Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:52/20.7BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/29/2020
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO
REGULAMENTO DISCIPLINAR DA FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
PRESUNÇÃO DE VERACIDADE
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA; PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Sumário:I. O artigo 43.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro), permite a produção de prova no TAD, seja por iniciativa das partes, seja por iniciativa do próprio Tribunal.
II. À luz do artigo 220.º, n.º 3, do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol, presume-se verdadeiro o relatório da equipa de arbitragem, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa.
III. Caso a prova produzida em sentido contrário à decorrente do relatório da equipa de arbitragem seja inequivocamente forte e de molde a criar no julgador uma dúvida efetiva sobre a ocorrência dos factos que consubstanciam a prática das infrações, verifica-se um non liquet em matéria de prova, que tem de ser resolvido a favor do arguido, por aplicação do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e do princípio in dubio pro reo, que o concretiza.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
T..... apresentou no Tribunal Arbitral do Desporto recurso da decisão da Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que, nos autos que ali correram termos sob o n.º ....., o condenou na sanção de 100 dias de suspensão da prática desportiva pela infração disciplinar prevista e punida no artigo 149.º, n.º 1, e na sanção de 2 jogos de suspensão, pela prática da infração prevista e sancionada pelo art.º 154.º, n.ºs 1 e 3, todos do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (RDFPF).
Por decisão de 26/02/2020, o TAD decidiu, por unanimidade, conceder procedência integral ao recurso, revogando o acórdão recorrido e a sanção aplicada.
Inconformada, a Federação Portuguesa de Futebol interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“(…)
1. O presente Recurso de Apelação é interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, datado de 26 de Fevereiro de 2020, que revogou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou o Recorrido na sanção de 100 (cem) dias de suspensão, pela prática da infração prevista e sancionada pelo art.º 149.º, n.º 1, e, ainda, na sanção de 2 (dois) jogos de suspensão, pela prática da infração prevista e sancionada pelo art.º 154.º, n.º e 1 e 3, todos do Regulamento Disciplinar da FPF;
2. Em causa nos presentes autos está a sanção ao Recorrido por, aos 45+2 minutos da primeira parte do jogo dos autos, se ter dirigido ao jogador J....., de raça negra, empurrando-o e, com o braço no peito, dirigiu-lhe as seguintes expressões: “Que queres preto filho da puta?”. Tudo o referido, conforme Relatório elaborado pela equipa de arbitragem e respetivos esclarecimentos, vídeo do jogo, bem como demais elementos juntos ao processo disciplinar cuja cópia se juntou aos autos nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da Vitória e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos, em jogos em que a equipa da ora Recorrente participou na qualidade de visitante.
3. Os factos referidos supra estão vertidos, entre outros meios de prova carreados nos autos, no relatório da equipa de arbitragem, que tem, como se sabe, presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 220.º, n.º 3 do RD da FPF), sendo tal presunção de veracidade perfeitamente admissível no processo sancionatório, conforme previsão legal;
4. Assim, o Relatório elaborado pela equipa de arbitragem e, bem assim, os respetivos esclarecimentos complementares e o vídeo do jogo, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição do Recorrido no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (cfr. Artigo 220.º, n.º 3 do RD da FPF).
5. Isto não significa que o Relatório da equipa de arbitragem contenha uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum e com outros meios de prova constantes nos autos, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que o Recorrido praticou os factos de que vem acusado;
6. Para abalar essa convicção, cabia ao Recorrido apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade, o que, ao contrário do que entende o tribunal a quo, não se verificou. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil.
