processo 41401/18, relativo a um requerente de asilo Guineense que chegou ao Luxemburgo através de Itália. Alguns meses depois de ter pedido asilo, foi informado de que seria transferido para Itália por existir um primeiro registo das suas impressões digitais no país.

O requerente impugnou a decisão enquanto estava em detenção domiciliária devido à sua transferência para Itália. Alegou que as falhas sistémicas em Itália e a falta de condições de acolhimento adequadas não asseguram o respeito pelos seus direitos fundamentais e que a transferência para o país configuraria um risco real de tratamento desumano ou degradante. Respondendo à contestação do governo, o Tribunal reiterou que, não obstante a confiança mútua continuar a ser aplicável a Estados-Membros, esta continua a ser uma presunção ilidível e, à luz da fundamentação to TJUE no processo C-578/2016, deverá ser feita uma análise individual.

Prosseguiu examinando provas relevantes sobre a actual situação dos requerentes de asilo no país, incluindo o recente relatório AIDA do ECRE sobre Itália, concluindo que o procedimento de asilo e o sistema de acolhimento efectivamente apresentam várias falhas sistémicas. Notou também que tais falhas são exacerbadas pela actual instabilidade política no país. Afastando o argumento do Governo segundo o qual as alegações do requerente eram demasiados gerais, o Tribunal concluiu que há prova suficiente para considerar que o procedimento de asilo e as condições de acolhimento em Itália são inadequadas, notando que as autoridades italianas não conseguem assegurar acesso a cuidados médicos e condições de vida dignas, criando um possível risco de tratamento desumano ou degradante.

(…)

Fonte: Amnesty lnternational, Amnesty lnternationa/ Report 2017/18 - Italy, 22 de Fevereiro de 2018, disponível em: https ://www.refworld.org/docid/Sa9938e2a.html [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

(…)

PROCEDIMENTO DE ASILO

Até ao final do ano, cerca de 130.000 pessoas tinham pedido asilo em Itália, um aumento de 6% relativamente aos quase 122.000 em 2016. Ao longo do ano, a mais de 40% dos requerentes foi concedido algum tipo de protecção em primeira instância. Em Abril foi introduzida legislação para acelerar os procedimentos de asilo e combater a migração irregular, incluindo através da redução das garantias processuais em impugnações de decisões de rejeição dos pedidos. A nova lei não esclareceu adequadamente a natureza e a função dos hotspots estabelecidos pela UE e dos acordos governamentais subsequentes de 2015. Os hotspots são instalações criadas para a recepção inicial, identificação e registo de requerentes de asilo e migrantes que chegam à UE por mar. No seu relatório de Maio, o Mecanismo Nacional para a Prevenção da Tortura destacou a contínua falta de base legal e de normas aplicáveis sobre a detenção de pessoas em hotspots.

Também em Maio, o Comité de Direitos Humanos da ONU criticou a detenção prolongada de refugiados e migrantes em hotspots. Também criticou a falta de garantias contra a classificação incorrecta dos requerentes de asilo como migrantes económicos e a falta de investigações na sequência de relatos de uso excessivo da força durante os procedimentos de identificação. Em Dezembro, o Comité das Nações Unidas contra a Tortura expressou preocupação relativamente à falta de garantias contra o retorno forçado de pessoas a países onde possam estar em risco de violações dos direitos humanos.

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Fonte: Médecins sans Frontieres (MSF), Out of Sight, 2.ª edição, 8 de Fevereiro de 2018, disponível em: https:/ /www.msf.org/sites/msf.org/files/2018-06/out_of_sight_def.pdf [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

Este relatório surge no seguimento da investigação feita em Fuori campo - Requerentes de asilo e refugiados em Itália: campos não oficiais e marginalização social. É o resultado de constantes actividades de monitorização realizadas em 2016 e 2017 por meio de repetidas visitas de campo e em colaboração com uma extensa rede de associações locais.

O sistema de acolhimento de requerentes de asilo e refugiados que, em 31 de Dezembro de 2017, tinha pouco mais de 180.000 lugares, continua a basear-se, em grande parte, em estruturas de recepção extraordinárias, sendo os serviços destinados à inclusão social limitados.

Há zonas de marginalização em áreas urbanas e rurais em toda a Itália. O aumento dos despejos forçados, combinado com a falta de soluções habitacionais alternativas, resultam na fragmentação dos aglomerados informais, especialmente em contextos urbanas: migrantes e refugiados vivem em lugares cada vez mais escondidos num estado de crescente medo e frustração, sendo o contacto com os serviços sociais, incluindo com cuidados de saúde, progressivamente limitado.

Devido a barreiras administrativas e apesar da legislação em vigor, os migrantes e refugiados em aglomerados informais, independentemente do seu estatuto à luz da lei, têm cada vez menos oportunidades de acesso a tratamento médico. Os serviços de emergência hospitalar estão rapidamente a tornar-se a única porta de entrada para o Sistema Nacional de Saúde de Itália.

Nos últimos dois anos, mais de vinte pessoas morreram a tentar atravessar as fronteiras com França, Áustria e Suíça. Os migrantes são repetidamente rejeitados na fronteira, sendo a rejeição frequentemente acompanhada por violência. O número de pessoas bloqueadas nas fronteiras e que vive em aglomerados não oficiais está a aumentar, sendo limitado o acesso a cuidados básicos e a cuidados de saúde.

(…)

Em 2016 e 2017, os Médicos sem Fronteiras (MSF) reforçaram o seu compromisso em apoiar os migrantes em aglomerados não oficiais. Em Como e em Ventimiglia, foi implementado um programa de primeiros socorros psicológicos para pessoas em trânsito, juntamente com o programa de saúde para mulheres em Ventimiglia. Em Roma, organizaram-se, em prédios abandonados onde homens, mulheres e crianças vivem em condições indignas, cuidados de saúde primários e apoio psicológico.

(…)

O relatório confirma a estimativa indicada na primeira edição do Fuori Campo: há, pelo menos, 10.000 pessoas excluídas do sistema de acolhimento, incluindo beneficiários e requerentes de protecção internacional e humanitária, com acesso limitado ou sem acesso a necessidades básicas e a cuidados médicos. A distribuição deste tipo de aglomerados é fragmentada e comumno país.

SISTEMA DE ACOLHIMENTO E FRONTEIRAS

Após os picos de 2016, 2017 registou uma diminuição global do número de desembarques - predominantemente devido a medidas de contenção implementadas após o acordo entre a Itália e a Líbia - e um aumento paralelo dos pedidos de asilo. A implementação completa da "abordagem de hotspot" resultou no registo forçado de quase todos os migrantes que chegam a Itália. Isso conteve os movimentos secundários em direcção aos países mais a norte.

A 31 de Dezembro de 2017, o sistema de acolhimento tinha 183.681 1ugares, um ligeiro aumento em relação a 2016. Apesar das tentativas do governo de promover o modelo do Sistema de Protecção de Refugiados e Requerentes de Asilo (SPRAR), gerido pelos Municípios, o número de requerentes de asilo e refugiados na rede SPRAR era de 31.270 na mesma data, apenas 17% do total.

A escassez crónica de lugares nos centros de acolhimento deve-se não só ao número crescente de pedidos de asilo, mas também ao facto de haver pouca rotatividade nos centros devido ao tempo necessário para avaliar os pedidos. Apesar do aumento das Comissões Territoriais nos últimos anos, o tempo decorrido entre o pedido de asilo e a notificação do resultado é em média de 307 dias. No caso de recusa de protecção e de impugnação, o tempo de permanência nos centros pode aumentar para mais 10 meses (o tempo médio necessário para se obter uma decisão em caso de impugnação). (…)

Outros factores estão a colocar pressão no sistema de acolhimento. Em primeiro lugar, o número crescente de requerentes de asilo noutros países que é enviado de novo para a Itália ao abrigo do Regulamento de Dublin. Em segundo lugar, o fracasso do processo de recolocação criado pelo Conselho da UE em Setembro de 2015 para transferir requerentes de asilo a partir de Itália e da Grécia para outros Estados- Membros.

