Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:708/19.7 BESNT
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:06/15/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. Relatório

O Senhor Juiz do Juízo Social do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra veio requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo Sul e ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36º do ETAF a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e a Senhora Juíza do Juízo Administrativo Comum do mesmo Tribunal. Ambos os Magistrados se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa que A …………… intentou naquele Tribunal contra o Estado Português, ali representado pelo Ministério Público.

Em 19.04.2022 o Relator, após constatar que a decisão de 8.12.2020 ainda não tinha transitado em julgado, proferiu despacho a declarar a inexistência de conflito negativo de competência e a ordenar a baixa dos autos ao TAF de Sintra.

No TAF de Sintra as partes foram notificadas da decisão de 8.12.2020 e, após trânsito, os presentes autos foram remetidos a este Tribunal Central Administrativo Sul.

Foi cumprido o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 112º do CPC.



I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o Juízo de administrativo social do TAF de Sintra ou se o Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais (documentalmente comprovadas):

1. Em 23.03.2021, A ……………….. intentou no TAF de Sintra (área administrativa) uma acção administrativa contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, a título de responsabilidade civil extra-contratual na qual pede a condenação do R. no pagamento de uma indemnização dos danos patrimoniais causados pela sua não promoção à categoria de inspector adjunto principal da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, (ou CIF do SEF) no montante de €40.000,00. Ou, a título subsidiário, que o R. seja condenado a indemnizá-lo pelo dano de “perda de chance”, no montante de €30.000,00, acrescido de juros desde a citação até pagamento. (cfr. pi. a fls. 2 e 45 documentos juntos a fls. 2 e ss. dos autos em suporte físico).

2. Em 8.12.2020, o Senhor Juiz do juízo administrativo social a quem estes autos foram atribuídos considerou que o caso em litígio nos presentes autos não se subsumia no âmbito da jurisdição do juízo administrativo social do TAF de Sintra, mas sim no do juízo administrativo comum do mesmo Tribunal e ordenou à “Unidade Orgânica que proced[a] à correção da presente distribuição, seguindo-se, assim sendo, o postulado no artigo 210.º, alínea a), do Código de Processo Civil “ex vi” artigos 1.º e 26.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (cfr. artigos 14.º, n.º 1, aqui analogicamente aplicável e 89.º, n.ºs 1, 2 e 4 alínea a), ambos do CPTA). (ibidem, fls. 137 e 138)

3. Os presentes autos foram remetidos à Secção Central para efeitos de redistribuição e, nessa sequência, a Senhora Juíza do juízo administrativo a quem os mesmos foram atribuídos, em sentença datada de 21.01.2022, declarou aquele juízo incompetente, em razão da matéria, para apreciar a presente acção, cometendo a competência ao juízo administrativo social do mesmo Tribunal, por ter considerado que a decisão que ordenou a correção da distribuição “não teve por efeito a decisão da presente incompetência em razão da matéria” (idem, fls. n/numeradas destes autos).

4. Em 2.03.2021, a Secção Central do TAF de Sintra procedeu à alteração da classificação de Juízo Comum para Juízo Social e colocou os autos para efeitos de nova distribuição (cfr. consulta ao Sitaf),

5. Por despacho de 19.05.2021, o Senhor Juiz do juízo administrativo social do TAF de Sintra requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si com a prolação do despacho de 8.12.2020 (ponto 2. supra) e a Senhora Juiz do juízo administrativo comum do mesmo Tribunal. (idem, fls. n/numeradas).

6. Este despacho foi notificado às partes em 15.03.2022 (consulta ao Sitaf).

7. As decisões em conflito transitaram em julgado, após a notificação de 28.04.2022 às partes da decisão (cfr. consulta do Sitaf).




II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional. De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual, i.é, caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

E na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo administrativo social, o conhecimento dos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc.11/2006.

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Feito este enquadramento inicial, vejamos o caso concreto, devidamente recortado pela factualidade que deixámos fixada.

De regresso ao caso dos autos, temos que nesta acção administrativa para efectivação de responsabilidade civil extra-contratual o Autor veio pedir ao tribunal que condene o R. a pagar-lhe uma indemnização de montante não inferior a EUR: 40.000,00, acrescido de juros desde a citação até efectivo e integral, a título de reparação pelos danos patrimoniais causados pela sua não promoção na carreira de inspector adjunto principal na CIF do SEF e, pede ainda, a título subsidiário, que se condene o Estado a indemnizá-lo pelo dano de perda de chance no valor de EUR: 30.000,00, acrescido de juros se mora desde a citação até integral pagamento.

A fundamentar o seu pedido invoca que na sequência do concurso interno de acesso limitado, para provimento de 19 lugares de Inspector Adjunto Principal da carreira de Investigação Fiscalização do SEF, publicitado em 2005, o R. praticou diversos actos e omissões alegadamente ilícitos que, na sua perspectiva, conduziram à sua não promoção na CIF do SEF.

Temos para nós que a circunstância de o A. ter formulado um pedido indemnizatório a ser regulado pelas normas do instituto da responsabilidade civil extra-contratual do Estado, não subtrai a competência material ao juízo social para julgar o presente litígio, já que a acção no seu todo convoca, a título principal, matéria relacionada com o vínculo de trabalho em funções públicas.

Como assinala a Senhora Juíza do juízo comum do TAF de Sintra “[o] critério do legislador na atribuição da competência, em razão da matéria ao Juizo Social, é unicamente, o seguinte: “…conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho…”, sem qualquer elemento literal que permita interpretações de atribuição da competência que não aquele, e são “ …todos…” os litígios que emergem, tal como é o vertente no caso dos autos, já que a actuação ilegal reporta-se ao vinculo laboral entre A. e R..

E mais adiante acrescenta que “ a intenção do legislador ter tido o objectivo, claro e inequívoco, de concentrar no Juízo Social todos os litígios que tenham a sua origem em vínculos laborais, e assim definiu o âmbito, o que veda o recurso a interpretações comparativas incluindo com os Tribunais de Trabalho e seu âmbito de jurisdição, daquele preceito resulta que quis o legislador garantir que o Juizo Social conheça e dirima todos os litígios emergentes do vinculo laboral.”

De facto, extrai-se da norma contida na alínea b), nº 1, do artigo 44º-A do ETAF que ao Juízo Administrativo Social compete, tal como foi configurado pelo legislador, dirimir, além das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei, e para o que aqui releva “todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas”.

É esse o caso dos presentes autos, pois saber se o A. tem ou não direito a ser indemnizado, é questão que assenta num juízo de sindicância que o tribunal - juízo social - terá sempre de fazer a propósito do concurso interno de acesso limitado para o dito provimento de 19 lugares de Inspector Adjunto Principal da CIF do SEF, a que o A. concorreu, com aproveitamento (vide artigo 5º e 6º da p.i. e docs 2 a 4 juntos), mas sem nunca ter sido provido.

Em face do que fica dito, teremos que concluir, perante o teor da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e tendo presente o objecto do litígio- questão relacionado com um litigio emergente do vínculo de trabalho em funções públicas - que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito, não cabe ao juízo administrativo comum do TAF de Sintra, mas sim ao juízo administrativo social do mesmo Tribunal, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, nºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea b) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 9º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º, alínea h), da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao juízo administrativo social do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (área administrativa).

Sem custas.
Notifique.

Em 15 de Junho de 2022

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques