Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:476/05.0BELLE
Secção:CA
Data do Acordão:07/11/2018
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:NULIDADE DECISÓRIA; ERRO NO JULGAMENTO DE FACTO;
UNIDADE DE CULTURA; RPDM DE .....; ÁREA DE EDIFICAÇÃO DISPERSA
Sumário:I - É jurisprudência pacífica que só ocorre a nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devia apreciar, que são todas as que lhe forem submetidas e que não se encontrem prejudicadas pela solução dada a outras. Só a falta absoluta de fundamentação gera a nulidade da decisão;
II- O Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto tem o ónus de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
III - O tribunal superior só pode alterar a matéria de facto quando as provas produzidas na 1 ,a instância impõem, decisiva e forçosamente, decisão diversa da aí tomada;
IV-A Portaria n.° 202/70, de 21-04, conjugada com o art.° 13.° do Decreto-Lei n.° 196/89, de 14- 08, indica e fixa as várias culturas a efectuarem-se nas diferentes zonas geográficas do pais e indica em hectares, para cada um dos tipos, os mínimos “de unidade de cultura”;
V-Logo, o apuramento da área mínima de cultura que vinha indicado no art.° 68.°, n.° 3, h) e n.° 4 do RPDM de ....., exigiria um apuramento concreto e a verificação do tipo de cultura feito no terreno e na zona - se arvense em terrenos de regadio, se cultura hortícola em terrenos de regadio ou se de sequeiro. Para a aferição da referida área importaria, ainda, apreciar a localização concreta do terreno - se em área RAN ou de em perímetros de emparcelamento;
VI-Ainda para efeitos da aplicação do art.° 68.°, n.° 3, al. h), do RPDM de ....., exigir-se-ia o prévio apuramento factual da área de localização do terreno e a caracterização da edificação como “isolada”, ou em “área de edificação dispersa" “delimitada na carta de ordenamento”;
VII- Nos termos do art.° 68°, n.° 3, al. h), do RPDM de ....., nas áreas de edificação dispersa poderia autorizar-se a edificação ainda que não se respeitasse a “área mínima de parcela” e correspondente à “unidade de cultura fixada para a região”, desde que estivessem observados os restantes requisitos indicados no referido art.º 68.º do RPDM.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

O Município de ..... interpôs recurso do acórdão do TAF de ..... que julgou procedente a presente acção e deferindo o pedido formulado na PI declarou a nulidade da deliberação da Câmara Municipal de ..... (CML) de 19-11-1996 e dos despachos do Presidente da CML de 09-12-1997 e de 12-05-1998, que aprovaram o projecto de licenciamento de obras no prédio inscrito na matriz predial rústica sob o n.º 2…., localizado no Sitio de ……., requerido por ....., assim como, declarou a nulidade do alvará n.º 5…..

Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões:”
(Texto no Original)


O Recorrido Município nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões: “I. A douta sentença recorrida, julgando procedente a acção, declarou a nulidade dos actos administrativos impugnados, que aprovaram o licenciamento da construção de uma moradia num terreno situado em ....., freguesia de ....., concelho de ....., propriedade do contra- interessado .....;
II. Na douta sentença recorrida não ocorreu qualquer erro de julgamento da matéria de facto;
III. Constando da mesma a área do prédio em apreço logo se alcança, por subsunção jurídica, que a mesma é inferior à unidade de cultura fixada para a região;
IV. Os actos administrativos são apreciados, quanto à sua legalidade, de acordo com os dispositivos do bloco de legalidade aplicável a data da sua prática;
V. À data da prática dos actos administrativos impugnados, estes actos administrativos tinham de se conformar com o Plano Director Municipal de ..... entretanto em vigor e também com as normas do PROT-Algarve;
VI. Tratando-se, na situação em apreço, de um prédio rústico, uma terra de cultura com amendoeiras e 1 alfarrobeira, não era viável a edificação no mesmo.
VII. As razões ponderosas referem-se a algo de grave, pesado, importante, atendível ou convincente, independentemente de ser ou não um motivo pessoal do interessado, mas não correspondem a um mero interesse relevante do particular.
VIII. As apelidadas razões ponderosas invocadas pelo recorrente mais não são que o mero interesse de qualquer cidadão a ter uma habitação, o que, não obstante se reconhecer como um direito fundamental de qualquer cidadão, não são, de forma manifesta, razões ponderosas.
IX. A douta sentença recorrida também não violou a norma do artigo 134.º, n.º 3, do Código de Procedimento Administrativo, desde logo porque dela não resulta a obrigatoriedade de ser apreciada essa questão em qualquer decisão que declare a nulidade de actos administrativos;
X. E no caso dos autos também não existe qualquer possibilidade legal de serem considerados efeitos putativos dos actos administrativos declarados nulos, por inexistência dos requisitos que se exigem para a salvaguarda desses chamados direitos putativos;
XI. Com efeito, no âmbito do licenciamento urbanístico em violação dos instrumentos de ordenamento territorial, não há lugar ao reconhecimento da relevância jurídica de situações de facto, criadas e duradouramente mantidas com base em tais actos nulos.
XII.O prazo de caducidade de 10 anos previsto no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, na redacção introduzida pela Lei n.º 60/2007, de 04 de Setembro, entrou em vigor no dia 02 de Março de 2008;
XIII. Tratando-se de um prazo que a lei nova vem estabelecer pela primeira vez um prazo, este só pode ser contado a partir do momento da entrada em vigor da nova lei.
XIV. Pelo que só em 02 de Março de 2018 ocorrerá aquele prazo de 10 anos para fazer operar a caducidade.
XV. A douta sentença recorrida, ao julgar a acção procedente, decidiu em conformidade com o direito aplicável, pelo que não foram violadas as normas indicadas pelo recorrente, nem quaisquer outras.”