(…) há também requerentes de asilo a quem foi retirado o acolhimento; migrantes que deixam os centros por lhes ter sido negada a protecção internacional, independentemente de terem impugnado ou não a decisão (…)

(…)

Durante os últimos dois anos, o número de requerentes e de beneficiários de protecção internacional e de protecção humanitária que vive em edifícios ocupados aumentou. A maioria destas pessoas nunca entrou num sistema de acolhimento institucional ou foi expulsa do mesmo, sem que tenha havido uma inclusão social adequada. As ocupações são geridas pelos próprios migrantes e refugiados, especialmente quando os residentes são do mesmo país de origem, outras são geridas por movimentos pelo direito à habitação; estes geralmente reportam-se às designadas "ocupações mistas", onde migrantes e refugiados de diferentes zonas – África Subsaariana, América Latina, Europa - coexistem juntamente com muitos italianos.

Muitas ocupações que começaram por ser ocupações à margem da lei foram posteriormente legalizadas, com o envolvimento de entidades e instituições privadas (principalmente os Municípios e Regiões). Em comparação com o sistema de acolhimento do governo para requerentes de asilo e refugiados, as ocupações promovem um modelo baseado na autogestão e dão aos residentes a oportunidade de permanecer em segurança até conseguirem uma efectiva independência a nível social, habitacional e laboral.

Em relação aos cuidados de saúde, foram impostas limitações pela Lei n.º 80/2014 (Artigo 5.º), confirmadas pela Lei n.º 48/2017: morar em prédios ocupados não dá às pessoas a oportunidade de obter uma residência formal e, portanto, de se registar no Serviço Nacional de Saúde. Isto é particularmente relevante nas cidades onde o município não concede uma residência fictícia - aquela que é dada aos sem- abrigo - ou onde é particularmente difícil obtê-la.

[…]

Despejos forçados

O Decreto Legislativo n.º 267/2000 confere autoridade ao prefeito "em relação à necessidade urgente de intervenções que visem a superação de situações de negligência grave ou degradação do território, do meio ambiente e do património cultural, ou em detrimento da limpeza e habitabilidade urbana". Essa autoridade, reafirmada e fortalecida pela Lei n.º 48/2017, é cada vez mais usada para desmantelar aglomerados não- oficiais onde vivem migrantes e refugiados excluídos do sistema de acolhimento institucional, usando mais ou menos despejos forçados, quase nunca programando os mesmos com a população residente. Isso força as pessoas a dispersar em áreas cada vez mais periféricas e em locais cada vez mais ocultos, com acesso mais limitado a serviços sociais e de saúde, com a possibilidade cada vez mais remota de aceder a serviços que atendam às necessidades dessa população vulnerável.

(…)

Fonte: Human Rights Watch, World Report 2018 - European Union, 18 de Janeiro de 2018, disponível em: https:/ /www.refworld.org/docid/5a61ee75a.html [consultado a 15 de Fevereiro de 2019] Itália

Mais de 114.000 migrantes e requerentes de asilo chegaram a Itália, por mar, até meados de Novembro, de acordo com o ACNUR, o que tem sobrecarregado o sistema de acolhimento do país. O governo adoptou políticas mais restritivas no contexto de um debate político tóxico sobre migração.

Nos primeiros sete meses do ano, o número de novos pedidos de asilo quase duplicou, quando comparado com 2016, tendo as autoridades conferido alguma forma de protecção em 43% dos casos. A maioria recebeu autorização humanitária temporária para permanecer no país, incluindo por abusos sofridos enquanto migrantes na Líbia.

Em Fevereiro, o governo introduziu medidas para acelerar o procedimento de asilo, incluindo através da limitação das impugnações de decisões negativas, e anunciou planos para novos centros de detenção para imigrantes no país.

O governo central teve problemas em encontrar alojamento para os requerentes de asilo em Itália, tendo muitas comunidades recusado ter centros de acolhimento. Muitos centros de acolhimento carecem de cuidados e apoio para sobreviventes de violência sexual, bem como para sobreviventes de outra[s formas de] violência traumática. A incapacidade de Itália em garantir o apoio de longo prazo a indivíduos que receberam protecção internacional ficou clara em Agosto, quando a polícia despejou violentamente centenas de refugiados da Eritreia sem-abrigo de um prédio ocupado em Roma.

(…)».

Cf. informação de fls. 143 e ss. dos autos.


*

Nada mais foi dado como provado ou não provado com interesse para a decisão da causa.

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A matéria de facto foi dada como provada face às posições das partes e ao teor dos documentos juntos ao processo, de acordo com o que ficou plasmado a propósito de cada facto.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso jurisdicional.

1. Erro de julgamento, por ao procedimento especial de retoma a cargo não ser aplicável o artigo 17.º, n.º 2 da Lei de Asilo, no tocante à audiência prévia do requerente de proteção internacional

Vem o Recorrente impugnar a sentença recorrida com o fundamento de incorrer em erro de julgamento no tocante a existir violação do direito de audiência prévia do requerente de proteção internacional, num procedimento como aquele que está em causa, de determinação do Estado responsável pela análise do pedido apresentado.

Sustenta que foi realizada a entrevista pessoal ao interessado e que, apurando-se que o interessado havia apresentado anterior pedido em Itália foi pedida a retoma a cargo, a qual foi tacitamente aceite.

Defende que a tramitação do procedimento de determinação do Estado membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional obedece a regras de procedimento diferentes.

O artigo 5.º do Regulamento de Dublin prevê no tocante à entrevista, que ela deve permitir que o requerente compreenda devidamente as informações que lhe são facultadas.

As normas dos artigos 16.º e 17.º da Lei de Asilo aplicam-se aos procedimentos comuns, que são aqueles cuja competência para a análise do pedido de proteção internacional pertence ao Estado português, mas diferentemente ocorre com os procedimentos especiais, como no caso de ser necessário determinar qual o Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, pois determinado esse Estado, não se aplicam as normas previstas no Capítulo III da Lei de Asilo.

Por isso, defende o Recorrente que não é aplicável o artigo 17.º, n.º 2 da Lei de Asilo e que o Estado português apenas estaria obrigado a cumprir o estatuído no artigo 17.º da Lei de Asilo se o pedido de retoma a cargo tivesse sido repudiado, o que não aconteceu.

Vejamos.

Importa antes de mais considerar a matéria de facto apurada na sentença recorrida, pois será com base nela que se procederá à interpretação e aplicação dos normativos de direito.

Nos termos do julgamento da matéria de facto encontra-se demonstrado que antes da apresentação do pedido de proteção internacional em Portugal, o ora Recorrido apresentou idêntico pedido em Itália.

Sendo enviado pelas autoridades nacionais às autoridades italianas o pedido de retoma a cargo, não existiu qualquer comunicação, pelo que, por falta de resposta, as autoridades nacionais comunicaram às suas congéneres italianas que se considera que aceitaram retomar a cargo o Autor (cfr. alíneas C) e E) do julgamento de facto).

Mais se encontra demonstrado que na entrevista realizada se concluiu que seria Itália o Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, se transmitiu essa informação ao Requerente e que, em reação a essa informação o ora Recorrido se pronunciou no sentido de que se a decisão a tomar for de o transferir para Itália, não quer ir e que impugnará a decisão que for tomada.

A decisão administrativa impugnada traduziu-se em considerar o pedido de asilo apresentado pelo Requerente inadmissível, à luz do disposto nos artigos 19.º-A, n.º 1, a) e 37.º, n.º 2, da Lei de Asilo, aprovada pela Lei n.º 27/08, de 30/06, na sua redação vigente, baseada na circunstância de ser outro o Estado o responsável pela análise do pedido de proteção internacional, nos termos do Regulamento de Dublin III – Regulamento (EU) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.

Atendendo à factualidade demonstrada em juízo resulta que a decisão impugnada, da Diretora Nacional do SEF, de 17/07/2019, que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional formulado pelo ora Recorrido, foi tomada no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, que vem regulado nos artigos 3.º, 5.º, 22.º, n.ºs 1 e 7 do Regulamento n.º 604/2013, de 26/06 e 37.º a 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06 (Lei de Asilo).

Segundo os citados preceitos, cabendo a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional a outro Estado membro, o SEF deve suspender o procedimento comum destinado à concessão da proteção internacional que tenha sido requerida em Portugal e deve dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável, nos termos dos artigos 3.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 23.º, n.º 1, 25.º, n.ºs 1, 2 do Regulamento n.º 604/2013, de 26/06, 36.º, 37.º e 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

Para tal, o SEF deve solicitar a esse Estado a retoma a cargo do requerente de proteção, abstendo-se de mais diligências no procedimento comum para a apreciação do pedido de proteção internacional, segundo o artigo 37.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

No presente caso, tendo sido pedida às autoridades italianas a tomada a cargo do Autor em 01/07/2019, nos termos previstos no artigo 22.º, n.ºs 1 e 7 do Regulamento n.º 604/2013, de 26/06, o Estado italiano nada disse, levando a que as autoridades nacionais, em 17/07/2019 tivessem comunicado às autoridades italianas que, por falta de resposta, se considera que Itália aceitou retomar a cargo o Autor.

Quer no caso de as autoridades do Estado membro requerido aceitem a retoma a cargo, quer quando nada respondam no prazo legal – de 1 mês ou de 2 semanas, caso se baseie em dados obtidos através de um sistema Eurodac – o Diretor do SEF deve considerar inadmissível o pedido de proteção internacional formulado, nos termos dos artigos 19.º, n.º 1, al. a) e 19.º-A e 20.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, determinando a transferência do requerente para o Estado membro responsável pela respetiva análise, segundo os artigos 25.º n.º 1, 2, 26.º n.º 1, do Regulamento n.º 604/2013, de 26/06, 37.º, n.º 2 e 38.º, da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

Por isso, de acordo com os factos apurados, Itália deve ser considerada o primeiro país de asilo, nos termos do artigo 19.º-A, n.º 1, c) da Lei de Asilo.

Assim, considerando a factualidade apurada em juízo, que reflete a concreta situação em que se encontra o Requerente de asilo ou de proteção subsidiária, designadamente, quanto a ter sido tomada a decisão e tomada a cargo, não cabe ao Estado português conhecer e decidir dos fundamentos do pedido de asilo.

Neste enquadramento, o SEF tem sempre que considerar que o pedido feito pelo Recorrente é inadmissível e, em consequência, determinar a transferência do Recorrente para Itália, por ser este o Estado membro responsável pela análise do seu pedido, conforme preceituam os artigos 19.º-A, n.º 1, a) e 20.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30/06, mas desde que esse Estado reúna as condições de acolhimento à luz das normas do Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA).

Tal conduta do SEF decorre do preceituado nos artigos 37.º a 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06 e 22.º, n.ºs 1 e 7 do Regulamento n.º 604/2013, de 26/06, que determinam que se a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertencer a outro Estado membro, incumbe ao SEF dar início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável, que, por seu turno, faz suspender o procedimento destinado à concessão da requerida proteção internacional até que seja proferida uma decisão final naquele (sub)procedimento especial, segundo o disposto no artigo 39.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

Caso as autoridades do Estado membro requerido aceitem a tomada a cargo ou nada respondam, por força dos artigos 26.º, n.º 1 do Regulamento n.º 604/2013, de 26/06 e 37.º, n.º 2, da Lei n.º 27/2008, de 30/06, o Diretor do SEF tem de considerar inadmissível o pedido de proteção internacional formulado, nos termos do artigo 19.º, n.º 1, al. a), 19.º-A e 20.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, determinando a transferência do Requerente para o Estado membro responsável pela respetiva análise, segundo o artigo 38.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

Como estabelece o artigo 19.º-A da Lei n.º 27/2008, com a epígrafe “Pedidos inadmissíveis”:

1 - O pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que:

a) Está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV;

(…)

2 - Nos casos previstos no número anterior, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.”.

Por sua vez, preceitua o artigo 2º, n.º 1, z) da Lei 27/08, de 30/06 que se entende como “Primeiro país de asilo”, “o país no qual o requerente tenha sido reconhecido como refugiado e possa ainda beneficiar dessa protecção ou usufruir nesse país de protecção efectiva, nos termos da Convenção de Genebra, e onde, comprovadamente, não seja objecto de ameaças à sua vida e liberdade, onde sejam respeitados o princípio da não repulsão e o direito de não ser objecto de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante, desde que seja readmitido nesse país.” (sublinhado nosso).

Pelo que a questão decidenda, tal como posta no presente recurso, respeita a decidir sobre a aplicação do artigo 17.º da Lei de Asilo ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela retoma a cargo, no tocante à audiência do interessado, ou seja, sobre as exigências colocadas no plano da audiência do requerente de proteção internacional.

A questão tal colocada não é nova, tendo sido objeto de anteriores decisões judiciais por este TCAS, como no caso do Processo n.º 689/19.7BELSB, de 24/10/2019, por nós relatado, cujo entendimento seguiremos, por identidade da questão material controvertida e não vislumbrarmos razões ponderosas para dela divergir.

Encontra-se apurado nos autos que em 03/07/2019 foi realizada uma entrevista com o ora Recorrido, na qual se informou que o pedido de proteção internacional seria analisado pelo Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, tendo o requerente argumentado que não queria regressar a Itália, por querer ficar em Portugal, afirmando que “Não quero regressar a Itália porque passei lá muito mal. Lá não nos explicam as coisas, tiram logo as nossas impressões digitais. Quero ficar em Portugal porque desde o início foi o meu destino. Gosto deste país, mesmo sem falar a língua percebo algumas coisas.” (ponto 10 da matéria de facto).

O que significa que, no caso concreto, foi facultada ao Requerente quer a informação pertinente, quer a oportunidade de sobre ela se pronunciar.

Por força do artigo 5.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26/06, no procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional é exigida a ocorrência de uma entrevista pessoal com o requerente de proteção, que deve ser acompanhada da elaboração de um resumo escrito, que indique as principais informações que foram facultadas durante a entrevista.

Este documento escrito pode ter o formato de um relatório ou formulário-tipo.

A citada entrevista e o correspondente relatório devem ocorrer antes da tomada de decisão relativa à transferência.

Nos termos do artigo 5.º, n.º 6, do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26/06, deve ainda ser assegurado ao requerente e/ou ao seu advogado ou outro conselheiro que o represente, o acesso ao indicado resumo em tempo útil.

No artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26/06, estipula-se que os pedidos de proteção devem ser analisados por um único Estado membro, o determinado de acordo com os critérios enunciados no Capítulo II do Regulamento.

Porém, estabelece o n.º 2 do mesmo preceito que “caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4.°da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue à análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável”.

Por seu turno, no artigo 17.º daquele mesmo Regulamento, sob a epígrafe “Cláusulas Discricionárias”, permite-se a derrogação do estabelecido no artigo 3.º, n.º 1, permitindo a “cada Estado-Membro (…) decidir analisar um pedido de protecção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos” no Regulamento.

