Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:6518/13.8BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:04/15/2021
Relator:SUSANA BARRETO
Descritores:PRINCÍPIO DA JUSTIÇA
DIVISIBILIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO
Sumário:I. Em matéria de custos, o princípio da especialização dos exercícios traduz-se na consideração, como custo de determinado exercício, dos encargos que economicamente lhe sejam imputáveis.
II. Contudo esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266/2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.
III. O ato tributário de liquidação é por natureza um ato divisível e, consequentemente, é suscetível de anulação parcial, no respetivo processo de impugnação.
IV. O critério jurisprudencial para determinar se o ato deve ser total ou parcialmente anulado passa por determinar se a ilegalidade afeta o ato tributário no seu todo, caso em que o ato deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


I - Relatório

A Autoridade Tributária e Aduaneira, não se conformando com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por E... e M..., contra as liquidações de IRS do ano de 1994 e de juros compensatórios.

Nas alegações de recurso apresentadas, a Recorrente formula as seguintes conclusões:

a) A questão decidenda é aferir se a Administração Tributária estava legalmente obrigada na correcção técnica efectuada aos proveitos originados com a venda da parcela de terreno, em 1994, a considerar o custo de aquisição do prédio misto ocorrido em 1986, e, em caso afirmativo, e sendo conhecido esse custo se o Mm.° Juiz “a quo” deveria ter procedido apenas à anulação parcial do acto tributário, aqui em causa, em vez da sua anulação total, já que essa correcção técnica é legal;
b) Do probatório consta que o prédio misto adquirido pelos impugnantes, em 1986, não foi levado à contabilidade do impugnante enquanto empresário em nome individual nem afecto à sua actividade comercial. O mesmo aconteceu, em 1994, quando negociou com a Câmara Municipal de Olhão a venda de uma parcela desse terreno;
c) Apenas afectou a venda de alguns dos 16 lotes de terreno, em 1996 e 1997, à sua actividade comercial, mas nunca os contabilizou em existências com o respectivo valor, o que se encontra confirmado no RIT, pelo que os Serviços de Inspecção Tributária consideraram proveitos dos rendimentos de actividade comercial do impugnante, as vendas desses lotes e, também, a venda efectuada em 1994, por terem natureza de actos comerciais, pelas razões devidamente explanadas no art. 6º das alegações;
d) O Tribunal Central Administrativo do Sul (vide Ac. de 2006/10/11, proc. 723/05), em abono da tese da Administração Tributária, considerou que existiam indícios fundados demonstrados que permitiam a correcção operada pela Administração Tributária, ou seja, inexiste erro na qualificação da matéria tributável, quanto à venda efectuada em 1994, sendo legal a correcção técnica efectuada;
e) Já quanto à questão da errónea quantificação da matéria tributável, porque apenas foram considerados, no ano de 1994, os proveitos com origem na venda, sem ter sido apurado qualquer custo;
f) Desde já se diz que, os impugnantes não alegam nem discriminam que custos deveriam ter sido apurados pela Administração Tributária, sendo que esse ónus a si lhes compete, nos termos do n° 1 do art.° 342° do CC;
g) Assim sendo, não se nos afigura que seja o Tribunal que se deva substituir à alegação não efectuada pelos ora impugnantes;
h) Mas mesmo que assim se entenda, o que só se equaciona por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que o princípio da especialização dos exercícios é um princípio geral por força do qual os proveitos e os custos de um período devem ser respeitados contabilisticamente no exercício a que dizem respeito - vide art. 18.°e segs do CIRC, regra aplicável ao IRS por remissão para o CIRC;
i) Tal princípio sofre as excepções previstas na lei, pelo que o seu desrespeito impõe ao contribuinte o dever de comprovar que se encontra numa das situações excepcionais em que tal lhe é permitido, à luz das regras sobre o ónus da alegação/prova (vide art.° 342.° n.° 1 do CC), o que já vimos aqui não aconteceu;
j) Além disso, a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, também só é permitida, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais do contribuinte, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios. Pelo que, não tendo nem o custo da aquisição nem o proveito da venda do imóvel aqui em causa sido levado à sua contabilidade, embora haja indícios de que houve intuito lucrativo, a sua conduta enquadra uma omissão voluntária e intencional;
k) No caso sub judice, afigura-se-nos que a Administração Tributária não estava vinculada a considerar um custo ocorrido em 8 exercícios anteriores à venda, nem mesmo considerá-lo imputável ao ano de 1994, quando aquele custo nunca foi levado à contabilidade do impugnante, enquanto empresário em nome individual, nem afecto à sua actividade comercial. Contrariamente ao reiterado na sentença, não estamos em presença de errónea quantificação da matéria tributável;
l) Se assim não se entender, o que só por mero dever de patrocínio se concede, sempre se dirá que, o acto de liquidação é, por natureza, divisível, tanto por natureza como na própria expressão legal, consequentemente, pode ser só parcialmente anulado, quer pela Administração Tributária quer pelo Tribunal, isto é, pode ser anulado apenas na parte que sofra de vício que afecte a sua validade - Posição consensual da Doutrina e da Jurisprudência do STA - vide Acórdãos do STA, de 26/03/2003, proc. 01973/02, de 27/09/2005, proc. 287/05, de 12/01/2012, proc. 0965/10 e de 2005/09/27, proc. 0287/0 e Acórdão do TCA do Sul, de 2007/01/09, proc. 00021/04, entre muitos outros;
m) Logo, mesmo tendo a douta sentença considerado que não sendo possível imputar o custo ao exercício de 1986, este tem que ser imputável, por imperativo de justiça e de prossecução de interesse público, ao do exercício de 1994, não se compreende porque razão foi anulado totalmente o acto tributário quando deveria ter sido anulado parcialmente, já que estamos perante um acto tributário que teve por base uma correcção técnica à matéria tributável que foi considerada legalmente efectuada pela Administração Tributária;
n) Se a douta sentença considerou que uma correcção à matéria tributável relativamente a um ganho, no âmbito dos rendimentos empresariais dos impugnantes, sem considerar o correspondente custo gera uma situação de tributação superior à devida;
o) Então, por maioria de razão e também por imperativo de justiça, uma vez que se conhece o valor do custo de aquisição, deve-se anular parcialmente o acto de liquidação impugnado, afim de que o novo acto de liquidação que daí resulte tenha em conta simultaneamente o citado custo e o respectivo proveito, pois;
p) A situação de anulação judicial e parcial do acto tributário somente se pode verificar em relação a actos tributários que tenham base em correcções técnicas à matéria tributável, o que aqui se verificou;
q) Logo, ao decidir como decidiu, a douta sentença padece de erro de julgamento na apreciação da matéria factual e jurídica, por violação dos princípios elementares de legalidade, justiça e igualdade que vigoram na nossa ordem jurídica.