O Recorrido particular não contra-alegou.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – OS FACTOS

Na decisão recorrida foi dada por assente, por provada, a seguinte factualidade, que se mantém:

“A) Em 3 de Janeiro de 1995, o Contra-interessado, solicitou a aprovação das obras que pretenda realizar no prédio inscrito na matriz predial rústica sob o nº 2…., localizado no Sítio de ....., ....., ..... (cfr doc nº 1 da pi);
B) A Informação nº 1…-B de 14 de Fevereiro de 1995 da Divisão de Planeamento Urbanístico e Ordenamento continha designadamente que o terreno tem a área de 3.700m2 e que é aplicável o artº 43º e 44º do PDM (cfr doc nº 2 da pi);
C) Em 8 de Maio de 1995, o Contra-Interessado apresentou as suas razões ponderosas pedindo à Entidade Demandada a reapreciação do pedido (cfr doc nº 3 da pi);
D) Por deliberação de 19 de Novembro de 1996 e por despacho de 9 de Dezembro de 1997 da Entidade Demandada, o licenciamento da construção do Contra-Interessado foi aprovado (cfr doc nº 4 da pi);
E) Em 3 de Março de 1998 o Contra-Interessado apresentou à Entidade Demandada os projectos de Estabilidade, de Rede Predial de Águas e Esgotos, de Instalações Telefónicas e de Isolamento Térmico (cfr doc nº 5 da pi);
F) Em 12 de Maio de 1998, o licenciamento foi deferido por despacho do Presidente da Câmara Municipal de ..... de 12 de Maio de 1998 (cfr doc nº 5 da pi);
G) Em de 24 de Julho de 1998, foi emitido o alvará n° 5…./98 (cfr doc nº 5 da pi).”

Nos termos dos art.ºs. 712,º n.ºs. 1, a) e b), 2 e 715.º, n.ºs 1 do Código de Processo Civil - CPC (equivalente aos actuais art.ºs 662.º, n.º 1 e 665.º, n.ºs 1 e 2, do novo CPC) acrescentam-se os seguintes factos, por provados:
H) O terreno pertença do Contra-interessado tem a área de 3700,000m2 (acordo; cf. também o doc. de fls. 7 dos autos e a certidão de registo predial no PA);
I) Na Informação nº 115-B, de 14-02-1995, já referida em B), indica-se que o terreno do Contra interessado “não se insere em nenhum dos perímetros que delimitam as Áreas de Edificação Dispersa a conter” (cf. doc. de fls. 9).
J) Consta da certidão de registo predial inserta no PA que o terreno do Contra-interessado é composto por “terra de cultura com amendoeiras e alfarrobeira” (cf. a referida certidão predial no PA).