Por conseguinte, despoletado o procedimento comum para a apreciação do pedido de proteção internacional, se se verificar pelas informações inicialmente recolhidas que existe um outro Estado que é o responsável pela análise de tal pedido, conforme se determina no Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26/06, deve ficar, de imediato, suspenso tal procedimento comum e deve iniciar-se o procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

É nesse último âmbito que o SEF solicita às respetivas autoridades do Estado membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional a retoma a cargo do requerente de proteção, nos termos do artigo 37.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

Entretanto, por aplicação do artigo 5.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26/06, deve ocorrer uma entrevista pessoal com o requerente da proteção, que é acompanhada de um resumo escrito, que lhe será entregue.

Essa entrevista serve para ouvir o requerente, para colher as suas informações, mas também para o informar acerca do seu pedido e respetivo enquadramento legal.

Tal entrevista servirá também para recolher do requerente a sua pronúncia acerca da decisão a tomar no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

Pelo que no caso configurado nos autos, não houve uma decisão do SEF a pronunciar-se sobre o mérito da pretensão do Requerente, pois não se apreciou acerca dos requisitos para o deferimento do pedido de proteção internacional, mas apenas se considerou tal pedido inadmissível, por Portugal não ser o Estado membro competente para a apreciação do pedido de proteção.

Nesta medida, a tramitação que se exige cumprir no caso dos autos não é a prevista nos artigos 10.º a 18.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, mas a tramitação especial e abreviada que vem regulada nos artigos 36.º a 37.º, n.ºs 1 a 6, dessa mesma Lei, com a obrigação da verificação da entrevista pessoal que vem indicada no artigo 5.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26/06.

Daí que, em consequência, no caso em apreço não existia a obrigação da elaboração do relatório que vem referido no artigo 17.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, pois tal relatório só se exige no procedimento comum para a aferição da proteção internacional.

Assim, o relatório previsto no artigo 17.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, só era exigível se o procedimento comum para a aferição da proteção internacional prosseguisse como incumbência do SEF, ao invés de ser considerado imediatamente inadmissível, por aplicação dos artigos 19.º-A, n.º 1, a) e 20.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

Como estabelece o artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei n.º 27/2008, de 30/06, nos casos de inadmissibilidade imediata do pedido de proteção “prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional”, pelo que as diligências e relatório indicados nos artigos 16.º e 17.º dessa lei, relativos à análise das condições a preencher para o deferimento de tal pedido, não têm aqui lugar, pois deixam de fazer sentido.

O único relatório que cumpre elaborar no procedimento especial de determinação do Estado responsável é o indicado no artigo 5º do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26/06, relativo ao resumo da entrevista realizada, o que, nos termos supra expostos, foi feito no presente caso.

Neste sentido, assiste razão ao Recorrente ao defender ter ocorrido a violação do artigo 17.º, n.ºs 1, 2 e 3 da Lei de Asilo pela sentença recorrida, por não ser aplicável ao caso a tramitação prevista para o procedimento comum, com a obrigação da elaboração do relatório referido no artigo 17.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

No caso em apreço, a tramitação a seguir é a que vem prevista nos artigos 36.º a 37.º, n.ºs 1 a 6, da Lei n.º 27/2008, de 30/06, não sendo exigível a elaboração do relatório indicado no artigo 17.º daquela lei.

A efetivação do direito de audiência ou participação do Requerente de proteção internacional ocorreu por via da entrevista que lhe foi feita e pelo relatório que lhe foi entregue, onde lhe foi transmitida a informação de ser outro o Estado responsável pela análise do pedido, in casu, Itália, e sobre a qual o Requerente se pronunciou no sentido de querer permanecer em Portugal.

Tal como ficou provado nos autos, nessa entrevista foi comunicado ao Requerente o teor da decisão que iria ser tomada, o qual se pronunciou sobre a mesma, manifestando a sua discordância, por não querer ser retornado a Itália.

A ocorrência deste momento no âmbito da entrevista, em que se indica ao Requerente o teor provável da decisão a tomar e em que ele se pronunciou sobre tal decisão, manifestando a vontade de permanecer em Portugal, basta para que se considerem cumpridas as exigências procedimentais que estão legalmente previstas no âmbito do procedimento especial para a determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

Não se exigindo na tramitação do procedimento especial uma fase demarcada em que ocorra a audiência prévia do Requerente de proteção, o exercício desse direito poderá ser feito em qualquer momento procedimental, desde que previamente à tomada da decisão final e desde que se comunique em termos cabais o teor da decisão que se pretende produzir – cf. neste sentido o artigo 5.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26/06.

Configura-se, portanto, que no caso dos autos, o direito à audiência prévia e à defesa do Requerente de proteção internacional foi exercido no âmbito da entrevista que lhe foi realizada, ao lhe ser comunicado o teor da decisão a proferir e se conceder a oportunidade de o Requerente se pronunciar sobre essa intenção, tal como ficou vertido no teor dessa entrevista.

Nestes casos, esta diligência procedimental é suficiente para o cumprimento do direito de audiência do Requerente e para o exercício da sua defesa, direitos estes que, ao contrário do decidido na sentença recorrida, não se consideram, por isso, violados, não sendo aplicável a necessidade de elaboração do relatório previsto no artigo 17.º, n.º 1 da Lei de Asilo e a sua consequente notificação ao Requerente e autoridades nacionais, nem o consequente exercício do direito de pronúncia posterior, por esses direitos já terem sido exercidos no desenrolar da entrevista.

No entanto, esta posição não é unânime entre a jurisprudência do STA.

Em sentido contrário, o STA decidiu nos Acórdãos de 18/05/2017, Proc. n.º 0306/17; de 04/10/2018, Proc. n.º 01727/17.3BELSB, de 20/12/2018, Proc. n.º 0275/18.9BELSB e de 03/10/2019, Proc. n.º 02095/18.1BELSB e, mais recentemente, de 17/12/2019, Proc. n.º 01770/18.5BELSB (embora este com declaração de voto e voto de vencida), os quais consideram que o relatório indicado no artigo 17.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, se aplica também aos procedimentos especiais para a determinação do Estado membro responsável.

Em sentido contrário ao da citada jurisprudência do STA e no sentido ao defendido no presente caso, vide os Acórdãos do STA, de 11/01/2019, Proc. n.º 0538/18.3BELSB; de 30/05/2019, Proc. n.º 0970/18.2BELSB e de 11/07/2019, Proc. n.º 01403/18.0BELSB.

Neste último aresto do STA, no Acórdão de 11/07/2019, Proc. n.º 01403/18.0BELSB, decidiu-se que no procedimento especial para a determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional os direitos de audiência e de defesa podem exercer-se no momento da entrevista, não se aplicando a exigência do artigo 17.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, de elaboração de um relatório.