Pelo exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente revogada a douta sentença recorrida, assim não se entendendo, deve em alternativa substituir-se a decisão de anulação do acto tributário na sua totalidade por decisão de anulação parcial desse acto, assim se fazendo JUSTIÇA.


Os Recorridos, devidamente notificados para o efeito, não apresentaram contra-alegações.

O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Fundamentação

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, as quais são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, que fixam o objeto do recurso, sendo as de saber se incorre em erro de julgamento a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que anulou na totalidade, e não parcialmente, a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do ano de 1994, por errónea quantificação da matéria tributável apurada.


II.1- Dos Factos

O Tribunal recorrido considerou como provada a seguinte factualidade:

A. Em 27 de Novembro de 1985, o Impugnante marido apresentou a declaração de início de actividade que constitui o documento de fls. 219-222, inclusive, dos autos e que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

A.1 Na mencionada declaração fez constar a titulo principal a actividade de "Construção e Reparação de Edifícios" e como outras actividades designadamente a de "Compra e Venda de Imóveis".

B. Dentro do âmbito dessa actividade, foi objecto de fiscalização tributária relativamente aos anos de 1994,1995,1996 e 1997.

C. Em consequência foram efectuadas correcções à matéria colectável declarada no que toca aos anos de 1994 e 1995, e determinada a matéria tributável pelos métodos indirectos no que diz respeito aos anos de 1996 e 1997.