II.2 - O DIREITO

As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e contra-alegações de recurso e respectivas conclusões, são:
- aferir da nulidade decisória por omissão de pronúncia relativamente aos efeitos do art.º 134.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) e dos art.sº 68.º e 69.º, n.º 4, do Regime Geral de Urbanização e Edificação (RJUE);
- aferir do erro na fixação da matéria de facto, por na alínea B) se dar por provado que se aplicavam os art.ºs 43.º e 44.º do Regulamento do Plano Director Municipal (RPDM) de ..... com base no doc. 2 junto à PI quando à data – em 04-02-1995 - tal RPDM não estava ainda em vigor;
- aferir do erro na fixação da matéria de facto, por se ter alegado no art.º 3.º da PI que o terreno está incluído em área de edificação dispersa e na decisão recorrida não se ter dado por provada a natureza do prédio - se de regadio ou de sequeiro – a respectiva área como inferior à unidade mínima de cultura e que o prédio está em área de habitação dispersa, apesar de se ter decidido, em sede de direito, com base em tais considerações fácticas;
- aferir do erro decisório e da errada interpretação do art.º 68.º, n.º 3, do RPDM, por a construção em questão se inserir numa área de habitação dispersa, ficando excepcionada a obrigação do prédio apresentar uma área superior à unidade mínima de cultura.

É jurisprudência pacífica que só ocorre a nulidade da decisão por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 668.º, n.º 1, al. d), do anterior CPC (vide actualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC), quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devia apreciar, que são todas as que lhe forem submetidas e que não se encontrem prejudicadas pela solução dada a outras (cf. art.ºs. 660.º, n.º 2, do anterior CPC e 608.º, n.º 2, do actual CPC). Deve o juiz apreciar as questões respeitantes ao pedido e à causa de pedir, e ainda, os argumentos, as razões ou fundamentos invocados pelas partes para sustentarem a sua causa de pedir. Mas só a falta absoluta de fundamentação gera a nulidade da decisão. Também nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 668.º do anterior CPC (que corresponde ao art.º 615.º do actual CPC), para ocorrer a nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e decisão, terá de se verificar uma situação grave, patente, que implique uma incongruência absoluta.
No caso em apreço, o tribunal ponderou as questões em litígio e decidiu-as. Para tanto, indicou o tribunal as razões de facto e de Direito que levavam à sua decisão. Nessa mesma decisão, o tribunal pronunciou-se relativamente à aplicação do art.º 134.º, n.º 3, do CPA (na anterior versão, aqui aplicável), invocando essa norma e indicando que a mesma “protege os direitos dos adquirentes de boa-fé”.
Ou seja, invocados os efeitos putativos dos actos impugnados, ao abrigo do art.º 134.º, n.º 3, do CPA, na contestação, pelo Contra-interessado e depois pelo R. e Recorrente, Município, nas alegações, o tribunal - ainda que lapidarmente – apreciou essa mesma questão.
Já no que se refere à aplicação dos art.sº 68.º e 69.º, n.º 4, do RJUE, trata-se de uma alegação que só agora, em sede de recurso, foi introduzida pelo Município, porquanto até à data da prolação da sentença recorrida, tal questão nunca foi invocada nos autos.
Em suma, não se verifica, no caso, a alegada nulidade decisória, por total omissão de pronúncia quanto às questões trazidas a litígio.

Vem o Recorrente invocar um erro na fixação da matéria de facto por na alínea B) dos factos provados se dar por assente que se aplicavam os art.ºs 43.º e 44.º do Regulamento do Plano Director Municipal (RPDM) de ....., com base no doc. 2 junto à PI quando à data – em 04-02-1995 - tal RPDM não estava ainda em vigor.
Naquele facto B) apenas se deu por provado o teor da Informação nº 115-B, de 14-02-1995 e que nesta se indicava serem aplicáveis os art.ºs 43.º e 44.º do RPDM de ...... Confrontado o doc. de fls. 9 dos autos (em suporte de papel) para o qual remete naquele facto B), constata-se, que em tal informação assim se menciona.
Ou seja, o indicado julgamento de facto foi correcto.
Quanto ao normativo a aplicar ao acto sindicado, é já matéria de Direito, não de facto.
Improcede, pois, esta alegação de recurso.