No Acórdão de 30/05/2019, Proc. n.º 0970/18.2BELSB (que tem uma declaração de voto), julgou-se o seguinte: “Da análise do quadro normativo e diplomas convocados ressalta que no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional não resulta uma expressa ou uma concreta previsão de um direito de defesa/audiência conferido ao requerente, ao invés do que decorre do regime procedimental comum previsto, nomeadamente, nos arts. 16.º, 17.º e 17.º-A da Lei n.º 27/2008 ainda em sede da fase de controlo liminar do pedido de proteção internacional e previamente à emissão da decisão fundamentada sobre os pedidos infundados e inadmissíveis [cfr. arts. 19.º a 20.º do mesmo diploma] e, depois, no art. 29.º, n.º 2 da referida lei após decurso da fase de instrução do procedimento e antes de emissão da decisão final de concessão ou de recusa de proteção internacional [arts. 21.º, 27.º a 29.º], nas situações em que havia sido proferida decisão liminar de admissibilidade do pedido de proteção internacional, e, bem assim, no art. 24.º, n.º 2, da mesma lei para o regime especial referente aos pedidos apresentados nos postos de fronteira. (…) A questão da preterição do direito de audiência no quadro dos procedimentos relativos aos pedidos de proteção internacional não é nova neste Supremo Tribunal, tendo o mesmo afirmado a necessidade de observância daquele direito e para tal fazendo apelo à aplicação, mormente, do disposto no citado art. 17.º da Lei n.º 27/2008 [cfr. os Acs. de 18.05.2017 - Proc. n.º 0306/17, de 04.10.2017 - Proc. n.º 01727/17.BELSB e de 20.12.2018 - Proc. n.º 0275/18.9BELSB (quanto à aplicabilidade do referido preceito também no quadro do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional); vide, ainda, o Ac. de 28.03.2019 - Proc. n.º 01143/18.0BELSB (quanto à aplicabilidade do mesmo normativo no quadro do procedimento comum relativo aos pedidos de proteção internacional);, todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jsta» - sítio a que se reportarão também todas as demais citações de acórdãos deste Tribunal sem expressa referência em contrário]. 29. Consideramos ser de manter o entendimento de que no procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional se deve observar o direito de audiência. 30. Motivando e explicitando nosso juízo temos que o princípio da audiência prescrito, no plano interno, nos arts. 121.º e segs., do CPA, enquanto princípio estruturante de cada procedimento administrativo, assume-se como uma dimensão qualificada do princípio da participação a que se alude no art. 12.º do mesmo código, e surge na sequência e em cumprimento da diretriz constitucional inserta no art. 267.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, constituindo uma manifestação do princípio do contraditório/defesa através da possibilidade não só do confronto dos critérios da Administração com os dos administrados de modo a poderem ser obtidas plataformas de entendimento, mas, também, da possibilidade de estes apontarem razões e fundamentos, quer de facto quer de direito, que invalidem o caminho que a Administração intenta percorrer e levem a que outro seja o sentido da decisão, na certeza de que o seu afastamento, ou a sua dispensa, exigem que a concreta situação tenha ou encontre enquadramento na previsão do art. 124.º do CPA. 31. Por sua vez, temos, também, que, no plano do direito da União, o princípio do respeito dos direitos de defesa constitui um seu princípio geral e fundamental [hoje consagrado nos arts. 48.º e 49.º da CDFUE e, também, no art. 41.º da mesma Carta] e que é aplicável sempre que a Administração se proponha adotar, relativamente a uma pessoa, um ato lesivo dos seus interesses, sendo que, por força do mesmo princípio, os destinatários de decisões que afetam de modo sensível os seus interesses devem ter a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre os elementos com base nos quais a Administração tenciona tomar a sua decisão, na certeza de que esta obrigação incumbe às Administrações dos Estados-Membros, sempre que estas tomem decisões que entram no âmbito de aplicação do direito da União, e mesmo que a legislação da União aplicável não preveja expressamente essa formalidade [cfr. entre outros, os Acs. do TJUE de 28.03.2000, «Krombach» (C-7/98, § 42), de 18.12.2008, «Sopropé» (C-349/07, §§ 33, 36 e 49), de 22.11.2012, «M.» (C-277/11, §§ 49, 81 a 83, 86/87), de 18.07.2013, «Comissão e o./Kadi» (C-584/10 P, C-593/10 P e C-595/10 P, §§ 98 e 99), de 10.09.2013, «G. e R.» (C-383/13 PPU, §§ 32 e 35), de 03.07.2014, «Kamino International Logistics» (C-129/13, §§ 28 e 29), de 05.11.2014, «Mukarubega» (C-166/13, §§ 43 a 47, 49/50), de 11.12.2014, «Boudjlida» (C-249/13, §§ 30 a 37, 39/40), de 17.12.2015, «WebMindLicenses» (C-419/14, § 84 e jurisprudência referida), e de 09.11.2017, «Ispas» (C-298/16, § 26), todos consultáveis in: «https://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/pt/» - sítio a que se reportarão também todas as demais citações de acórdãos daquele Tribunal sem expressa referência em contrário]. 32. Atente-se que o sentido e o entendimento sustentados quanto à necessidade de observância do direito de audiência e de defesa, encontram fundamentação, também, no que se mostra expresso nos considerandos 17.º a 19.º do Reg. (UE) n.º 604/2013, quando ali se refere, nomeadamente, que «[o]s Estados-Membros deverão ter a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial por razões humanitárias e compassivas, a fim de permitir reunir membros da família, familiares ou outros parentes, e de analisar um pedido de proteção internacional que lhes tenha sido apresentado, ou a outro Estado-Membro, mesmo que tal análise não seja da sua responsabilidade nos termos dos critérios vinculativos previstos no presente regulamento» e que «[d]everá ser realizada uma entrevista pessoal com o requerente a fim de facilitar a determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional. Logo que o pedido de proteção internacional seja apresentado, o requerente deverá ser informado da aplicação do presente regulamento e, para facilitar o processo de determinação do Estado-Membro responsável, da possibilidade de, durante a entrevista, facultar informações acerca da presença de membros da família, de familiares ou de outros parentes nos Estados-Membros», bem como de que a fim de garantir a proteção efetiva dos direitos das pessoas em causa «deverão ser previstas garantias legais e o direito efetivo de recurso contra as decisões de transferência para o Estado-Membro responsável, nos termos, nomeadamente, do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A fim de garantir o respeito do direito internacional, o direito efetivo de recurso contra essas decisões deverá abranger a análise da aplicação do presente regulamento e da situação jurídica e factual no Estado-Membro para o qual o requerente é transferido». 33. E o mesmo sentido perpassa expresso no considerando 25.º da Diretiva n.º 2013/32/UE [disciplinadora dos procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional] onde se pode ler que «[p]ara que seja possível identificar corretamente as pessoas que necessitam de proteção enquanto refugiados na aceção do artigo 1.º da Convenção de Genebra ou enquanto pessoas elegíveis para proteção subsidiária, os requerentes deverão ter acesso efetivo aos procedimentos, a possibilidade de cooperarem e comunicarem devidamente com as autoridades competentes de forma a exporem os factos relevantes da sua situação e garantias processuais suficientes para defenderem o seu pedido em todas as fases do procedimento», a que «[a]cresce que o procedimento de apreciação de um pedido de proteção internacional deverá normalmente proporcionar ao requerente, pelo menos, o direito de permanecer no território na pendência da decisão do órgão de decisão, o acesso aos serviços de um intérprete para apresentação do caso se for convocado para uma entrevista pelas autoridades, a oportunidade de contactar um representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e organizações que prestem aconselhamento aos requerentes de proteção internacional, o direito a uma notificação adequada da decisão, a fundamentação dessa decisão em matéria de facto e de direito, a oportunidade de recorrer aos serviços de um advogado ou outro consultor e o direito de ser informado da sua situação jurídica nos momentos decisivos do procedimento, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, bem como, no caso de uma decisão de indeferimento, o direito a um recurso efetivo perante um órgão jurisdicional». 34. Ora presente os quadros principiológico e normativo acabados de explicitar entendemos que o direito de audição/defesa do aqui A. no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional, ainda que não expressamente previsto no regime procedimental definido no art. 37.