D. Quanto ao ano de 1994, o fundamento para proceder a tal correcção consta a fls. 5 do aludido relatório, rezando assim:

"Neste exercício não foram contabilizados em existências os 16 lotes de terreno, nem na conta 71 - a venda no montante de 58.361.000$00. No entanto, o sujeito passivo afecta a venda de alguns lotes à sua actividade comercial, conforme se pode verificar através das declarações de rendimentos dos anos de 1996 e 1997 (anexo C da declaração modelo 2), matrizes e escrituras notariais. Em face do exposto e do procedimento do contribuinte ao levar a proveitos a venda de alguns lotes de terreno, existem indícios fundados de que a parcela de terreno (adquirida em 1986 e vendida em 1994, acrescentamos nós para melhor esclarecimento) faz parte da sua actividade comercial em nome individual, propondo-se assim uma correcção nas vendas no montante de 74.761.000$00, correspondendo 58.361.000$00 à importância recebida em dinheiro e 16.400$00 ao valor atribuído aos 16 lotes de terreno."

E. No ponto A do n.° III, a páginas 4 do relatório já citado, diz-se:

"Comprou em 14-3-1986, por 3.500.000$00, um prédio misto sito no Sitio de Marim, freguesia de Quelfes, concelho de Olhão, inscrita a parte urbana sob o artigo n.º 2… e a parte rústica sob o 2….."

F. Eliminada.

G. Na formalização da compra do imóvel referido em E., que antecede, o Impugnante exibiu o seu NIF de pessoa singular, e não o de empresário em nome individual.

H. A aquisição a que se faz alusão na precedente alínea não foi levada à contabilidade do Impugnante enquanto empresário em nome individual.

I. Em 1994, negociou com a Câmara Municipal de Olhão a venda de uma parcela com 51.000 metros quadrados por 58.361.000$00, recebendo ainda 16 lotes no valor de 16.400.000$00.

J. A venda aludida na alínea que antecede foi formalizada por escritura de 24 de Junho de 1994, tendo o Impugnante varão, na qualidade de vendedor, feito uso do mesmo NIF exibido aquando da respectiva aquisição.

K. A venda do imóvel à autarquia de Olhão não foi levada à contabilidade do Impugnante enquanto empresário em nome individual.

L. Em 1996 e 1997, o Impugnante levou à sua contabilidade, enquanto empresário em nome individual, a venda de alguns dos 16 lotes referidos na alínea I. que antecede.

M. Mas nunca os afectou à sua actividade comercial e nunca os contabilizou em existências, com o respectivo valor.

N. Essa falta de contabilização em existências vem confirmada no relatório já citado, a fls, 5.

O. Os serviços fiscais consideraram proveitos dos rendimentos de actividade comercial as vendas dos lotes em 1996 e 1997, e por indício, a venda de 1994, não tendo apurado custos.

P. A correcção da matéria colectável que veio a servir de base à liquidação impugnada foi, ainda, determinada pela desconsideração da quantia de Esc. 4.684.922$00 como custos e que o Impugnante, enquanto empresário em nome individual, fez contabilizar no ano de 1994 a título de custos financeiros - cfr. docs. de fls. 10 e 12-23, inclusive. 

Q. Através do Processo de Reclamação Cadastral 45/93, a parte rústica do prédio vendido à Câmara Municipal de Olhão e em causa nos autos passou a urbana, em 14 de Setembro de 1993, motivando que o Impugnante apresentasse, no dia 28 desse mesmo mês e ano, declaração de alteração à matriz - cfr. doc. de fls. 112 e que aqui se dá reproduzido para todos os efeitos legais.

R. O Impugnante levou à sua contabilidade a despesa referente à guia n° 6, do ano de 1994, de receita do Estado, relativo à "Compra de uma parcela de terreno em Marim - freguesia de Quelfes", na importância de Esc, 52.525$00 - cfr. doc. de fls. 147, para que se remete.

S. Após a compra, pelo Impugnante, do imóvel referido em E., em 14 de Março de 1986, o Impugnante, em comum com J..., passou a explorar as salinas existentes no prédio - cfr. depoimento da terceira testemunha.

T. No mesmo imóvel existia uma horta que, após a sua aquisição pelo Impugnante, foi explorada, com o seu consentimento, pelo mesmo J... - cfr. depoimento da terceira testemunha.