Vem também o Recorrente invocar um erro na fixação da matéria de facto por se ter alegado no art.º 3.º da PI que o terreno está incluído em área de edificação dispersa e na decisão recorrida não se ter dado por provada a natureza do prédio - se de regadio ou de sequeiro – a respectiva área como inferior à unidade mínima de cultura e que o prédio está situado está em área de habitação dispersa, apesar de se ter decidido em sede de Direito com base em tais conclusões fácticas.
Os art.ºs. 684º-A, n.º 2 e 685º-B do antigo CPC (tal como os actuais art.sº 636º, n.º 2, 640º e 662º do novo CPC), impõem à parte recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o ónus de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Por seu turno, os art.ºs 685.º-B e 712.º do CPC, ex vi art.º 1.º do CPTA (equivalentes aos art.ºs 640.º e 662.º do novo CPC), permitem a reapreciação e a modificabilidade da decisão de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância apenas nas situações em que o tribunal recorrido apresente um julgamento errado, porque fixou factos de forma contrária às regras da prova, ou os fixou de forma inexacta, ou porque os valorou erroneamente.
Aqui vale o princípio da livre apreciação da prova, remetendo-se para uma íntima convicção do julgador, formada no confronto dos vários meios de prova, que uma vez exteriorizada através de uma fundamentação coerente, razoável, plausível, que obedeça às regras da lógica, da ciência e da experiência comum, torna-se uma convicção inatacável, salvo para os casos em que a prova deva ser feita através de certos meios de prova, que apresentem uma determinada força probatória.
Nestes termos, a impugnação da matéria de facto e a modificabilidade da mesma pelo tribunal superior não visa alterar a decisão de facto fundada na prova documental ou testemunhal, apenas porque a mesma é susceptível de produzir convicções diferentes, podendo ser diversa a tomada no tribunal superior daquela que teve o tribunal da 1.ª instância. Diferentemente, este tribunal superior só pode alterar a matéria de facto porque as provas produzidas na 1.ª instância impunham, decisiva e forçosamente, outra decisão diversa da aí tomada (cf. art.º 662.º do CPC).
Portanto, para a modificação da matéria de facto é necessário que haja uma dada matéria de facto que foi identificada e apreciada pelo tribunal de 1.ª instância e que este tenha exteriorizado a sua convicção na fixação da matéria provada e não provada. Só depois, se face às provas produzidas e para as quais o Recorrente remete, se impuser forçosamente decisão diversa da tomada pela 1.ª instância, há que alterar aquela. Mas terá que se tratar de uma prova firme, indiscutível ou irrefutável, que necessariamente abala a convicção que o tribunal de 1.ª instância retirou da prova produzida.
Feito este enquadramento, verifica-se, que a alegação do Recorrente relativa ao erro decisório quanto à fundamentação de facto é uma alegação imperfeita, pois cumpre-se muito deficientemente o ónus de indicar qual a factualidade que foi erradamente fixada e quais os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa.
Basicamente, aquilo que o Recorrente alega ser um erro na fixação da matéria de facto é, sobretudo, uma alegação relativa a um erro de julgamento de Direito, pois o que pretende dizer é que com a matéria que foi fixada não se poderia ter decidido como se decidiu.
Ainda assim, apreciando estas alegações do Recorrente enquanto uma impugnação à matéria de facto fixada, considerando que no caso se está a averiguar de uma eventual nulidade por violação de regras urbanísticas – cf. art.ºs. 67.º e 68.º do RJUE - de conhecimento oficioso, dispondo aqui o tribunal de um amplo inquisitório, há que considerar o que se segue.
Quanto ao primeiro facto que o Recorrente diz que a sentença omitiu – o relativo à natureza do prédio - se de regadio ou de sequeiro – trata-se de um facto que não vem clara e expressamente alegado nem na PI, nem nas contestações.
Não obstante, na PI alega-se que o terreno não dispunha da área mínima de cultura e invoca-se a violação do art.º 68.º, n.º 3, h) e n.º 4 do RPDM (aprovado em 22-10-1994 e ratificado por Resolução do Conselho de Ministros n.º 81/95, de 24-08-1995), o que logicamente pressupõe que se afira o tipo de cultura em questão efectuada naquele terreno e fixada para a região.
Por conseguinte, ainda que de forma imperfeita - porque pouco clara ou enviesada - acaba por ser alegado na PI a existência de um tipo de cultura e que o terreno em questão não dispõe da área mínima para esse efeito – ou para essa mesma cultura. Logo, face àquela alegação - porque imperfeita - cumpriria ao juiz determinar o aperfeiçoamento da PI, para que nela se introduzisse a indicação da cultura que, em concreto, se invocava como a praticada naquele terreno e fixada para a região e que estava na base do cálculo da referida área.
Aqui, faça-se menção da forma claramente deficiente como vem alegados os factos quer na PI quer nas contestações, porquanto não se separa as alegações factuais das de Direito. Qualquer dos referidos articulados é uma amálgama intrincada de factos, de alegações de Direito, de juízos de valor e de conclusões, de difícil apreensibilidade quer quanto aos factos que se querem realmente invocar, quer quanto às ilações e subsunções de Direito que, depois, se pretendem retirar de tais factos.
Consequentemente, a tarefa do juiz, de apreensão da realidade factual alegada e contraditada pelas partes tornou-se, neste concreto processo, algo complexo e moroso, já que as alegações factuais estão muito mal elaboradas e contraditadas.
Mas, ainda assim, como se referiu, competiria ao tribunal convidar o A. a aperfeiçoar o seu articulado, porquanto a indicação da cultura que se praticava no terreno e fixada para a região era algo essencial para se poder afirmar que aquele mesmo terreno não respeitava a área mínima respectiva.