º da Lei n.º 27/2008, deve ter-se, todavia, como imposto e de ser exigida a sua observância no seu seio, sob pena de infração dos comandos/princípios e normativos convocados. 35. Atente-se que quando as condições em que deve ser assegurado o respeito dos direitos de defesa dos nacionais de países terceiros em situação irregular não se mostram fixadas de modo expresso pelo direito da União essas condições e suas consequências terão, tal como constitui jurisprudência do TJUE, de ser regidas pelo direito nacional, desde que as medidas adotadas neste sentido sejam equivalentes àquelas de que beneficiam os particulares em situações de direito nacional comparáveis [princípio da equivalência] e não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos de defesa conferidos pela ordem jurídica da União [princípio da efetividade] [cfr., entre outros, os Acs. de 18.12.2008, «Sopropé» (C-349/07, § 38), de 18.03.2010, «Alassini» (C-317/08 e C-320/08, § 49), de 19.05.2011, «Iaia e o..» (C-452/09, § 16), de 10.09.2013, «G. e R.» (C-383/13 PPU, § 35), de 05.11.2014, «Mukarubega» (C-166/13, § 51), e de 11.12.2014, «Boudjlida» (C-249/13, § 41)]. 36. Neste quadro e enquadramento temos que o respeito pelo direito a ser ouvido ou de audição cumprir-se-á se fizermos uma leitura articulada do art. 16.º da Lei n.º 27/2008, respeitante à tomada de declarações/entrevista, com o art. 05.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013, também ele relativo à entrevista pessoal do requerente do pedido de proteção internacional e onde se prevê a possibilidade de o «resumo» da entrevista assumir a forma de «relatório» ou de um «formulário-tipo» e em que cada Estado-Membro terá de assegurar que o requerente e/ou o seu advogado ou outro conselheiro que o represente tenham «acesso ao resumo em tempo útil». 37. E dessa leitura articulada e conjugada ressalta a imposição, também, no quadro do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional, e em que a referida entrevista constitui ato procedimental ou pelo menos peça documental, que ao requerente, na entrevista/relatório ou após a mesma e chegada da resposta do Estado requerido, o mesmo tenha sido ouvido, ou lhe tenha sido dada a possibilidade de produzir defesa, de emitir ou tomar posição, quanto à decisão a tomar em decorrência da aceitação ou de uma eventual aceitação da responsabilidade pelo Estado requerido da tomada ou retoma a cargo, explicitando, nessa sede da entrevista ou até mesmo em momento posterior à mesma, a sua motivação sobre o Estado-Membro que entende dever apreciar o pedido pelo mesmo formulado, mediante a alegação ou explicitação daquilo que constitui a sua situação jurídica e factual no Estado-Membro para o qual o requerente é transferido, conferindo-se-lhe, assim, a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial por razões humanitárias e compassivas, tudo tendo presente o regime que resulta definido, mormente, nos arts. 03.º, 05.º, 07.º, 17.º, e 24.º, todos do Regulamento (UE) n.º 604/2013, 02.º, n.º 5, e 121.º, ambos do CPA, e 267.º, n.º 5, da CRP. 38. No contexto de desenvolvimento e articulação dos procedimentos e questões nos mesmos debatidas temos que, de harmonia com o atrás referido e quadro normativo convocado, deve ser dada ao destinatário da decisão lesiva dos seus interesses a possibilidade de, antes de a mesma ser tomada, apresentar as suas observações ou invocar determinados elementos relativos à sua situação pessoal que militam num determinado sentido da decisão a ser proferida, ou a não o ser ou a ter determinado conteúdo, de modo a permitir que a autoridade competente tenha utilmente em conta todos os elementos pertinentes no momento em que e com que sentido vai decidir. 39. Com efeito, resulta do art. 05.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013 em conjugação com o art. 16.º da Lei n.º 27/2008 que a entrevista pessoal/tomada de declarações «deve realizar-se em tempo útil e, de qualquer forma, antes de ser adotada qualquer decisão de transferência do requerente para o Estado-Membro responsável» e que o Estado-Membro que realiza a entrevista pessoal/tomada declarações «deve elaborar um resumo escrito do qual constem, pelo menos, as principais informações facultadas pelo requerente durante a entrevista», sendo que esse resumo «pode ser feito sob a forma de um relatório ou através de um formulário-tipo», impondo-se ao mesmo Estado-Membro o dever de assegurar que, quanto a esse resumo, «o requerente e/ou o seu advogado ou outro conselheiro que o represente tenha acesso … em tempo útil», diligências/procedimentos e exigências que se ancoram na necessidade de observância do dever de audiência e de defesa com o alcance definido e que estão presentes, inclusive, nas situações que no art. 05.º do mesmo Regulamento justificam a dispensa da entrevista, pois, mesmo nessas situações se impõe, ou se exige, que o Estado-Membro dê «ao requerente a oportunidade de apresentar novas informações relevantes para se proceder corretamente à determinação do Estado-Membro responsável antes de ser adotada uma decisão de transferência do requerente para o Estado-Membro responsável nos termos do artigo 26.º, n.º 1». 40. Cumpre referir que, ainda que segundo a jurisprudência assente do TJUE [cfr., entre outros, os Acs. de 18.03.2010, «Alassini» (C-317/08 e C-320/08, § 63), de 10.09.2013, «G. e R.» (C-383/13 PPU, § 33), de 26.09.2013, «Texdata Software» (C-418/11, § 84), de 05.11.2014, «Mukarubega» (C-166/13, §§ 53/54), e de 11.12.2014, «Boudjlida» (C-249/13, § 43)] «os direitos fundamentais, como o respeito dos direitos de defesa, não constituem prerrogativas absolutas, mas podem comportar restrições, na condição de estas responderem efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não constituírem, à luz da finalidade prosseguida, uma intervenção desmedida e intolerável que atente contra a própria substância dos direitos assim garantidos» e de que «a existência de uma violação dos direitos de defesa deve ser apreciada em função das circunstâncias específicas de cada caso concreto» [cfr., nomeadamente, os Acs. de 25.10.2011, «Solvay/Comissão» (C-110/10 P, § 63), e de 05.11.2014, «Mukarubega» (C-166/13, §§ 53/54)], nomeadamente, «da natureza do ato em causa, do contexto em que foi adotado e das normas jurídicas que regem a matéria em causa» [vide, entre outros, os Acs. do TJUE de 18.07.2013, «Comissão e o./Kadi» (C-584/10 P, C-593/10 P e C-595/10 P, § 102), de 10.09.2013, «G. e R.» (C-383/13 PPU, § 33), e de 05.11.2014, «Mukarubega» (C-166/13, § 54)], temos que, na concreta situação sub specie, presente a jurisprudência do TJUE relativa ao respeito dos direitos de audição/defesa e o quadro normativo do direito da União, mormente, o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, e, bem assim, o próprio quadro normativo no plano interno, não se descortina que dos mesmos se extraia, em função de outros princípios e interesses gerais que importasse considerar, a existência de um concreto propósito ou intenção de afastamento ou de restrição neste tipo de procedimento daqueles direitos. 41. Reiterado, pois e à luz da motivação ora exposta, o entendimento deste Supremo quanto à imposição de observância do direito de audiência no procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional com o âmbito e alcance que ora se mostra explicitado [cfr. arts. 03.º, 05.º, 07.º, 17.º, e 24.º, todos do Regulamento (UE) n.º 604/2013, 02.º, n.º 5, e 121.º, ambos do CPA, e 267.º, n.º 5, da CRP] e revertendo ao caso sub specie temos que, analisada a matéria de facto apurada [cfr. n.ºs I) a IV)] e tendo presente aquilo que constitui o teor do procedimento administrativo desenvolvido, mormente o teor da entrevista/auto de declarações realizado ao A. e que se mostra documentado no «PA» incorporado nos autos [vide fls. 39/97 dos presentes autos, especialmente, fls. 62/66], ao A. não foi facultada ou conferida, nem em sede de entrevista/declarações [«auto de declarações»] nem posteriormente às mesmas, qualquer possibilidade de contraditório/defesa ou de pronúncia quanto à decisão ou eventual decisão a tomar no quadro do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional pelo mesmo formulado, permitindo-lhe alegar ou explicitar aquilo que constitui a sua situação jurídica e factual no Estado-Membro para o qual o mesmo será eventualmente transferido, e a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial o apelo ao regime derrogatório respeitante às «cláusulas discricionárias» [cfr. art. 17.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013], mormente, por razões humanitárias e compassivas, razão pela qual se mostra infringido tal direito/princípio consagrado no quadro normativo supra convocado, padecendo o ato impugnado da ilegalidade de preterição do direito de audiência que resulta invocada nos autos.”.

Assim, com base nas razões antecedentes, entende-se que no procedimento especial de determinação do Estado membro responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional, não se aplica o artigo 17.º da Lei n.º 27/2008, de 30/06, não sendo exigível a elaboração do relatório aí indicado, não obstante deverem ser assegurados os direitos de audiência e de defesa do requerente de proteção internacional, o que no presente caso se verifica, por via da entrevista que foi feita ao Requerente e por se terem efetivado tais direitos no âmbito desta entrevista, ao lhe ser transmitido a retoma a cargo de Itália e a sua respetiva pronúncia.

Esta diligência procedimental, nestes casos, é suficiente para o cumprimento do direito de audiência do requerente e para o exercício da sua defesa, que, nessa mesma medida não se consideram violados.

Termos em que, em face de todo o exposto, procedem nesta parte as conclusões do recurso, incorrendo a sentença recorrida em erro de julgamento de direito quanto à interpretação e aplicação do artigo 17.º da Lei de Asilo, o qual, ao contrário do decidido, não se considera aplicável e, consequentemente, violado.

2. Erro de julgamento, por ao procedimento especial de retoma a cargo se prescindir da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional, nos termos do artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo

No demais, põe ainda a Entidade Demandada, ora Recorrente, em crise a legalidade da sentença recorrida no tocante às exigências colocadas ao nível da instrução do processo, por entender que no procedimento especial de retoma a cargo se prescindir da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional, nos termos do artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo.

Entende o Recorrente que as autoridades nacionais portuguesas estão dispensadas de proceder à instrução do pedido de proteção internacional, por ser outro o Estado responsável, pelo que, não existe o défice instrutório imputado à decisão impugnada.

Tanto mais que, porque não se vai analisar o mérito do pedido, seria inútil, prevendo o artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo que se prescinde da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.

Vejamos.

O pedido de proteção internacional em causa nos presentes autos foi considerado inadmissível à luz do disposto no artigo 19.º-A, n.º 1, a) da Lei de Asilo, por se ter apurado que o pedido está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV da citada Lei.

Estabelece o artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo que nos casos previstos no número anterior, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.

É com base nesta disposição que a Entidade Demandada, ora Recorrente, entende estar dispensada da instrução do pedido.

Em sentido contrário se decidiu na sentença recorrida.

Com razão, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento (EU) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26/06 e da correta interpretação do disposto no artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo.

Não obstante a controvérsia jurisprudencial da questão de direito aqui colocada, existindo arestos do STA divergentes sobre a matéria, não se desconhecendo o recente Acórdão do STA, de 16/01/2020, Processo n.º 02240/18.7BELSB que se debruça sobre a matéria, no sentido de que “Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos;”, consideramos que no presente caso existem motivos válidos para questionar as atuais condições de acolhimento no primeiro país de asilo, o que impõe ao Estado português a obrigação de obter informação atualizada.

O artigo 3.º do Regulamento (EU) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26/06, dispõe o seguinte:

1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.

2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado.

Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.

Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável.”.

Também nos termos do artigo 18.º, n.º 1, d), do mesmo diploma se prevê que “O Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a (…) retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.º, 24.º, 25.º e 29.º, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência”.

No artigo 23.º, n.º 1, do Regulamento – com inserção sistemática na secção III relativa aos “Procedimentos aplicáveis aos pedidos de retomada a cargo” – estatui-se que “Se o Estado-Membro ao qual foi apresentado um novo pedido de proteção internacional pela pessoa referida no artigo 18.º, n.º 1, alíneas b), c) ou d), considerar que o responsável é outro Estado-Membro, nos termos do artigo 20.º, n.º 5, e do artigo 18.º, n.º 1, alíneas b), c) ou d), pode solicitar a esse outro Estado-Membro que retome essa pessoa a seu cargo”.

O artigo 25.º do mesmo diploma estabelece – sob a epígrafe “Resposta a um pedido de retomada a cargo” – o seguinte:

1. O Estado-Membro requerido procede às verificações necessárias e toma uma decisão sobre o pedido de retomar a pessoa em causa a cargo o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, dentro do prazo de um mês a contar da data em que o pedido foi recebido. Quando o pedido se baseie em dados obtidos através do sistema Eurodac, o prazo é reduzido para duas semanas.

2. A falta de uma decisão no prazo de um mês ou no prazo de duas semanas referidos no n.º 1 equivale à aceitação do pedido, e tem como consequência a obrigação de retomar a pessoa em causa a cargo, incluindo a obrigação de tomar as providências adequadas para a sua chegada”.

O presente caso situa-se no âmbito do subprocedimento de determinação da responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional, o qual tem enquadramento nas normas dos artigos 37.º, n.º 2, e 38.º da Lei de Asilo e nos artigos 3.º, 18.º, n.º 1, alínea d), e 25.º, n.ºs 1 e 2, do Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho.

Conforme resulta da factualidade apurada, a Entidade Demandada considerou o Estado italiano responsável pela análise do pedido de proteção internacional formulado pelo Autor com base nas ocorrências registadas na base de dados do Sistema Eurodac e na ausência de resposta das autoridades italianas ao pedido de retoma a cargo, no prazo a que alude o artigo 25.º, n.º 1, in fine, do citado Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, omitindo totalmente qualquer informação sobre a situação atual de acolhimento dos refugiados e requerentes de proteção internacional em Itália.

Como decidido na sentença recorrida, não obstante a Entidade Demandada alegar a inexistência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Itália, do ato impugnado não constam quaisquer dados relativos à atual situação de Itália.

Não só o artigo 58.º do CPA, prevê, em geral, o princípio do inquisitório – impondo que o responsável pela direção do procedimento e os outros órgãos que participem na instrução, mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, procedam a quaisquer diligências que se revelem adequadas e necessárias à preparação de uma decisão legal e justa, ainda que respeitantes a matérias não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados –, como esse dever de averiguação das condições de acolhimento existe especificamente, nos termos prescritos no artigo 3.º do citado Regulamento de Dublin.

Por isso, à luz do referido artigo 3.º do Regulamento de Dublin, se existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.

A factualidade dada como provada no julgamento de facto da sentença recorrida, decorrente da elaboração, em 14 de agosto de 2019, de um extenso Relatório pelo CPR (facto 19), sobre as condições de acolhimento de requerentes de asilo e refugiados em Itália, permite extrair diversos elementos, baseados na informação veiculada pela comunicação social, nacional e internacional e o trabalho desenvolvido por várias Organizações Não Governamentais, sobre a situação de grande afluência de refugiados em Itália e sobre as condições de acolhimento e permanência dos requerentes de proteção internacional naquele Estado-Membro.