U. Ainda e sempre no mesmo imóvel, à data da sua aquisição pelo Impugnante, existiam um chalé, um armazém, uma outra casa de habitação e uma casa em ruínas, prédios estes que foram recuperados pela testemunha J..., por iniciativa e conta do Impugnante, entre 1986 e 1991 - cfr. depoimento da segunda testemunha.

Em cumprimento do ordenado no acórdão do TCAS de 4 de Outubro de 2011, com interesse para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis de direito, julgo provados os seguintes factos, com atinência aos meios de prova respectivos:

V. Através do Ofício n.° 4.127, de 10 de Agosto de 1992, o Vereador substituto do Presidente da Câmara Municipal de Olhão informou o Impugnante, quanto à "Aquisição de terrenos para implantação da 2." Fase da Zona Industrial", que a Câmara, "após ponderar os valores de mercado para a Zona, deliberou [...] que o preço justo de aquisição daqueles terrenos é o de 2.000$00 por m2", solicitando que o Impugnante "no prazo de 8 dias úteis, caso queira, informe [a] Câmara Municipal da aceitação relativamente ao preço proposto", sendo que o seu silêncio seria "entendido como recusa da proposta final ora formulada e legitimará o recurso, por parte desta Câmara Municipal, ao processo de expropriação dos terrenos em causa" - cfr. fls. 435 dos autos.

W. A Câmara Municipal de Olhão declarou não ter tido intenção de expropriar o terreno, tendo admitido que efectuou e suportou as despesas com as infraestruturas do loteamento da Zona Industrial, tendo para o efeito recorrido ao Programa Específico de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa – cfr. fls. 529 dos autos.


Quanto a factos não provados, na sentença exarou-se o seguinte:

Não se provou que:
A. Tenha sido por erro de escrituração que, em 1996 e 1997, foram levados a contabilidade do Impugnante a venda de alguns lotes que conservava no seu património privado.


E quanto à Motivação da Decisão de Facto, consigna-se:

Os documentos referidos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade.


Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada, ao abrigo do preceituado no artigo 662/1, do Código de Processo Civil (CPC) ex vi artigo 281º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), adita-se ao probatório o seguinte facto:

X. Em 1999.05.27, foi emitida a liquidação de IRS nº 5330…, respeitante ao ano de 1994, com valor a pagar de € 223 718,44 e data limite de pagamento de 1999.07.28, constante de fls.30 (doc. nº 003946620 registado em 09-11-2020 às 15:51:39), que aqui se dá por integralmente reproduzido e da qual se transcreve:
«Imagem no original»



II.2 Do Direito

Alega a Recorrente que a sentença recorrida que julgou procedente a impugnação judicial e anulou na totalidade e não apenas parcialmente a liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 1994, incorreu em erro na de julgamento na apreciação da matéria de facto e de direito.

Nas alegações de recurso defende ainda a Recorrente que tendo a sentença considerado, e bem, não existir errónea qualificação da matéria tributável, também não se verificar no caso errónea quantificação, porquanto não deveriam ser considerados quaisquer custos no exercício em causa, como decorre do princípio da especialização de exercícios, de acordo com o qual os custos de um período devem ser respeitados contabilisticamente no exercício a que dizem respeito.

Vejamos:

A correção em causa tem subjacente a aquisição pelo Impugnante marido, ora Recorrido, de um prédio misto, ocorrida no ano de 1986, e à venda de uma parcela desse mesmo terreno que, entretanto, passou a urbano, no ano de 1994.

Apesar de nem a aquisição do prédio, nem a venda da parcela de terreno terem sido levadas à contabilidade, em ação de fiscalização, a Autoridade Tributária e Aduaneira considerou ter havido omissão de vendas e corrigiu o declarado no exercício de 1994.

A sentença recorrida após ponderar não existir errónea qualificação da matéria coletável, considerou, em suma, que efetuar uma correção à matéria coletável no sentido de se considerar a existência de um ganho no âmbito dos rendimentos empresariais dos Impugnantes sem considerar o correspondente custo, se estaria a liquidar ao contribuinte um imposto superior ao que este devia pagar.