Ademais, como a seguir indicaremos, sem esse mesmo aperfeiçoamento não se poderia concluir, como se fez na decisão sindicada, que o terreno do Contra-interessado tinha uma área inferir à unidade de cultura mínima fixada para a zona, que se mantém desconhecida nos autos enquanto correspondendo a uma questão fáctica.
Note-se, ainda, que nas alegações apresentadas ao abrigo do art.º 91.º-A do CPTA, o DMMP já indica claramente que a cultura em questão será a de “regadio com cultura hortícola”, nos termos da Portaria n.º 202/70, de 21-04, conjugada com o art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14-08, e essa indicação é repetida na decisão recorrida “camuflada” de alegação de Direito.
Porém, apreciados aqueles mesmos diplomas, verifica-se, que na zona de ..... as culturas que vêm fixadas tanto podem ser a arvenses em terrenos de regadio – com um mínimo de 2,5 hectares de unidade de cultura – ou culturas hortícolas em terrenos de regadio – com um mínimo de 0,5 hectares - ou de sequeiro – com um mínimo de 7,5 hectares. Depois, porque o terreno vem afirmado como estando em área RAN – facto que também não foi dado por assente na decisão recorrida, sendo que nesta parte o julgamento não vem impugnado – os valores mínimos da unidade de cultura, acima indicados, passariam para o triplo ou se estivéssemos em perímetros de emparcelamento, para o dobro, o que se desconhece).
Ou seja, a lei – no caso, da Portaria n.º 202/70, de 21-04, conjugada com o art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14-08 – indicam e fixam as várias culturas a efectuarem-se nas diferentes zonas geográficas do pais e indicam em hectares, para cada um dos tipos, os mínimos “de unidade de cultura”.
Logo, para se saber quais os valores a aplicar ao caso concreto ter-se-ia, sempre, que apreciar entre as várias culturas que vem legislativamente fixadas como “adequadas” quais eram as efectivamente cultivadas no terreno.
Por conseguinte, a decisão recorrida errou quando ao invés de apurar em termos fácticos qual a cultura que efectivamente era cultivada no terreno do Contra-interessado, se limitou, já em sede de Direito a afirmar a violação dos supra-indicados diplomas por na zona estar fixada para terrenos de regadio com cultura hortícola uma área para a unidade de cultura de um mínimo e 10.000m2.
Ou seja, há que aceitar como procedente a alegação do Recorrente relativa ao erro decisório por não ter sido fixado na decisão recorrida qual a cultura em questão que predominava naquele terreno ou zona e à qual se aplicaria o critério da “área mínima de cultura” que vinha art.º 68.º, n.º 3, h) e n.º 4 do RPDM.
Como se indicou, a aferição daquela área mínima não se poderia fazer em abstracto, com recurso a uma mera aplicação da lei, mas exigiria a um apuramento concreto e à verificação do tipo de cultura feito no terreno e na zona – se arvenses em terrenos de regadio, se culturas hortícolas em terrenos de regadio ou se de sequeiro. Para a aferição da referida área importaria, ainda, apreciar a localização concreta do terreno - se em área RAN ou de em perímetros de emparcelamento.
Mais se note, que o DMMP nas alegações apresentadas ao abrigo do art° 91,°-A do CPTA- e não na PI - explicitou que o terreno em questão se destinava ao “regadio com cultura hortícola" e essa mesma indicação é afirmada na decisão recorrida, em sede de apreciação de Direito, para depois se concluir pela preterição do art.° 68.°, n.° 3, h) e n.° 4 do RPDM e para se declarar a nulidade dos actos impugnados.
No entanto, conforme a descrição do prédio constante da certidão predial, inserta no PA, o mesmo corresponde a uma “terra de cultura com amendoeiras e alfarrobeira" (cf. facto J) agora acrescentado). Ora, esta descrição predial colide ou conflitua com a alegação feita pelo DMMP e subscrita na decisão recorrida, relativa ao uso do terreno em questão em cultura de “regadio com cultura hortícola" e induz, diferentemente, a um uso arvense em terrenos de regadio, sendo certo que os hectares que vêm legislativamente fixados para cada um daqueles tipos de cultura não são iguais, mas, antes diferem entre um mínimo 0,5 hectares e de 2,5 hectares por unidade de cultura.
Em suma, o julgamento de facto quanto a este aspecto era relevante e está errado, porque omisso.
Considerando que os autos não fornecem os elementos necessários para a alteração do julgamento de facto, terão de baixar os autos à 1.ª instância para se renovarem os meios de prova e se apurar acerca da alegação relativa à área mínima do terreno para a cultura predominante e existente naquele terreno ou zona, com base na qual se afere a área mínima de cultura.
No que diz respeito ao facto relativo à área do prédio, vem alegada no art.° 4.° da PI, como sendo de 3.700m2. Tal facto não vem, depois, expressamente impugnado nas contestações apresentadas.
Na decisão recorrida consignou-se na alínea B) que na Informação n° 115-B, de 14-02-1995, se indicava que o terreno tinha a área de 3.700m2.
Portanto, aquela decisão acabou por dar por provado que a CML assumiu naquela Informação que a área do terreno era a de 3.700m2.
Aceita-se que a forma como a sentença recorrida pretendeu dar por provado o facto relativo à área do terreno - que era um facto essencial - foi deficitária.
Na verdade, sendo tal facto essencial, porque estava expressamente alegado na PI e não tinha sido especificamente impugnado pelas contrapartes, havia o mesmo de ser dado por provado de forma autónoma, e não por simples remissão para o teor da indicada Informação.
Assim, acrescentou-se agora a alínea H), donde passa a constar que o terreno pertença do Contra-interessado tem a área de 3.700,000m2.
Tal facto, face à posição das partes, tem de ser considerado acordado. Para além disso, a conjugação dos docs. de fls. 7 - o requerimento do Contra-interessado - 9 - a Informação n° 115-B, de 14-02-1995 - 46 e 47 - a certidão da matriz - e a certidão predial constante do PA, confirmam aquela mesma alegação.