7. Em sede de produção de prova, o árbitro principal confirmou todos os factos que havia testado no seu relatório, não se lhe oferecendo qualquer dúvida sobre os mesmos, e predispondo-se até a fornecer imagens do jogo a que aludem os presentes autos, que confirmam os factos porque o Recorrido foi sancionado;
8. Ainda em sede de produção de prova, pelo visionamento do vídeo do jogo, facilmente se confirma que os factos relatados pelo árbitro principal no relatório de arbitragem, correspondem à verdade:
9. O tribunal a quo decidiu ilidir a presunção de veracidade do referido relatório de arbitragem, porquanto entende que os relatórios do observador da equipa de arbitragem, do Delegado da FPF e da Guarda Nacional Republicana não atentam os mesmos factos. Contudo, andou mal o tribunal a quo, porque os referidos relatórios, ainda que não atestante os factos relatados no relatório da equipa de arbitragem, não os contraria, nem nega, no limite, deve considerar-se que aqueles agentes não vislumbraram tais factos e não existe nenhuma norma que disponha que a presunção de veracidade só colhe quando existir unanimidade de todos os relatos em todos os relatórios, o que, a admitir-se, o que não se concede, levaria a que nada fosse sancionado com base na presunção de veracidade dos relatórios supra mencionados;
10. A prova testemunhal trazida aos autos, designadamente pelos depoimentos de H..... e A....., colega e treinador de equipa do Recorrido, respetivamente, em nada contrariam a presunção de veracidade do relatório da equipa de arbitragem, antes dizendo as testemunhas que não terão ouvido as expressões melhor descritas supra, o que se entende, pela distância a que se encontravam do local dos factos e pelo ruído que se fazia ouvir no estágio do referido momento, o que é facilmente percetível pelo visionamento do vídeo do jogo e do clip do lance em crise;
11. No que respeita ao depoimento do jogador J....., visado pelos insultos do Recorrido e à declaração subscrita por este e junta aos autos, os referidos meios de prova não devem ser admitidos, porquanto não foram trazidos aos autos de processo disciplinar, não oferecendo ao Conselho de Disciplina possibilidade de sobre eles se pronunciar, violando-se assim o princípio da estabilidade da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 165º do Código de Processo Penal e dos artigos 423º e 425º do Código de Processo Civil.
12. Sem prejuízo do supra exposto, caso os meios de prova referidos no artigo anterior sejam admitidos, o que não se concede e só por mera cautela de patrocínio se concebe, sempre se dirá que o referido depoimento e teor da declaração devem ser relativizadas, porquanto o jogador visado pelos insultos, além de denotar alguma inexatidão na narração dos factos, referiu expressamente, em sede de inquirição, que os presentes autos tratam de questão relativa ao seu “amigo”, o Recorrido, o que, pode toldar a clarividência na narração dos factos, devendo a valoração dos respetivos meios de prova ser relativizada.
13. Nos termos melhor demonstrados supra, em nenhum momento se demonstrou ilidida a presunção de veracidade do relatório da equipa de arbitragem, pelo que, da conjugação e valoração dos meios de prova juntos aos autos, atentando em critérios de razoabilidade, a livre apreciação da prova por parte do tribunal a quo, não poderia levar à conclusão de que a referida presunção havia sido ilidida, o que desde já se invoca para todos os efeitos legais, porquanto houve um claro erro na apreciação da prova, por parte do tribunal a quo;
14. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido do Relatório elaborado pela equipa de arbitragem, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que os factos imputados ao Recorrido, ocorreram de facto. Isto mesmo não entendeu, o Tribunal a quo.
15. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo do Relatório da equipa de arbitragem, cabia ao Recorrido demonstrar factos que ilidissem a presunção de veracidade daquele relatório, o que, salvo o devido respeito e ao contrário do que entende o tribunal a quo, não se verificou;
16. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o Recorrido, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - o proferimento de insultos racistas por parte do Recorrido-foi retirado da conjugação do que se encontra vertido no relatório da equipa de arbitragem com outros meios de prova;
17. A norma prevista e punida no artigo 149º do RD da FPF visa proteger valores jurídicos que garantam a sanção de comportamentos discriminatórios em geral e racistas no caso concreto, algo que encontra consagração não só regulamentar, mas que o Legislador quis fazer prever como garante do princípio da ética desportiva como basilar da construção legal no contexto desportivo, atribuindo a quem aplica o direito, especial e importante tarefa de sancionar, por forma a pôr cobro a comportamentos discriminatórios, impedindo que tais comportamentos saiam incólumes e se perpetuem no tempo;
18. O TAD apenas poderia alterar e/ou revogar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF;
19. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitral, andou mal o Colégio de Árbitros ao decidir revogar a condenação do Recorrido pela prática das infrações disciplinares p. p. pelo artigo 149º, do RD da FPF.”
O recorrido não apresentou contra-alegações.