Diz quanto à matéria que aqui interessa, relativa à errónea quantificação da matéria tributável:

Alegam os Impugnantes que a matéria tributável foi erroneamente quantificada porque apenas foram considerados, no ano de 1994, os proveitos com origem na venda, sem ter sido apurado qualquer custo.
Todavia, não alegam que custos deveriam ter sido apurados, sendo que, nos autos, apenas se vislumbra, de modo inequívoco, o custo tido com a aquisição do prédio vendido nesse ano de 1994 - cfr. ponto J.
Ora, tendo o prédio sido comprado em 1986 - cfr. ponto E. do probatório nenhum custo haveria a apurar no ano de 1994, atento o princípio da especialização dos exercícios que, "no seu extremo rigor, leva a que só possam ser imputados a cada ano os proveitos e custos nele verificados, independentemente dos respectivos recebimentos e pagamentos." - cfr. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25 de Junho de 2008 - processo n.° 291/08.
Todavia, como se defende neste aresto, ainda que em lugar paralelo (o da contabilização de custos em sede de IRC), o princípio da especialização dos exercícios não pode ser entendido com tal rigidez, "o que tem tido eco tanto na doutrina como na jurisprudência e, até, na própria Administração Fiscal", pois tem que haver uma concordância prática entre ele e o princípio da justiça plasmado, além do mais, nos artigos 266.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa e 55.° da Lei Geral Tributária. Como anotam JORGE DE SOUSA E OUTROS, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Encontros da Escrita Editora, 4.-' Edição, 2012, pp. 452-454, "A actividade da administração tributária não pode limitar-se a uma aplicação mecânica das leis às situações de facto, tendo de ter sempre presente o objectivo que a justifica, que é a prossecução do interesse público (artigos 266.°, n.° 1, da CRP e 55° da LGT). Por isso, a administração fiscal deverá abster-se de actuar em situações em que embora se preencham formalmente os pressupostos legais abstractos da sua actuação, esta não seja relevante para a prossecução do interesse público’'.
Ora, no caso dos autos, a Administração efectuou a correcção técnica relativa ao ano de 1994, atendendo ao valor de realização verificado nesse ano, sem considerar o respectivo custo de aquisição ocorrido em 1986, o que originaria uma menor liquidação de imposto.
Mas, assim sendo, o dever de não gerar situações de injustiça impõe que não se possa efectuar uma correcção à matéria colectável no sentido de se considerar a existência de um ganho no âmbito dos rendimentos empresariais dos Impugnantes sem considerar o correspondente custo, já que, não o fazendo, se está a liquidar ao contribuinte um imposto superior ao que este devia pagar.
Pelo que não sendo possível imputar o custo ao exercício de 1986, este tem que ser imputável, por imperativo de justiça e de prossecução do interesse público, ao de 1994, estando, aqui, a razão com os Impugnantes.


Desde já adiantaremos que a sentença recorrida se encontra bem fundamentada e não merece a censura que lhe foi feita.

Com efeito, a sentença recorrida seguiu a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Administrativo, com a qual concordamos, no sentido de que a rigidez do princípio da especialização tem de ser temperada com o princípio da justiça, nas situações em que, estando já ultrapassado o prazo de revisão do ato tributário e não havendo prejuízo para o Estado, deve prevalecer o princípio da justiça tributária sobre o da especialização dos exercícios.

Jurisprudência com a qual concordamos e da qual citamos, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário de 2008.11.19, Proc. nº 325/08, de 2008.04.02, Proc. nº 807/07, de 2010.05.19, Proc. nº 214/07, de 2008.06.25, Proc. nº 291/08, de 2012.05.09, Proc. nº 269/12, de 2016.03.02, Proc. nº 1204/13 e de 2018.03.14, Proc. nº 716/13, disponíveis em www.dgsi.pt.

Assim, no ano de 1994, em que a Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu à correção impugnada, já os Impugnantes não podiam proceder à revisão da autoliquidação de 1986, por estar ultrapassado o prazo para o fazer, vendo-se assim impossibilitados de efetuar a dedução do custo em qualquer dos anos.

Logo, nos casos em que não é já possível a correção simétrica, por razões de tempestividade, tem sido entendido que o custo, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, nomeadamente quando a respetiva imputação não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.

São casos de prevalência do princípio da justiça sobre o princípio da especialização de exercícios, em que a Autoridade Tributária e Aduaneira se deve abster de efetuar a correção, por poder conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266/2 da CRP e 55º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição.

Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflete uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio (1).

Neste contexto e como se concluiu na sentença recorrida, são de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, atos de correção da matéria tributável que, como no caso em análise, conduzam a situações injustas deste tipo.

A que acresce que não foram alegados ou provados factos através dos quais se demonstrasse que houve a intenção deliberada de proceder à transferência de resultados de exercício ou de fuga à tributação.

Assim e sem necessidade de mais fundamentar, concluímos não ter, pois, razão a Recorrente quanto a esta questão.


Vejamos agora se a sentença padece de erro ao ter anulado a liquidação impugnada na totalidade e não apenas parcialmente.

Defende a Recorrente que a anulação da liquidação deve ser parcial, porquanto a correção técnica é legal.
Ponderemos, pois, a questão da cindibilidade do ato de liquidação, ou seja, sobre se a liquidação de IRS impugnada enquanto ato divisível, tanto por natureza como por definição legal, é suscetível de anulação parcial, se no caso se pode considerar que o ato tributário só em parte está inquinado de invalidade.

A questão da cindibilidade do ato tributário foi abordada do ponto de vista doutrinário por Saldanha Sanches (2): ...o contencioso tributário, só pode conceder uma tutela efetiva ... aumentando a possibilidade das decisões de mérito e aproveitando, o que puder ser aproveitado, do trabalho administrativo.

Efetivamente, é ponto assente em termos doutrinários e jurisprudenciais (Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, 6.ª edição, II volume, páginas 134, 342, 343, 524 e 525, Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa – Acórdão do STA-SCT, de 10 de Janeiro de 2012, proferido no recurso n.º 0565/10 e do PLENO da SCT, de 10 de Abril de 2013, proferido no recurso n.º 0298/12, disponíveis no sítio da Internet www.dgsi.pt.) que o ato de liquidação enquanto ato divisível é suscetível de anulação parcial.

O critério jurisprudencial para determinar se o ato deve ser total ou parcialmente anulado passa por determinar se a ilegalidade afeta o ato tributário no seu todo, caso em que o ato deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.

No caso em análise a liquidação impugnada enquadra-se nos rendimentos da categoria B de IRS, pelo que poderia ponderar-se, como defende a Fazenda Pública nas suas alegações, que para apurar a matéria tributável, bastaria uma simples operação aritmética e a possibilidade de anulação meramente parcial daquela liquidação.

Todavia, basta atentar na demonstração da liquidação impugnada, junta com a impugnação como documento nº 1, e que levamos ao probatório, para verificarmos estamos perante uma liquidação de IRS cuja taxa é progressiva. Ora, tal envolve, necessariamente, a aplicação de matéria de direito.

Concluímos, assim, a que a ilegalidade assinalada afeta, pois, o ato tributário no seu todo.

Em face do exposto, improcede, pois, o recurso.


Sumário/Conclusões:

I. Em matéria de custos, o princípio da especialização dos exercícios traduz-se na consideração, como custo de determinado exercício, dos encargos que economicamente lhe sejam imputáveis.
II. Contudo esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266/2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.
III. O ato tributário de liquidação é por natureza um ato divisível e, consequentemente, é suscetível de anulação parcial, no respetivo processo de impugnação.
IV. O critério jurisprudencial para determinar se o ato deve ser total ou parcialmente anulado passa por determinar se a ilegalidade afeta o ato tributário no seu todo, caso em que o ato deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial

III - Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da 2ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Sem custas, por delas se encontrar isenta a Fazenda Pública.

[Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13 de março, o Relator atesta que os Juízes Adjuntos - Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores Vital Lopes e Luísa Soares - têm voto de conformidade.]

Lisboa, 15 de abril de 2021
Susana Barreto

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(1) Ac STA de 2008.11.19, Proc. nº 0325/08
(2) Aut. cit., Anotação e Comentário ao Ac. STA, proferido em 2001.05.16, no Processo n.º 25.532, in Revista Fiscalidade: Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.º 7/8, pág. 63 a 71.