Por último, o facto relativo à inclusão do terreno em área de habitação dispersa é alegado no art.° 3.° da PI e não foi, depois, dado por assente na decisão recorrida.
Por seu turno, na Informação n° 115-B, de 14-02-1995, já referida na alínea B) dos factos provados, indica-se que o terreno do Contra-interessado “não se insere em nenhum dos perímetros que delimitam as Áreas de Edificação Dispersa a conter'.
Esta última indicação não basta para permitir concluir pela subsunção - ou não - da factualidade em questão ao determinado no art.° 68.° do RPDM.
Como veremos a seguir, na decisão recorrida - sem antes dar por assente que o terreno do Contra-interessado era uma edificação isolada, ou se se situava em área de edificação dispersa - considerou violado o art° 68.°, n.° 3, al. h), do RPDM, dando procedência aos argumentos do A., ora Recorrido, o DMMP.
Ora, a aplicação de tal preceito e a procedência da acção por via da violação do mesmo, exigiria o prévio apuramento factual da área de localização do terreno e a caracterização da edificação como “isolada", ou em “área de edificação dispersa" “delimitada na carta de ordenamento".
Esse apuramento não foi feito nos autos.
A decisão recorrida entendeu que a construção em causa nos autos não estaria incluída na excepção do n.° 4 do art.° 68.° do RPDM, portanto, não estaria em área de edificação dispersa. Essa conclusão da sentença recorrida vem contrariada pelo que está indicado na Informação n° 115-B, de 14- 02-1995, agora acrescentado em sede de factos.
Porém, este acrescento não é o bastante para que se possa dar por provado, por assente, que o pedido de construção em causa nos autos pode, na realidade, ser subsumido na excepção do referido art.° 68.°, n.° 3, al. h) e 4 do RPDM, porque se trata, sem dúvida, de uma área de edificação dispersa delimitada na carta de ordenamento.
Procede, pois, também aqui, a alegação do erro decisório na fundamentação de facto.
Em conclusão, também quanto a este facto, porque dos autos não resultam elementos suficientes para modificar a prova, há que determinar a baixa dos autos à 1.a instância para se renovarem os meios de prova e se apurar acerca da alegação relativa á localização do terreno do Contra-interessado, se em edificação dispersa delimitada na carta de ordenamento ou não.
Não obstante, no seguimento aduzido no recurso, nos termos dos art.°s 685.°-B e 712.° do CPC, ex vi art.° 1.° do CPTA, acrescentou-se o facto I), que inclui a indicação constante da mencionada Informação.
Vem o Recorrente arguir um erro no julgamento de Direito, por errada interpretação do art° 68.°, n.° 3, do RPDM, por a construção em questão se inserir numa área de habitação dispersa, ficando excepcionada a obrigação do prédio apresentar uma área superior à unidade mínima de cultura.
Estipula o art.° 26°, n.° 1, do Plano Regional de Ordenamento do Território para o Algarve (PROT-Algarve), aprovado pelo decreto-Regulamentar n.° 11/91, de 21-03, o seguinte:”
Artigo 26.º
Proibição de edificação dispersa
1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 23.º, 24.º e 25.º, fora das zonas de ocupação urbanística, a que se referem os artigos 9.º e 11.º, não podem ser autorizadas operações de loteamento nem novas edificações que provoquem ou aumentem a edificação dispersa.
2 - Por razões ponderosas demonstradas pelo interessado, designadamente as que digam respeito à organização de explorações agrícolas, podem, excepcionalmente, ser autorizadas edificações isoladas, desde que daí não resultem derrogações ao estabelecido no presente diploma.”