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Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, as questões a decidir consistem em aferir do erro de julgamento do acórdão recorrido quanto:
- à admissão do depoimento do jogador J..... e da declaração por este assinada, com violação do princípio da estabilidade da prova;
- a considerar ilidida a presunção de veracidade do relatório de arbitragem e revogar a decisão da FPF.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1- Na época desportiva 2018/2019, o Demandante encontrava-se inscrito na FPF como jogador da categoria sénior, classe amadora, do F.....:
2- No dia 31 de março de 2019, disputou-se o jogo oficialmente identificado pelo n°. ....., entre o F..... e o C....., SAD, a contar para a 28a.jornada do Campeonato Portugal, época 2018/19;
3- A equipa de arbitragem presente no jogo aludido no ponto anterior foi composta pelo árbitro T....., pelo árbitro assistente n°.1 G..... e pelo árbitro assistente n°.2 M.....;
4- No jogo identificado no n°.2 que antecede, o Demandante foi inscrito pelo C....., em sede de ficha técnica, com a atribuição do n°.13;
5- No mesmo jogo, o C....., SAD,
inscreveu na respectiva ficha técnica, o jogador J....., correspondendo-lhe o n°.20;
6-Aos 45+2 minutos da primeira parte do jogo dos autos o Árbitro sancionou uma falta por si cometida sobre o jogador da equipa adversária;
7- Na sequência do sancionado, recebeu ordem de expulsão;
8- O jogo contou com a presença de observador da equipa de arbitragem, Delegado da FPF e da Guarda Nacional Republicana;
9- Nenhum dos elementos referidos no número antecedente ouviu da boca do Arguido as expressões que lhe foram imputadas no relatório de arbitragem;
10- O lance referenciado supra ó, foi disputado muito próximo dos bancos de suplentes das equipas e da bancada central do estádio.
11- O jogador J....., subscreveu uma Declaração, com termo de reconhecimento de assinatura presencial, datada de 3 de outubro de 2019, na qual, para além do demais que aqui se dá por integralmente reproduzido por razões de economia processual, refere “...em abono da verdade e para os fins tidos por convenientes, que no jogo de futebol realizado em 31 de março de 2019, que opôs as equipas do G..... e o C....., a contar para a 28°.jornada do Campeonato Portugal, não foi, enquanto jogador do C....., alvo de qualquer ameaça, injúria ou difamação de índole racista por parte dos jogadores do F....., designadamente o jogador T....., portador da Licença FPF n.º ....., o qual foi acusado indevida e injustamente pelo Conselho de Disciplina da FPF em processo disciplinar instaurado. Mais declara estar disponível a prestar as declarações e os esclarecimentos tidos por convenientes junto das instâncias disciplinares desportivas ou do Tribunal Arbitral do Desporto, desde que para tal seja convocado”.
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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir cingem-se a saber se ocorre erro de julgamento do acórdão recorrido quanto:
- à admissão do depoimento do jogador J..... e da declaração por este assinada, com violação do princípio da estabilidade da prova;
- a considerar ilidida a presunção de veracidade do relatório de arbitragem e revogar a decisão da FPF.

No que respeita à primeira questão, convoca a recorrente o princípio da estabilidade da prova e o disposto nos artigos 165.º do Código de Processo Penal, 423.º e 425.º do Código de Processo Civil.
Dispõe o referido artigo 165.º, sob a epígrafe ‘quando podem juntar-se documentos’, o seguinte:
“1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
2 - Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres de advogados, de jurisconsultos ou de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência.”
Os artigos 423.º e 425.º do CPC dispõem como segue:
“Artigo 423.º
Momento da apresentação
1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior. (…)
Artigo 425.º
Apresentação em momento posterior
Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Nenhum dos citados normativos permite amparar a posição que vem sustentada pela recorrente.
E basta atentar na legislação que especificamente se aplica ao caso, para concluir não lhe assistir razão.
A Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, criou o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) e aprovou a respetiva lei (LTAD), atribuindo-lhe competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto.
Ali se atribuindo ao TAD a natureza de entidade jurisdicional independente, nomeadamente dos órgãos da administração pública do desporto e dos organismos que integram o sistema desportivo, dispondo de autonomia administrativa e financeira – artigo 1.º, n.º 1.
Prevê-se no artigo 43.º da LTAD, sob a epígrafe ‘meios de prova’, o seguinte:
“1 - Pode ser produzida perante o TAD qualquer prova admitida em direito, sendo da responsabilidade das partes a respetiva produção ou apresentação, incluindo a prova testemunhal e pericial.
2 - Os articulados devem ser acompanhados de todos os documentos probatórios dos factos alegados e bem assim da indicação dos restantes meios de prova que as partes se proponham produzir.
3 - As testemunhas são apresentadas em julgamento pelas partes, podendo, no entanto, o colégio arbitral determinar a sua inquirição em data e local diferentes.
4 - Mediante requerimento devidamente fundamentado de qualquer das partes, pode o colégio arbitral fixar um prazo até cinco dias, para que as partes completem a indicação dos seus meios de prova.
5 - O colégio arbitral pode, por sua iniciativa ou a requerimento de uma ou de ambas as partes:
a) Recolher o depoimento pessoal das partes;
b) Ouvir terceiros;
c) Promover a entrega de documentos em poder das partes ou de terceiros;
d) Proceder a exames ou verificações diretas.
6 - O colégio arbitral procede à instrução no mais curto prazo possível, podendo recusar diligências que as partes lhe requeiram se entender não serem relevantes para a decisão ou serem manifestamente dilatórias.
7 - Quando solicitado por qualquer das partes, pode o colégio arbitral disponibilizar uma lista de peritos, constituída por pessoas de reconhecida idoneidade e mérito nas matérias da sua competência, sendo a respetiva designação e remuneração da exclusiva responsabilidade da parte interessada.”
Como bem se vê, a lei permite a produção de prova no TAD, seja por iniciativa das partes, seja por iniciativa do próprio Tribunal.
Pelo que carece de sentido a invocada violação do princípio da estabilidade da prova.

Quanto à segunda questão, está em causa a prática das infrações disciplinares previstas nos artigos 149.º, n.º 1, e 154.º, n.os 1 e 3, do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (RDFPF) da época 2018/2019, que dispõem como segue:
“Artigo 149.º
Comportamento discriminatório
1. O jogador que, através de qualquer meio de expressão, ofenda a dignidade de agente desportivo ou espectador em função da sua ascendência, sexo, raça, nacionalidade, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, é sancionado com suspensão de 2 meses a 2 anos e, acessoriamente e se o jogador for profissional, com multa entre 10 e 20 UC. (…)
Artigo 154.º Ofensas corporais a jogador ou espectador
1. O jogador que agrida fisicamente outro jogador ou espectador antes, durante ou após a realização de jogo oficial é sancionado com suspensão de 2 a 12 jogos e, acessoriamente e se for jogador profissional, com multa entre 5 e 10 UC. (…)
3. Se do facto não puder resultar, ou não tenha em concreto resultado, lesão física ou psicológica, o jogador é sancionado com suspensão de 1 a 8 jogos e, acessoriamente e se o jogador for profissional, com multa entre 5 e 15 UC.”

Consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:
O visado, nos dizeres do subscritor do relatório de fls„ vem ele mesmo, e como resultou provado, de motu próprio, prestar declarações, que infirmam aquele relatório, e que, à mingua de outros fundamentos, não podem deixar de actuar em beneficio do arguido. E as regras de experiência, acrescidamente invocadas, não podem deixar de caminhar no sentido de, pelo menos, inculcar seríssimas dúvidas sobre a correspondência entre o ocorrido e vertido no relatório de arbitragem, mais não seja, que tenha sido com absoluta certeza o arguido a proferir tais expressões, negadas, em sede de audiência peio próprio visado. Tal contexto é corroborado pelas demais testemunhas e elementos documentais, que não permitem com segurança e probabilidade séria afirmar que o arguido as proferiu. Aliás, mesmo que tal não tenha sido colocado em crise no decurso da inquirição do agente desportivo J....., sempre soçobraria uma dúvida insanável, que não poderia afastar, sequer, a presunção in dubio pro reo, o saber: qual a razão pela qual o dito agente subscreveria declarações em beneficio do arguido e corroboraria as mesmas em audiência de julgamento se o mesmo tivesse de facto proferido as expressões imputadas? Dos autos, em rigor de toda a prova carreada e produzida nenhuma dúvida foi suscitada ou demonstrada para que tal dúvida emergisse. Não pode o Tribunal, por um lado sobrepor-se a regras de produção de prova que impendem sobre as partes, e por outro lado decidir ignorando as regras de direito, onas probandi e bem assim a verdade material percepcionada e apurada no processo, cientes do principio da livre apreciação da prova, principio da mediação e particularmente que “ quod non est in actiis non est in mundo". Não deixa de ser arescidamente relevante na apreciação