Incumbia à Entidade Demandada, previamente à decisão ora impugnada, instruir oficiosamente o procedimento, com informação fidedigna atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e sobre as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional naquele território, recorrendo a fontes credíveis como o Gabinete Europeu de Apoio de Asilo (EASO), o ACNUR e organizações de direitos humanos relevantes, de molde a verificar se, no caso concreto, se verificam ou não motivos determinantes da impossibilidade da transferência, referidos no 2.º parágrafo, do n.º 2, do artigo 3.º do Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho.

Neste sentido, o tem decidido este Tribunal Central Administrativo Sul, como nos Acórdãos de 06/06/2019, Proc. n.º 2240/18.7BELSB e de 22/08/2019, Proc. n.º 1982/18.1BELSB.

À mesma interpretação se chega se considerarmos a correta aplicação do disposto no artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo, no sentido de que o procedimento especial de retoma a cargo dispensa a análise das condições a reunir pelo requerente de proteção internacional, o que não se confunde com a análise das condições de acolhimento no Estado responsável pela retoma a cargo.

O que significa que quer o Regulamento de Dublin, quer a lei nacional de asilo, não dispensam as autoridades nacionais de verificar se existem garantias suficientes de que a pessoa não será sujeita a um risco sério de sujeição a tratamentos contrários ao disposto no citado artigo 3.º no país de acolhimento, nomeadamente um risco de refoulement, direta ou indiretamente, para o seu país de origem, pois se assim não fosse estaria em causa o próprio Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA).

Neste sentido o decidiu o Tribunal de Justiça da União Europeia no Acórdão de 21/12/2011, Processos apensos C-411/10 e C-493/10, que “incumbe aos Estados-Membros, incluindo os órgãos jurisdicionais nacionais, não transferir um requerente de asilo para o “Estado-Membro responsável”, na acepção do Regulamento n.º 343/2003, quando não possam ignorar que as falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado-Membro constituem razões sérias e verosímeis de que o requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na acepção desta disposição”.

Não obstante se apurar ser outro o Estado responsável pela análise dos requisitos para a concessão da proteção internacional requerida, impõe-se a obrigação de os Estados-membros ponderarem todas as informações conhecidas sobre o país considerado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, de molde a aferir se existem, no caso, motivos que justifiquem a decisão de não transferência, nomeadamente, a existência de um risco real, direto ou indireto, de o requerente ser sujeito a tratamento desumano ou degradante.

Como a decisão impugnada nada refere sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e das condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional nesse Estado-Membro, tal como consta da decisão recorrida, incorre em défice de instrução quanto aos factos essenciais à decisão de transferência e, por conseguinte, à decisão de (in)admissibilidade do pedido de proteção internacional formulado.

O disposto no artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo apenas se refere às condições ou requisitos a preencher pelo requerente para beneficiar da proteção internacional, não se referindo a nada mais do isso, pelo que, não pode servir para sustentar a dispensa da instrução colocada pelo artigo 3.º do Regulamento de Dublin sobre o funcionamento do sistema de asilo e as condições de acolhimento no Estado determinado responsável.

O artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo não se refere à análise das condições sistémicas do Estado de acolhimento, porque estas não respeitam às condições a preencher pelo requerente para beneficiar do estatuto de proteção internacional, antes dizendo respeito às condições a preencher pelos Estados membros.

Donde, a circunstância de se apurar no procedimento administrativo ser um outro Estado o responsável pela análise do pedido de proteção internacional, nos termos do procedimento de retoma a cargo, não isenta o Estado em que o pedido de proteção internacional foi apresentado de analisar se esse Estado responsável pela retoma reúne as condições para acolher o requerente de asilo.

Por conseguinte, a transferência do requerente de proteção internacional para o indicado Estado responsável, determinado no âmbito do procedimento de retoma a cargo, fica dependente de não se configurar ocorrer uma situação em que possam existir motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado membro responsável pela apreciação do pedido, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante.

Por outras palavras, a decisão de transferência do requerente de proteção internacional para o primeiro Estado responsável, que termina com uma decisão de inadmissibilidade, fundada naquela mesma razão, nos termos dos artigos 19.º-A, n.º 1, al a) e 20.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2008, de 30/06, tem como pressuposto a análise prévia de que nesse Estado não existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado, o que, no caso, não foi feito pela Entidade Demandada.

Pelo que, nos termos e com as razões antecedentes, não assiste razão ao Recorrente quanto aos fundamentos do recurso em análise, sendo nesta parte de manter a sentença recorrida e, consequentemente, a anulação da decisão impugnada.


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Termos em que, será de negar provimento ao recurso interposto, porque embora não se mantenha a decisão recorrida no tocante ao dever de audiência do interessado, no demais não assiste razão ao Recorrente, improcedendo o recurso quanto ao défice de instrução, pelo que, em consequência, mantém-se a decisão de anulação do ato impugnado.

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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. A Lei n.º 27/2008, de 30/06, que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, prevê no artigo 19.º-A, n.º 1, a), que o pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV;

II. Sendo outro Estado o primeiro país de asilo, o Estado português está dispensado de analisar da pretensão do interessado.

III. Ao procedimento especial de determinação do Estado membro responsável pela análise do pedido não é aplicável o artigo 17.º, n.ºs 1, 2 e 3 da Lei de Asilo, não se impondo a elaboração do relatório aí previsto, sendo a participação do requerente de proteção internacional assegurada através da realização da entrevista e da transmissão da intenção da tomada de decisão de ser outro o Estado membro responsável pela análise do pedido e da transferência do requerente, e da consequente possibilidade de o requerente se pronunciar, manifestando a sua concordância ou discordância com a retoma a cargo por outro Estado, assim se respeitando os direitos de audiência e de defesa.

IV. No procedimento especial de determinação do Estado membro responsável o artigo 19.º-A, n.º 2 da Lei de Asilo dispensa a análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional, mas não dispensa a análise das condições sistémicas relativas ao Estado de retoma, referentes à atual situação das condições de acolhimento nesse Estado.

V. Nos termos do artigo 3.º do Regulamento de Dublin recai sobre as autoridades nacionais o ónus de instrução sobre as condições do procedimento de asilo e as condições de acolhimento no Estado membro responsável pela apreciação do pedido, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e em manter a sentença recorrida na parte em que procedeu à anulação da decisão impugnada com base no défice de instrução e na condenação à reinstrução do pedido de proteção internacional.

Sem custas – artigo 84º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.

Registe e Notifique.

(Ana Celeste Carvalho - Relatora)




(Pedro Marchão Marques)
[voto vencido]





(Alda Nunes)



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DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencido quanto à solução propugnada pelo acórdão, no sentido de determinar ao SEF uma melhor instrução do pedido de protecção internacional, a qual, de acordo com a tese que logrou vencimento, se impunha oficiosamente.

A situação dos autos não é distinta daquela que relatei no acórdão de 10.12.2019, proc. nº 1383/19.4BELSB, no qual se concluiu que: “de acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas. Contudo, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa.

E a situação dos autos é, aliás, em tudo idêntica à tratada no recentíssimo acórdão do STA de 16.01.2020, proc. nº 2240/18.7BELSB, em que estava igualmente em questão a retoma a cargo pelo Estado Italiano. Neste acórdão concluiu-se:

I - Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos;

II - A imigração ilegal, que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de actividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social”.

Ou seja, a premissa de que parte o acórdão de que a decisão de transferência do requerente de protecção internacional para o primeiro Estado responsável tem como pressuposto a análise prévia de que nesse Estado não existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado, salvo o devido respeito, não tem acolhimento na lei (ou pelo menos não o tem com o grau de injuntividade pretendido).

No caso concreto dos autos, face ao que vem evidenciado, nada mais se impunha ao SEF.

Neste pressuposto, concederia provimento ao recurso, revogaria a sentença recorrida e julgaria a acção improcedente.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2020


Pedro Marchão Marques