Por seu turno, determina o art.º 68.º do RPDM o seguinte:
“Edificação dispersa
1 - Não são autorizadas novas edificações que provoquem ou aumentem a edificação dispersa sem prejuízo no disposto no artigo 50.º
2 - Por razões ponderosas demonstradas pelo interessado podem, excepcionalmente, ser autorizadas edificações isoladas, desde que daí não resultem derrogações ao presente Regulamento.
3 - Nos casos previstos no número anterior, as autorizações só poderão ter lugar para construções destinadas a habitação unifamiliar, unidades de comércio, serviços e equipamentos em prédios ou parcelas de terreno que disponham de acesso público e desde que:
a) Área máxima de construção - 300 m2;
b) Número máximo de pisos acima da cota mais desfavorável do terreno - dois ou 6,5 m de altura;
c) Respeito pelo afastamento mínimo de 5 m aos estremos do terreno ou parcela, sem prejuízo de ficarem garantidos os afastamentos definidos no artigo 14.º relativamente a estradas ou caminhos contíguos;
d) Infra-estruturas:
Água - rede pública ou na sua falta sistema autónomo, de acordo com as disposições legais e regulamentares aplicáveis;
Esgotos - admitem-se sistemas autónomos, desde que não colidam com áreas de infiltração máxima e permitam ligação a futura rede pública;
Em nenhum caso é permitida a descarga de águas residuais nas linhas de água e de drenagem natural;
Rede viária - deverão ser cedidas ao município, a título gratuito, as áreas de terreno eventualmente necessárias a garantir o alargamento da via de acesso confinante para a largura mínima de 6 m mais berma ou passeio de 1,5 m, em toda a extensão confinante com a propriedade do requerente e à custa desta;
e) A construção de muros e o arranjo dos espaços exteriores deverão constar dos projectos para licenciamento e a sua execução não poderá prejudicar a definição de alinhamentos nem a eventual estruturação viária nos termos definidos na alínea d) do presente artigo;
f) As disposições constantes das alíneas anteriores aplicam-se igualmente à reconstrução, alteração e ampliação de edificações existentes;
g) A alteração do uso das edificações carece de prévia e expressa autorização municipal, ponderada em função das suas eventuais implicações no equilíbrio ambiental da zona;
h) A área mínima de parcela corresponda à unidade de cultura fixada para a região, com excepção das áreas de edificação dispersa referidas no n.º 4 deste artigo.
4 - As principais áreas de edificação dispersa a conter são as delimitadas na carta de ordenamento.
5 - É interdito o loteamento urbano.
6 - É permitida a reconstrução, alteração e ampliação de edifícios existentes destinados à habitação, turismo rural, agro-turismo ou turismo de habitação, desde que:
a) Número máximo de pisos acima da cota mais desfavorável do terreno - dois ou 6,5 m de altura;
b) A área de pavimento existente poderá ser aumentada, desde que o total da construção não exceda 300 m2, exceptuando-se:
Os edifícios habitacionais que já tenham área superior, caso em que não será permitido qualquer aumento de área;
Os edifícios destinados a turismo rural, agro-turismo e turismo de habitação, regulamentados por legislação específica;
c) As infra-estruturas obedeçam ao estabelecido na alínea d) do n.º 3 do presente artigo.”