valoração da prova no seu todo, o facto de ser a própria Demandada quem considera, e bem, que “ não obstante não seja perceptível o que é dito pelo arguido, se confirma, sem sombra de dúvida, que o arguido diz alguma coisa ao jogador J..... ", como se pode ler no 1°. parágrafo da pág.14 de 34 do Acórdão proferido peia secção não profissional da Demandada. Ora, sem prejuízo dos testemunhos prestados em audiência de julgamento, que se mostraram serenos, credíveis e com conhecimento directo dos factos, importa referenciar o, coincidente, depoimento da testemunha A..... , treinador do FCPR que se encontrava junto ao banco de suplentes da respectiva equipa e portanto, próximo do local no qual ocorreu o lance em causa, negando peremptoriamente que o Demandante tenha proferido as expressão que lhe são imputadas, tendo mesmo detalhado que, a terem ocorrido, as teria ouvido, não apenas atenta a proximidade mas também o facto de não haver presença de adeptos em número suficiente ou barulho que o impedisse. Tenhamos presente que esta mesma orientação é consolidada confrontando o que emerge da presença e relatórios de observador da equipa de arbitragem, Delegado da FPF e da Guarda Nacional Republicana. E, ei incumbit probatio qui dicit non qui negot. O Tribunal não se bastou com as declarações apostas na cotada declaração, com o seu valor probatório e com as consequências que decorrentes da não impugnação. Para consolidar a segurança do desfecho decisório, ainda assim promoveu a inquirição de testemunhas e não deixou de fazer a concatenação de toda a prova carreada e da respectiva apreciação critica, e em suma, da conjugação de toda a prova e sem prejuízo da apreciação critica e da observação das regras de experiencia, não resultam quaisquer dúvidas que o arguido não proferiu as expressões que lhe são imputadas.
Sustenta-se essencialmente a alegação da recorrente, no sentido de se mostrar provada a comissão das citadas infrações, na presunção de veracidade dos relatórios, prevista no artigo 220.º, n.º 3, do RDFPF.
De acordo com o referido normativo, presume-se a veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da FPF, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa
Inscreve-se esta presunção nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar e confere um valor probatório reforçado àqueles elementos.
De tal preceito não decorre qualquer presunção de culpabilidade ou inversão do ónus da prova, posto que se limita a atribuir um valor probatório reforçado relativamente a factos presenciados pelas autoridades desportivas.
Os relatórios e declarações a que alude aquele artigo, estabelecem, caso dos mesmos isso expressamente decorra, a base fáctica que pode eventualmente consubstanciar a prática da infração.
Estabelecida esta base fáctica, passa a caber ao eventual agente da infração colocar fundadamente em causa o que dali consta, e ao julgador analisar os elementos que forem carreados para os autos pelo eventual agente da infração, decidindo se colocam em causa a prova já existente, ilidindo a presunção de veracidade daqueles elementos.
No caso dos autos, consta do relatório da equipa de arbitragem a seguinte justificação para a exibição de cartão vermelho ao jogador T....., aqui recorrido:
“Motivo: Usar linguagem e/ou gestos ofensivos, injuriosos ou grosseiros
Desc.: Após ter sancionado uma infração cometida pelo jogador n.13A, este dirigiu-se ao jogador n.20B, que tinha sofrido a infração, empurrando-o com o braço no peito e referindo as seguintes palavras: ‘Que queres preto filho da puta!?’.”
Do relatório do delegado da FPF ao jogo nada consta quanto à referida ocorrência.
De notar ainda que no relatório do observador do Conselho de Arbitragem da FPF é imputado erro grave ao árbitro da partida, pela amostragem de cartão vermelho infundamentado.
No âmbito do processo arbitral foram ouvidas três testemunhas, J....., A..... e H.....
A primeira é o jogador alvo do alegado insulto por parte do aqui recorrido. Nega perentoriamente que o insulto tenha sido proferido.
Para além do depoimento, juntou aos autos declaração assinada, na qual atesta que o referido insulto não ocorreu
A segunda é o treinador principal da equipa do recorrido. Diz que se encontrava a cerca de três metros, junto do banco de suplentes da equipa P....., e que o dito insulto não ocorreu.
A terceira testemunha é jogador da equipa do recorrido. Encontrava-se no banco de suplentes da equipa P....., muito perto do local onde ocorreram os factos e igualmente declara que o dito insulto não ocorreu.
Encontram-se incluídos no processo eletrónico ficheiros vídeo mp4, contendo as duas partes do jogo e um clip de 9 segundos relativo aos factos em questão.
Visualizadas as imagens deste ficheiro, constata-se que no momento em que se supõe ter sido proferido o insulto do recorrido ao jogador do clube adversário, o árbitro encontra-se a mais de três metros dos dois jogadores, para ali se dirigindo em passo de corrida logo que há contacto físico entre eles. Distância equivalente a que se encontrariam as outras duas testemunhas, no banco de suplentes da equipa P...... Com o ruído ambiente não se afigura possível discernir que palavras são proferidas pelos jogadores ou mesmo se sequer chegam a ser proferidas.
São estes os elementos de prova a ter em consideração.
Repise-se, à luz do citado artigo 220.º, n.º 3, do RDFPF, presume-se verdadeiro o relatório da equipa de arbitragem, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa.
O advérbio utilizado cria a necessidade de uma prova particularmente forte, que coloque em crise o que consta do relatório da equipa de arbitragem.
Já se viu que a entidade detentora do poder disciplinar mantém o juízo crítico sobre a prova produzida no sentido de não ter sido ilidida a referida presunção.
Contudo, tal juízo não se pode manter, após análise criteriosa dos elementos de prova constantes dos autos.
Como vem entendendo o STA, na fixação dos factos que funcionam como pressupostos de aplicação das penas disciplinares a Administração não detém um poder insindicável em sede contenciosa, porquanto nada obsta a que o julgador administrativo sobreponha o seu juízo de avaliação àquele que foi adotado pela Administração, mormente por reputar existir uma situação de insuficiência probatória (cf. os acórdãos de 24/01/2002, proc. n.º 048147, do Pleno de 18/04/2002, proc. n.º 033881, de 07/10/2004, proc. n.º 0148/03, de 07/06/2005, proc. n.º 0374/05, de 14/04/2010, proc. n.º 0803/09, de 28/06/2011, proc. n.º 0900/10, de 13/07/2016, proc. n.º 0516/14, e de 21/02/19, proc. n.º 33/18.0BCLSB).
E a condenação em pena disciplinar tem de assentar em provas que permitam um juízo de certeza, ou seja, uma convicção segura, que esteja para além de toda a dúvida razoável, de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados (cf. os acórdãos do STA de 07/10/2004, proc. n.º 0148/03, de 28/04/2005, proc. n.º 0333/05, de 21/10/2010, proc. n.º 0607/10, de 28/06/2011, proc. n.º 0900/10, de 15/03/2012, proc. n.º 0426/10, do Pleno de 23/01/2013, proc. n.º 0772/10, de 14/01/2016, proc. n.º 01546/14, de 28/01/2016, proc. n.º 0404/14, de 13/07/2016, proc. n.º 0516/14, e de 21/02/19, proc. n.º 33/18.0BCLSB).
No caso vertente, a versão dos factos apresentada pelo recorrido é corroborada pelos aludidos três depoimentos, entre os quais terá necessariamente de se salientar o do jogador visado pelo insulto de cariz racista, de acordo com a factualidade fixada no âmbito do processo disciplinar.
Não sendo despiciendo ainda o teor do relatório do observador da equipa de arbitragem, que mantém tratar-se de erro grave a expulsão do recorrido, ainda depois de ter reunido com aquela equipa.
A prova em sentido contrário à decorrente do relatório da equipa de arbitragem é inequivocamente forte e de molde a criar no julgador uma dúvida efetiva sobre a ocorrência dos factos que consubstanciam a prática das infrações. Trata-se de um non liquet em matéria de prova, que tem de ser resolvido a favor do recorrido, por aplicação do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e do princípio in dubio pro reo, que o concretiza.
Como tal, ter-se-á de concluir que bem andou a decisão recorrida ao considerar como não provados os factos que consubstanciam a prática das infrações imputadas ao recorrido e, consequentemente, ao julgar procedente a ação por ele interposta.

Em suma, será de negar provimento ao recurso.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 29 de outubro de 2020

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator consigna e atesta que as Juízas Desembargadoras Ana Cristina Lameira e Catarina Vasconcelos têm voto de conformidade com o presente acórdão.
(Pedro Nuno Figueiredo)