Por conseguinte, face aos supra indicados preceitos, para se poder apreciar o pedido formulado na PI pelo DMMP e determinar a nulidade da deliberação da CML, ou dos actos do seu Presidente, que aprovaram o projecto de licenciamento, ter-se-ia, primeiramente, que aferir acerca da localização da obra e do terreno do Contra-interessado, apurando se se trata de uma edificação isolada e se o terreno estava, ou não, contido nas áreas de edificação dispersa delimitadas na carta de ordenamento.
A decisão recorrida não cuidou de fazer esse apuramento factual - nem dos restantes requisitos factuais que permitiram a subsunção do caso ao art.º 68.º do RPDM – e concluindo pela existência de uma área da parcela inferior à unidade de cultura fixada para a região, entendeu que os actos sindicados eram nulos, por ofensa ao determinado no art.º 68.º, n.º 3, al. h), do RPDM.
Ora, como decorre dos preceitos acima transcritos, nas áreas de edificação dispersa poderia autorizar-se a edificação ainda que não se respeitasse a “área mínima de parcela” e correspondente “à unidade de cultura fixada para a região”, desde que estivessem observados os restantes requisitos indicados no referido art.º 68.º do RPDM.
A razão da derrogação do art.º 68.º, n.º 3, al. h), do RPDM, ligar-se-á ao facto de naquelas áreas – de edificação dispersa - o terreno ter, tendencialmente, um uso misto, existindo neles a possibilidade de diferentes densidades de ocupação. Nessas mesmas áreas, a construção não costuma ficar totalmente vedada, mas apenas é condicionada à concreta realidade do local. É certo, que no caso do terreno dos autos, estará o mesmo em área RAN, pelo que o seu aproveitamento será unicamente agrícola – sendo certo que esta caracterização do terreno como RAN não resultou provada (apesar de alegada na PI e estar não impugnada especificamente pelas contrapartes). Quanto a esta omissão da alegação factual relativa à inserção do terreno em questão em área RAN, não foi alvo de impugnação por via deste recurso, pelo que não nos compete agora sindicar a decisão recorrida quanto a esse aspecto.
Em conclusão, só com um apuramento factual mais preciso é possível entender que a situação concreta não pode ser excepcionada face ao determinado na 1,a parte da al. h), do n.° 3 do art.° 68.° do RPDM.
Portanto, a decisão recorrida errou ao determinar a nulidade dos actos impugnados sem apurar previamente acerca da concreta situação do terreno.
Visto de outra forma, a decisão recorrida errou ao aplicar ao caso o art.° 68.°, n.° 3, al. h), 1.a parte, do RPDM e ao não apurar se a situação dos autos não caberia, afinal, na excepção contida na parte final daquele precito e no n.° 4 do mesmo artigo, por o terreno do Contra-interessado estar situado em área de edificação dispersa, delimitada na carta de ordenamento.
Se verificada esta última circunstância, cumpriria, depois, à decisão recorrida apurar acerca de todos os restantes condicionalismos exigidos no art.° 68.° do RPDM e da sua verificação ao caso, para, então, na sua preterição, poder anular os invalidar os actos impugnados (caso ocorresse uma nulidade urbanística, que é matéria de conhecimento oficioso).
Como decorre do exposto, a decisão recorrida errou na fundamentação de facto e em consequência errou também na decisão de Direito, pois decidiu neste último aspecto sem apurar previamente toda a factualidade que relevava nos autos.
Há pois que anular a decisão recorrida por erro no julgamento de facto e de Direito e determinar a baixa dos autos para que se renovem os meios de prova e se apure da área mínima da unidade de cultura fixada para a região e aplicável, em concreto, ao terreno do Contra-interessado e a localização, em específico, desse terreno e designadamente para que se verifique se o mesmo está situado em área de edificação dispersa, delimitada na carta de ordenamento ou não.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam:
- em conceder provimento ao recurso interposto, anulando a decisão recorrida e determinar a baixa dos autos à 1.ª instância para renovar os meios de prova, nos termos indicados neste acórdão, após o que deverá decidir em conformidade;
- sem custas pelo Recorrido MP, por isenção objectiva (cf. art.º 4.º, n.º1, al. a) do RCJ).

Lisboa, 11 de Julho de 2018.
(Sofia David)

(Nuno Coutinho)

(José Correia)